domingo, 15 de setembro de 2013

Malba Tahan (O Mensageiro da Morte)

Na última curva da estrada Te-ha-tá parou e olhou para o céu. As montanhas sombrias, cobertas de neve, pareciam gigantes encanecidos que vigiavam silenciosos as fronteiras do Tibete. O sol, já perto do horizonte, retardava a sua marcha como se quisesse receber as últimas preces com que os monges imploravam a misericórdia do Senhor da Compaixão.

A sombra de um vulto surgiu, sobre uma pedra, na margem da estrada. Te-ha-tá tremeu de pavor. Em seu caminho achava-se o impiedoso Han-Ru, o Anjo da Morte, o mensageiro da dor e da desolação.

O coração tem, por vezes, o dom de pressentir a desgraça. Te-ha-tá, ao avistar o Anjo da Morte, lembrou-se de sua noiva, a formosa Li-Tsen-li. Te-ha-tá dirigiu-se, pois, sem hesitar, ao mensageiro cruel do Destino.

- Han-Ru, ó gênio desapiedado! - exclamou. - Que procuras aqui, quase à sombra da casa da encantadora Li-Tsen-lí? Bem sei que a tua presença vale por uma sentença de morte.

Respondeu Han-Ru, com a paciência de um enviado do Eterno:

- A tua inquietação é legítima, meu amigo. Vim a este recanto buscar a tua noiva Li-Tsen-li. Chegou, pela determinação do Destino, o termo de sua existência neste mundo. Lí-Tsen-li vai morrer!

- Piedade, Han-Ru! Piedade! - implorou Te-ha-tá. - Ela é tão jovem, e tão prendada! Deixa viver Li-Tsen-li!

O Anjo da Morte meditou em silêncio durante alguns instantes e depois, sem erguer o rosto, disse: - Sei que tens direito a uma vida longa e tranqüila; restam-te, ainda, quarenta e seis anos de vida. Poderás ceder à tua noiva a metade do tempo que te cabe, no futuro, para viver.  Li-Tsen-li ficará, portanto, com direito à metade de tua vida e viverá em tua companhia, vinte e três anos. Findo esse prazo, morrerão ambos no mesmo instante? Aceitas essa proposta?

As palavras de Han-Ru fizeram hesitar o jovem Te-ha-tá. Quem, decerto, não ficaria indeciso antes de sacrificar, cedendo a outrem, a metade da própria vida?

- A tua sugestão, Han-Ru, implica uma decisão de infinita gravidade para a minha vida. Não poderei tomar uma decisão nesse sentido, sem, previamente, consultar os meus três grandes amigos. Poderás esperar que eu ouça a opinião daqueles que sempre me auxiliaram e me orientaram na vida?

- Farei como pedes, meu amigo - respondeu o Anjo da Morte. - Até o findar da noite que vai começar, aguardarei a tua palavra final. Deverás voltar, com a tua decisão, à minha presença, antes do amanhecer.

Partiu Te-ha-tá em busca dos amigos, cujos sábios conselhos pretendia ouvir. Deveria ele como noivo sacrificar a metade da sua vida para salvar das garras da Morte a criatura amada?

O primeiro amigo de Te-ha-tá era um artista tibetano de assinalados méritos. Su-Liang sabia esculpir com admirável perfeição, na pedra ou na madeira, e os seus trabalhos eram muito apreciados.

Eis como Su-Liang, o escultor, falou a Te-ha-tá:

- A vida, meu amigo, só tem sentido quando a sua finalidade é traduzida por um grande e incomparável amor. E o amor que dispensa sacrifícios e renúncias não é amor; é a expressão grotesca de um capricho vulgar. Feliz aquele que pode demonstrar a grandeza de seu coração medindo-a pela extensão de um ingente sacrifício. Pela mulher amada deve o homem sacrificar, não apenas a metade de sua vida, mas a vida inteira! Que importa, Te-ha-tá, uma existência longa, torturada pela dor de uma incurável saudade? Preferível, mil vezes, que vivas a metade de tua vida à sombra feliz do amor delicioso de tua eleita. No teu caso eu não teria hesitado, um só instante, em aceitar a proposta do terrível Han-Ru.

O segundo amigo de Te-ha-tá chamava-se Niansi. Era hábil caçador e auferia consideráveis lucros mercadejando peles.

Ao ouvir a consulta do jovem, Nian-si não se conteve.

- É uma loucura, Te-ha-tá! Onde se viu um moço, rico e cheio de saúde, sacrificar a metade da vida por causa de uma mulher? Encontrarás, pelo mundo, milhões e milhões de mulheres lindas. Aqui mesmo (no Tibete) poderás topar, em qualquer aldeia, com centenas de meninas, algumas das quais nada ficariam a dever, julgadas pelos seus predicados de graça e beleza, à tua noiva Li-Tsen-li! Desgraçada a idéia de quereres adiar o termo da existência de uma mulher com o sacrifício de vinte e tantos anos de tua vida! E quem poderá prever o futuro? Amanhã, essa mulher, arrebatada por uma nova paixão e deslembrada do sacrifício que por ela fizeste, abandonar-te-á e irá viver, nos braços de outro, a vida que é a tua própria vida! Que farás, então, vendo-a ceder a um odiento rival os dias roubados ao rosário de tua existência? Penso que não deverias ter hesitado ante a proposta descabida de Han-Ru, repelindo-a no mesmo instante.

A divergência entre os dois amigos mais fez crescer a indecisão e a incerteza no coração de Te-ha-ta.

- Vou ouvir - pensou o jovem - a opinião do prudente Kín-Sa. Só ele poderá indicar-me o caminho a seguir.

Kín-Sa, citado no Tibete como um estudioso das leis e dos ritos, assim falou ao apaixonado noivo:

- Se amas realmente Li-Tsen-li, acho que deves ceder, a essa jovem, a metade do tempo que te resta para viver. Convém, entretanto, impor uma condição. A parcela de vida, depois de cedida a Li-Tsen-li, poderá ser retomada por ti, em qualquer momento. Terás, assim, a tua tranqüilidade garantida no caso de uma infidelidade de tua futura esposa. Se ela, por qualquer motivo, não se mostrar digna de teu sacrifício, perderá o direito ao resto da vida que lhe cabia viver! Fora dessa condicional, qualquer outra solução para o caso não passaria de irremediável loucura!

E concluiu o seu conselho com estas palavras:

- Fizeste bem em hesitar. A hesitação é irmã da Prudência. Só os loucos e temerários é que nunca hesitam.

Achou Te-ha-tá bastante prudente e razoável a proposta sugerida pelo douto Kin-Sa, e levou-a, sem perda de tempo, ao conhecimento de Han-Ru, o Enviado da Morte.

Han-Ru aceitou a condição imposta pelo noivo:

- Está bem, Te-ha-tá. Aceito a tua proposta. A bondosa Li-Tsen-li vai viver os vinte e três anos. Esta parcela de vida não foi, porém, dada, mas sim "emprestada".

Passaram-se muitos meses. Li-Tsen-li casou-se com o jovem Te-ha-tá, e os dois eram citados como os esposos mais felizes do Tibete. Li-Tsen-li, depois do casamento, passou a chamar-se Ti-long-li, vocábulo que significa "minha vida querida".

Um dia, afinal, Te-ha-tá foi obrigado a fazer uma longa viagem para além das fronteiras de sua terra. Deixou Ti-long-li e seu filhinho, que já contava algumas semanas, em companhia de seus pais.

Quando regressou, tempos depois, teve a surpresa de encontrar os seus três amigos que o aguardavam na entrada da pequena povoação.

- Onde está Ti-long-li? - perguntou, ansioso, aos amigos. - Por que não veio? Estará doente? Que aconteceu à Ti-long-li?

Disse um dos amigos:

- Enche de ânimo e de coragem o teu coração, ó Te-ha-tá ! Uma grande desgraça, há três dias, caiu sobre a tua vida!

- Desgraça? - repetiu, aflito, Te-ha-tá. - Horrível esta angústia! Vamos! Quero saber a verdade! Onde está Ti-long-li?

- Morreu!

- Morreu! - gritou Te-ha-tá, desesperado. - Não é possível! Não podia morrer! Eu sacrifiquei por ela, metade de minha vida!

E Te-ha-tá, dominado pela dor e revoltado pelo infortúnio de haver perdido a sua esposa querida, entrou a blasfemar como um possesso, contra o Senhor da Compaixão. Erguia os braços para o céu; rolava, por vezes, sobre a terra. Insultava o nome do Criador. Os amigos afastaram-se, cautelosos. Era preciso deixar o infeliz Te-ha-tá dar plena expansão à indizível angústia que lhe esmagava o coração.

Em dado momento Te-ha-tá viu surgir diante de si a figura de Han-Ru, o Anjo da Morte.

- Han-Ru! - bradou, num tom de incontido rancor. - Faltaste com a tua palavra. Que fizeste de Ti-long-li?

- Escuta, Te-ha-tá - respondeu Han-Ru. - Preciso dizer-te a verdade, para que não continues a blasfemar desse modo. A tua esposa deveria viver vinte e três anos. Um dia, porém, o seu filhinho adoeceu gravemente. O pequenino ia morrer. Que fez a tua esposa? Pediu, em preces, que a sua vida fosse dada ao filhinho enfermo para que ele pudesse viver! Salvou-se o teu filho, mas tua esposa morreu!

E, ante a estupefação de Te-ha-tá, o Anjo da Morte concluiu:

- E enquanto tu, como noivo, hesitaste em ceder a metade de tua vida, ela, mãe extremosa, não hesitou um segundo em dar, pelo filhinho, a vida inteira!

 Fonte:
Malba Tahan. Minha Vida Querida.

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VII

foi mantida a grafia original.
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A CRISTO

Precisamos Jesus, se não Te sentes velho,
Que cinjas novamente o resplendor da luz
E venhas explicar a letra do evangelho
A muitos que hoje vês prostrados ante a cruz!

Ainda não cessou, de todo, essa contenda
Que um dia, há muito já, tentaste debelar:
E aqueles que são bons e adoram Tua lenda
Desejavam também ouvir-Te hoje falar.

Apenas ressoasse o Teu verbo indignado,
O látego febril das grandes corrupções,
Iria atrás de Ti um mundo revoltado
Que sente na consciência a luz das redenções.

E embora não houvesse, aqui, outra alma gémea
Da Tua, e tão ungida em bálsamos dos céus,
Havias de encontrar essa alma de boémia
Que sonha uma justiça e sente em si um Deus!

Mas não, não voltes cá: Teu corpo combalido
Não pode suportar os gelos da manhã.
Precisavas de pão, de abrigo e de vestido
E a vida aqui é cara e longo o macadam!

Terias de encontrar, decerto, mil estorvos
No mundo revolvido, e escuta-me Jesus:
Se não fosses, enfim, comido pelos corvos
Talvez Te fuzilasse um cura Santa-Cruz!

Serias apontado a dedo, muitas vezes,
Como um simples bandido, um agitador feroz,
E haviam de esconder seus ouros os burgueses
Apenas ressoasse, ao longe, a Tua voz!

Depois vinhas achar a par do proletário,
Ao pé do que se inunda em bagas de suor,
Aquele velho Pedro, agora milionário,
E triste por pensar que já esteve melhor!

E perto do ócio vil à sombra do qual medra
O egoísmo feroz que extingue o coração,
Lutando todo o dia o britador de pedra
A quem à noite espera, em casa, um negro pão;

E uns pequenos sem cor; talvez cheios de fome,
Com pouca luz no olhar; atrofiados, nus;
Abrindo os olhos muito à côdea que ele come
E indo-se deitar sem roupas e sem luz!

Assim deixa-Te estar. O Teu cadáver triste
Recende uma fragrância etérea e divinal,
Enquanto o mundo segue e vai de lança em riste
Sem tréguas combatendo as legiões do Mal!

Tu foste o paladino, o trovador sagrado,
Que falaste do amor, da paz e do perdão,
E o ferro que varou Teu corpo lado a lado
Contudo inda reluz altivo em muita mão!

Nós, hoje, quando em luta erguemos sobre a liça
O gládio vingador das opressões cruéis,
Soltamos, num sorriso, o nome da Justiça,
E há quem saiba morrer sem bênçãos nem lauréis!

Descansa pois Jesus! Bem basta que Tu sintas,
Nesse velho sepulcro, o imenso vozear
Dos mineiros sem luz, das legiões famintas,
Que nunca, um dia só, deixaram de lutar,

Mas que hão de enfim vencer, porque a suprema essência
A jorros cai do Céu nas mãos dos Prometeus,
E tanto vai subindo a vaga da consciência
Que um dia há de abismar-se em nós o próprio Deus!

Eu tive um sonho estranho: ouvi que vou dizê-lo.
Era em praia deserta, em frente a um longo mar:
Nos céus havia a névoa, a mãe do Pesadelo,
E o vago, o incerto, o informe em tudo a oscilar!

De súbito surgiu, na praia, uma criança
De olhar profundo e bom, de angélica expressão,
E o mar contemplou com tanta confiança
Que nem que visse nele o berço dum irmão!

Mas a vaga subindo, em cada extremo arranco
Levando ia consigo aquela flor dos céus!
E em breve só boiava um ténue vulto branco
No mar onde flutua o espírito de Deus!

Mais tarde à beira-mar chegava a pura imagem
Da mais casta mulher que em vida pude ver.
Detinha-se distante: — a espuma da voragem
Só meia extenuada aos pés lhe ia morrer! -

O imenso mar, porém, crescia a cada instante
Mais turvo e mais veloz! Depois... Não quis ver mais.
Ergui-me e caminhei de vale em vale errante
Pensando tristemente em coisas ideais! -

Ao longe, muito além, na serra desviada
De súbito encontrei — ó estranha aparição! -
Uma pobre velhita enferma e desolada
Trazendo já no olhar a grande cerração!

Que ideia me assaltou não sei dizê-lo agora.
Aonde iria o espectro, aquela sombra vã?
Iria aonde vai o que ontem foi aurora
E aonde irão também as rosas de amanhã?...

Dos meus instantes bons, ó lúcida quimera,
Bem vês que os sonhos maus são fáceis de esquecer!
Que importa a grande noite em plena primavera,
Que importa o que tu foste, o que és, e o que hás de ser!!

O GRANDE TEMPLO

Eu não trajo o burel do magro cenobita
Nem me posso infligir cruéis macerações;
Mas não rio de alguém que busca a paz bendita
No seio casto e bom das grandes solidões.

Bem sei que há na montanha aromas penetrantes
E certas vibrações que podem fazer mal;
Mas se é preciso Deus, direi que é melhor antes
Amá-Lo com fervor no templo universal!

Enquanto sobre o altar das serras azuladas
Mil lâmpadas do céu derramam toda a luz,
Nas velhas catedrais, já meio arruinadas,
O tempo — o grande verme! — até devora a cruz!

Depois é fácil ver, por entre os arabescos,
Que a arte sensual traçou com tanto amor,
As vezes, o sorrir dos Sátiros grotescos
Pungindo cruelmente a face do Senhor.

Ou mais; podemos nós voar todos cativos
Do sereno ideal, daquele sumo bem,
Ao vermos tanta vez os Faunos mais lascivos
Olhando de revés a virgem nossa mãe?!

E ainda mil traições: as músicas, as flores,
Os lindos serafins voando todos nus;
Da seda que se arrasta os lânguidos rumores,
Do incenso as espirais; os turbilhões de luz!

Oh! Visto haver de tudo; aromas e decotes,
O vinho cintilante, a viva luz do gás;
Que a vossa rouca voz, pomposos sacerdotes,
Não cante apenas Deus; que solte alguns hurras!

O fumo dessa festa, a mim, pouco me assusta.
Se eu quero alguma vez fugir do pó, voar,
Eu tenho o vale profundo ou a floresta augusta,
As montanhas, os céus, e o belo, o vasto mar!

Da casta natureza ó templo gigantesco,
Tu és mais amplo, sim; mais livre, muito mais!
O meigo e doce olhar do Cristo romanesco
A multidão gentil não chama aos teus umbrais.

Alexandre Garcia (Sentar-se à janela do avião)

Era criança quando, pela primeira vez, entrei em um avião. A ansiedade de voar era enorme.

Eu queria me sentar ao lado da janela de qualquer jeito, acompanhar o vôo desde o primeiro momento e sentir o avião correndo na pista cada vez mais rápido até a decolagem.

Ao olhar pela janela via, sem palavras, o avião rompendo as nuvens, chegando ao céu azul.

Tudo era novidade e fantasia...

Cresci, me formei, e comecei a trabalhar. No meu trabalho, desde o início, voar era uma necessidade constante. As reuniões em outras cidades e a correria me obrigavam, às vezes, a estar em dois lugares num mesmo dia.

No início pedia sempre poltronas ao lado da janela, e, ainda com olhos de menino, fitava as nuvens, curtia a viagem, e nem me incomodava de esperar um pouco mais para sair do avião, pegar a bagagem, coisa e tal.

O tempo foi passando, a correria aumentando, e já não fazia questão de me sentar à janela, nem mesmo de ver as nuvens, o sol, as cidades abaixo, o mar ou qualquer paisagem que fosse.

Perdi o encanto. Pensava somente em chegar e sair, me acomodar rápido e sair rápido.

As poltronas do corredor agora eram exigência. Mais fáceis para sair sem ter que esperar ninguém, sempre e sempre preocupado com a hora, com o compromisso, com tudo, menos com a viagem, com a paisagem, comigo mesmo.

Por um desses maravilhosos 'acasos' do destino, estava eu louco para voltar de São Paulo numa tarde chuvosa, precisando chegar em Curitiba o mais rápido possível.

O vôo estava lotado e o único lugar disponível era uma janela, na última poltrona.

Sem pensar concordei de imediato, peguei meu bilhete e fui para o embarque.

Embarquei no avião, me acomodei na poltrona indicada: a janela. Janela que há muito eu não via, ou melhor, pela qual já não me preocupava em olhar.

E, num rompante, assim que o avião decolou, lembrei-me da primeira vez que voara. Senti novamente e estranhamente aquela ansiedade, aquele frio na barriga. Olhava o avião rompendo as nuvens escuras até que, tendo passado pela chuva, apareceu o céu.

Era de um azul tão lindo como jamais tinha visto. E também o sol, que brilhava como se tivesse acabado de nascer.

Naquele instante, em que voltei a ser criança, percebi que estava deixando de viver um pouco a cada viagem em que desprezava aquela vista.

Pensei comigo mesmo: será que em relação às outras coisas da minha vida eu também não havia deixado de me sentar à janela, como, por exemplo, olhar pela janela das minhas amizades, do meu casamento, do meu trabalho e convívio pessoal?

Creio que aos poucos, e mesmo sem perceber, deixamos de olhar pela janela da nossa vida.

A vida também é uma viagem e se não nos sentarmos à janela, perdemos o que há de melhor: as paisagens, que são nossos amores, alegrias, tristezas, enfim, tudo o que nos mantém vivos.

Se viajarmos somente na poltrona do corredor, com pressa de chegar, sabe-se lá aonde, perderemos a oportunidade de apreciar as belezas que a viagem nos oferece.

Se você também está num ritmo acelerado, pedindo sempre poltronas do corredor, para embarcar e desembarcar rápido e 'ganhar tempo', pare um pouco e reflita sobre aonde você quer chegar. A aeronave da nossa existência voa célere e a duração da viagem não é anunciada pelo comandante.

Não sabemos quanto tempo ainda nos resta. Por essa razão, vale a pena sentar próximo da janela para não perder nenhum detalhe.

Afinal, 'a vida, a felicidade e a paz são caminhos e não destinos'.

Fonte:
www.quemtemsedevenha.com.br (site desativado)

Aluísio Azevedo (O Coruja) Parte 40

CAPÍTULO XIV
A carta anônima era obra de Leonília. Esta só se decidira a lançar mão de semelhante meio de vingança depois de bem convencida da inutilidade dos esforços empregados por ela para surpreender de novo a mulher de Teobaldo em outra entrevista com o Aguiar.

Como toda a infeliz que em tempo não se abrigou a uma afeição legítima e duradoura, a cortesã sentia a sua má vontade contra os homens azedar-se à proporção que seus encantos desapareciam.

Ela estava na dolorosa transição dos quarenta anos; época em que toda a mulher só pode ser sublime ou ridícula. Sublime se a fizeram casta e principalmente se a natureza lhe permitiu ser mãe; e ridícula, se a desgraçada perdeu a flor da sua mocidade ao reflexo das orgias e ao grosseiro embate da prostituição.

Ah! Não se pode esperar de uma criatura nestas últimas circunstâncias senão o ódio contra tudo e contra todos. Durante a vida inteira deram-se de corpo e alma ao prazer, e, desde que este lhes volta as costas, sentem-se totalmente desamparadas.

E nem ao menos resta-lhes a consolação de desabafar o muito que sofrem, porque, amarradas aos próprios destroços, precisam esconder com o mesmo cuidado tanto os sintomas da velhice como as manifestações da desgraça; não se animam a rir por medo de mostrar os dentes que já lhes faltam; não se animam a chorar receosas de que as lágrimas lhes despintem os olhos.

Leonília, porém, ainda não estava de todo abandonada; sentia ainda atrás de si o tossir decrépito de seus velhos amantes e ouvia-lhes o som dos passos trôpegos e mal seguros. Ao seu lado só ficaram aqueles que, já idosos, ainda a pilharam moça e formosa; só esses não desertaram, que lhe faltavam as forças para isso e outrossim não lhe notavam os estragos do tempo e os sulcos da velhice, porque a vista lhes fora faltando a eles à proporção que a ela fora faltando a beleza.

Mas, ah! Justamente quando esta vai fugindo, é que a mulher mais a exige nos seus amantes; à moça, bonita e cheia de vida, pouco importa que o homem a quem se dá seja tão novo e tão lindo como ela; para o seu completo deleite chegam-lhe os próprios encantos e, vaidosa, contenta-se com ser admirada e não precisa admirar ninguém. Só às feias ou às que já perderam as frescuras da mocidade interessam os encantos do homem a quem se dão; querem que ele tenha aquilo que já lhes falta a ela. Chegada certa idade, trocam-se os papéis, por isso que os velhos morrem de amor pelas mocinhas e as matronas tanto apetecem aos magros estudantes de preparatório.

À Leonília, por conseguinte, já não bastava o séquito de seus amantes mais velhos do que ela, e era, pois, com profundo desgosto que acompanhava os passos de Teobaldo, vendo-o luzir por toda a parte, belo, sempre desejado, resplandecendo em meio de dois oceanos, um de inveja e outro de amor. A desgraçada não podia habituar-se à idéia de que aquele ingrato, pouco mais moço do que ela, estadeasse agora no apogeu da força e da fortuna, sem se lembrar ao menos da existência de uma pobre mulher, que o amara tão apaixonadamente.

E por isso tratou de remeter-lhe uma nova carta anônima, e logo depois outra e mais outra; certa de que com elas havia de lhe amargurar a existência. Com efeito, aquelas cartas anônimas, lançadas da sombra, traziam Teobaldo ultimamente bastante apoquentado e aborrecido, tanto mais que ele não podia fixar a sua desconfiança contra nenhum dos seus dois amigos. Ora sondava a mulher, ora sondava o Aguiar, ora o Coruja; e o resultado de suas observações eram sempre as mesmas sombras e as mesmas incertezas.

André, todavia, estava bem longe de desconfiar que era alvo de tais suspeitas; a sua existência agora, agora mais que nunca trabalhosa e cheia de responsabilidades, gastava-se em esforços de todo gênero. Oito meses haviam decorrido depois do seu compromisso com o Banco e, segundo os seus planos, a primeira entrada de dinheiro seria feita no dia convencionado. Não perdera um instante e não distraíra um vintém das suas economias; todas as aspirações necessárias para chegar aos seus fins, ele as afrontara heroicamente; e D. Margarida e mais a filha, aguardando em sôfrego silêncio o termo dessa campanha, contavam as horas e os segundos, apenas reanimadas, de quando em quando, pelas palavras do professor, que parecia cada vez mais seguro do cumprimento da sua promessa.

Agora um novo tipo freqüentava a casa de D. Margarida. Era o Costa, um alferes de polícia, conhecido pela alcunha de Picuinha. Homenzito esperto, despejado de maneiras e muito metido a taralhão com todo o mundo. Tinha o nariz comprido, luminoso e de papagaio, os olhos fundos, o queixo muito metido para dentro, com uma boquinha de coelho. Quando soltava uma das suas escandalosas gargalhadas, viam-se-lhe as presas, solitárias como as presas de um cão, porque ele já não possuía os dentes da frente. Era imberbe e macilento, o pescoço fino, as mãos nodosas e feias; todo ele raquítico e pobre de sangue, a jogar com o corpo da direita pata a esquerda, principalmente quando aparecia depois do jantar, com a farda desabotoada sobre o estômago, o boné à nuca, uma ponta de cigarro presa ao canto dos lábios e uma chibata na mão, a fustigar com ela de vez em quando o brim engomado das suas calças brancas.

D. Margarida o suportava por simples conveniência: o alferes era seu freguês de roupa e gostava de aparecer-lhe à tarde, para cavaquear à janela; um cotovelo sobre o peitoril, as pernas cruzadas, a cuspilhar consecutivamente pedacinhos de fumo que ele mascava do cigarro.

O que ela não podia lhe perdoar era o costume de bebida. O alferes em dias de folga metia-se no gole e escandalizava a rua inteira.

— É todo o seu mal! Dizia a velha. Tirando daí, não há melhor criatura!

Ele gostava de brincar com todos; não tinha graça, mas estava sempre disposto a rir; o casamento de André era assunto obrigado das suas pilhérias, quando queria mexer com Inês.

— Ele, a modos que não tem lá essas pressas de casar!...

Chacoteava a respeito do Coruja, apresentando na sua boca de roedor as duas presas isoladas.

Mas, quando a velha tomava a defesa do futuro genro, o Picuinha fazia-se sério e elogiava-o.

— Bom moço... Resmungava. Não é dos mais simpáticos, mas muito sisudo, e, dizem que sabe por uma academia!

A velha entrava então a falar sobre o colégio, sobre os altos compromissos de André e no casamento da filha, o qual seria efetuado, impreterivelmente, daí a quatro meses!

— E eu cá estou para entrar no bródio! Exclamava o alferes, chibateando as calças. — Quero só ver como aquele tipo se sai nesse dia! Consta-me que vai ser coisa de arromba!

Ali pela vizinhança da velha com efeito já se boquejava a propósito do casório, e diziam até que o noivo estava muito bem e que o seu colégio era o melhor do Rio de Janeiro.

— Ah! Mas também apertado como ele só! Afirmava uma amiga de Inês, muito cheirona da vida alheia. Aquilo é criaturinha que traz por conta os cordões do bolso! Não há meio de lhe apanhar uma de X! E depois — Que cara de homem, credo! Parece que está sempre arreliado!

O Coruja, em verdade, tornava-se cada vez mais esquisitório e mais e mais farroupilha; não havia meio de obrigá-lo a comprar um fato novo e a resignada Inês, posto não desse demonstrações, tinha já certo vexame quando o via surgir no canto da rua, com a grande cabeça enterrada nos ombros, a jogar o corpo no seu pesado andar de urso.

Em casa de Teobaldo, os criados o olhavam por cima do ombro e o Aguiar chegava muita vez a virar-lhe o rosto.

Dantes o primo de Branca ainda procurava disfarçar a sua repugnância pelo professor, mas agora nem se dava ao trabalho de fazer isso, e, sempre que a dona da casa lhe falava nele, não perdia a ocasião para ridicularizá-lo.

Em geral o pretexto destas zombarias era a famosa história do Brasil. Branca procurava defender o trabalho do Coruja, chegando até a impacientar-se com aquela grosseira perseguição do primo.

CAPÍTULO XV

Aguiar, depois que emprestara os seis contos de reis a Teobaldo, deixava transparecer muito mais claramente aos olhos da prima as suas intenções a respeito desta; Branca fingia não dar por isso, mas, de si para si, tomava as suas cautelas contra o sedutor.

Não lhe convinha entretanto denunciá-lo ao marido, não só porque bem poucas vezes entrava em conversa íntima com este, como porque, conhecendo o gênio irrefletido de Teobaldo, temia, em lhe dizendo tudo, armar algum escândalo mais perigoso e lamentável do que o próprio objeto que o promovia.

Uma ocasião, porém, o primo chegou-lhe a falar com tamanha insistência e com tamanha clareza, que ela instintivamente ergueu-se da cadeira em que estava e mediu-o de alto a baixo.

— Por que me trata desse modo?... Perguntou o Aguiar, abaixando os olhos e afetando
tristeza.

— Porque o senhor assim o merece, respondeu ela imperturbavelmente.

— E terei eu culpa de amá-la tanto?...

— Proíbo-o de repetir semelhante frase, ou ver-me-ei obrigada a tomar medidas mais sérias a este respeito. E, por enquanto, não lhe posso prestar atenção. Com licença.

— Branca! Ouça, peço-lhe que me ouça!

— Enquanto não estiver disposto a se portar dignamente para comigo, far-me–á o obséquio de não por os pés nesta casa.

Dito isto, Branca se afastou tranqüilamente, como se viera de dar qualquer ordem a algum dos seus criados, e saiu da sala sem o menor gesto que traísse a sua indignação.

Apesar disso, no entanto, ele não desistiu da sua empresa e, sem se dar por achado com as palavras da prima, continuou a freqüentar a casa, como se nada houvesse sucedido de extraordinário e apenas tratando de disfarçar o seu projeto de novos ataques.

Um belo dia, três meses depois daquela cena, surpreendendo Branca no fundo de um caramanchão que havia na chácara, a ler distraída, tomou-a de improviso pela cintura e caiu-lhe aos pés, exclamando:

— Perdoa, perdoa, se de tudo me esqueço e não resisto a este amor insensato que me consome.

E ia ferrar-lhe um beijo na face, quando Branca, escapando-lhe das mãos, ligeira como um pássaro, lançou-lhe contra o rosto uma bofetada.

Ele ergueu-se rubro de cólera e encarou-a de frente.

— Rua! Fez ela, apontando-lhe a saída. Já!

Ele não se mexeu.

— Já! Não ouviu?! Não quero que fique aqui nem mais um instante! Rua!

— Enxota-me?!

— E, se não me quiser obedecer, juro-lhe que Teobaldo a isso o constrangerá!

Aguiar sorriu, e respondeu afinal, torcendo o bigode entre os dedos:

— Não tenho medo de caretas, minha prima! Sairei daqui se eu bem quiser. Pode ir fazer queixa de mim a seu marido, vá! Diga-lhe o que entender, não me assusto com isso... Agora, sempre lhe previno de que a honra dele está nas minhas mãos e que de um momento para outro, posso reduzi-lo a trapos! Vá! Pode ir! Lembre-se, porém, de que eu tenho em meu poder títulos assinados por seu marido; títulos já vencidos e que são o bastante para lançá-los, a ele e a senhora, na ruína e na vergonha! Prefere lutar? Pois cá estou às suas ordens, e há de ver, que se fui fraco e imbecil no meu amor, saberei ser forte e cruel no meu ressentimento!

E o Aguiar saiu da chácara, deixando a prima inteiramente dominada pela impressão do que ouvira.

Quando tornou a si ela correu ao quarto, assustada e trêmula, como a corça que pressente a próxima tempestade, e lançou-se no leito, aflita e estrangulada por um desespero nervoso, um desespero que respirava de todo o seu ser, uma agonia que vinha de sua alma e também de sua carne; mas que ela de forma alguma podia explicar se era raiva, se era vergonha, se era ressentimento ou pura necessidade de amor.

E, oprimindo os olhos com os punhos cerrados e mordendo as articulações dos dedos, soluçava, soluçava tanto, e tão rápidos e seguidos eram os seus soluços que pareciam uma interminável gargalhada de quem enlouquece à força de sofrer.

À noite tinha febre, sentiu a cabeça andar à roda, mas ergueu-se e foi ter ao quarto do marido. Ela! Que havia tanto tempo não mostrava a menor curiosidade em saber a que horas ele entrava da rua ou saía de casa.

Teobaldo a recebeu tão surpreso quanto ela já estava calma e completamente senhora de si.

Era sem dúvida para impressionar aquela pálida figura de mulher, toda vestida de luto, que outro trajo não usara depois da sua viuvez moral, aquela figura altiva e sofredora, cuja expressão geral da fisionomia punha em colisão qualquer espírito, para decidir qual seria a maior e a mais forte: se a energia do seu caráter ou se a violência dos desgostos que a perseguiam.

Tão grande foi a surpresa de Teobaldo, que ele não encontrou para receber a mulher senão o gesto e a exclamação inconscientes do seu pasmo.

– Venho pedir-lhe um favor, disse ela.

— Um favor?

— Sim. É que liquide quanto antes as suas contas com meu primo.

— E por quê?

— Porque assim é preciso.

— Mas a razão porque é preciso?

— Não posso dizer, mas afianço que é preciso liquidar as suas contas com aquele homem.

— Tem a senhora alguma razão de queixa contra ele?

— Nenhuma.

— Por acaso ter-lhe-ía seu primo falado a respeito da minha dívida?

— Não; asseguro-lhe, porém, que é de todo interesse para nós livrarmo-nos dele.

— Sim, mas a senhora há de confessar que eu tenho o direito ao menos de querer saber o motivo desta sua exigência.

— E eu não lhe posso dizer qual é o motivo.

— Então por que veio me falar nisto?

— Porque era meu dever, O senhor no fim de contas, é meu marido e eu tenho obrigação de zelar pelos seus interesses.

— Obrigado, confesso-lhe, porém, que os obséquios dessa ordem não trazem a menor vantagem!

— Não faço um obséquio; cumpro com o meu dever, já disse.

— Mas, se a senhora vem me dizer isto, é que alguma coisa de extraordinário se passou aqui! Ou eu já não tenho também o direito de saber o que vai pela minha casa?

— Oh! Tem todo o direito; entendo, porém, que não é de minha obrigação dar-lhe contas do que vejo e observo. Se o senhor quer estar ao par do que se passa em sua casa, faça por isso, que não fará mais do que o seu dever.

— Engana-se; daquela porta para dentro é à senhora que compete zelar pelo que se passa nesta casa.

— E por isso venho prevenir-lhe de que é de toda a conveniência liquidar quanto antes os seus negócios com meu primo.

— Sem apresentar a razão por que.

Ela não respondeu dessa vez e fez menção de sair.

O marido deteve-a.

— E a senhora pensou um instante nas conseqüências que pode ter esta sua meia denúncia?

— Já pensei tanto quanto devia.

— E não calculou até que ponto elas poderiam chegar?

— Calculei.

— E não saberá porventura que nas condições apertadíssimas em que me acho, as suas palavras só me podem servir para mais atrapalhar a minha vida e aumentar o desespero em que ando?

— Sei apenas que é preciso fazer o que lhe disse.

— Pois aponte-me os meios para isso! Diga-me onde devo ir buscar dinheiro para fazer face a uma dívida em que eu não pensava agora ...

— Os negócios que se tratam daquela porta para fora pertencem-lhe, como de portas para dentro pertencem a mim zelar por esta casa.

E, tendo dito isto, retirou-se do gabinete do esposo ainda mais fria e sobranceira do que se apresentara.

Foram inúteis todos os esforços que Teobaldo empregou para detê-la ainda.
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continua…

sábado, 14 de setembro de 2013

Folclore dos Estados Unidos (O Coiote e a Tartaruga)

Uma noite, o Bebê Tartaruga estava com muita fome então ele decidiu deixar a segurança do rio em busca de alimento.

Logo ele encontrou um cacto com frutas muito doces.

O bebê tartaruga andou sozinho, comendo e rindo.

O sol forte se levantou e começou a bater no deserto.

Quando o Bebê Tartaruga procurava por mais comida,  percebeu que estava perdido.

A tartaruguinha começou a chorar.

O coiote ouviu o choro e foi investigar.  O Bebê Coiote estava escondido debaixo de um arbusto e  rapidamente o coiote fez planos para o jantar.

“Era uma canção bonita que você estava cantando. Por favor, continue enquanto eu construir uma grande fogueira para cozinhar você”

“Eu não estava cantando. Enfim, meu casco é muito duro. Mesmo o fogo mais quente não pode penetrá-la.”

“Bem, então, eu vou levá-lo ao topo da mais alta montanha e deixá-lo cair sobre as rochas abaixo.”

“Pff! Eu já lhe disse. Meu casco é tão espesso que eu vou simplesmente cair fora das rochas e fugir.”

Coiote pensou muito sobre como botar o Bebê Tartaruga em sua barriga.

“Eu vou te levar para o rio, afogá-lo, e então eu vou te comer.”

“Oh não, por favor, me afogar no rio. Tudo menos isso!”

“Ha! Eu sabia disso.”

“Por favor, continue cantando, é muito agradável”.

“Eu não estou cantando.”

Logo ele que chegou ao rio, o Bebê Coiote jogou a tartaruga na água.

“Coiote bobo. Obrigado por me trazer para casa.”

O coiote tinha sido enganado pelo Bebê Tartaruga. Ele ficou tão irritado que ele pulou no rio, mas a corrente era forte e que levou o coiote rio abaixo.

O Bebê Tartaruga estava seguro agora e nunca se afastou demais das margens do rio.

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Notas:

A Estória do Coiote e da Tartaruga foi um vídeo feito por Tim F. Salinas da tribo Navajo e colocado no YouTube.com em 10 de dezembro de 2006.  Não se sabe exatamente o local onde foi gravado, mas uma equipe do Pasadena City College fez a gravação em 2003.

Como outras histórias nativo americanas, a história do Coiote e da Tartaruga tem uma lição para o público. As crianças também podem aprender que não é sábio se desviar para longe do local onde você está seguro, e esta lição é voltada principalmente para crianças, comparando elas com a tartaruguinha, que também é inexperiente e acaba por afastar-se do rio. Todas as tradições orais servem a um propósito na sua cultura, e além de entretenimento, essa estórias ensinam muitas lições.


Fonte:
http://casadecha.wordpress.com/category/estados-unidos/

I Jornada Literária do Vale Histórico (18 a 20 de Setembro, em Lorena e Guaratinguetá/SP)

clique sobre a imagem para ampliar
Jornada Literária discute literatura e oralidade no Vale do Paraíba
Evento contará com a presença de escritores como Pedro Bandeira e Thiago Mello

Entre os dias 18 e 20/09 acontece em Lorena e Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, a I Jornada Literária do Vale Histórico. Realizada pelo Instituto Uka, do Pólo de Leitura Vale Lendo e da Academia de Letras de Lorena, o evento reúne importantes nomes da literatura infantil e juvenil. O tema desta primeira edição da Jornada Literária será “Tradições Orais e Literatura”. Segundo o escritor Daniel Munduruku, o tema é uma referência necessária à discussão sobre literatura e oralidade. “Quis iniciar com este tema por entender que antes da escrita existiu e existe a oralidade. Ela é a mãe da escritura. Pensando assim quis unir autores que vêm de uma tradição oral e que agora estão usando a escrita como instrumento de divulgação da oralidade. Também quis convidar autores negros que trabalham a questão africana em seus escritos. Estes são os que irão ter um contato direto com as crianças leitoras”, contou Munduruku à Liga Brasileira de Editoras (Libre).

PROGRAMAÇÃO

Dia 18/9
 
Manhã

08h00 - EE Regina Bartelega recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

09h00 - EM Fernando Alencar Pinto recebe (Guaratinguetá):
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

08h00 – EE Geraldo Alckimin recebe:
Cristino Wapichana e Matè

Tarde

14h00 - Instituto Santa Teresa recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

16h00 - EM Mário Covas recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 – EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

Noite

Palestra Magna com Pedro Bandeira
Tema: “Como conquistar o aluno que não gosta de ler?”
Local: Teatro São Joaquim

Dia 19/9

Manhã
 
07h30 - CAIC recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

10h00 - EE Francisco Marques recebe:
Heloisa Pires e Daniel Munduruku

07h30 - EM Mário Covas recebe
Rogério Andrade Barbosa e Roni Wasiry

07h30 – EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Cristino Wapichana

Tarde

14h00 - CAIC recebe:
Maria Inez do Espírito Santo e Tiago Hakiy

14h00 - EM Ruy Brasil Pereira recebe:
Cristino Wapichana e Matè

16h00 - EE Francisco Marques recebe:
Cristino Wapichana e Matè

15h00 - Obra Auxiliar de Santa Cruz recebe
Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Noite

Mesa redonda: A presença do feminino nas mitologias
Heloisa Pires, Maria Inez do Espírito Santo e Matè
Mediação: Rogério Andrade Barbosa
Local: Auditório São José - FATEA

Dia 20/9

Manhã

Instituto Santa Teresa Recebe:
08h00 - Daniel Munduruku e Heloisa Pires

Patrocínio de São José recebe:
10h00 – Daniel Munduruku e Heloisa Pires

09h00- EM Aldelina Alves Ferraz recebe:
Maria Inez do E. Santo e Tiago Hakiy

Tarde

14h00 – EM Geraldo Alckmin recebe:
Matè e Cristino Wapichana

Noite

19h00 - Apresentação teatral: “Meu avô Apolinário” baseada na obra de Daniel Munduruku

20h00 – Palestra Magna com Thiago de Mello

Seminário Valelendo – 20/09
Local: Auditório Luís Pasin – FATEA

09h00 - Abertura oficial do evento

09h15 – Abertura cultural com Cristino Wapichana e criança leitora

09h30 – Roda de Conversa sobre políticas públicas regionais para o livro, a leitura e a literatura (representantes de instituições do Vale Histórico)

11h30 – Palavras encantadas – com Thiago de Mello

12h45 – Almoço

14h00 – sorteio da pontualidade (sorteio de livros para os presentes)

14h10 – Oficinas diversas

1ª Oficina:  “Diário de Leitura: a ideia é simples”
Prof. Cida

2ª Oficina: Literatura Indígena e Afro no cardápio de Leitura
Heloisa Pires e Maria Inez do Espírito Santo

3ª Oficina: “Ilustração e Poesia”
Denise Poeta

4ª Oficina: “Mediação de Leitura - Uma ponte entre o Livro e o Leitor.”
Marcilene Dutra Bispo e Mediadores Mirins do Projeto Lervida

Serviço
I Jornada Literária do Vale Histórico
18 a 20 de Setembro - 2013
Lorena e Guaratinguetá (SP)
Realização: Instituto UKA - Pólo de Leitura ValeLendo - Academia de Letras de Lorena.
Parceria: Instituto C&A - Prefeitura Municipal de Lorena - SP - Instituto Santa Teresa/FATEA - Unisal

Fonte:
Daniel Munduruku

Guilherme de Azevedo (Alma Nova)VI

foi mantida a grafia original.
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FLOR DA MODA

Alice, o turbilhão das salas elegantes,
Começa a entristecer; ninguém sabe porquê!
Aquela flor doente amava muito dantes
As festas, o ruído, as coisas deslumbrantes,
Agora é desolada e penso que descrê.

Que tédio se abrigou na vaga transparência
Dum todo tão subtil, aéreo, divinal,
— moderna criação da santa decadência,
Que alia gentilmente às pompas da regência
Os indecisos tons dum ar sentimental?!

Arcanjo por quem és! Desvenda esse mistério
Das vagas opressões da tua insónia má,
E diz-me o teu sonhar visão do baixo império,
Vestal que amas o gás e tens o fogo etéreo
Na conta duma cousa um tanto usada já!

No idílio pastoril das noites venturosas
Não sonhas tu decerto, e raro o hão de sonhar
Num mundo todo nosso, as belas desditosas
Que em trinta anos de fogo as suas velhas rosas
Nos grandes vendavais sentiram desbotar!

E quando a augusta voz do mar ou das florestas
Abala o coração dos justos e dos bons,
Bem sei que tu não vais, fugindo às grandes festas,
No amor das castelãs cismar entre giestas
Com medo que te acorde a bulha dos wagons!

Eu sei talvez teu mal! A febre que hoje sentes
Abrasa a geração de lírios ideais
Que passam, como tu, galantes e doentes,
Dum amor desordenado às causas dissolventes,
Às vozes da guitarra e aos cantos sensuais!...

E tem de os consumir a grande nostalgia
Dum mundo mais à moda e menos trivial,
Onde haja um grande caso, ao menos, cada dia
E se possa esquecer a vil monotonia
De tudo que nos cerca: — Alice eis o teu mal!

No entanto eu sei que és boa: apenas das insónias
A febre, mãe cruel de estranhas sensações,
Na fria placidez do gás e das begónias
Constrói na tua mente as grandes babilónias
Dum mundo extraordinário e monstro de visões!

Tocou-te um mal galante: és ténue e caprichosa:
És boa e fazes gala em que te julguem má.
E sentes sobretudo uns tédios cor-de-rosa
E os êxtases cruéis duma mulher nervosa:
Se existe a mulher-flor, tu és a flor de chá!

E chame-te o bom Deus ao foco aonde brilha
Aquela eterna luz, amor dos imortais,
Que tu amortalhada em rendas e escumilha
Achar deves, talvez, da moda, ó terna filha,
O céu modesto um pouco e os anjos triviais!

Ó máquinas febris! Eu sinto a cada passo,
Nos silvos que soltais, aquele canto imenso,
Que a nova geração nos lábios traz suspenso
Como a estância viril duma epopeia de aço!
Enquanto o velho mundo arfando de cansaço

Prostrado cai na luta; em fumo negro e denso
Levanta-se a espiral desse moderno incenso
Que ofusca os deuses vãos, anuviando o espaço!

Vós sois as criações fulgentes, fabulosas,
Que, vibrantes, cruéis, de lavas sequiosas,
Mordeis o pedestal da velha Majestade!

E as grandes combustões que sempre vos consomem
Começam, num cadinho, a refundir o homem
Fazendo ressurgir mais larga a Humanidade!

Fonte:
http://luso-livros.net/

Rafael Zenato (Desconstrução)

Rafael é aluno da Oficina On Line de Escrita Criativa, de Marcelo Spalding (http://www.marcelospalding.com/wwcursosCRIATIVA.php)
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Já era tarde quando encontrou Chico. Quieto, retraído, numa mesa de bar. Papel e caneta na mão.

- Vem cá, você não é o cantor, aquele?

Chico bebia uma dose de uísque num copo improvisado, daqueles de boteco. Levantou os olhos de curiosidade.

- Você é o cantor, sim. Olha bem pra mim. Aquele do olho azul, como é mesmo o nome?

Chico esboçava um sorriso, se divertindo com a dúvida do desconhecido. Seu uísque não tinha gelo. Nem uma pedrinha sequer.

- Caetano! É Caetano! Não, espera. Caetano é aquele outro, o baiano.

Os olhos azuis eram encarados com atenção pelo homem.

- Chico... Chico Buarque! Rá! Eu sabia! Muito prazer - e estendeu a mão.

Chico bebeu o último gole do seu uísque. Cumprimentou o homem.

- Muito prazer. E você, quem é?

- Ah, eu não sou ninguém, não. Sou um desconhecido. Tenho a minha família, meus filhos, essas coisas. Meu emprego, graças a Deus. Trabalho no ramo de construção, sabe? Essa casa aí do outro lado da rua, tá vendo? Fui eu que ergui. Quer dizer, não tá pronta ainda. Mas a gente tá erguendo, eu e os colegas aí.

- Bacana, bacana mesmo - respondeu Chico.

- Olha, desculpa eu me meter assim... mas o que o senhor tava escrevendo aí? É letra de música? - perguntou o desconhecido.

- É, é uma letra, sim. Uma canção nova que eu tô trabalhando.

- Sobre o que é? - perguntou o homem, curioso.

- É sobre você - respondeu Chico.

O desconhecido ri.

- Ah, você é um brincalhão, Chico. Não é à toa que é artista.

Chico rabisca mais um verso sobre o papel. O desconhecido estende a mão mais uma vez.

- Não quero atrapalhar, não, viu? Vou deixar você fazer a sua música. Foi um prazer.

Enquanto o pedreiro seguia em direção à rua, Chico murmurava, como se falasse com a folha de papel.

- Toma cuidado ao atravessar a rua, hein. Vê se não vai morrer aí na contramão.

Fonte:
http://escritacriativaonline.blogspot.com.br/search/label/Di%C3%A1logos

Lya Luft (A Mentirosa Liberdade)

"Liberdade não vem de correr atrás de 'deveres' impostos de fora, mas de construir a nossa existência"
Comecei a escrever um novo livro, sobre os mitos e mentiras que nossa cultura expõe em prateleiras enfeitadas, para que a gente enfie esse material na cabeça e, pior, na alma – como se fosse algodão-doce colorido. Com ele chegam os medos que tudo isso nos inspira: medo de não estar bem enquadrados, medo de não ser valorizados pela turma, medo de não ser suficientemente ricos, magros, musculosos, de não participar da melhor balada, do clube mais chique, de não ter feito a viagem certa nem possuir a tecnologia de ponta no celular. Medo de não ser livres.

Na verdade, estamos presos numa rede de falsas liberdades. Nunca se falou tanto em liberdade, e poucas vezes fomos tão pressionados por exigências absurdas, que constituem o que chamo a síndrome do "ter de". Fala-se em liberdade de escolha, mas somos conduzidos pela propaganda como gado para o matadouro, e as opções são tantas que não conseguimos escolher com calma. Medicados como somos (a pressão, a gordura, a fadiga, a insônia, o sono, a depressão e a euforia, a solidão e o medo tratados a remédio), cedo recorremos a expedientes, porque nossa libido, quimicamente cerceada, falha, e a alegria, de tanta tensão, nos escapa.

Preenchem-se fendas e falhas, manchas se removem, suspendem-se prazeres como sendo risco e extravagância, e nos ligamos no espelho: alguém por aí é mais eficiente, moderno, valorizado e belo que eu? Alguém mora num condomínio melhor que o meu? Em fileira ao longo das paredes temos de parecer todos iguais nessa dança de enganos. Sobretudo, sempre jovens. Nunca se pôde viver tanto tempo e com tão boa qualidade, mas no atual endeusamento da juventude, como se só jovens merecessem amor, vitórias e sucesso, carregamos mais um ônus pesadíssimo e cruel: temos de enganar o tempo, temos de aparentar 15 anos se temos 30, 40 anos se temos 60, e 50 se temos 80 anos de idade. A deusa juventude traz vantagens, mas eu não a quereria para sempre: talvez nela sejamos mais bonitos, quem sabe mais cheios de planos e possibilidades, mas sabemos discernir as coisas que divisamos, podemos optar com a mínima segurança, conseguimos olhar, analisar e curtir – ou nos falta o que vem depois: maturidade?

Parece que do começo ao fim passamos a vida sendo cobrados: O que você vai ser? O que vai estudar? Como? Fracassou em mais um vestibular? Já transou? Nunca transou? Treze anos e ainda não ficou? E ainda não bebeu? Nem experimentou uma maconhazinha sequer? E um Viagra para melhorar ainda mais? Ainda agüenta os chatos dos pais? Saiba que eles o controlam sob o pretexto de que o amam. Sai dessa! Já precisa trabalhar? Que chatice! E depois: Quarenta anos ganhando tão pouco e trabalhando tanto? E não tem aquele carro? Nunca esteve naquele resort?

Talvez a gente possa escapar dessas cobranças sendo mais natural, cumprindo deveres reais, curtindo a vida sem se atordoar. Nadar contra toda essa louca correnteza. Ter opiniões próprias, amadurecer, ajuda. Combater a ânsia por coisas que nem queremos, ignorar ofertas no fundo desinteressantes, como roupas ridículas e viagens sem graça, isso ajuda. Descobrir o que queremos e podemos é um bom aprendizado, mas leva algum tempo: não é preciso escalar o Himalaia social nem ser uma linda mulher nem um homem poderoso. É possível estar contente e ter projetos bem depois dos 40 anos, sem um iate, físico perfeito e grande fortuna. Sem cumprir tantas obrigações fúteis e inúteis, como nos ordenam os mitos e mentiras de uma sociedade insegura, desorientada, em crise. Liberdade não vem de correr atrás de "deveres" impostos de fora, mas de construir a nossa existência, para a qual, com todo esse esforço e desgaste, sobra tão pouco tempo. Não temos de correr angustiados atrás de modelos que nada têm a ver conosco, máscaras, ilusões e melancolia para aguentar a vida, sem liberdade para descobrir o que a gente gostaria mesmo de ter feito.

Fonte:
http://arquivoetc.blogspot.com/2009/03/lya-luft-mentirosa-liberdade.html

Bernardo Guimarães (Poemas Humorísticos e Irônicos :Ao Charuto)

Ode

Vem, ó meu bom charuto, amigo velho,
Que tanto me regalas;
Que em cheirosa fumaça me envolvendo
Entre ilusões me embalas.

Oh! que nem todos sabem quanto vale
Uma fumaça tua!
Nela vai passear do bardo a mente
Às regiões da lua.

E por lá embalado em rósea nuvem
Vagueia pelo espaço,
Onde amorosa fada entre sorrisos
O toma em seu regaço;

E com beijos de requintado afeto
A fronte lhe desruga,
Ou com as tranças d’ouro mansamente
As lágrimas lhe enxuga.

Ó bom charuto, que ilusões não geras!
Que tão suaves sonhos!
Como ao te ver atropelados correm
Cuidados enfadonhos!

Quantas penas não vão por esses ares
Com uma só fumaça!...
Quanto negro pesar, quantos ciúmes,
E quanta dor não passa!

Tu és, charuto, o pai dos bons conselhos,
O símbolo da paz;
Para em santa pachorra adormecer-nos
Nada há mais eficaz.

Quando Anarda com seus caprichos loucos
Me causa dissabores,
Em duas baforadas mando embora
O anjo e seus rigores.

***
Quanto lastimo os nossos bons maiores,
Os Gregos e os Romanos,
Por não te conhecerem, nem gozarem
Teus dotes soberanos!

Quantos males talvez não pouparias
À triste humanidade,
Ó bom charuto, se te possuísse
A velha antigüidade!

Um charuto na boca de Tarquínio
Talvez lhe dissipara
Esse ardor, que matou Lucrécia linda,
Dos mimos seus avara.

Se o peralta do Páris já soubesse
Puxar duas fumaças,
Talvez com elas entregara aos ventos
Helena e suas graças,

E a régia esposa em paz com seu marido
Dormindo ficaria;
E a Tróia antiga com seus altos muros
Inda hoje existiria.

***

Quem dera ao velho Mário um bom cachimbo
Que lhe abrandasse as sanhas,
Para Roma salvar, das que sofrera,
Catástrofes tamanhas!

Mesmo Catão, herói trombudo e fero,
Talvez se não matasse,
Se a raiva que aos tiranos consagrava,
Fumando evaporasse.

***

Fumemos pois! — Ambrósio, traze fogo...
Puff!... oh! que fumaça!
Como me envolve todo entre perfumes,
Qual véu de nívea cassa!

Vai-te, alma minha, embarca-te nas ondas
Desse cheiroso fumo,
Vai-te a peregrinar por essas nuvens,
Sem bússola, nem rumo.

Vai despir no país dos devaneios
Esse ar pesado e triste;
Depois, virás mais lépida e contente,
Contar-me o que lá viste.
 
Ouro Preto, 1857

Edgar Allan Poe (O Poço e o Pêndulo)

Ficara esgotado, mortalmente prostrado com aquela prolongada agonia; e quando por fim me desamarraram e me deixaram sentar, tive a sensação de que todos os sentidos me abandonavam. A sentença, a medonha sentença da morte, foram as últimas palavras que me chegaram com nitidez aos ouvidos. Depois disso, o som das vozes dos inquisidores pareceu abismar-se no sussurro indefinido de um sonho. Trouxe-me aquele som ao espírito a ideia de rotação - talvez porque o associava na imaginação com o ruído da roda de um moinho. Durou isto breves instantes, porque eu já nada ouvia. Contudo, durante algum tempo pude ver; mas com que terrível exagero! Vi os lábios dos juízes de togas negras. Eram brancos - mais brancos do que a folha de papel onde escrevo estas palavras - e delgados até ao grotesco, adelgaçados pela expressão de firmeza, de imutável resolução, de severo desprezo pelo sofrimento humano. Vi que as ordens do que para mim era o destino continuavam a desprender-se daqueles lábios. Vi-os torcerem-se numa frase mortal. Vi-os formar as sílabas do meu nome; e estremeci, porque som algum se lhes seguiu. Vi também durante alguns minutos de delirante horror o ligeiro e quase imperceptível ondular das negras colgaduras que revestiam as paredes da sala. E então caiu-me a vista sobre sete círios que estavam sobre a mesa. A princípio tinham o aspecto da caridade e pareceram-me anjos brancos e esbeltos que me salvariam; mas logo e repentinamente me invadiu o espírito uma repugnância mortal, e senti todas as fibras do meu ser estremecerem como se as tocasse o condutor de uma bateria galvânica, pois que as formas angelicais se transformaram em espectros sem significação, com cabeças de chamas, e compreendi perfeitamente que não me viria deles nenhum socorro.

Então insinuou-se-me na imaginação, como agradável nota de música, a ideia do delicioso descanso que devemos ter no túmulo. Acudiu-me esta ideia suave e furtivamente, e parece-me que decorreu muito tempo antes que pudesse apreciá-la plenamente: mas no próprio instante em que o meu espírito começava a senti-la e a afagá-la, as figuras dos juízes desvaneceram-se da minha vista, como por obra de magia; os altos círios ficaram reduzidos a nada; as suas chamas extinguiram-se completamente; sobreveio o negrume das trevas; todas as sensações pareceram tragadas no louco despenhar das almas no Hades. O Universo era apenas silêncio, imobilidade e trevas.

Tinha desmaiado, mas não direi que tivesse perdido de todo a consciência. O pouco que me restava, não tentarei defini-lo, nem sequer descrevê-lo; ainda não estava porém tudo perdido. No sono mais profundo... não! No delírio... não! No desmaio... não! Na morte... não! Nem no próprio túmulo está tudo perdido. Doutro modo, não haveria imortalidade para o homem. Despertando do mais profundo sono, rompemos os fios da teia de algum sonho. Todavia, passado um segundo - tão frágil era aquela teia -, não nos lembramos de ter sonhado. Ao voltar à vida após um desmaio, há dois períodos: o primeiro é o do sentimento da existência moral ou espiritual; o segundo, o do sentimento da existência física. Julgo provável que se, depois de atingir o segundo período, pudermos relembrar as impressões do primeiro, achá-las-emos abundantes em recordações do abismo de além-mundo. E que abismo será este? Como havemos sequer de distinguir as suas sombras das sombras da morte? Mas se as impressões do que chamei primeiro período desobedecem à invocação da vontade, não aparecem elas sem chamamento, após longo intervalo, enquanto perguntamos maravilhados de onde é que podem surgir? Aquele que nunca desmaiou não descobre decerto palácios exóticos e rostos extravagantes e familiares nos carvões incandescentes; não contempla, pairando no ar, as tristes visões que a maioria não descobre; não medita sobre o perfume de uma flor nova - nem o cérebro se lhe desvaira com o significado de alguma cadência musical que nunca dantes lhe prendera a atenção.

No meio de esforços frequentes e concentrados para recordar, no meio da intensa luta para colher alguns indícios daquele nada aparente em que a minha alma mergulhara, houve momentos em que imaginei conseguir o que desejava; houve breves períodos, períodos brevíssimos em que evoquei recordações que, posteriormente, a razão lúcida me afirmou poderem apenas relacionar-se com aquele estado de inconsciência aparente. Estas sombras da memória falam-me indistintamente de grandes vultos que me erguiam e me mergulhavam silenciosamente para baixo, sempre para baixo, cada vez mais fundo, até que uma horrível vertigem me oprimiu à simples ideia da interminável descida. Falam-me também de um vago horror no meu coração, em virtude da sua desnaturada tranquilidade. Depois, um sentimento de repentina imobilidade em todas as coisas; como se aqueles que me transportavam (cortejo de fantasmas) tivessem ultrapassado, na descida, os limites do ilimitado, e parassem vencidos pelo cansaço. Mais tarde ainda, acode-me ao espírito certa insipidez e umidade; e depois, tudo é loucura - a loucura de uma memória que se intromete em coisas vedadas.

De repente, voltam-me ao espírito um som e um movimento - o movimento tumultuoso do coração e, nos ouvidos, o ruído daquele pulsar. Sucede-se uma pausa em que tudo é vazio. Depois, outra vez o som, o movimento e o tato - uma sensação que me abala e invade o corpo. Depois, a simples consciência da existência, sem pensamento - estado que durou muito. Depois, repentinamente, o pensamento, um terror que produzia calafrios e um esforço violento para compreender a minha verdadeira condição. Depois, um desejo intenso de recair na insensibilidade. Depois, um impetuoso renascimento da alma e uma tentativa feliz de mover-me. De seguida, a recordação completa do processo, dos juízes, das colgaduras negras, da sentença, da prostração e do desmaio. Depois, o completo esquecimento do que se seguira, e que só mais tarde, por um esforço enérgico da inteligência, pude recordar vagamente.

Até ali, não tinha aberto os olhos. Sentia que estava deitado de costas e desamarrado. Estendi a mão, que caiu pesadamente sobre qualquer coisa dura e úmida. Deixei-a assim ficar por alguns minutos, fazendo esforços por imaginar onde me encontrava e o que tinha sido feito de mim. Ansiava mas não ousava servir-me da minha vista. Tinha medo do primeiro olhar que lançasse aos objetos que me cercavam. Não que receasse ver coisas horríveis, mas aterrava-me a ideia de que não teria nada para ver. Finalmente, com irado desespero no peito, abri rapidamente os olhos. Os meus piores pensamentos confirmaram-se então. Cercava-me a escuridão da noite eterna. Fiz um esforço para respirar. A intensidade das trevas parecia oprimir-me e sufocar-me. A atmosfera era intoleravelmente pesada. Continuei imóvel e fiz um esforço por empregar a razão. Trouxe à memória o processo inquisitorial, e a partir dele tentei deduzir a minha verdadeira situação. A sentença fora proferida e afigurou-se-me que tinha decorrido desde então um longo intervalo de tempo. Contudo, nem por um momento supus que estivesse realmente morto. Tal suposição, apesar de toda a ficção literária, é totalmente incompatível com a existência real - mas onde e em que estado me achava eu? Os condenados à morte - bem o sabia - morriam normalmente nos autos-de-fé, e tinha-se realizado uma dessas cerimônias na própria noite do meu julgamento. Será que me tinham mandado de novo para o cárcere, à espera do próximo sacrifício, que só se realizaria meses mais tarde? Logo tive consciência de que tal hipótese não era viável. As vítimas haviam sido imediatamente requeridas. Além disso, o cárcere onde eu tinha estado, como todas as celas de condenados em Toledo, era lajeado e sempre recebia alguma luz.

De súbito, um pensamento medonho fez-me afluir tumultuosamente o sangue ao coração e durante alguns instantes voltei a cair na insensibilidade. Logo que recuperei os sentidos, pus-me de pé, tremendo convulsivamente em todas as fibras do meu corpo. Estendi com ímpeto os braços para cima e à roda de mim, em todas as direções. Não senti nada, mas receava dar um passo, com medo de que mo impedissem as paredes de uma tumba. O suor brotava-me de todos os poros e aglomerava-se-me na testa em bagas frigidíssimas. A agonia da incerteza tornou-se por fim intolerável, e avancei com cautela, de braços estendidos e com os olhos saltando das órbitas, esperançado em vislumbrar um tênue raio de luz. Dei muitos passos, mas encontrei apenas a escuridão e o vácuo. Respirei mais livremente. Dir-se-ia que o destino que me reservavam não era o mais horrível de todos.

E então, continuando a caminhar cautelosamente, acudiram-me de tropel à memória mil rumores vagos acerca dos horrores de Toledo. Contavam-se coisas extraordinárias daqueles cárceres - coisas que eu sempre julgara fabulosas -, mas tão extraordinárias e medonhas que só em voz baixa se podiam repetir. Deixar-me-iam ali morrer de fome, naquele mundo subterrâneo de escuridão, ou será que um destino mais terrível ainda me esperava? Não podia já duvidar de que o resultado seria a morte, e uma morte cuja crueldade iria muito além da usual, conhecendo bem o caráter dos meus juízes. O modo e a ocasião era quanto me preocupava e atormentava.

As minhas mãos estendidas encontraram por fim um obstáculo sólido: era uma parede que parecia de alvenaria, muito lisa, fria e viscosa. Fui-a seguindo, mas caminhando sempre com a meticulosa desconfiança que certas histórias antigas me tinham inspirado. Este processo, porém, não me fornecia maneira de me certificar das dimensões do meu cárcere pois eu podia dar-lhe uma volta em redor e tornar ao sítio donde tinha partido, sem ter consciência do fato, tão perfeitamente uniforme se afigurava a parede. Por isso procurei a faca que tinha na algibeira quando me conduziram à sala de audiências; mas verifiquei que desaparecera com o fato que eu então levava, e que fora trocado por uma vestimenta de sarja grossa. Tinha pensado em cravar a lâmina da faca nalguma minúscula fenda de alvenaria, para assim deixar marcado o meu ponto de partida. Se a dificuldade, porém, era banal, na confusão em que eu tinha o espírito parecia-me insuperável. Rasguei uma tira de bainha da túnica e coloquei-a estendida a todo o comprimento, formando um ângulo reto com a parede. Ao dar a volta à cela, não deixaria de encontrar o pedaço de fazenda, quando fechasse o círculo. Foi pelo menos o que julguei, mas não contara com a extensão do cárcere nem com a fraqueza que se apoderara de mim. O chão estava úmido e escorregadio. Durante algum tempo caminhei para a frente, cambaleando, até que tropecei e caí. A extrema fadiga em que me encontrava levou-me a ficar deitado, e em breve adormeci na posição em que estava.

Quando despertei e estendi um braço, achei ao pé de mim um pão e uma bilha de água. Estava tão exausto que não refleti nesta circunstância e comi e bebi com avidez. Logo depois, retomei a volta à roda do cárcere e com muita dificuldade cheguei junto do pedaço de sarja. Até cair, tinha contado cinqüenta e dois passos, e depois de continuar a andar contara mais quarenta e oito. Eram portanto, ao todo, cem passos, e admitindo que dois passos dão uma jarda, calculei que a masmorra tivesse cinquenta jardas de circuito. Porém, como havia encontrado muitos recantos na parede, não consegui fazer nenhuma conjectura sobre a forma da cripta, visto que não podia deixar de supor que de uma cripta se tratava.

Tinha pouco interesse - esperança decerto nenhuma - nestas pesquisas, mas um vaga curiosidade impelia-me a continuá-las. Deixando a parede, resolvi atravessar a superfície  por ela limitada. Avancei a princípio com o maior cuidado, porque o chão, parecendo embora de um material sólido, era traiçoeiro de viscoso. Por fim, recobrei ânimo e não hesitei em caminhar com firmeza, esforçando-me por seguir uma linha tão reta quanto possível. Teria dado assim uns dez ou doze passos, quando o resto da bainha rasgada se me prendeu nas pernas, tropecei e caí violentamente de bruços.

Na confusão da queda, não notei imediatamente uma circunstância bastante assustadora, mas que me prendeu a atenção alguns minutos depois, enquanto continuava caído. Era a seguinte: tinha o queixo pousado no pavimento da masmorra, mas os lábios e a parte superior da cabeça, não obstante parecerem estar mais baixos do que o queixo, não tocavam em coisa alguma. Ao mesmo tempo afigurou-se-me que me banhava a testa um vapor viscoso, e um cheiro peculiar de fungos podres subindo-me às narinas. Estendi o braço e estremeci ao descobrir que tinha caído mesmo ao pé da boca de um poço circular, cujas dimensões não tinha qualquer possibilidade de avaliar naquele momento. Apalpando a alvenaria, logo abaixo da borda, consegui deslocar um pequeno fragmento e deixei-o cair no abismo. Durante muitos segundos escutei com atenção os ricochetes que fez na descida, batendo de encontro às paredes do sorvedouro. Por fim mergulhou lugubremente na água e sucederam-se ecos retumbantes. Ao mesmo tempo senti um som, como que de uma porta situada por sobre a minha cabeça, que fora tão depressa aberta como fechada. Um tênue raio de luz atravessou a escuridão para logo se desvanecer.

Vi claramente a sorte que me haviam preparado e alegrei-me com o oportuno acidente que me salvara. Um passo mais, e o mundo não me tornaria a ver. E a morte que acabava de evitar era exatamente da índole das que eu antes julgava fabulosas e absurdas nas histórias a respeito da Inquisição. Às vítimas da sua tirania deixava-se a escolha entre a morte com as mais cruciantes agonias físicas e a morte com os mais horríveis tormentos morais. Tinha sido reservado para esta última. O longo sofrimento distendera-me os nervos, de sorte que o som da minha própria voz me fazia estremecer, tornara-me, a todos os respeitos, um paciente perfeitamente indicado para a tortura que me esperava.

Todo a tremer, voltei para junto da parede, antes resolvido a morrer ali que a afrontar os horrores dos poços, que a minha imaginação figurava em grande número pelos vários pontos do cárcere. Noutras disposições de espírito, teria tido a coragem de acabar de vez com as minhas misérias, precipitando-me num daqueles abismos; mas naquele momento eu era o mais completo dos covardes. Nem pude tampouco esquecer o que lera a respeito daqueles poços: que a extinção repentina da vida não fazia parte dos seus mais horríveis planos.

A agitação de espírito manteve-me acordado durante muitas horas, mas acabei finalmente por adormecer. Ao despertar, achei ao pé de mim, como antes, um pão e uma bilha com água. Cheio de sede ardente, esgotei a bilha de um trago. A água tinha forçosamente algum narcótico, porque, mal a bebi, senti um desejo irresistível de dormir. Um sono profundo se abateu sobre mim - um sono igual ao da morte. Claro que não sei quanto tempo durou; mas quando voltei a abrir os olhos, tinham-se tornado visíveis os objetos que me cercavam. Uma claridade singular, sulfúrea, cuja origem a princípio não pude descobrir, permitia-me ver o tamanho e o aspecto da masmorra.

Tinha-me enganado muito acerca das suas dimensões. O perímetro total das paredes não excedia vinte e cinco jardas. Por alguns minutos, este fato confundiu-me em vão - muito em vão, realmente, pois que, nas terríveis circunstâncias que me cercavam, que haveria de menor importância que as dimensões do cárcere? Mas o meu espírito tomava especial interesse por estas frivolidades e empreguei os maiores esforços para saber como me tinha enganado na medida. Por fim, a verdade surgiu como um relâmpago.  Na primeira tentativa de exploração, contara cinquenta e dois passos até à ocasião em que caí; devia estar então a um ou dois passos de distância do pedaço de sarja e quase tinha completado a volta da cripta. Adormeci então, e ao acordar voltei decerto para trás, supondo assim o circuito aproximadamente duplo do que era realmente. A confusão em que se achava o meu espírito não me deixou notar que começara a dar a volta com a parede à minha esquerda e que a completara com ela à direita.

Também me enganara a respeito da forma do recinto. Andando às apalpadelas, sentira muitos recantos na parede e daqui deduzira a ideia de grande irregularidade; tão potente é o efeito da escuridão completa sobre quem desperta do letargo ou do sono! Esses recantos eram apenas resultantes de ligeiras depressões ou nichos a intervalos desiguais. A forma geral da prisão era quadrada. O que tomara por alvenaria parecia-me agora ferro ou qualquer outro metal, em enormes chapas, cujas suturas ou juntas ocasionavam as depressões. Por toda a superfície deste invólucro metálico estavam grosseiramente pintados numerosos emblemas medonhos e repugnantes, gerados pela sepulcral superstição dos frades. Figuras de demônios com aspecto ameaçador e em forma de esqueletos e outras imagens realmente mais horrorosas desfiguravam as paredes e cobriam-nas por completo. Observei que os contornos destas monstruosidades estavam bastante nítidos, mas que as cores pareciam apagadas e alteradas, como que por efeito de uma atmosfera carregada de umidade. Vi também que o chão era de pedra. No centro, escancarava-se o poço circular a cujas goelas eu escapara, e vi que era o único em todo o cárcere.

Tudo isto eu vi, indistintamente e muito a custo, porque a minha condição física se tinha alterado muito durante o sono. Estava agora deitado de costas e com o corpo todo estendido sobre uma espécie de cavalete de madeira, ao qual me achava solidamente amarrado por meio de uma comprida correia, que parecia uma sobrecilha. Dava-me várias voltas aos membros e ao tronco, deixando somente livres a cabeça e o braço esquerdo, de modo que me fosse possível, ainda que com grande dificuldade, tirar o alimento de um prato de barro que estava a meu lado, no chão. Notei, cheio de terror, que tinham levado a bilha. E digo cheio de terror porque me consumia uma sede insuportável. Creio que era intenção dos meus carrascos estimularem-me a sede, visto que o alimento contido no prato era carne fortemente salgada.

Levantei os olhos e examinei o teto da prisão. Estava a uns trinta ou quarenta pés de altura e era construído de modo muito semelhante ao das paredes. Num dos painéis havia uma figura singularíssima, que me fixou completamente a atenção. Era a representação do Tempo, como normalmente o representam, com a diferença, porém, de que em vez da foice tinha um objeto que à primeira vista julguei ser um grande pêndulo, idêntico aos que vemos nos relógios antigos. Havia contudo na aparência desta máquina alguma coisa que me levou a fitá-la com mais atenção. Enquanto a observava olhando para cima, pois estava precisamente por cima de mim, pareceu-me vê-la mover-se. Um instante depois confirmava-se a minha suspeita. O seu movimento era curto e naturalmente muito vagaroso. Observei-o durante alguns minutos com certo receio, mas principalmente com espanto. Cansado, por fim, de observar o seu oscilar fastidioso, voltei os olhos para os outros objetos do cárcere.

Um ligeiro ruído atraiu-me a atenção e, olhando para o chão, vi muitos ratos enormes. Saíam do poço, que ficava dentro do meu campo de visão, à direita. Nesse mesmo instante, enquanto olhava para eles, subiam aos magotes, apressadamente, com olhos vorazes, atraídos pelo cheiro da carne. Foi-me então necessário um esforço enorme e muita atenção para conseguir afastá-los de mim.

Ter-se-ia passado meia hora, talvez até uma hora (pois não me era possível ter perfeita noção do tempo), quando ergui novamente os olhos para o teto. O que então vi deixou-me atônito e surpreso. A amplitude do movimento do pêndulo tinha aumentado cerca de uma jarda. Como consequência natural, a sua velocidade era também maior. Mas o que principalmente me perturbou foi a ideia de que o pêndulo tinha baixado visivelmente. Observei então - inútil será dizer com que horror - que a sua extremidade inferior era formada por uma meia-lua de aço brilhante com cerca de um pé de comprimento, de ponta a ponta, com as extremidades viradas para cima e o gume inferior afiado, evidentemente, como uma navalha de barba. Tal como uma navalha, parecia pesada e maciça, alargando-se a partir do gume, numa estrutura larga e sólida. Estava ligada a uma pesada vara de bronze e o todo sibilava balançando-se no ar.

Não pude duvidar por mais tempo da sorte que me preparara o engenho dos frades para quanto fosse tortura. Os agentes da Inquisição souberam que eu já conhecia o poço - o poço, cujos horrores tinham sido destinados a tão ousado herege como eu - o poço, símbolo do inferno e considerado pelo vulgo como a última Tule de todos os seus castigos. Tinha escapado de mergulhar no poço pelo mais simples dos acasos, e sabia que a surpresa ou o estratagema no tormento formava parte importante de quanto havia de grotesco naquelas execuções misteriosas. Não tendo caído, não entrava no plano diabólico lançarem-me no abismo; e assim (sem haver outra alternativa), esperava-me uma destruição diferente e mais suave. Mais suave! Esbocei um sorriso, na minha agonia, ao pensar na aplicação que dava a semelhante palavra.

De que me servirá falar das longas horas de horror mais que mortal, durante as quais contei as oscilações precipitadas do aço! Polegada a polegada, linha a linha, baixando imperceptivelmente, a intervalos que pareciam séculos, baixava cada vez mais, baixava sempre! Passaram-se dias - podem ter-se passado muitos dias - antes que o pêndulo viesse balançar tão perto de mim que me bafejasse com o seu sopro acre. O cheiro do aço aguçado entrava-me pelas narinas. Roguei aos Céus, cansando-os com as minhas súplicas, para que fizessem com que o aço descesse mais depressa. Tornei-me freneticamente doido e forcejei por levantar-me e ir ao encontro da terrível cimitarra. E afinal caí repentinamente em sossego e quedei-me sorrindo para a morte brilhante, como uma criança para um brinquedo raro.

Houve outro intervalo de perfeita insensibilidade; foi curto, porque quando voltei à vida o pêndulo não tinha descido quantidade apreciável. Mas podia também ter sido longo, porque sabia que havia demônios que, notando o meu desmaio, poderiam ter feito parar, a seu bel-prazer, a oscilação. Ao recuperar os sentidos achei-me tão doente e debilitado – nem posso exprimi-lo - como se tivesse sofrido uma longa inanição. Até na angústia daqueles instantes a natureza humana implorava alimento. Num esforço penoso estendi o braço esquerdo, tão longe quanto me permitiam as amarras, e apoderei-me dos restos insignificantes que os ratos me tinham deixado. Ao pô-los entre os lábios acorreu-me subitamente ao espírito um informe pensamento de alegria, de esperança. Contudo, que teria eu a ver com a esperança? Era, como disse, um pensamento informe, como tão frequentemente sucede, um daqueles pensamentos que nunca se completam. Sentia que era de alegria, de esperança, mas percebi também que morria ao formar-se. Debalde tentei completá-lo, recuperá-lo. Os sofrimentos por que passara tinham-me aniquilado quase por completo as faculdades usuais do espírito. Estava feito um imbecil, um idiota.

O sentido de oscilação do pêndulo fazia um ângulo reto com o comprimento do meu corpo. Vi que tinham colocado a meia-lua por forma a interceptar a região do coração. Roçaria pela sarja da minha túnica, voltaria atrás para repetir esta operação mais uma vez, e outra ainda. Conquanto a oscilação fosse terrivelmente ampla (de uns trinta pés ou mais) e a sibilante energia da descida do pêndulo suficiente para cortar aquelas muralhas de ferro, ainda assim, tudo quanto ele poderia fazer durante alguns minutos seria roçar-me pela túnica. Detive-me neste pensamento, Não me atrevi a ir além desta reflexão. Demorei-me nela com uma atenção persistente, como se com isto pudesse deter então a descida do pêndulo. Forcei-me a mim próprio a imaginar o som que faria a meia-lua ao atravessar-me a roupa - a pensar na sensação particular e penetrante que a fricção do tecido produz sobre os nervos. refleti em todas estas banalidades até me rangerem os dentes.

Mais baixo, cada vez mais baixo. Sentia um prazer frenético em estabelecer um contraste entre a velocidade com que descia e a sua velocidade lateral. Ora para a direita, ora para a esquerda, agora longe e logo perto, com o guinchar de uma alma danada, perto do meu coração, com furtivos passos de tigre. Eu ria e rugia alternadamente, conforme uma ou outra idéia me dominava.

Mais baixo, invariavelmente, inexoravelmente mais baixo! Vibrava agora a menos de três polegadas do meu peito! Debatia-me violentamente, furiosamente, tentando soltar o braço esquerdo. Tinha-o apenas livre da mão ao cotovelo. Podia levar a mão, do prato situado a meu lado, até à boca, com grande esforço, e não mais longe. Se conseguisse cortar as correias acima do cotovelo, agarraria o pêndulo e tentaria fazê-lo parar. Tentaria do mesmo modo deter uma avalanche!

Mais baixo, constantemente mais baixo, inevitavelmente mais baixo. Respirava com dificuldade e agitava-me a cada vibração. Encolhia-me convulsivamente a cada oscilação. Os meus olhos seguiam-lhe os voos ascendentes e descendentes com o ardor do mais insensato desespero; fechavam-se espasmodicamente no momento da descida, embora a morte fosse um alívio indizível! E contudo eu estremecia em todos os meus nervos, ao pensar como bastava baixar apenas um pouco o maquinismo para precipitar no meu peito aquele gume afiado e brilhante. Era a esperança que impelia os nervos a tremer e todo o meu corpo a contrair-se; a esperança que triunfa no patíbulo, e que segreda ao ouvido dos condenados à morte, até nos cárceres da lnquisição.

Vi que umas dez ou doze oscilações poriam o aço em contato com a minha roupa, e esta observação logo me infundiu no espírito a tranquilidade  aguda e condensada do desespero. Pela primeira vez durante muitas horas - ou talvez dias - pus-me a pensar. Ocorreu-me então que a ligadura ou sobrecilha que me envolvia era de uma só peça. Não estava preso por nenhuma corda separada. A primeira mordedura da navalha em forma de meia-lua, numa parte qualquer da ligadura, soltá-la-ia o bastante para me poder desprender, com o auxílio da mão esquerda. Como era terrível neste caso a proximidade do aço! E como seria mortal o resultado do mais ligeiro impulso! Demais, era acaso provável que os validos do carrasco não tivessem antevisto e prevenido esta circunstância? Era possível que a ligadura envolvesse o peito na trajetória do pêndulo? Tremendo de ver frustrada a minha frágil e, ao que parece, última esperança, levantei a cabeça de modo a ver bem o peito. A correia envolvia-me os membros e o corpo em todos os sentidos, salvo no percurso do pêndulo destruidor.

Mal deixara cair a cabeça para trás, que assim voltava à posição inicial, brilhou-me no espírito o que não posso definir melhor do que como a outra metade da ideia informe de libertação a que aludi anteriormente, e cuja primeira metade apenas me acudira indistintamente ao cérebro quando ia a levar a comida aos lábios ardentes. Agora me surgia o pensamento completo - fraco, débil, mal definido - mas, não obstante, completo. Com toda a energia do desespero, entreguei-me imediatamente à tentativa de executa-lo.

Havia muitas horas que a vizinhança do catre de pouca altura onde eu jazia pululava literalmente de ratos. Eram bravios, atrevidos, vorazes, e dardejavam contra mim os seus olhos vermelhos, como se esperassem apenas que eu estivesse imóvel para me tomarem sua presa. «A que alimento», pensei estremecendo de terror, «estarão eles acostumados dentro do poço?»

Tinham devorado, não obstante os meus esforços para o impedir, todo o conteúdo da gamela, salvo um resto diminuto. A minha mão adquirira um movimento de vaivém até ao prato, e a uniformidade inconsciente do movimento acabou por torná-lo inútil. Na sua voracidade, aquela praga várias vezes me cravara os dentes agudos nos dedos. Com as migalhas da carne gordurenta e apimentada esfreguei vigorosamente as ataduras em todos os sítios onde pude chegar e, levantando a mão do chão, permaneci imóvel e sem respirar.

A princípio, os vorazes animais ficaram espantados e receosos com a mudança - com a cessação do movimento. Retrocederam assustados; muitos procuraram o poço. Mas isto durou apenas um instante. Não contara debalde com a sua voracidade. Observando que eu permanecia imóvel, um ou dois dos mais atrevidos treparam para o catre e puseram-se a cheirar a correia. Dir-se-ia que foi o sinal para uma invasão geral. Do poço saíram em novo tropel. Agarraram-se à madeira, espalharam-se sobre ela e saltaram às centenas para cima de mim. O movimento compassado do pêndulo não os incomodava absolutamente nada. Evitando-o, ocupavam-se da correia. Apertavam-se, enxameavam constantemente sobre mim. Agitavam-se-me em cima da garganta; com os beiços frios procuravam os meus lábios; quase me sufocavam com o peso; uma repugnância sem nome fazia-me arfar o peito e gelava-me o coração, com uma pesada viscosidade. Um minuto mais, e sabia que a luta chegaria ao fim. Senti claramente a correia a dar de si. Sabia que devia estar cortada em mais de um lugar. Num esforço sobre-humano permaneci imóvel.

Não me enganara nos meus cálculos, nem tinha padecido em vão. Senti finalmente que estava livre. A correia pendia-me do corpo, em pedaços. Mas já o pêndulo me atacava o peito; tinha-me cortado a sarja da túnica, chegado à camisa. Por mais duas vezes voltou a oscilar, e uma sensação de dor aguda percorreu-me todos os nervos. Porém, o instante de salvação chegara. A um aceno que fiz com a mão, os meus libertadores fugiram em tumulto. Com um movimento resoluto, cauteloso, lateral, contraído e demorado, escapei ao amplexo da correia e ao alcance da cimitarra. Por então, ao menos, estava livre.

Livre!, e nas garras da lnquisição! Mal tinha saído daquele horrendo leito e dado alguns passos pelo chão da masmorra, deteve-se o movimento do maquinismo infernal, que vi arrastado para cima por efeito de alguma força invisível, através do teto. Com isto, o desespero invadiu-me o coração. Era evidente que espiavam todos os meus movimentos. Livre! Escapara à morte sob uma forma de agonia, para ser entregue a uma coisa pior do que a morte, sob outra forma. Com este pensamento relanceei convulsivamente os olhos para as muralhas de ferro que me cercavam. Obviamente, uma coisa extraordinária - uma mudança que a princípio não pude apreciar claramente - sucedia no cárcere. Durante alguns minutos de abstração repassada de sonhos e estremecimentos, perdi-me em vãs e incoerentes conjecturas. E foi durante este período que notei pela primeira vez a origem da luz sulfurosa que alumiava a masmorra. Provinha ela de uma longa fissura, da largura de um centímetro, pouco mais ou menos, que se estendia a toda a volta da prisão, na base das paredes, que deste modo pareciam, e estavam, com efeito, separadas do chão. Procurei, como decerto se imagina, olhar através daquela abertura, mas nada pude ver.

Quando me levantava desanimado, revelou-se-me de repente à inteligência o mistério da alteração do cárcere. Eu tinha notado que, embora os contornos das figuras murais fossem suficientemente distintos, as cores pareciam deterioradas e indecisas. Pois tais cores acabavam de tomar um brilho singular e intensíssimo, sempre crescente, que dava àquelas imagens espectrais e diabólicas um aspecto que faria estremecer nervos mais firmes do que os meus. Olhos de demônios de uma vivacidade feroz e medonha, dardejavam sobre mim, vindos de mil direções, nenhuma delas até então visível, e brilhavam com o lúgubre fulgor de um fogo que, por mais que forçasse a imaginação, não podia considerar irreal.

Irreal! Bastava-me respirar para que me chegasse às narinas o vapor do ferro aquecido! Espalhou-se pela masmorra um cheiro sufocante! Um ardor cada vez mais profundo se refletia naqueles olhos cravados na minha agonia. Um tom carmesim cada vez mais intenso se espalhava sobre aquelas horríveis pinturas de sangue! Eu arquejava! Respirava com dificuldade! Não havia que duvidar do plano dos meus algozes - oh!, os mais impiedosos, os mais diabólicos de todos os homens! Recuei para longe do metal candente, para o centro do cárcere. Em presença daquela destruição pelo fogo, a ideia da frescura do poço veio-me ao espírito como um bálsamo. Corri para a borda mortal. Lancei o olhar para o fundo. O brilho da abóbada inflamada iluminava-lhe os mais afastados recessos.
 
Contudo, durante um instante de desvario, o meu espírito recusou-se a compreender o significado do que eu via. Por fim, entrou-me na alma à força, triunfantemente; imprimiu-se como fogo na minha trêmula razão. Oh! Uma voz para falar - oh!, horror - oh!, todos os horrores menos aquele. Com um grito, afastei-me da borda do poço e, ocultando o rosto entre as mãos, chorei com amargura.

O calor aumentava rapidamente, e uma vez mais levantei os olhos, tremendo como num acesso de febre. Houve segunda mudança no cárcere - e tratava-se desta vez de uma evidente mudança na forma. Como antes, debalde intentei a princípio avaliar ou compreender o que estava sucedendo. Mas pouco tempo estive em dúvida. A vingança inquisitorial fora acelerada pelo fato de eu lhe escapar duas vezes, e não era possível afrontar por mais tempo o Rei dos Terrores. O cárcere tomara a forma de um quadrado. Vi que dois dos seus ângulos de ferro se tinham tornado agudos - e, consequentemente os outros dois eram obtusos. A temerosa diferença aumentava com um ruído surdo, abafado e plangente. Num momento, a masmorra mudara a sua forma em losango. Mas a alteração não se deteve aí - nem eu desejava, nem esperava, que parasse. Poderia aplicar as rubras paredes de encontro ao peito, como um vestuário de eterna paz. «A morte», disse eu, «qualquer morte, menos a do  poço».

lnsensato! Acaso podia ignorar que o motivo do ferro candente era impelir-me para dentro do poço? Poderia acaso resistir ao seu calor? E ainda quando tal acontecesse, poderia acaso resistir à sua pressão? E agora o losango ia-se achatando, achatando cada vez mais, com uma velocidade que não deixava tempo para refletir seu centro, e portanto a sua maior largura, coincidia justamente com o abismo hiante. Recuei, mas as paredes, apertando-se, impeliam-me irresistivelmente. Por fim, para o meu corpo queimado e contorcido nem sequer restava uma polegada de espaço no chão da masmorra. Não lutei mais: mas a agonia da minha alma exalou-se num forte, prolongado e derradeiro grito de desespero. Senti que cambaleava à beira do poço, desviei os olhos...

Subitamente, ouviu-se uma discordante explosão de vozes humanas! Um poderoso ruído, como que de mil trombetas! Um áspero rugido, como que de mil trovões! Os muros incandescentes recuaram! Um braço estendido me tomou pelo braço quando ia a cair, inerte, no abismo. Era o do general Lassale. As tropas francesas tinham entrado em Toledo. A lnquisição estava nas mãos dos inimigos.
FIM