segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dezesseis


SONO INVULGAR

ARTEROSCLEROSO FOI FLAGRADO enquanto dormia na sala de aula. Boca aberta roncava e babava. Vez em quando, restrugia, tempestuando uns sons que estalejavam acima do normal. Os colegas, em vista disto, dispostos em derredor de sua ociosa prostração, algazarravam imitando o desditoso moleque. A tia Virgínia, professora de português, a certa altura, quase a perder o fio de meada e, sobretudo, furiosa, face aquela falta de atenção de seu aluno, e por conta dele, a classe inteira descaseada em alvoroço, achou por bem acordá-lo e, ato contínuo, mandá-lo para casa. Como era a primeira cochilada, apesar de muitíssimo aperreada com a falta de modos do garoto, daria uma chance.

Perdoaria o moleque não tomando nenhuma decisão mais drástica, como encaminhar o dorminhoco para a diretoria, ou o que considerava mais incisivo que isso, advertir os pais com um bilhete para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido. Assim que Arteroscleroso saiu de cena, a mestra, à promessa de uma compensação a ser observada na próxima aula, pediu para que os demais esquecessem aquela cena objetivando que a notícia não virasse chacota e vazasse, ou fosse parar nos ouvidos dos responsáveis pelo moleque cansado. Quanto a isto, tudo transcorreu dentro da normalidade esperada. E o caso, de fato, caiu arquivado no esquecimento.

Ao contrario, a mãe do moleque, dona Ximanga, vendo o filho mais cedo em casa, ficou com a pulga coçando atrás da orelha, além de obstinadamente cabreira. Resolveu tirar a história a limpo assim que ele cruzou o portão de entrada:

— Ar, — perguntou, de chofre. — Por que chegou antes do horário previsto?

O piá se fez evasivo e peremptório:

— Não cheguei, mãe!

Dona Ximanga insistiu resoluta:

— Como não? Seu horário é às cinco da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso tão repentino?

Arteroscleroso teimoso como uma mula, rebateu na tecla do que havia dito:

— Estou dentro do meu horário, mãe.

A mulher começou a dar sinais de impaciência diante daquela lorota arguciante:

— Não minta...

O guri desconversou embaiado num logro que se fazia visível:

— Seu relógio é que está errado, mãe.

Dona Ximanga bateu com a mão esquerda sobre o tampo da mesa. Um vaso que sobre ela estava, à guisa de enfeite, com uma flor de plástico entubada, deu um salto, como se tivesse, de repente, se assustado:

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

Arteroscleroso seguiu reservado no inalterado da sua resposta una:

— Não estou lhe tirando...

Dona Ximanga embrabeceu o tom da voz:

— Está sim. Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

O Filho procurou uma vez mais mostrar uma calma inexistente prestes a escorregar pelo ralo da sua palidez:

— Não, senhora!

A mãe arrochou o cerco pegando carona nesta brecha:

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou mais cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em perpetuar um erro ostensivo querendo se fazer de idiota. Você não é um pateta. Seu nariz vai crescer. Está lembrado daquele menino do livro que pegou outro dia na biblioteca onde um tal de Timóteo...?

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome da criatura não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Está bem mãe. Eu conto — obtemperou a fisga de uma nova paparrotice. — A tia Virgínia, minha professora de português me pegou beijando a Glorinha...

— Aonde?

— No banheiro das meninas...

— Em que lugar foi o ato, mocinho?

— Ah, sim. A senhora não explica! Na boca... Onde mais poderia ser?

Dona Ximanga, ao saber dessa proeza do filho, saltitou.  Pulou de alegria. Todo seu ego se satisfez orgulhoso:

— Puxou seu pai. O cachorro do seu pai...

— E por que chama papai de cachorro?

— Porque quando começamos a namorar, o danadinho me cobriu de beijos.

— Não sabia! Onde, mãe?

— Não vem ao caso...

Sem esperar por outra indagação, a jovem mãe se achegou de seu querido filho e o cobriu carinhosamente num forte e afetuoso abraço apertado:

— Graças a Deus, Ar. Temos a perpetuação da espécie. O mais novo machão do pedaço. Pensei que a tia Virginia, a sua professora, houvesse surpreendido você de boca aberta, dormindo e roncando na aula dela. Pior, babando. Ai meu querido, a sua mãe iria perder a esportiva e ficar muito louca da vida. Talvez até lhe desse uns bons tabefes. Glorinha? Legal! Ótima notícia. Safadinho, hein? — Agora vá tirar o uniforme e lavar as mãos. Vou preparar um lanche bem gostoso para nós.  
   
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.      Texto enviado pelo autor.

Luiz Poeta (Poliniz - Arte)


- Me dê a  a mão - pediu a planta trepadeira -
A uma roseira exuberante  e delicada,
Que, prontamente, a atendeu, lisonjeada
Com aquele afago de uma amiga tão... faceira.

Mas a plantinha, que a princípio aparentava
Uma ternura tão sublime e envolvente,
Fez do carinho, um abraço intransigente,
Que... mansamente... a roseira... sufocava.

Suas ramagens tão sutis... mas tão nocivas,
Se transformaram em algemas e cipós
Que entrelaçaram-se na... amiga... em fortes nós,
Com suas garras passionais e possessivas.

Brotos, botões e as flores mais   maravilhosas
Foram, aos poucos,  definhando, entristecidas...
Um jardineiro, preocupado em criar vidas,
Por um instante percebeu a dor das rosas...

E com cuidado, doce afeto e gratidão
Às flores lindas  que enfeitavam  seu jardim,
Desenlaçou-as das amarras, pondo fim
Àquela cena de tortura e de prisão .

Essa liana leviana e intransigente
Foi conduzida ao habitat de onde viera
Porque a planta que é ruim, sempre se esmera
Em destruir, desde que brota da semente.

Qual trepadeira de  aparência  inocente
Há muita gente que usa o outro e o destrói
Sem nem saber o quanto o abandono dói
Porém  dói mais,  sermos usados...  falsamente.

A ingenuidade dos que têm algum encanto
Porque produzem, com amor, a criação,
É uma flor que poliniza a emoção
Até com as gotas mais sutis do próprio pranto.

E toda vez que algumas plantas venenosas
Nos despetalam, por inveja ou desamor,
Os nossos polens sempre fazem nossa dor
Se transformar na brotação de novas rosas.

Quem te abandona...após usar-te... é  assim:
Sorri contigo e te elogia...  mas te cobra.
Só  não consegue compreender que a tua obra
É só uma flor que ainda brota em seu jardim.

Fonte:
Facebook do poeta

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Assim Começou o Albergue


Meados de 1958. Manoel Tavares (diretor de “A Tribuna de Maringá”), parou diante de minha casa montado numa motocicleta e armado de máquina fotográfica. Pediu-me que subisse à garupa e o acompanhasse numa visita sem aviso prévio a uma instituição então conhecida como “albergue noturno”, que funcionava em Maringá por conta de um órgão do estado, o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural – FATR. Era uma hospedaria sem nenhum conforto, destinada a acolher migrantes que chegavam de várias origens atraídos pela fama do novo Eldorado, e que ali permaneciam enquanto procuravam emprego.

Dava medo só de olhar. Camas quebradas, colchões rasgados, percevejos, baratas, mau cheiro. E os albergados espalhados no meio daquela sujeira toda.

O funcionário que nos recebeu ficou meio assustado, deu algumas tímidas explicações, disse que a verba era curta, pouca gente ajudava... Só ele e mais dois ajudantes para cuidar da limpeza, da cozinha, do dormitório. No dia seguinte “A Tribuna” soltou a matéria em primeira página, com larga manchete, denunciando aquela coisa horrível. A repercussão foi imediata.

Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro bispo de Maringá, havia chegado à cidade fazia pouco mais de um ano. Alertado pela reportagem, foi conhecer a situação de perto. Deu uma olhada geral nas instalações, fez algumas perguntas ao encarregado e conversou longamente com os migrantes. Saiu de lá chorando e prometeu dar um jeito naquilo o mais rápido possível. Logo em seguida entrou em contato com autoridades do governo estadual.

Após as negociações necessárias, conseguiu que o estabelecimento fosse transferido para a diocese. Oficializada a documentação, Dom Jaime de pronto mandou fazer uma ampla faxina, reformou os sanitários e colocou camas e colchões novos.

No início de 1959 a instituição foi reinaugurada, passando a chamar-se Albergue Santa Luísa de Marillac, inicialmente dirigido por três irmãs vicentinas: Sebastiana, Ivone e Delfina.

Pouco depois, assumiu a direção do Albergue uma santa e heroica vicentina, Irmã Vicenza, fervorosa devota de São José. Lembro-me bem de uma entrevista que publicamos na revista “NP” com o título “São José resolve tudo”, na qual a querida irmãzinha contava como conseguia resolver os problemas de manutenção da casa. Se, por exemplo, faltava feijão, ela dava um “aperto” em São José e sem demora aparecia algum bondoso doador trazendo um saco do produto.

Após alguns anos, já velhinha e sem condições de saúde para continuar a cuidar dos seus pobrinhos, Irmã Vicenza passou a direção a outra pessoa maravilhosa, Irmã Salomé.

Desde então, com o apoio da comunidade e a proteção contínua de São José, o albergue Santa Luísa de Marilac, hoje aos cuidados de dedicados irmãos franciscanos e num prédio bem equipado e com amplos espaços, continua prestando extraordinário serviço a milhares de carentes, que ali encontram abrigo, alimento e amor.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 03-9-2020)

Fonte:
http://aadeassis.blogspot.com/2020/09/assim-comecou-o-albergue.html

domingo, 13 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 377

 


Arquivo Spina 4 (Valéria Gurgel)

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 8


Amanheceu azul a cambraia celeste.

Ventinhos vivaces. As galharias farfalham levemente. Canarinhos sonoros na quirerinha. Eis que nuvens escuras surgem não sei de onde. Ventos trazem mormaço e as trovoadas. Vem a chuva.

A orquestra da vida também toca em tons variados e variáveis. Vê-se e se ouve que pessoas têm adoecido por conta do mal que assola o mundo e transformou (transtornou) tanta coisa inimaginável. Momento de calma.

Há males passageiros que temos que suportar. Essa pandemia passará e voltaremos ao normal. Muitas atividades mudarão de rotina, mas o importante é que a vida segue.

Lembremos Domenico de Masi - filósofo e escritor, além de educador - que no início dos anos 2000 revolucionou as ideias com o conceito chamado "ócio criativo", apregoando que num futuro próximo as pessoas iriam trabalhar em casa. A evolução tecnológica iria mudar as formas de trabalho. Viria o tempo para o ócio criativo, quando as pessoas trabalham em casa e têm também tempo para o ócio ligado ao lazer, ao estudo, ao lúdico. Premonição?Vaticínio? Ou visão? Chegamos a este tempo?

Ideias de adaptação vão clarear e até inspiração para o "home working" surgirá.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Edy Soares (Cristais Poéticos) IV


CONTO DE FADAS

Todo mundo fala
Que conto de fadas não existe,
Mas eu posso mudar tudo
E inventar um só pra nós dois.

Tem gente que fala
Que o amor é coisa triste,
Que tem medo de se entregar
E deixa tudo pra depois.

Mas eu posso te mostrar
Que o amor pode nos dar
Asas pra voar até o céu,

Basta você se entregar
Que eu posso te mostrar
Que o amor tem o sabor do mel,

E se, mesmo você não aceitar,
Vou pedir um anjo cupido pra flechar seu coração
E trazer você pra mim,
Pra ser a rima dos meus versos
E a melodia da minha canção.

(Celso Malzotti / Edy Soares)
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FIM DE ESTAÇÃO

Quando acabar a guerra,
Não precisa mais munição.

Quando acabar a dor,
Não precisa mais compaixão.

Quando acabar o amor,
Os mortos estarão mortos,
Os corpos sobrepostos
E a alma sem salvação.

Quando acabar a esperança,
Terá acabado a razão.

Quando não tiver mais quem lute,
Estará dominada a nação.

Os abutres continuarão com fome,
Sem como explorar mais os homens,
Terá chegado o fim da estação.

Quem produzia fora exterminado;
Quem explorava, condenado
A não ter mais quem lhe dê o pão.

Os virtuosos foram dizimados;
Do fruto do trabalho, despojados
E destruídos por quem conduziu o mundo
À ultima estação.
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REINO DE AVILAN

Frívola cúpula, travestida,
Consciente de que é despudorada,
Se iguala a qualquer prostituta,
Não se importa em ficar mal falada.

Se vende a qualquer vagabundo,
Acompanha qualquer delinquente,
Não tem moral para ser respeitada.
É vulgar e envergonha sua gente.

Se vendesse apenas seu corpo,
Poderia ser, talvez, perdoada.
Mas entrega barato sua prole,
Para ser também explorada.

Não tem cura, é pecadora,
Dá- se assim desde menina,
Não é de hoje que se lambuza
Num prostíbulo de gente grã-fina.

Fonte:
Edy Soares. Flores no deserto. Vila Velha/ES: Ed. do Autor, 2015.
Livro gentilmente enviado pelo poeta.

sábado, 12 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 376

 


Arquivo Spina 3 (Marilice Cavalli de Oliveira)

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 4, 5 e 6


A HÓSPEDE IMPORTUNA

O joão-de-barro já estava arrependido de acolher em casa a fêmea que lhe pedira agasalho em caráter de emergência. Ela se desentendera com o companheiro e este a convidara a retirar-se. Não tendo habilidades de construtor, recorreu à primeira casa de joão-de-barro que encontrou, e o dono foi generoso, abrigando-a.

Sucede que o joão-de-barro era misógino, e construíra a habitação para seu uso exclusivo. A presença insólita perturbava seus hábitos. Já não sentia prazer em voar e descansar, e sabe-se como os joões-de-barro são joviais. A fêmea insistia em estabelecer com ele o dueto de gritos musicais, e parecia inclinada a ir mais longe, para grande aborrecimento do solitário.

Então ele decidiu pedir o auxílio de um colega a fim de se ver livre da importuna. O amigo estava justamente tomando as primeiras providências para fazer casa. “Antes de prosseguir, você vai me fazer um obséquio”, disse-lhe. “Vamos até lá em casa e veja se conquista uma intrusa que não quer sair de lá.”

O segundo joão-de-barro atendeu ao primeiro e, no interior da casa deste, cativou as graças da ave. Achou-se tão bem lá que não quis mais sair. Para que iria dar-se ao trabalho de construir casa, se já dispunha daquela, com amor a seu lado?

Assim quedaram os três, e o dono solteirão, sem força para reagir, tornou-se serviçal do par, trazendo-lhe alimentos e prestando pequenos serviços. Ainda bem que construíra uma casa espaçosa — suspirava ele.
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A LANTERNINHA

Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive ideia de fazer a experiência de luz errante. A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.

A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.

A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
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A MELHOR OPÇÃO

Todos começaram a dizer que o ouro é a melhor opção de investimento.

Fernão Soropita deixou-se convencer e, não tendo recursos bastantes para investir na Bolsa de Zurique, mandou fazer uma dentadura de ouro maciço. Substituir sua dentadura convencional por outra, preciosa e ridícula, valeu-lhe aborrecimentos. O protético não queria aceitar a encomenda; mesmo se esforçando por executá-la com perfeição, o resultado foi insatisfatório. O aparelho não aderia à boca. Seu peso era demasiado. A cada correção diminuía o valor em ouro. E o ouro subindo de cotação no mercado internacional.

O pior é que Fernão passou a ter medo de todos que se aproximavam dele. O receio de ser assaltado não o abandonava. Deixou de sorrir e até de abrir a boca.

Na calçada a moça lhe perguntou onde ficava a rua Gonçalves Dias. Respondeu inadvertidamente, e a moça ficou fascinada pelo brilho do ouro ao sol. Daí resultou uma relação amorosa, mas Fernão não foi feliz.

A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram íntimos, arrancou-lhe a dentadura enquanto ele dormia, e desapareceu com ela.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Poema, 1


Apollo Taborda França
Curitiba/PR, 1926 – 2017

O POEMA

Germina o poema
Da intenção do poeta
Aferindo-se na emergente inspiração
De um momento desperto
Esclarecido

Arrisca o tema
Vai
insiste
Concatena
Debate-se no aluvião do estro

Compõe-se
Amolda-se
Alonga-se
Recua na medida
Incorpora imagens
Situações
Discursa o conteúdo
Define-se

Recebe o sopro final
Ganha vida
Existe
Prontifica-se
****************************************

Leonardo Henke
Curitiba/PR, 1906 – 1986

POEMAS DE AMOR

Poemas de amor, direis, que descalabro...
numa época em que o amor é quase morto,
é semear lírios em selvagem horto,
as rosas de recife, ou volutabro*…

Entanto, o coração aos versos abro,
e lhe trazem — batéis a escuro porto,
as claridades que lhe dão conforto,
as luzes de um celeste candelabro.

Poemas de amor, mas desse amor divino
que as almas reconduz, igual a um hino,
a céus distantes, sem jamais perdê-las.

Poemas de amor, daquele que, de rastros,
a lua impele ao ósculo dos astros,
e leva ao sol, o beijo das estrelas…
______________________
* Volutabro = lamaçal.
****************************************

Hélio de Freitas Puglielli
Curitiba/PR

POEMA DO AMOR NECESSÁRIO

Lágrimas e proclamações de posse
ciúme e olvido abraços e distâncias
na ardência da paixão
palavras combustíveis
queimando

Ninguém cantou o amor necessário

Ninguém cantou este impulso
grave
de seres que se completam
Ninguém cantou o amor sem adjetivo
começo e fim de si mesmo
este círculo fechado
na profundeza do desejo, entre a carne
e a dor esperanças e futuros
lado a lado
este amor tão terra, e pó,
e vida.

O amor em sua própria duração
compulsão fecunda sem metáforas,
violenta serenidade,
este amor eu canto.
****************************************

Antonio Salomão
(Altinópolis/SP, 1921) Curitiba/PR

POEMA

Há nesse alpendre uma cadeira antiga
onde o silêncio não fazia alardes,
onde sentava sem supor fadiga
a meditar na calidez das tardes.

Era meu pai, aquele pai amigo
que ali vivia a meditar em mim
e parecia até falar comigo
que o grande amor não tem limite ou fim.

Ai que saudade das benditas horas
em que meu pai na solidão se via,
a imaginar e a me dizer tu choras
sem perceber que já chegou meu dia.

E este diálogo formoso e belo
se interrompeu definitivamente,
mas na minha alma por maior anelo
saudade é flor de uma lembrança quente.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Fábulas (O Tigre)


Um filhote de tigre fora criado entre cabras. Prenhe e balofa, sua mãe passara vários dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal adotaram a débil criatura; amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito.

A princípio teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.

Certa noite - quando o órfão, crescido entre as cabras, já havia alcançado a idade da razão - o rebanho foi atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-o estupefato. Passado o primeiro impacto, começa a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.

De repente, o poderoso intruso pergunta:

- Que fazes aqui entre as cabras?! Que estás mastigando?!

A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:

- Por que emites este som estúpido?!

E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazê-lo recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela Lua.

- Vê estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando seres um cabrito? Por que berras? Por que mastigas pasto?!

O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância, mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:

- Come! Engole!

O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago.

Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono - uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre.

O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:

- Agora sabes quem realmente és?

E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:

- Vem! Vamos caçar juntos pela selva.

Moral da Estória:
Isso é o que acontece com todos nós.
Nós somos tigres, nós nascemos tigres, mas fomos educados sendo cabras.
Só nós podemos nos conscientizar de que não somos cabras e então decidir dar um rugido e assumir nossa condição de tigre.
Esta é a única chance de resgatar a nossa face original de tigre.


Fonte:
Heinrich Zimmer. Filosofias da Índia.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 375

 


Arquivo Spina 2 (Ana Luzia Moura) Em Mim, Um Turbilhão de Palavras!


Fonte:
SPINA (Nova forma poética) – Grupo do Facebook
https://www.facebook.com/groups/623841465028682


Fábulas (A Árvore Solitária)


(autoria desconhecida)

Era uma vez um velho carvalho que já vivia há muito tempo na floresta.

Muitos anos antes, uma grande tempestade varrera a floresta, deixando o carvalho quebrado e feio. Não era mais altivo e belo como as outras árvores.

A primavera cobria sua feiura com novas folhas verdes; no outono, as folhas se transformavam num belo manto carmim. Mas os ventos na floresta sempre sopravam, carregando o manto de folhas para longe. E, assim, nada restava para disfarçar sua feiura.

Passaram-se muitos e muitos anos e o carvalho começou a se sentir meio vazio por dentro. Sentia o coração também ferido, como o corpo. Quando ele já estava muito, muito velho, um vento de outono passou suspirando. O carvalho acabou se lamentando.

- Ninguém me quer. Não tenho mais nenhuma utilidade no mundo.

Tac, toc, to-ro-roc-toc, toc!

Era o senhor pica-pau-cabeça-vermelha, bicando o tronco do velho carvalho.

Toc-toc!

Foi martelando e furando, até que fez uma portinha de entrada para sua residência de inverno, numa parte oca da árvore. Ele havia encontrado um salão pronto, cheio de bichinhos para ele e sua família comerem, quando chegasse o frio. As paredes da casa eram quentinhas, tudo muito arrumadinho e aconchegante.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido!

Cantou o senhor pica-pau-cabeça-vermelha.

Schuip! Schuup!

Era o bobby esquilo. Ficou correndo pelo tronco do velho carvalho, até que achou um buraco redondo, que seria sua janelinha da frente. Bobby esquilo espiou para dentro. Ah! Como era confortável e aconchegante a casinha que ele viu!

Forrou-a com musgo, e nas protuberâncias que formavam prateleirinhas amontoou pilhas e pilhas de nozes, prontas para os banquetes quando chegasse o frio. Ia ser ótimo morar lá, agasalhado no seu casaco de peles e bem alimentado.

Ficaria seguramente abrigado até a chegada da primavera.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido! - tagarelou Bobby esquilo.

Então, uma coisa estranha aconteceu com a árvore. As asinhas do passarinho batendo animadas e o coração do esquilinho aqueceram-na por dentro.

O coração do velho carvalho inchou de alegria.

Em vez de suspirar com o vento, seus ramos cantavam de felicidade.

As gotas das chuvas do outono, já congeladas, pendiam de seus dedos de galhos como refulgentes diamantes. A neve cobriu seu corpo com um magnífico manto branco.

À noite, a luz das estrelas e, de dia, os raios de Sol mantinham uma brilhante coroa sobre sua cabeça.

Em toda a floresta, não havia árvore mais feliz nem mais bela que o velho carvalho.

Moral da Estória:
Ser útil. Ter o coração hospitaleiro. A beleza realmente está dentro.


Fonte:
Universo das Fábulas

Carla Rejane Silva (Meu Gatinho de Estimação)


Meu gatinho a quem tinha tanta admiração e carinho, fugiu. Não sei para onde. Fugiu. Foi embora. No seu lugar, ficou uma saudade enorme, pesada e dolorida.

Uma saudade descomedida e fria, que dói, que machuca, que me esmaga os ouvidos, os sentidos, como se fosse um látego martirizante.

Seus miados ainda estrondam em minha cabeça: Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu...

Às vezes tenho a impressão de que ele está aqui. Escondido, brincando com a minha dor de não tê-lo por perto. Mas esta impressão não passa de confusão desenfreada da minha mente. No final de tudo, é isso mesmo, Tudo o que vivo agora, não passa de desmazelos da minha vida cheia de curvas

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 374

 


Arquivo Spina 1 ( Ana Meireles) Para aquela viagem vestiu fantasias e lembranças




Fonte:
Facebook da Spina – Nova Forma Poética
Imagem = montagem da Spina, por José Feldman, sobre imagem da Microsoft

Fábulas (A Águia e o Pardal)


O Sol anunciava o final de mais um dia e lá, entre as árvores, estava Andala, um pardal que não se cansava de observar Yan, a grande águia. Seu voo preciso, perfeito, enchia seus olhos de admiração. Sentia vontade em voar como a águia, mas não sabia como o fazer. Sentia vontade em ser forte como a águia, mas não conseguia assim ser. Todavia, não cansava de segui-la por entre as árvores só para vislumbrar tamanha beleza.

Um dia estava a voar por entre a mata a observar o voo de Yan, e de repente a águia sumiu da sua visão. Voou mais rápido para reencontrá-la, mas a águia havia desaparecido.

Foi quando levou um enorme susto, deparou de uma forma muito repentina com a grande águia a sua frente. Tentou conter o seu voo, mas foi impossível, acabou batendo de frente com o belo pássaro. Caiu desnorteado no chão e quando voltou a si, pôde ver aquele pássaro imenso bem ao seu lado observando-o.

Sentiu um calafrio no peito, suas asas ficaram arrepiadas e pôs-se em posição de luta. A águia em sua quietude apenas o olhava calma e mansamente, e com uma expressão séria, perguntou-lhe:

- Por que estás a me vigiar, Andala?

- Quero ser uma águia como tu, Yan. Mas, meu voo é baixo, pois minhas asas são curtas e vislumbro pouco por não conseguir ultrapassar meus limites.

- E como te sentes amigo, sem poder desfrutar, usufruir de tudo aquilo que está além do que podes alcançar com tuas pequenas asas?

- Sinto tristeza. Uma profunda tristeza. A vontade é muito grande de realizar este sonho.

O pardal suspirou olhando para o chão e disse:

- Todos os dias acordo muito cedo para vê-la voar e caçar. És tão única, tão bela. Passo o dia a observar-te.

- E não voas? Ficas o tempo inteiro a me observar? - indagou Yan.

- Sim. A grande verdade é que gostaria de voar como tu voas. Mas as tuas alturas são demasiadas para mim e creio não ter forças para suportar os mesmos ventos que, com graça e experiência, tu cortas harmoniosamente.

- Andala, bem sabes que a natureza de cada um de nós é diferente, e isto não quer dizer que nunca poderás voar como uma águia. Sê firme em teu propósito e deixa que a águia que vive em ti possa dar rumos diferentes aos teus instintos. Se abrires apenas uma fresta para que esta águia que está em ti possa te guiar, esta dar-te-á a possibilidade de vires a voar tão alto como eu. Acredita! - e assim, a águia preparou-se para levantar voo, mas voltou-se novamente ao pequeno pássaro que a ouvia atentamente.

- Andala, apenas mais uma coisa: não poderás voar como uma águia, se não treinares incansavelmente por todos os dias. O treino é o que dá conhecimento, fortalecimento e compreensão para que possas dar realidade aos teus sonhos. Se não pões em prática a tua vontade, teu sonho sempre será apenas um sonho.

Esta realidade é apenas para aqueles que não temem quebrar limites, crenças, conhecendo o que deve ser realmente conhecido. É para aqueles que acreditam serem livres, e quando trazes a liberdade em teu coração poderás adquirir as formas que desejares, pois já não estarás apegado a nenhuma delas, serás livre!

Um pardal poderá, sempre, transformar-se numa águia, se esta for sua vontade. Confia em ti e voa, entrega tuas asas aos ventos e aprende o equilíbrio com eles. Tudo é possível para aqueles que compreenderam que são seres livres, basta apenas acreditar, basta apenas confiar na tua capacidade em aprender e ser feliz com tua escolha!

Fonte:
Autoria desconhecida. Obtida no Universo das Fábulas.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) II


ENLEVO

A ternura silente
de tuas mãos
afaga a minha face.
É uma carícia tão real
que penso que estás presente.
A lágrima,
prestes a forrar,
encolhe-se e volta aos meus olhos
brilhantes de alegria.
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EXORTAÇÃO

Não caminhe tão suavemente.
Pise firme - marque sua passagem.
Não se vá, alienadamente.
Sua participação é central e necessária.
Não se transforme num rosto sem face,
numa imagem perdida que no tempo se esvai.
Não se perca num emaranhado de boas intenções
grite, lute, eleve sua voz, faça-se ouvir.
Não se comprometa com o silêncio,
aceitando as migalhas que sobraram.
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FELICIDADE

Felicidade é aproveitar cada momento
e cada raio de sol ou brilho prateado
que ilumina nosso dia ou nossa noite.
É sentir os pingos da chuva refrescante
que vai preparar o solo com cuidado
tornando-o macio e confortável
para o pequeno broto que, em breve,
vai despontar alegre,
saudando a natureza.
É respirar bem fundo, intensamente,
para sentir o cheiro do mato vigoroso
que nos traz a vida com energia.
É olhar o mar em ímpeto fremente
abraçando o rochedo enamorado.
É ir além do horizonte inatingível
mergulhando no azul, em transcendência
para o mundo invisível à nossa espera.
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FINGIMENTO

O seu amor não existe,
mas se existe, não se explica.
Existir pra tanta gente
é mentira, é falsidade.
Eu peço: não diga nada,
deixe eu fingir que acredito
que sou parte de sua vida,
que sou sua outra metade
sem que outras nos dividam
tirando a suposta unidade.
****************************************

FLORES

Sempre gostei de flores
mas nunca me preocupei muito com elas,
embora as contemplasse, várias vezes,
quando a gentileza de um amigo
celebrava a importância de um momento,
ofertando-as.
Agora que estou sozinha
as flores se tornaram
uma alegre companhia,
trazendo ao meu coração
um doce enlevo.
São elas que me ajudam em minha caminhada
dando-me a impressão
de estar acompanhada,
de que alguém da família
vai entrar a qualquer hora
e compartilhar da beleza colorida
que enfeita a sala.
As flores, comigo aguardam
o elogio, entusiasmado,
de quem chegando ao lar, feliz se sente
com a atmosfera perfumada e esfuziante.
Elas preenchem o vazio de uma ausência,
perdoando em silêncio
a antiga indiferença.
****************************************

FORTALEZA

Folhas de palmeiras dançando alegremente,
ao ritmo da brisa vespertina
enquanto mar e céu se misturam
em um mundo de azuis.
Pequenos barcos, com velas muito brancas
sobem e descem embalados pelas ondas.
Neste cenário, a cidade é um poema
que mostra como é certa a sua rima,
pois Fortaleza
é Beleza.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Quinze



ROLETRANDO

O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.

- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.

- Não! A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos - Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...

- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.

- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.

- Cinco centavos...?

- De cinco em cinco...

Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.

- Se é assim, fazer o quê?

- Espere um pouco...

- Vou saltar logo.

- Onde?

- Vila Alegria.

- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.

O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.

Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.

- Conseguiu?

- Calma cavalheiro.

- Meu ponto está chegando...

À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.

- Aqui...

Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Protesta:

- Amigo, dei cinquenta reais...

- E eu lhe devolvi o troco.

- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?

- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.

- Desculpe. A grana está errada.

- Como assim?

- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- E quanto lhe passei?

- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.

- Estou sem moedinhas nesse valor.

- Perdão. Exijo o troco correto.

- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...

- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.

O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:

- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...

- Não, não vou lhe dar esse gostinho. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- Faz questão de cinco centavos?

- Estou pagando na mesma moeda.

Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.

- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.

- “Dá pra ser, cidadão?”.

- “Será que terei de pular?”

Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:

- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?

Um terceiro entra em favor do cobrador. Muge:

- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”.

O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:

- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.

Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.

- Moço, toma aqui. Vai com Deus.

- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.

- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...

- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.

- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.

- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...

Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.

- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.

- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.

- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.

- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.

- “No fim do expediente ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.

O quadro de repente toma proporções inesperadas.

- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.

 “- Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.

- “É isso mesmo...”.

Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.

- “Devolve a grana, pilantra”.

- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.

Por fim, o consenso prevalece:

- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.

- Faltam cinco centavos...

- Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.

Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:

- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!

Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 373

 


Humberto de Campos (O Patrão)

 

O Sr. Alberto Gomes Valente era guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C., ganhando quinhentos mil réis, quando resolveu constituir família, unindo-se solenemente à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor nos olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias Sobreira e pediu-lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.


- O ordenado? - estranhou o capitalista, franzindo a testa. - Por que? Que é que justifica a sua reclamação?

O guarda-livros gaguejou, aflito, e explicou o seu caso. A organização do seu lar exigia despesas novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de casamento que ele pedia, submisso, um aumento de cinquenta ou cem mil réis por mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:

- Impossível, meu amigo; é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte: impedir que o senhor se case. Serve?

O guarda-livros insistiu, no entanto, na sua deliberação, e casou-se. E ia vivendo, bem ou mal, há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:

- Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com os seus serviços, resolveu aumentar espontaneamente o seu ordenado. De hoje em diante, o senhor passa a ganhar setecentos mil réis.

Quatro meses depois, outra chamada, com outra comunicação:

- De agora em diante, Sr. Abelardo, o seu ordenado fica aumentado. O senhor ficará ganhando, à partir deste mês, um conto de réis.

Vivia, assim, o honrado auxiliar da firma Sobreira, Costa & C., em um ambiente de conforto relativo, quando, aproveitando a ausência do chefe da firma, lhe deu na cabeça, um dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se enganara; pelo menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados que ela lhe correu a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de chegada, uma infinidade de beijos.

- Tu por aqui a estas horas? - estranhou a moça, carinhosa. - Que foi isso?

O marido explicou. O Sr. Sobreira havia saído para ir à Alfândega, e ele, tirando proveito da hora, correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.

Ao contar essas coisas, olhou, rápido, para o grande relógio da sala de jantar, um relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual, e estremeceu, vendo-o atrasado.

- Que é isso? O relógio parou?

E vendo que, de fato, a grande maquina de medir o tempo estacionara meia hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a pô-la em movimento. Mal porém, puxara a tampa do monstro, alta como uma porta de igreja, recuou, pálido, com a agonia no coração, exclamando:

- O Sr. Sobreira!.

E com as mãos tremulas, os olhos fora das órbitas, estupefato por encontrar o patrão escondido na caixa do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a raiva:

- Que é que o senhor está fazendo aí?

Encostado no fundo da caixa, o patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:

- Passeando...

E puxou sobre si, fechando-se, a tampa do relógio.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Baú de Trovas XIV (para descontrair)



Velho que casa com moça,
analfabeto quer ser...
— Este, quando compra livro,
é sempre para outro ler!
A. C. DE OLIVEIRA MAFRA
- - - - - -
Velo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
— capa de pura pelica,
— cara de pelanca pura!
ALOISIO ALVES DA COSTA
- - - - - -
Ele opina sobre tudo.
Gesticula, ordena, fala,..
De repente, fica mudo,
porque a sogra entrou na sala..
AMÉLIA TOMAS
- - - - - -
Maria, (que ingenuidade!)
por não crer em coisa feia,
deu-me tanta liberdade,
que eu fui parar na cadeia…
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Beijo-te a carta e bendigo
tuas juras, desta vez,
com tal amor, que mastigo
teus erros do português...
ARLINDO BARBOSA
- - - - - -
Cama nova, bem limpinha,,.
Nome dela numa fronha...
Ela própria,    engraçadinha...
Que beleza, hein, sem-vergonha?
CHICO VEIGA
- - - - - -
Surpreendido de mansinho,
sem a libra dos heróis,
naqueles lençóis de linho,
eu me vi em maus lençóis...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não tenhas medo, querida,
que agora eu quero é viver:
com este custo de vida,
quem é que pode morrer?!
EURICLES BARRETO
- - - - - –
Ordena a viúva triste:
— "Vistam-lhe o mais rico terno!
Pergunto: será que existe
tanta festa lá no Inferno?.,.
HERALDO LISBÔA
- - - - - –
Teus foros de sapiência
a outros têm iludido.
Não a mim, tenho ciência
que não és sábio, és sabido...
J. DIAS DE MORAES
- - - - - -
Creio que o noivo da Anita
é muito feio — Jesus! —
pois, sempre que ele a visita,
ela logo apaga a luz...
JOÃO RANGEL COELHO
- - - - - -
Você, meu caro casmurro,
tem na vida o seu papel:
como bacharel, é burro,
como burro,    é bacharel...
LAFAYETTE PEREIRA SPÍNOLA
- - - - - -
Quase não tive noivado,
não tinha tempo, sequer...
Hoje namoro atrasado
a minha própria mulher...
LAMARTINE BABO
- - - - - -
Todo mundo é boa praça
quando é chegada a eleição.
Mas, depois que o pleito passa,
o povo fica na mão!...
M. AUGUSTO COSTA
- - - - - -
Distraída, distraída
é a mulher do Januário:
ouve à porta uma batida,
tranca o marido no armário!
MAGDALENA LÉA
- - - - - -
Um belo carro de luxo...
Não há mulher que resista!
— É o caso mais positivo
de amor à primeira vista...
MARILITA POZZOLI
- - - - - -
Maria tem tanto medo
do mau gênio do Antenor,
que não conta seu segredo
nem ao padre confessor….
MÁRIO PEIXOTO
- - - - - –
Não grites por Santo Antônio.
Os teus pecados são tantos
que deves antes gritar:
— Valham-me todos os santos!
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Pernas tortas, magricela,
e do biquini na praia!
- Você não sabe, Isabela,
que falta lhe faz a saia!...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
A sociedade é um torneio
de parceiros em negócios:
cada sócio busca um meio
de lesar os outros sócios...
RODRIGUES CRÊSPO
- - - - - -
Quem casa com mulher feia
ganha em dobro, na jogada:
mesmo cobiçando a alheia,
nunca a dele é cobiçada...
SERAFIM SOFIA
- - - - - –
Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!
TROVA POPULAR ANÔNIMA

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 372

 


Rubem Braga (A Casa Viaja no Tempo)


Volto, como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa, eu... E tantas vezes vim aqui que não  tomo consciência das coisas que mudaram.

Sento-me, por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se lembra de mim há muito tempo. "Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de paletó e sem gravata.  Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu me lembro muito bem. Eu tinha seis anos...

Seis anos! Certamente não me recordo dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.

A primeira recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no jardim. Era certamente linda; mas não creio  que tivéssemos trocado, através dos anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de que, por algum motivo  imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes, seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje, ainda tão moça, tem dois filhos - e a maternidade veio definir melhor sua radiosa beleza juvenil.

Inutilmente procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante esses inumeráveis domingos.

Certamente fui sempre, para ela, uma figura constante, mas vaga  -  um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver distraidamente de vez em quando - às vezes com um ano ou mais de intervalo, que viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos "boa-noite" e "como vai?", mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente quando ela diz: "eu tinha seis anos..."

Penso em tudo o que vivi nestes anos - tanta coisa tão intensa que veio e foi - e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada  domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste - o mesmo senhor que numa noite de domingo, sem  o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de domingo - e não voltaram mais.

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. Crônica publicada em 1953.