quarta-feira, 5 de maio de 2021

Manuel de Oliveira Paiva (Da pena atrás da orelha)

A vidraça tinha batido na casa fronteira, sacudindo um relâmpago pelo quarto adentro, e foi como a voz do patrão que o despertasse com todas as peripécias de um carão em regra.

Depois de ter percorrido o quarto, com o lençol de chita forradinho de branco arrastando como uma capa de rei, à procura do paletó de alpaca, do colete de fustão, da calça de gazineta, da gravata e do chapéu cinzento, desenterrando tudo isso do meio da desordem geral, como de uns escombros, enfiou a bota. Esta parecia ter o rosto inchado, como o do dono, sem lustro, como se lhe houvessem esfregado uma lixa, ela, a bota que ontem à noitinha luzia como uns olhos negros!

Quando ele alçou a perna, enfiando o dedo na presilha do cano suarento, o solado amostrou uma grande parte roída que punha em evidência os pontos até à palmilha.

Aquele sapato nem mais rangia! Coitado, era como a maior parte dos rapazes, depois que se casam. Ai da rangedeira, do lustro, do tacão, do elástico, da integridade da sola e do couro!...

O rapaz filosofava assim, cochilando sobre a outra bota, que apanhou, de perna estirada, e o pé já na meia cor de café com a pontinha branca.

O poder gigante da inércia calcava-o; e o dedo magnético dos sonhos descia-lhe de novo as cortinas dos olhos. Como num engenho d'água o fio de magro corrente, caindo, incute o giro veloz à ingente rodeira, assim, breve a modorra foi despertando a espantosa engrenagem daquele cérebro.

As ideias da gente ficam, às vezes, como fogo de monturo...

Vinham-lhe, como em ópera mágica, as apreensões de antes da festa, quando o carnaval era ainda o amanhã. As comoções do primeiro momento. As emoções, os desvarios, a espécie de abstração, de alheamento, que nos assalta em dados instantes no forte, do bom do prazer.

Sonhando a dormir repetiam-se-lhe episódios do sonhar acordado... E, como se fosse passado, intrometia-se por ali mefistofelicamente o futuro, isto é, o escritório, o pavoroso, o soturno escritório com a sua carteira bestial, com os seus livros sem inteligência e a sua pena sem luz...

Do cantinho da prensa do copiador, entretanto, saía, distintamente, uma senhora... aquele escritório era dele agora... que ventura, ele se transformava no patrão... aquela era a esposa dele que vinha reforçá-lo com os segredos do seu ser... chamava-o para almoçar, e ele voltava-se risonho:

— Já vou.

Os livros e as penas agora para ele chegavam a sentir: não tinham inteligência, nem luz, mas eram os seus amigos...

E tinha rancor a tudo que não fosse ela. Qual baile, qual nada...

0 sapato caiu-lhe da mão... Diabo, o salto bateu oco, indiferente, maquinal, frio como um aviso de despedida... O coração bateu... Faltava banhar o rosto e passar a escova nos dentes, pentear-se, escovar-se... porque enfim até isso a casa exigia.

A bacia e a moringa apresentavam-se na janela, por onde entrava o ruído da vida ressurgida na quarta-feira de cinza...

O sol parecia ondular com o vento por cima dos telhados como no pano de um circo...

Ao contato da água fria nos dedos, à carícia do ar exterior, o rapaz, esfregando os dentes na sua janela, vestido como um tresnoitado boêmio, foi que começou a acordar apenas... o sangue, chamado às gengivas pela fricção da escova, a mucosa da boca vasculejada pela água, o movimento do braço, — como um cheiro que se aplicasse ao nariz, numa síncope, — chamavam-no à vida muscular...

Porém as ruas ainda estavam caladas.

No meio do quarteirão parava uma velha carroça roxo-terra; e sentia-se asperamente o chiado seco da vassoura da limpeza pública.

Pausadamente caminhavam os caixeiros, em número escasso a abrir as lojas. Ouvia-se espaçadamente grunhirem as lingüetas, rosnarem os gonzos, em um quase silêncio. Passavam rareados convalescentes para as vacarias; e distribuidores de pão com as cestas de vime ao ombro com a costumeira manta encarnada.

Assanhava-se a bem-aventurada sonaria dos sinos, tocando ao descarrego das consciências.

E desapareciam na esquina rezadeiras apressadas.

Raparigas de vestido simples e cabelo penteado com água, as mãos Caídas sobre o ventre, com o lenço, o rosário e o manual, os sapatos comidos para um lado, de elástico esgadelhudo; a vista para o chão como se atravessassem uma região impudica; a tez empalidecida, iam, com o erotismo abafado de quem sorve a nevrose do templo por lhe ser inacessível a nevrose do mundo...

Os caixeiros sacudiam as trancas de ferro, e varriam os interiores.

Via-se, deles, alvos, robustos, de mangas arregaçadas. Defronte uns arrumavam peças de chita, com o olhar tresnoitado o pequenino.

Um belo dia que se alevantava na rua! Longe ouvia-se o bater de uma enxó e o chiar intermitente de uma serra. Um caixeiro moreno Por demais, de cabelo à escovinha, novato, muito puxado no serviço, parecia notar longamente os transeuntes, com a vassoura em descanso, e manifestava a presença desanuviada de quem conservasse ainda a doce brutalidade do sertanejo. O arzinho de chuva, que ameaçava, devia lembrar-lhes que habitar nos matos, bebendo e jantando arroz com carne odorante a queijo, respeitado não só pelo cabroeiro, que costumava tratar a meninos de família por seu cadete, como pelas autoridades e funcionários que soíam passar as mãos pela cabeça do filho do doutor fulano, e do capitão sicrano, era preferível a sujeitar-se aos apelidos de cabeça de toicinho, cabelo de espeta-caju, a suportar os carões do patrão e a aguentar o mau-trato dos colegas...

Enfiavam para o Mercado vários vendilhões, entre os quais destacavam-se os de hortaliça, com a luzente bacia de zinco donde repolhava o setim das alfaces, o crespo das couves, e repontavam os biquinhos dos quiabos, dentre a púrpura dos tomates... coentros de palminhas bordadas, e molhos de cebolas... Lá iam mulatas de xale a tiracolo com as vasilhas para as compras; marchantes, de roupa asseada e passo ligeiro com o guarda-sol debaixo do braço; meninos a distribuir jornais: pedreiros; carpinas: homens do ganho com o uru vazio: donos de casa, em pessoa para a feira... e cegos mendigos, com a mão no ombro dos guias de roupa suja e rota...

Apertando o gargalo da moringa, o rapaz encheu a bacia, e, quando a fisionomia sentiu as primeiras mãos-cheias de água, a rede elétrica dos nervos transmitiu por todo o corpo a verdadeira e definitiva sensação do despertar. Foi como se retumbasse a voz de — sentido! — por um batalhão em forma que estivesse em descanso.

E breve, no impedimento da toalha de rosto, que ele não sabia onde parava, enxugou-se no lençol."

Ensaiou os primeiros passos na direção da saída, mesmo porque já um relógio batera placidamente as sete horas. Aquilo é que era suar um coração agoniado. Sete horas, hora de horror...

"Hora de febres fatais
Hora em que gemem saudades
Dos tempos que não vêm mais!
Quando os pálidos precitos
Requeimam lábios malditos
Em taças de negro fel!...”

Mas, enfim, saiu como um doido.

Maldita caneta, livros cínicos do comércio! A Inquisição não se lembrou desse tormento pavoroso!

E naquela negação absoluta pelo trabalho, ele suspirava ardentemente, imprecativamente, como o desgraçado rico, do inferno vendo Lázaro no céu:

— Deus, oh Deus! por que não me fizeste empregado público?!

Momento depois ouvia-se ainda o ganir dos armadores ao balanço decrescente da rede, no quarto deserto e desordenado, onde as manchas de sol iam insensivelmente caminhando por cima dos trastes e das roupas e das estampas coladas na parede.

(Texto publicado em 1888)

Fonte:
Obra Completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. 

A. A. De Assis (88 Poeminhas) – 2 –


Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.

23.
Bandinha de gênios
brincando ao piano e rindo.
Mozart, Beethoven, Chopin
dó-ré-mi-fá-sol-lá-sindo.

24.
O fruto é fruto do amor.
Quis Deus até
que antes de fruto
ele fosse flor.

25.
Na aguinha da bica
molha o bico o tico-tico.
Depois bica a tica.

26.
Nobre flamboyant.
O facho
que traz nos cachos
acende a manhã.

27.
Doce portuñol.
Para los niños
los nidos.
Y los abuelos.

28.
Ouro, incenso e mirra.
Que será que fez Jesus
com tais luxozinhos?

29.
Ah, os homens.
Os homens
moem-se.

30.
Cuidado, cordeiro.
Por enquanto
é cedo ainda
para confiar no lobo.

31.
Calma, irmão,
vamos sem susto.
Há sempre um anjo,
amigo e bom,
que ajuda o justo.

32.
Abaixo a vingança.
A lei do dente por dente
faz tempo ficou banguela.

33.
Século-cabeça.
Mais que a força dos Golias
vale o gênio dos Davis.

34.
A semente, grá-
vida,
leva a vida impá-
vida
para a frente.

35.
Um homem
deitado
no gelado chão.
Por que não
samaritamos?

36.
O ego é o vilão.
Só quem dele se liberta
limpa o coração.

37.
Era transromântica.
A poesia anda indagando
que coisa é
física quântica.

38.
Tão meninas elas,
as meninas dos teus olhos.
Pedem colo,
ainda.

39.
Do cérebro ao coração:
– Somente unidos, irmão,
daremos bom rumo
à história.

40.
De que nome o chamo:
pirilampo ou vaga-lume?
Tanto faz: é luz.

41.
Um raio de lua
deita no colo da rosa.
Namorinho antigo.

42.
Havia a via,
havia ação,
havia o espaço,
aviação.

43.
Voa a gaivota,
voa.
Voa, voa, voa,
vira um anjo azul.

44.
Florzinha silvestre
no jardim
do shopping-center.
Êxodo rural

Continua…
 
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro
de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Melo Moraes Filho (A Festa da Moagem) – 1 –

(PROVÍNCIA DO RIO)


No Norte e no Sul do Brasil, as festas do trabalho, os jubileus da lavoura tinham sobre a fronte grinal das frescas e odoríferas, enramadas ao gosto dos estilos selvagens.

Aos harpejos bárbaros da floresta, ao rumor sacrílego que acordava os ermos, os fazendeiros, em suas casas de vivenda, faziam os cálculos sobre os proventos de suas plantações e consideravam no dia da inauguração da moagem, traçando planos alegres e realizáveis.

No Rio Bonito, em Capivari, na Boa Esperança, em Macacu e em toda a província do Rio de Janeiro, a começar de abril, alguma coisa de estranho se passava nas fazendas, desusada atividade punha em alvoroço foreiros e escravos.

A gente da redondeza, convidada ou não, dispunha-se a comparecer à festa anual agrícola do mês de maio, época em que todos os engenhos principiavam a funcionar.

Abandonando por toda a duração da moagem as suas magníficas e confortáveis moradias, alguns senhores, acompanhados por vezes da família, vinham residir nos engenhos, fiscalizando diretamente o trabalho. Desde maio, porém, as enxadas e as foices dos escravos lampejavam ao sol, procedendo-se à capina geral do terreiro e de suas proximidades, que abrangiam o inteiro perímetro, o quadrilátero extenso ocupado pelas construções principais e rústicas da grande propriedade.

A casa de vivenda, a do engenho, os paióis e depósitos, as senzalas extensas eram caiadas e limpas; a escravatura recebia timões de baeta azul e roupa de algodão para o gasto do ano; e, de oito a quinze dias antes da moagem, procedia-se ao corte das canas, que chegavam em carros de bois e ficavam sob os alpendres ou em depósitos especiais. Quem passava então pela estrada desfrutava um espetáculo aprazível, encantava-se diante de uma paisagem larga e pitoresca, própria do nosso clima e do nosso meio, e de acordo com o desenvolvimento relativo dos nossos proprietários rurais.

Aninhada debaixo de um céu sem névoas e quente de esplendores, a bela casa de vivenda do fazendeiro opulento dominava em uma eminência, elegante e avarandada, sobre um terreno amplo, arborizado e varrido.

À curta distância, a fábrica do açúcar levantava-se vasta, da altura de dois andares comumente, com suas varandas compridas, com seus alpendres contornantes. Os paióis e as senzalas, em planos variáveis, acentuavam o tom característico desses núcleos agrícolas, outrora tão florescentes e hoje quase infecundos.

Pontes atravessando córregos, rebanhos e bois nas pastagens, casinhas de sapé, ranchos dispersos, e uma ou outra senzala de cujo teto um esteio rompente se abria em ramas e flores – eis mais ou menos um quadro das nossas antigas fazendas, monótonas até ao enfado, à força de serem semelhantes.

Desde escura madrugada, entretanto, a vida nelas se reanimava, especialmente no tempo da moagem e da safra.

Os escravos, saudados pelo cântico das aves, pelo murmúrio dos rios, pelo espadanar das cascatas, surpreendiam as auroras do sol que os encontravam no eito; os carreiros seguiam à frente dos tardos bois, ao guincho dos carros; e os cantos dos negros em turmas eram acompanhados em surdina pelo cicio dos canaviais às virações do amanhecer:

’Sta va na praia escrevendo
Quando o vapô apitou:
Foi os olhos mais bonitos
Que as ondas do mar levou!...

Minha senhora, me venda,
Aproveite seu dinheiro;
Depois não venha dizendo
Qu’eu fugi do cativeiro.


Eram os pobres escravos do Norte que carpiam as suas saudades!

Era um pensamento talvez de suicídio, uma ideia de morte tarjando de luto a esplêndida aquarela da natureza!...

Mas o dia da festa estava marcado, e com antecedência ultimavam-se os aprestos. De véspera, a casa do engenho e as mais construções adornavam-se, interna e externamente, de troféus, de pendões vegetais entremeados de flores selvagens, de ramagens e palmas, de festões e arcadas de folhagens; no terreiro, as bandeiras, colocadas de distância em distância, flutuavam na extremidade dos bambus flexíveis e verdes; e aqui e ali os moleques e negrinhas, saltando e brincando, olhando espantados, chusmavam em algazarra, aqueles com a camisa aberta no peito, mostrando ao colo uma figurinha suspensa, um bentinho ou um rosário de devoção materna.

Matava-se um boi para o banquete dos senhores e ração dos escravos, carneiros, galinhas, etc., incumbindo-se a dona da casa, a família do agricultor, da direção das escravas doceiras, das que arranjavam o necessário para os convidados e hóspedes.

De véspera também, já se achavam na fazenda os compadres e os amigos do estimado senhor e que tinham vindo de longe com suas famílias.

Os foreiros ajudavam os escravos nos preparativos, a música se achava avisada, e os foguetes, comprados na cidade, enchiam o recanto de um aposento, para a ocasião oportuna.

As moças românticas, impressionáveis e meigas, sonhavam com os primos bacharéis; os coronéis da Guarda Nacional conversariam sobre eleições; e as influências locais não perderiam a vasa para a cabala, para apresentar o seu candidato ao futuro pleito eleitoral.

No dia da moagem, apenas a luz da manhã estava em casa de Cristo, lá vinham convidados a cavalo, famílias em carros de bois com toldos de esteiras ou de chitão lavrado, indivíduos de toda a casta, muitos dos quais descalços, trazendo às costas sapatos enfiados no ipê.

No dia da moagem...
__________________________
Continua…

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

Estante de Livros (Porteira Fechada, de Cyro Martins)

I- O Autor:


Cyro Martins nasceu em Quaraí/RS, em 1908. Médico psicanalista, foi contista, ensaísta e romancista. Pertenceu ao grupo de autores do chamado 'romance de 30', na medida em que sua obra se adequou às características levantadas para os escritores que produziram narrativas 'em que são apresentadas de forma direta os modos de existência de sociedades concretas ou supostamente concretas'.

Enquanto nos apresenta o monarca dos pampas, personagem épica na conquista e defesa da terra, Cyro fornece a outra visão do gaúcho: o trabalhador descapitalizado, pobre, desempregado, que substitui o trabalho do campo por um subemprego na cidade - o gaúcho a pé. Não há nada de épico, portanto, nas personagens de Cyro Martins.

O Autor morre em 1995.

II- Trilogia do gaúcho a pé

Quero salientar que nunca quis contribuir com a ampliação da mentira do monarca das cochilas. Nunca trarei o gaúcho como personagem em estilo ufanista. Pelo contrário, procurei ser realista, para poder ser útil de alguma forma” [Cyro Martins].

A temática do gaúcho a pé, cujo aspecto nuclear é a lenta expulsão dos peões da estância e sua inexorável pauperização nos cinturões da miséria das cidades da campanha, não foi apenas um achado casual. A temática surgiu a partir de um modo de viver os problemas, da sua circunstância social. Como médico em São João Batista do Quaraí, cenário de todos os seus romances, conheceu de perto e muito cedo as diferenças sociais e a miséria instituída pelos latifúndios.

Deste modo, na trilogia do gaúcho a pé, composta de Sem rumo, Porteira fechada e Estrada nova, Cyro Martins faz uma operação dolorosa, um corte vertical e profundo nos problemas sócio-econômicos que afligem a campanha a partir de 1910/20 e que vêm se avolumando.

Contexto histórico da obra Porteira Fechada

O Rio Grande do Sul dos anos 30 vive uma época de intensa efervescência política, a Revolução de 30 coloca o estado no cenário político nacional com Getúlio Vargas, que após o golpe de 37, cria o Estado Novo, decretando uma Constituição fascista, fecha o Congresso, suspende as eleições, proíbe partidos e censura a imprensa.

No cenário econômico, o Rio Grande do Sul, ainda em expansão no setor agro-pastoril, perde força no mercado nacional, competindo com produtos do centro do país. Reduzida a renda familiar e atingida drasticamente a pequena propriedade, começa a aparecer o excedente populacional nas colônias. É o primeiro passo para o fluxo migratório e o surgimento dos sem-terra.

1. Porteira fechada

Em 1944, a sua trilogia do gaúcho a pé, com Porteira fechada.

Apesar de ser um romance autônomo, que pode ser lido separadamente dos demais, continua a temática do gaúcho sem terra, iniciada em Sem rumo, e que vai terminar com Estrada nova.

Décio Freitas, na introdução que faz à Porteira fechada, comenta a consciência aguda de Cyro Martins em pintar com talento determinadas relações sociais de produção, uma das 'mais belas tentativas de romance social já realizadas entre nós'. Décio Freitas, neste mesmo prefácio, situa Cyro Martins entre os maiores romancistas rio-grandenses. Exige do autor, no entanto, um passo à frente na construção do romance, na penetração psicológica, ou seja, realização integral das suas possibilidades: “já tem experiência e equilíbrio em tal grau, que o que lhe falta em vigor artístico talvez venha a ser complementado quando Cyro Martins acertar de todo na sua vida sociológica da campanha sul-riograndense.

Porteira fechada configura a tirania econômica da classe dominante sobre a massa de trabalhadores rurais. O problema básico é - e continua sendo - o da distribuição, o da exploração das massas. A tirania econômica impõe um assalto à pequena estância; ocasiona a crise, que se traduz no êxodo contínuo às cidades do interior e à capital.

João Guedes, gaúcho pobre, com meia quadra de campo arrendado, criava e cultivava para sobreviver. Mas a miséria, antes tolerável na estância, alcança situação extrema e terrível quando o proprietário se vê obrigado a vender a quadro e o novo dono a requer para engorde do seu gado. Expulso do seu chão, João Guedes vai para os ranchos que cercam a cidade de Boa Ventura. A decadência econômica, psicológica e moral de João Guedes empurra-o para o roubo. Quase não reage, quando uma de suas filhas morre de tuberculose e a outra se prostitui. A família de João Guedes chega ao último grau da degradação humana e sua morte miserável constitui apenas o corolário deste desajuste social.

Cyro Martins, com um toque irônico, conclui: “Que engorde dava aquela invernada! Para um fim de safra, então, já com caídas para o inverno, não havia campo que se igualasse. Seiscentos novilhos pastavam folgadamente entre as altas cercas de sete fios e madeirame de lei que a tapavam. O sol entrou sem grandes esplendores. A noite caiu suavemente. Que paz naqueles campos!

2. As coxilhas sem monarca

Monarca das coxilhas= símbolo de hombridade, bravura e fortaleza de espírito.

Cyro Martins detecta e passa a analisar o problema da gradativa marginalização do gaúcho, sua expulsão da estância e seu servilismo. As causas vêm à tona aos poucos. Em Sem rumo o autor opõe de modo muito simples a ideia de um campo agradável e protetor, ainda que pobre, e de uma cidade desumana. Já em Porteira fechada, a crise econômica é causa direta dos desequilibrados, conflitos e traumas, da miséria de toda a família de João Guedes. Os personagens permanecem num total servilismo em relação ao sistema que lhes foi imposto.

Os temas de proporções épicas não correspondiam mais à realidade da desalentadora década de 1930/40. Os temas clássicos do regionalismo estavam gastos e estereotipados e Cyro Martins trouxe à tona a transição da estrutura econômica, política e social.

As personagens que porventura possamos extrair das entranhas do processo histórico a que estão subordinadas possuem uma estrutura mental primária, tanto que nem se capacitam da própria desgraça. E como essas coroas de miséria que circundam as cidades constituem uma população doente, desnutrida, consequentemente, desanimada, não possuem nem sequer o elã do protesto.

Poucos são os escritores que possuem uma visão tão clara de sua obra, dos limites e de suas potencialidades. Cyro Martins recriou um mundo, uma época de crise e de intensas transformações. Resgatou-a com empenho e talento e tornou-a viva para sempre. Além de perseverança e talento, Cyro Martins teve sorte: a vida deu-lhe cancha. E ele soube aproveitá-la.

III- Resumo:

A marginalização do gaúcho a pé, o gaúcho pobre que foi obrigado a refugiar-se, sem eira nem beira, nos arredores das cidadezinhas. Ali perde o interesse pelo trabalho, o gosto de viver, emborracha-se, adoece e morre na miséria. Esse gaúcho desenraizado, inconforme, encurralado no rancherio miserável, é apresentado na figura de João Guedes que encarna todos os sem-rumos da campanha que vêm dar nos arrabaldes das grandes cidades, onde eles, aos poucos, sentem que não encontrarão maneiras de subsistir.

Um livro apaixonadamente humano, exato e sincero na descrição das condições horríveis em que está sendo atirada a massa dos nossos trabalhadores rurais. João Guedes, o gaúcho honesto e sofredor, era pobre, com a sua meia quadra de campo arrendado. Naquela meia quadra, ele criava e cultivava, com frutos mais do que parcos e miseráveis. Mas um dia a coisa piorou mais ainda, porque o proprietário da meia quadra teve que vendê-la e o novo proprietário quis o campinho para um 'engorde'. E João Guedes é expulso do seu pedaço de terra, atirado sem rumo na estrada nova, indo para os ranchos que cercam Boa Ventura, uma típica cidadezinha do interior. Ali ele vai sofrer um processo implacável de decadência material e moral que culmina com a prática do roubo, a morte por tuberculose de uma das filhas, a perdição da outra. Um rosário de miséria, o deboche total dum punhado de seres humanos. João Guedes e a sua família chegam ao último grau de desajustamento social.

Fontes:
Algo sobre.
Passeiweb

terça-feira, 4 de maio de 2021

Adega de Versos 18: Hipólito Moura

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 23

Escrito nas estrelas que a comunicação é uma forma de transmitir conhecimentos. E não é à toa que o século vinte e um é chamado de era da comunicação - estendida para era do conhecimento.

A explosão das redes sociais nos dá a chance de buscar conhecimentos e saber de toda espécie. Não tenho notícia de outras civilizações que tenham tido a democratização do conhecimento como a atual. Mas assim como temos as tecnologias a serviço da informação e do conhecimento, muita gente também usa os meios tradicionais de buscar e disseminar cultura.

Sou dessa casta que usa os correios incessantemente, encaminhando livros e versos e prosas - meus pássaros perdidos -, assim como escrevo e recebo cartas há décadas, algumas sazonais, outras semanais, como é o caso de dois missivistas com quem troco envelopes há quase três décadas.

E quem não gosta de receber o agente do correio, entregando algo esperado, e também o não esperado ? A surpresa até parece mais gostosa, aguça a expectativa . . . E quem não fica contente quando chega um pacote maior amarrado com barbante, sabendo que chega um livro, dois livros ou mais ? Comunicação à vista, cultura chegando, saber tocando a campainha.

Alvíssaras sempre ! Delícias perenes !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Olavo Bilac (O Pecado)

A Anacleta ia caminho da igreja, muito atrapalhada, pensando no modo porque havia de dizer ao confessor os seus pecados... Teria a coragem de tudo? E a pobre Anacleta tremia só com a ideia de contar a menor daquelas coisas ao severo padre Roxo, um padre terrível, cujo olhar de coruja punha um frio na alma da gente. E a desventurada ia quase chorando de desespero, quando, já perto da igreja, encontrou a comadre Rita.

Abraços, beijos... E lá ficam as duas, no meio da praça, ao sol, conversando.

— Venho da igreja, comadre Anacleta, venho da igreja... Lá me confessei com o padre Roxo, que é um santo homem...

— Ai! comadre! — gemeu a Anacleta — Também para lá vou... e se soubesse com que medo! Nem sei se terei a ousadia de dizer os meus pecados... Aquele padre é tão rigoroso...

— Histórias, comadre, histórias! — exclamou a Rita — vá com confiança e verá que o padre Roxo não é tão mal como se diz...

— Mas é que meus pecados são grandes...

— E os meus então, filha? Olhe: disse-os todos e o Sr. padre Roxo me ouviu com toda a indulgência...

— Comadre Rita, todo o meu medo é da penitência que ele me há de impor, comadre Rita...

— Qual penitência, comadre?! — diz a outra, rindo — as penitências que ele impõe são tão brandas!... Quer saber? contei-lhe que ontem o José Ferrador me deu um beijo na boca... um grande pecado, não é verdade? Pois sabe a penitência que o padre Roxo me deu?... Mandou-me ficar com a boca de molho na pia de água benta durante cinco minutos...

— Ai! que estou perdida, senhora comadre, ai! que estou perdida! — desata a gritar a Anacleta, rompendo num pranto convulsivo — Ai! que estou perdida!

A comadre Rita, espantada, tenta em vão sossegar a outra:

— Vamos, comadre! que tem? então que é isso? Sossegue! Tenha modos! Que é isso que tem?

E a Anacleta, chorando sempre:

— Ai, comadre! é que, se ele me dá a mesma penitência que deu á senhora, não sei o que hei de fazer!

— Porque, filha? Porque?

— Porque... porque... afinal de contas... eu não sei como é que... hei de tomar um banho de assento na pia!…

Fonte:
Olavo Bilac. 7 melhores contos (seleção por August Nemo).Tacet books.

Alvitres do Prof. Renato Alves – 5 –

39.
Trovas de rima simples (rimando apenas o 2º com o 4º verso) foram muito cultivadas por grandes trovadores no passado, inclusive Luiz Otávio, o fundador da UBT.  Algumas destas trovas, além de nos remeterem à origem popular do gênero, são tão bem feitas em conteúdo e métrica, que em nada ficam a dever às trovas com o formato hoje exigido nos concursos.

Reparem que a trova abaixo, além de possuir um belo achado, usa figuras como a Prosopopeia (personificação) da “saudade” (que não “gosta” da pessoa) e uma bela Antítese repetida em dois versos, com inversão da ordem dos termos comparados.
 
Desconfio que a saudade
não gosta de ti, meu bem.
- Quando tu vens, ela vai...
Quando tu vais, ela vem!
(Luiz Otávio)

40.
Além do português castiço que se observa no uso das flexões verbais de 2ª pessoa do plural - rireis, saberdes, pousais - esta trova apresenta uma outra peculiaridade semântica bem interessante.

Reparem que o trovador, com muita criatividade, emprega no 3º verso a palavra “verde” com carga semântica dupla: “verde” tanto pode ser a cor dos olhos da amada, como pode significar “jovem”, em oposição aos olhos “maduros” (= velhos) do poeta.

Rireis talvez ao saberdes
como eu me sinto em apuros
se pousais os olhos verdes
nos meus olhos já maduros!
(José Fabiano)

41.

O valor de uma trova nunca está somente na qualidade das rimas ou na  métrica  impecável. Às vezes, rimas consideradas pobres, por exemplo, não diminuem em nada o efeito literário da trova, se ela for rica no achado ou no conteúdo metafórico empregado pelo trovador.

Observem que a trova abaixo usa rimas simples (“adas/indo”), não tem  um  achado inusitado  porque  é meramente descritiva e, no entanto,  deu a um tema sério como “cemitério”, um belo efeito poético através do uso de três criativas metáforas:
terra do sono infindo (cemitério)
casas fechadas (túmulos)
todos dormindo (mortos)

Nas brancas ruas caiadas
da terra do sono infindo,
as casas estão fechadas
e todos estão dormindo...
(João Rangel Coelho)

42.

Quando uma trova é avaliada separadamente apenas por um de seus aspectos (forma ou conteúdo) de per si, corremos o risco de não  atribuir o verdadeiro valor ao mais importante:  O conjunto forma e achado poético.  Às vezes, circulam entre nós “regras” excludentes, cuja paternidade desconhecemos, e que, sem qualquer embasamento técnico, condenam certos usos de linguagem. Exemplo: NÃO SE PODEM USAR FLEXÕES VERBAIS SEMELHANTES EM TODAS AS RIMAS!

No entanto, observemos que, na conhecida e louvada trova ao lado, e em muitas outras, o uso dessa prática em nada prejudicou a beleza poética da composição.

Sobre a mulher não discutam,
seus trejeitos  não se medem,
as mais fracas também lutam,
as mais fortes também cedem!
(Nydia Iaggi Martins)

43.

Podemos dizer que os TEMAS propostos para concursos de trovas nunca são bons ou ruins por si mesmos. Muitas vezes um tema que à primeira vista nos parece “difícil”, quando passa pelo crivo de um trovador criativo, pode gerar uma excelente trova.

Reparem como o trovador Sérgio Fonseca encontrou um ótimo achado de humor para o tema VIGIA proposto  nos Jogos Florais de Nova Friburgo/2017.

Observem também a riqueza das rimas usadas nos 2º e 4º versos:  sublimas (verbo) / primas (substantivo)

Finalmente, vejam a habilidade do trovador, ao passar do clima lírico dos primeiros versos para um desfecho humorístico perfeito nos 3º/4º versos, uma autêntica chave de ouro na trova.

Eu era, na infância dura,
quando, Amor, tudo sublimas,
vigia  da  fechadura
do quarto das minhas primas!

(Sérgio Fonseca)

44.

Há, na literatura, muitas formas de se prestar homenagem às MÃES. Escrevem-se sobre elas textos de vários gêneros (crônicas, sonetos, canções) para a justa exaltação de suas virtudes. Creio, porém, que o que deve calar mais fundo na sensibilidade materna sejam as manifestações dos filhos que, às vezes, expõem com simplicidade, em pequeninas recordações da infância, um autêntico gesto de amor filial.

Reparem, na singeleza da trova abaixo, a delicadeza de um filho, que resgata da memória afetiva esta deliciosa imagem, pedindo à mãe que lhe “sopre um vento” para aliviar uma dor.

Voa longe o pensamento...
Ah, que saudade me dói:
–Assopra, mãe! Sopra um vento
para  curar  meu  dodói
...
(Gilvan Carneiro)

45.

O “ACHADO” em qualquer obra literária é aquela maneira pessoal, peculiar, de tratar o assunto ou tema. É aquele algo original, inusitado, diferente  do que outros já fizeram. O achado é aquilo que faz valer a pena ter sido escrita a trova.
 
Na trova, o “ACHADO” pode estar não somente na exploração de uma ideia nova, mas também no uso de um jogo de palavras, na escolha de um vocabulário com sonoridade diferente, na maneira criativa de colocarem-se as ideias ou no emprego dos variados recursos estilísticos de que a língua dispõe.

Vejamos, nos exemplos a seguir, como o uso de jogos de palavras criativos valorizaram as trovas:

Poucos sabem que não sabem
tudo o que dizem saber.
Maiores saberes cabem
nos que sabem sem dizer.
(Aparício Fernandes)

Há coisas boas e más
que, para viver feliz,
a gente diz... e não faz,
a gente faz... e não diz.
(Guimarães Barreto)

Fonte:
Renato Alves. Comentando trovas.
Enviado pelo trovador.

Carla Rejane Silva (Insensata loucura)

Dia destes resolvi, num impulso, mudar um pouco a minha rotina diária. Pensei com meus botões: hoje não farei nada que antes me era habituável, ou seja, lavar passar cozinhar etc. Naquele momento o meu desejo, ou melhor, uma ânsia quase sexual, me direcionou a sair daquela mesmice. Peguei meu celular, o carregador, o notebook, passei a mão na minha mochila contendo algumas peças básicas, e parti alegre e saltitante rumo ao destino previamente programado.

Cheguei horas depois em um condomínio com apartamentos particulares alugados, tanto nas modalidades anual, mensal como, igualmente, diária. Em face da reserva feita em programação antes de sair do aconchego do meu lar, apenas me identifiquei na portaria. Fui prontamente atendida por um homem super educado, dono de um sorriso maravilhoso e cativante, de nome Orlando.

Após as apresentações pessoais e documentais, seu Orlando chamou um funcionário, que gentilmente me acompanhou até as dependências do loft que eu havia alugado. Ao adentrar no edifício, me encantei com o nome do prédio. Era uma construção de três andares e fora batizado com o nome de ‘Saudade’. De imediato, gostei deste nome. Saudade. Saudade, sempre me trazia doces recordações de um passado não muito distante. Havia uma centena de vasos de plantas espalhados em derredor, o que contribuía para formar um jardim florido, acolhedor e muito elegante por sinal.

Ao adentrar por um corredor comprido, percebi que por todo o hall, até próximo dos dois elevadores, mais plantas existiam.  Na cabine do social, o moço de nome Eusébio, apertou o terceiro. Este andar se constituía numa cobertura elegantemente bem aconchegante com uma banheira jacusi.  Ao ser aberta a porta da unidade na qual eu ficaria, dei de cara com uma poltrona marrom, de três lugares, ao lado de uma mesinha de centro com alguns bibelôs enfeitando.

Havia também um aparelho de televisão, uma mini geladeira, a cama de casal em formato de coração e um guarda roupas de duas portas. Agradeci a gentileza do rapaz e mandei-lhe uma gorjeta modesta. O funcionário agradeceu com um gesto mais de gentileza que pelo valor do dinheiro que metera correndo no bolso da calça.  Porta fechada, passei uma rápida ‘de visu’ no apartamento. Na verdade não se constituía exatamente naquilo que eu imaginava, se fazia muito melhor.

Espiei tudo, canto por canto, cômodo por cômodo. O quarto escolhido, possuía uma pequena varanda que, por sinal, me permitia ter uma visão maravilhosa do que havia à minha frente. Diante dos meus olhos, se apresentava algo esplendoroso. Um mar imenso e sem fim,  um oceano de águas calmas que se confundia com o azul do céu. Um azul infinitamente glorioso e belo. Desfiz minha pequena bagagem, guardei os pertences, no banheiro e o resto, numa das gavetas do guarda-roupas.

Para relaxar um pouco mais, tomei um gostoso banho de quase uma hora, coloquei um biquini confortável, e me preparei para ir até a praia.  Antes de sair, liguei meu notebook  para ver as novidades. Na caixa de mensagens do zap, talvez alguns e-mails deixados pelos amigos, me fariam  mais feliz do que eu já estava. Liguei o Wi-Fi e nada, sem conexão local. Tentei o roteador do meu note, igualmente, uma mensagem me pediu para harmonizar  com o aparelho do meu uso, no caso, meu celular. Nada.

Uma outra gravação lembrou que o número a e senha não existiam. Procurei insistentemente várias outras maneiras de me conectar e tudo redundou sem sucesso. Corri ao telefone fixo e disquei o ‘UM’ da recepção. À jovem que me atendeu, expliquei a situação. A resposta dela foi lacônica e em resumo, esclarecia o seguinte: ‘Senhora, a senha e o número de seu aparelho, só a senhora possui. Nós aqui não podemos ajudá-la neste infortúnio. Todavia, iremos mandar um de nossos funcionários para tentar ajudá-la’.

Agradeci e aguardei. Cinco minutos depois, de fato, o funcionário que o Condomínio me disponibilizou tentou, de várias formas me conectar ao mundo virtual, e como das vezes anteriores, sem sinal. Dispensei o cidadão bastante chateada. Me senti meio que desnorteada, abusada no que considerava uma de minhas necessidades básicas, a Internet. Por mais que a beleza que me rodeava e me ofuscava lá fora, além da varanda, perdi o colorido do passeio, foi para o beleléu. Nesse interregno, o telefone da sala do apartamento tocou. Ao atendê-lo, a mesma funcionária que há pouco falara comigo, me informou que a ‘Internet fora desligada por problemas técnicos, e que só retornaria na segunda feira, por ser final de semana’.

Foi a gota d’água que transbordou o copo. Para aumentar a minha ira, alavancar meu desespero interior, e bolinar de forma abrupta, no meu estresse virtualizado, me vi sem chão. Ato contínuo, voltei a contactar com a moça da recepção pedindo a ela que fechasse a minha estadia, sem muitas delongas. Em troca, recebi um calhamaço de desculpas e um abatimento na diária que eu havia pago. Dos males, o melhor nesta confusão toda. Desliguei tudo, refiz as minhas bugigangas, peguei meu aparelho, até então ‘apareado’ sem estar parido e voltei triste e infeliz ao meu  destino, à minha rotina e, principalmente, à minha vida extra virtual.

Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 3 de maio de 2021

Varal de Trovas 497

 

Mia Couto (Falas do velho Tuga)


Quer que eu lhe fale de mim, quer saber de um velho asilado que nem sequer é capaz de se mexer da cama? Sobre mim sou o menos indicado para falar. E sabe porquê? Porque estranhas névoas me afastaram de mim. E agora, que estou no final de mim, não recordo ter nunca vivido.

Estou deitado neste mesmo leito há cinco anos. As paredes em volta parecem já forrar a minha inteira alma. Já nem distingo corpo do colchão. Ambos têm o mesmo cheiro, a mesma cor: o cheiro e cor da morte. Morrer, para mim, sempre foi o grande acontecimento, a surpresa súbita. Afinal, não me coube tal destino. Vou falecendo nesta grande mentira que é a imobilidade.

Também eu amei uma mulher. Foi há tempo distante. Nessa altura, eu receava o amor. Não sei se temia a palavra ou o sentimento. Se o sentimento me parecia insuficiente, a palavra soava a demasiado. Eu a desejava, sim, ela inteira, sexo e anjo, menina e mulher. Mas tudo isso foi noutro tempo, ela era ainda de tenrinha idade.

Este lugar é a pior das condenações. Já nem as minhas lembranças me acompanham. Quando eu chamo por elas me ocorrem pedaços rasgados, cacos desencontrados. Eu quero a paz de pertencer a um só lugar, a tranquilidade de não dividir memórias. Ser todo de uma vida. E assim ter a certeza que morro de uma só única vez. Mas não: mesmo para morrer sofro de incompetências. Eu deveria ser generoso a ponto de me suicidar. Sem chamar morte nem violentar o tempo. Simplesmente deixarmos a alma escapar por uma fresta.

Ainda há dias um desses rasgões me ocorreu por dentro. É que me surgiu, mais forte que nunca, esse pressentimento de que alguém me viria buscar. Fiquei a noite às claras, meus ouvidos esgravatando no vão escuro. E nada, outra vez nada. Quando penso nisso um mal-estar me atravessa. Sinto frio mas sei que estamos no pico do Verão. Tremores e arrepios me sacodem. Me recordo da doença que me pegou mal cheguei a este continente.

África: comecei a vê-la através da febre. Foi há muitos anos, num hospital da pequena vila, mal eu tinha chegado. Eu era já um funcionário de carreira, homem feito e preenchido. Estava preparado para os ossos do ofício mas não estava habilitado às intempéries do clima. Os acessos da malária me sacudiam na cama do hospital apenas uma semana após ter desembarcado. As tremuras me faziam estranho efeito: eu me separava de mim como duas placas que se descolam à força de serem abanadas.

Em minha cabeça, se formavam duas memórias. Uma, mais antiga, se passeava em obscura zona, olhando os mortos, suas faces frias. A outra parte era nascente, reluzente, em estreia de mim. Graças à mais antiga das doenças, em dia que não sei precisar, tremendo de suores, eu dava à luz um outro ser, nascido de mim.

Fiquei ali, na enfermaria penumbrosa, intermináveis dias. Uma estranha tosse me sufocava. Da janela me chegavam os brilhos da vida, os cantos dos infinitos pássaros. Estar doente num lugar tão cheio de vida me doía mais que a própria doença.

Foi então que eu vi a moça. Branca era a bata em contraste com a pele escura: aquela visão me despertava apetites no olhar. Ela se chamava Custódia. Era esta mesma Custódia que hoje está conosco. Na altura, ela não era mais que uma menina, recém-saída da escola. Eu não podia adivinhar que essa mulher tão jovem e tão bela me fosse acompanhar até ao final dos meus dias. Foi a minha enfermeira naqueles penosos dias. A primeira mulher negra que me tocava era uma criatura meiga, seus braços estendiam uma ponte que vencia os mais escuros abismos.

Todas as tardes ela vinha pelo corredor, os botões do uniforme desapertados, não era a roupa que se desabotoava, era a mulher que se entreabria. Ou será que por não ver mulher há tanto tempo eu perdera critério e até uma negra me porventurava? Me admirava a secura daquela pele, 0 gesto cheio de sossegos, educado para maternidades. Enquanto rodava pelo meu leito eu tocava em seu corpo. Nunca acariciara tais carnes: polposas mas duras, sem réstia de nenhum excesso.

Os dias passavam, as maleitas se sucediam. Até que, numa tarde, me assaltou um vazio como se não houvesse mundo. Ali estava eu, na despedida de ninguém. Olhei a janela: um pássaro, pousado no parapeito, recortava o poente. Foi nesse pôr do Sol que Custódia, a enfermeira, se aproximou. Senti seus passos, eram passadas delicadas, de quem sabe do chão por andar sempre descalço.

– Eu tenho um remédio, disse Custódia. É um medicamento que usamos na nossa raça. O Senhor Fernandes quer ser tratado dessa maneira?

– Quero.

– Então, hoje de noite lhe venho buscar.

E saiu, se apagando na penumbra do corredor. Como em caixilho de sombra a sua figura se afastava, imóvel como um retrato. Na janela, o pássaro deixou de se poder ver. Adormeci, doído das costas, a doença já tinha aprisionado todo meu corpo. Acordei com um sobressalto. Custódia me vestia uma bata branca, bastante hospitalar.

– Onde vamos?

– Vamos.

E fui, sem mais pergunta, tropeçando pelo corredor. Dali parei a tomar fôlego e, encostado no umbral da porta, olhei o leito onde lutara contra a morte. De repente, estranhas visões me sobressaltaram: deitado, embrulhado nos lençóis, estava eu, desorbitado. Meus olhos estavam sendo comidos pelo mesmo pássaro que atravessara o poente. Gritei Custódia, quem está na minha cama? Ela espreitou e riu-se:

– É das febres, ninguém está lá.

Fui saindo, torteando o passo. Afastamo-nos do hospital, entramos pelos trilhos campestres. Naquele tempo, as palhoças dos negros ficavam longe das povoações. Caminhava em pleno despenhadeiro, o pequeno trilho resvalava as infernais e desluzidas profundezas. Me perdi das vistas, mais tombado que amparado nesse doce corpo de Custódia.

Voltei a acordar como se subisse por uma fresta de luminosidade. Aquela luz fugidia me pareceu, primeiro, o pleno dia. Mas depois senti o fumo dessa ilusão. O calor me confirmou: estava frente a uma fogueira. O calor da cozinha da minha infância me chegou. Escutei o roçar de longas saias, mulheres mexendo em panelas. Saí da lembrança, dei conta de mim: estava nu, completamente despido, deitado em plena areia.

– Custódia!, chamei.

Mas ela não estava. Somente dois homens negros baixavam os olhos em mim. Me deu vergonha ver-me assim, descascado, alma e corpo despejados no chão. Malditos, se preparavam para me degolar? Um deles tinha uma lâmina. Vi como se agachava, o brilho da lâmina me sacudiu. Gritei: aquela era a minha voz? Queriam me matar, eu estava ali entregue às puras selvagerias, candidato a ser esquartejado, sem dó na piedade. Me desisti, covarde, desvalido. De nada lucrava recusar os intentos do negro. O homem cortou-me, sim. Mas não passou de uma pequena incisão no peito. Sangrei, fiquei a ver o sangue escorrer, lento como um rio receoso.

Um dos homens falou em língua que eu desconhecia, seus modos eram de ensonar a noite, a voz parecia a mão de Custódia quando ela me empurrava para o sonho. Voltei a deitar-me. Só então reparei que havia uma lata contendo um líquido amarelado. Com esse líquido me pintavam, em besuntação danada. Depois, me ajeitaram o pescoço para me fazerem beber um amargo licor. Choravam, pareceu-me de início. Mas não: cantavam em surdina. Dores de morrer me puxavam as vísceras. Vomitei, vomitei tanto que parecia estar-me a atirar fora de mim, me desfazendo em babas e azedos. Cansado, sem fôlego nem para arfar, apaguei.

No outro dia, acordei, sem estremunhações. Estava de novo no hospital, vestido de meu regulamentar pijama. Qualquer coisa acontecera? Eu tinha saído em deambulação de magias, rituais africanos? Nada parecia. Verdade era que eu me sentia bem, pela primeira vez me chegavam as forças. Me levantei como uma toupeira saída da pesada tampa do escuro. Primeira coisa: fui à janela. A luz me cegou. Podia haver tantas cores, assim tão vivas e quentes?

Foi então que eu vi as árvores, enormes sentinelas da terra. Nesse momento aprendi a espreitar as árvores. São os únicos monumentos na África, os testemunhos da antiguidade. Me diga uma coisa: lá fora ainda existem? Pergunto sobre as árvores.

Quer saber mais? Agora estou cansado. Tenho que respirar muito. Há tanto tempo que eu não falava assim, às horas de tempo. Não vá ainda, espere. Vamos fazer uma combinação: você divulga estas minhas palavras lá no jornal de Portugal – como é que se chama mesmo o tal jornal? – e depois me ajuda a procurar a minha família. É que sabe: eu só posso sair daqui pela mão deles. Senão, que lugar terei lá no mundo? Traga-me um qualquer parente. Quem sabe, depois disso, ficamos mesmo amigos.

Você sabe como eu confirmo que estou ficando velho? É da maneira que não faço mais amigos. Aqueles de que me lembro são os que eu fiz quando era novo. A idade nos vai minguando, já não fazemos novas amizades. Da próxima vez venha com um parente. Ou faça mesmo o senhor de conta que é meu familiar.

Fonte:
Mia Couto. Contos do nascer da terra.

A. A. De Assis (88 Poeminhas ) – 1 –


Ebook enviado pelo poeta quando da comemoração de seus 88 anos, em 21 de abril de 2021.


01.
Fiat lux.
Assim
começou
a biografia do mundo.

02.
Graças à graça
da luz
tudo o mais
tem graça.

03.
Felizes os anjos,
as aves
e os limpos de coração.
Morantes do céu.

04.
No cosmo a cosmética:
o puro, a verdade, o bem.
A perfeita estética.

05.
Sursum corda.
Deixem que voe
sobre a Terra
a Pomba da Paz.

06.
As Ave-Marias.
As aves, Maria, voam.
De tardinha voltam.

07.
Bem-aventurados
os que sonham.
Chama-os Deus
poetas.

08.
Um vaso de avenca,
minimíssima floresta.
Mas é verde,
é festa.

09.
Anoi /
tecia.
A lua luava
sobre o rio
e ria.

10.
Dobra-se
a roseira
em reverência
à raiz:
a vovó das rosas.

11.
Manhêêê
– diz o menino –
trouxe uma flor
pra você.
Troco por um beijo.

12.
Lesa-poesia.
Chamar à abelha
de inseto
e ao girassol
commodity.

13.
Xô tristeza,
xô cansaço.
Insisto
em pensar azul.

14.
Sonho um tempo
sem vilões.
Falcões dando vez
às pombas
e os fuzis aos violões.

15.
Deixa o beija-flor
um selinho
em cada rosa.
E elas gostam...
ahhhh.

16.
Faz a mão
a roça.
Faz a roça
o pão.

17.
Ave, avós.
Hão de um dia devolver
a vós a voz.

18.
Dizem que a cigarra
nada faz senão cantar.
Ah, é indispensável.

19.
Menininho ao léu.
Um colo onde se deitar
já seria um céu.

20.
Deu-lhe o mundo
a cruz.
E Jesus queria apenas
acender a luz.

21.
Só se é
cidadão
se se é sócio
do pão.

22.
Corrija-se a tempo.
Mais de mater
que de magistra
necessita o mundo.

Continua…
 
Imagem: montagem por José Feldman com fotos obtidas no livro
de Assis, "Vida, Verso e Prosa" e enviadas pelo poeta.

Nilto Maciel (O Sonho Esquecido)

Numa grande cidade viveram, há alguns anos, Moisés, Salomão e Daniel. Suas histórias estão registradas na memória coletiva de seus descendentes. E também nos subterrâneos, nas galerias de esgotos, nas catacumbas, no submundo em que viviam e onde vivem seus filhos e netos.

Naquele tempo (talvez também hoje), depois das correrias, das estripulias, das aventuras noturnas, alguns ratos se reuniam em pequenas assembleias. Às vezes apenas trocavam ideias, narravam fatos, riam ou choravam. A maioria, no entanto, quando não ia dormir, preferia continuar correndo atrás de alimentos e diversões. “Não vale a pena perder tempo em reuniões. A vida é muito curta, embora às vezes seja também muito divertida. Vamos à luta e à farra.”

Pouco a pouco as pequenas reuniões se transformaram em grandes assembleias. E então  apareceram os primeiros chefes e, logo, as primeiras brigas internas. Uma noite, Moisés subiu a um palanque e apresentou uma proposta radical: precisavam implodir a cidade. O mundo deveria vir ao chão. Tudo demolido: prédios, igrejas, fábricas, escolas, quartéis, casas. Recebeu vaias e aplausos. E aproveitou a ocasião para apresentar ao público o nome do grupo que comandava. Não ainda um partido, porém já pronto para grandes batalhas. “Somos os Ratos Mosaicos”. Partidários de outro líder gargalharam e os chamaram de ultrapassados, inimigos da civilização humana. Moisés não se abateu: Não deviam ter medo de nada, de ninguém. Afinal, eram apenas ratos, viviam nos subterrâneos, sem direitos sociais, civis ou políticos. Precisavam derrotar os homens. Nada de esperar pelas grandes pragas prometidas. Elas poderiam matar dois coelhos com uma só paulada: os homens e os ratos.

Salomão pediu a palavra: a implosão significaria a morte de todos os seres, sobretudo dos ratos. Os edifícios viriam abaixo e soterrariam exatamente as redes de esgotos, os subterrâneos. Melhor viverem como viviam, mesmo na miséria, na mais absoluta miséria. E se declarou inimigo dos ideais mosaicos. Nada de implosões, de explosivos. Poderiam solapar a sociedade humana, sim, porém pelo envenenamento das águas. O morticínio seria tão abrangente, tão avassalador, tão repentino que as autoridades nada poderiam fazer. E eles, ratos, tomariam conta da cidade, do mundo. Os próprios gatos morreriam, juntamente com seus donos, seus senhores - os humanos. Eles, ratos, eram livres, não tinham donos. E assim seriam para sempre, porém sem a presença nefasta de gatos e homens.

Salomão discursava com veemência e sempre cheio de filosofias: “Os loucos desprezam a sabedoria e o ensino”; “não tenham inveja dos homens, que são violentos, nem sigam nenhum de seus caminhos”; “morrendo o homem, morre a sua esperança”. E terminava seus discursos com um grito: “Por um mundo novo e salomônico!”

Outra facção - a dos Ratos da Babilônia - apresentou proposta tão revolucionária quanto as duas primeiras. Chefiada por Daniel, pretendia o aniquilamento da raça humana por outra via: o agigantamento dos ratos. Ora, agigantando-se os ratos, não haveria homem capaz de enfrentá-los. Como se daria esse processo de crescimento físico de cada indivíduo rato? Os homens haviam inventado substâncias químicas que vinham provocando o agigantamento dos novos seres humanos. O mesmo deveriam fazer os ratos. Em poucos anos, as gerações de ratos já nasceriam do tamanho de pequenos leões. Na idade adulta, qualquer rato poderia enfrentar um leão adulto. E as presas? Ora, com a superpopulação de ratos gigantes, ferozes e imunes a venenos, seria fácil tomar conta do mundo. Todos os gatos seriam eliminados. E também as serpentes e outros inimigos naturais dos ratos. Os homens, inclusive.

Finalmente apresentou-se Nabucodonosor, dizendo-se rei. Todos se prostraram diante dele, até mesmo os chefes dos grupos. “Tive um sonho; e para sabê-lo está perturbado o meu espírito.” Os ratos ergueram as cabeças e gritaram: “Ó rei, vive eternamente e dize o sonho a teus servos; nossos sábios darão a interpretação de teu sonho.” Nabucodonosor se irritou: “Se não me fizerdes saber o sonho e a sua interpretação, sereis todos despedaçados.” Alguns olhares se voltaram para Daniel. “Ele é sábio e lembrará ao rei o sonho esquecido.” Outros se voltaram para Moisés: “Ele falou com o Senhor, foi mediador entre Ele e os ratos, copiou os dez artigos da lei principal - lembrará ao rei o sonho esquecido.” Houve ainda quem se lembrasse de Salomão: “Ele é sábio e também poeta - lembrará ao rei o sonho esquecido.”

Nesse momento a catacumba ruiu. Morticínio catastrófico. Porém, alguns ratos conseguiram a salvação.

Fonte:
Nilto Maciel. A Leste da Morte. Porto Alegre: Bestiário, 2006.
Livro enviado pelo autor.

Estante de Livros (Dora, Doralina, de Rachel de Queiroz)

“Dora, Doralina” é um romance da escritora cearense, Rachel de Queiroz, publicado pela primeira vez em 1975.

Na época, Rachel de Queiroz já era famosa pelo clássico da literatura brasileira, “O Quinze”.

Quando “Dora, Doralina” foi publicado, a obra também teve muita visibilidade a ponto de ser adaptada para o cinema brasileiro em 1982, com direção de Perry Salles.

“Dora, Doralina” é dividida em três partes: Livro de Senhora, Livro de Companhia e Livro do Comandante. Os três livros narram a história de Maria das Dores, ou Dora, como ela preferia ser chamada.

Dora é uma jovem simples que vive na fazenda Soledade, no agreste nordestino no interior do Ceará, sob o domínio de sua mãe. Tratada como Senhora, a mãe de Dora era uma mulher que dominava tudo e todos.

As três partes de “Dora, Doralina” trazem a trajetória de Maria das Dores que se muda da fazenda para Fortaleza, depois para o Rio de Janeiro e por fim, seu retorno a fazenda.

Principais personagens
 
    Maria das Dores: protagonista da história. Ela vive submissa ao domínio da mãe, Senhora, até que decide partir para Fortaleza buscar liberdade.
    Senhora: mãe de Maria das Dores. É uma mulher que domina tudo e todos da fazenda Soledade.
    Laurindo: agrimensor que se casa com Maria das Dores, mas em um casamento de convenção familiar e não de amor.
    Cadete Lucas: comandante de um navio por quem Dora se apaixona perdidamente. Contudo, é um homem machista, com tendências a bebedeira e a violência.
    Brandini: dono da Companhia de Teatro, onde Maria das Dores passa a integrar e viajar pelo país.
    Belmiro: um fugitivo suspeito de ter matado Laurindo para livrar Dora do infeliz casamento.
 
Livro de Senhora

A primeira parte de “Dora, Doralina” se dedica a vida de Dora ainda morando na fazenda da Soledade.

Dora perdeu o pai logo cedo e é criada pela mãe, Senhora, uma mulher dominadora que ao invés de dar amor à filha, dá indiferença.

Mesmo a obra não deixando claro quais os motivos, Senhora e Dora não se dão muito bem. Elas não se amam como mãe e filha, mas se suportam.

Segundo Senhora, o nome Maria das Dores foi dado a Dora como uma promessa às dificuldades que teve no parto. Contudo, Dora acha o nome horrível e acredita que a mãe lhe deu esse nome como castigo.

Além disso, Dora gostaria de conversar sobre o pai, já que o perdeu quando ainda era criança. Contudo, é um dos assuntos que Senhora não conversa de forma alguma.

A narrativa do livro deixa bem claro o quão dominadora é Senhora, não somente com a filha, mas com todos que vivem na fazenda.

Um dia, para resolver uma questão acerca de terras, Senhora e um vizinho chamam Laurindo, um agrimensor para solucionar a questão. Nesse contato, ele conhece Dora.

Dora e Laurindo se casam, não em um casamento de amor, mas um casamento meramente social. Eles se casam mais por uma questão de convenção familiar.

Contudo, mesmo depois do casamento Dora continua morando com a mãe. Ou seja, ela ainda tem que aguentar o domínio de Senhora, até que seu marido, Laurindo, é morto e ninguém sabe por quem. Mesmo sendo um caso que não é desvendado durante a narrativa, o livro deixa suspeitas de que o crime pode ter sido cometido por Belmiro.

Belmiro era um fugitivo que recebeu os cuidados por Dora quando apareceu ferido em Soledade. Belmiro adora Doralina, e a acha uma santa.

Após o crime, Dora finalmente resolve se livrar do domínio da mãe e procura liberdade em Fortaleza.
 
Livro de Companhia

A segunda parte de “Dora, Doralina” se inicia quando Dora vai embora da fazenda Soledade e se muda para Fortaleza. Lá, ela vai morar na pensão de D. Loura e trabalha administrando a pensão.
 
Dora conhece senhor Brandini, dono da Cia de Comédias e Burletas Brandici Junior, e então passa a fazer parte da Companhia de Teatro como atriz e viaja por todos os lugares.

Dora, não é mais a mesma da fazenda, agora ela se abre para novas experiências. Assume o nome de palco “Nely Sorel” e faz diversas apresentações pelo país com a Companhia de Teatro.

Ela se torna uma mulher mais madura e convicta dos seus princípios e valores. Sabe lidar com o jeito malandro do senhor Brandini e com as investidas dos homens em geral.

A fase na Companhia de Teatro se trata da aprendizagem e da liberdade que ela tanto lutou e que não tinha quando morava com Senhora. É uma jornada de autoconhecido de Dora.

Com a Companhia de Teatro, Dora viaja por todo país, em uma dessas viagens ela conhece Cadete Lucas, um comandante de navio por quem se apaixona perdidamente.
 
Livro do Comandante

A terceira parte se trata da história do Cadete Lucas com Dora. Ao conhecer o comandante, ela larga a Companhia de Teatro para viver somente em volta dele.

Finalmente Dora encontra o amor verdadeiro e se casa. Um casamento por amor e não por interesse e convenção familiar.

Mesmo baseado no amor, o romance de Lucas e Dora não é totalmente felicidades. A saída dela da Companhia de Teatro se deu por imposição dele que não aceita que sua mulher viva em palcos rebolando para outros.

Era um relacionamento totalmente submisso e abusivo, pois Dora se submete a tudo que o Comandante quer. Contudo, assim como ele, Dora é machista, passiva, submissa e aceita a situação em que vive.

Mesmo com todas as situações, o Comandante dá amor que ela nunca tinha recebido de ninguém e juntos passam por muitas situações. Até que o comandante adoece e morre.

Então, Dora decide voltar a fazenda. Ela volta uma nova mulher e recomeça a vida com mais força, se impondo a Senhora e ajudando os outros empregados a viverem sem o domínio da mãe.

Por fim, Dora, Doralina toma posse da fazenda e passa a assumir a posição de sua mãe. E mesmo sem um motivo de alegria, ela é obrigada a viver a sua vida.
 
Análise

A história é narrada pela própria protagonista, Maria das Dores, em um discurso memorialista dela.

Ela narra os fatos tecendo o passado com o presente, com evidências e personagens que passaram por sua vida. Quando necessário retornando ao passado, como um flashback.

Ao longo da narrativa traços da personalidade de Dora vão sendo expostos por atitudes e reações que ela mesma expõe.

Maria das Dores é uma personagem predestinada a dor, que vai desde o seu nome aos acontecimentos na sua vida.

Ela já sente a dor quando perde o pai ainda criança, e cresce sem o amor materno. Até quando ela encontra o amor no comandante, ela sofre por sua morte.

Contudo, a narrativa de “Dora, Doralina” mostra a evolução de Dora, que mesmo voltando ao ponto de partida quando ela retorna a fazenda, ela retorna como uma nova mulher.

Durante as suas viagens, ela aprendeu a ter independência e liberdade. Dora é uma mulher forte e lutadora.
 
Trechos de “Dora, Doralina”

    Bem, nisso tudo o que eu quero dizer é que antes de eu entrar na Companhia, tinha o meu corpo como se fosse uma coisa alheia que eu guardasse depositada, e só podia dar ao legítimo dono, e depois de dar a esse dono era só dele, não adiantava eu querer ou não, porque o meu corpo eu não tinha o direito de governar, eu vivia dentro dele mas o corpo não era meu.

    Já agora o corpo era meu, pra guardar ou pra dar, se eu quisesse ia, se não quisesse não ia, acabou-se. Era uma grande diferença, para mim enorme. (p. 161)

    Procurava a todo instante me lembrar de como Senhora fazia; e tudo se repetia agora como no tempo dela, porque mesmo que eu quisesse não sabia fazer nada diferente, e então era a lei dela que continuava nos governando. […]E aos poucos eu também ia endurecendo, na couraça do meu vestido preto… (p. 239)


Fonte:
Dora, Doralina; Disponível em Guia Estudo. Acesso em 02 de maio de 2021.
 

domingo, 2 de maio de 2021

Oscar Wilde (O Milionário modelo)

Uma nota de admiração

A menos que seja rico, não há utilidade nenhuma em ser encantador. Romance é privilégio dos ricos, não a profissão dos desempregados. Pobres devem ser práticos e prosaicos.

É preferível ter uma renda permanente a ser fascinante. São essas as grandes verdades da vida moderna que Hughie Erskine nunca compreendeu. Pobre Hughie!

Intelectualmente, devemos admitir, não tinha muita importância. Nunca disse algo brilhante ou mesmo mordaz em toda a sua vida. Mas era magnificamente belo, com cabelos castanhos encaracolados, pele alva e olhos acinzentados. Era tão popular entre os homens quanto entre as mulheres, e tinha todos os talentos, menos o de conseguir dinheiro. O pai havia-lhe legado a espada de cavalaria e a “História da Guerra da Península”, em quinze volumes. A primeira, Hughie pendurou sobre o espelho, a segunda, acomodou numa estante, entre o “Guia Ruff” e a “Bailey’s Magazine”, vivendo com duzentas libras por ano, que uma velha tia lhe dava. Tinha tentado de tudo. Por seis meses estivera na Bolsa de Valores, mas o que tinha uma borboleta a fazer entre touros e ursos? Por algum tempo, comercializou chá, mas logo se cansou de pekoe e souchong (*). Em seguida tentou vender xerez seco, mas não obteve sucesso: o xerez era um pouco seco demais. Por fim transformou-se em um jovem maravilhoso e inútil, com um perfil perfeito e nenhuma profissão.

Para piorar as coisas, estava apaixonado. A moça a quem amava chamava-se Laura Merton, filha de um coronel aposentado, que na Índia tinha perdido a paciência e a boa digestão, e nunca mais as encontrou novamente. Laura adorava o rapaz, e ele estava sempre pronto para beijar-lhe os cordões dos sapatos. Formavam o casal mais belo de Londres e entre os dois não havia sequer um tostão. O coronel gostava muito de Hughie, mas não queria ouvir falar sobre noivado.

“Venha até mim, meu jovem, quando tiver conseguido dez mil libras por si mesmo, e falaremos a respeito”.

Nessas ocasiões, Hughie ficava muito deprimido e ia consolar-se com Laura.

Certa manhã estava a caminho de Holland Park, onde moravam os Merton, quando decidiu casualmente visitar um grande amigo, Alan Trevor. Trevor era pintor. Na verdade, poucas pessoas escapam de sê-lo, hoje em dia. Mas ele era também um artista, e artistas são bastante raros. Pessoalmente, era um amigo estranho e grosseiro, de rosto sardento e uma barba vermelha e desalinhada. Contudo, quando utilizava o pincel, era um verdadeiro mestre, e suas pinturas eram muito requisitadas.

No começo tinha se sentido muito atraído por Hughie, deve-se admitir, devido apenas ao encanto pessoal que possuía.

“As únicas pessoas que um pintor deve conhecer”, costumava dizer, “são as tolas e as belas, cuja contemplação constitui um prazer artístico, e a conversação, um repouso para o intelecto. Homens dandies e mulheres darlings governam o mundo, ou pelo menos deveriam fazê-lo”. Entretanto, depois de conhecer Hughie melhor, passou a gostar dele também pelo espírito vivaz e pelo bom humor, pela natureza imprudente e generosa, e deu-lhe passe livre para entrar no estúdio quando quisesse.

Ao chegar, Hughie encontrou Trevor dando os toques finais em uma maravilhosa pintura em tamanho natural de um mendigo. O próprio mendigo estava em pé numa plataforma no canto do estúdio. Era um velho enrugado, a face parecendo um pergaminho cheio de pregas e com uma expressão bastante cansada. Sobre os ombros pendurava-se um grosseiro manto castanho, puído e esfarrapado; as grossas botinas eram manchadas e remendadas e, em uma das mãos, segurava um cajado tosco e na outra, trazia um chapéu estragado, para as esmolas.

– “Que modelo surpreendente!”, sussurrou Hughie, ao apertar as mãos do amigo.

– “Modelo surpreendente?”, gritou Trevor o mais alto que podia; “Tenho certeza que sim! Mendigos como ele não são encontrados todos os dias. Um achado meu caro, um Velásquez vivo! Pelas estrelas! Que água-forte Rembrandt não teria feito com tal modelo!”

– “Pobre rosto de pele rachada e envelhecida!”, disse Hughie, “quão desgraçado ele parece! Mas suponho que, para vocês, pintores, essa face é uma grande sorte”.

– “Com certeza”, replicou Trevor, “você não espera que um mendigo pareça feliz, não é?”

– “Quanto recebe um modelo para posar?”, perguntou Hughie, sentado confortavelmente em um divã.

– “Um xelim por hora”.

– “E quanto consegue pela pintura, Alan?”

– “Ah, por isso eu recebo uns dois mil”.

– “De libras?”.

– “De guinéus. Pintores, poetas e médicos sempre recebem em guinéus”.

– “Bem, penso que o modelo deveria levar uma porcentagem”, exclamou Hughie, rindo: “eles trabalham tão duro quanto você”.

– “Bobagem, bobagem! Ora, repare na dificuldade de fazer a pintura e de passar o dia inteiro diante de um cavalete! Para você é muito fácil falar, Hughie, mas lhe asseguro que há momentos em que a arte quase atinge a dignidade do trabalho manual. Mas não deve ficar aí tagarelando, estou muito ocupado. Fume um cigarro e fique quieto”.

Depois de algum tempo entrou o criado, informando a Trevor que o fabricante de molduras queria falar-lhe.

– “Não fuja, Hughie”, disse ao sair, “voltarei em um instante”.

O velho mendigo aproveitou a ausência de Trevor para descansar por um instante em um banco de madeira que estava bem atrás. Parecia tão desamparado e infeliz que Hughie não pôde evitar de sentir pena dele e tateou os bolsos para ver quanto dinheiro tinha. Tudo o que pôde encontrar foram um soberano e alguns cobres.

“Pobre velho!”, pensou consigo mesmo, “ele precisa disto mais do que eu, mas terei que passar duas semanas andando a pé”. Cruzou o estúdio e deslizou o soberano nas mãos do mendigo.

O velho estremeceu, e um sorriso tênue passou rapidamente pelos lábios ressecados.

– “Obrigado, senhor”, disse, “Obrigado”.

Logo depois Trevor retornou e Hugie despediu-se, um pouco corado pelo que tinha feito. Passou o dia com Laura, recebeu uma encantadora repreensão por sua extravagância e voltou a pé para casa.

Naquela noite, foi passear no Pallete Club por volta das onze horas e encontrou Trevor sentado sozinho na sala de fumantes, tomando vinho do Reno com soda.

– “Então, Alan, conseguiu terminar o quadro?”, disse, acendendo um cigarro.

– “Terminado e emoldurado, meu rapaz!”, respondeu Trevor, “e, a propósito, você fez uma conquista. O velho modelo que você viu encontra-se completamente devotado a você. Tive que contar a ele tudo a seu respeito: quem você é, onde mora, quanto é sua renda, quais suas perspectivas...”

– “Meu caro Alan”, bradou Hughie, “provavelmente o encontrarei esperando por mim quando voltar para casa. Mas é claro que você está apenas brincando. Pobre velho infeliz! Espero poder fazer algo por ele. Penso ser horrível que alguém seja assim, tão miserável. Tenho montes de roupas velhas em casa, você acha que interessaria a ele? As dele estão caindo aos pedaços”.

– “Mas ele fica esplêndido nelas”, disse Trevor. “Não o pintaria de sobrecasaca por nada neste mundo. O que você chama de andrajos, eu chamo de romance. O que parece pobreza para você, para mim é pitoresco. Entretanto, direi a ele sobre sua oferta”.

– “Alan”, disse, com seriedade, “vocês pintores não têm coração!”

– “O coração de um artista é a mente”, replicou Trevor, “e além do mais, nosso trabalho é perceber o mundo como ele é, não reformá-lo com o que conhecemos dele. A cada um o seu ofício. E agora me diga como está Laura. O velho modelo está muito interessado nela”.

– “Você não está me dizendo que falou a respeito dela?”, disse Hughie.

– “Claro que sim. Ele sabe tudo a respeito do implacável coronel, a adorável Laura e as dez mil libras”.

– “Você contou ao velho mendigo tudo a respeito dos meus negócios particulares?”, bradou Hughie, vermelho de raiva.

– “Meu caro rapaz”, disse Trevor, sorrindo, “aquele velho mendigo, como você o chama, é um dos homens mais ricos da Europa. Ele poderia comprar Londres inteira amanhã sem esgotar o próprio saldo. Tem uma casa em cada capital, janta em pratos de ouro e pode impedir a Rússia de entrar em guerra quando quiser”.

– “O que você quer dizer?”, exclamou Hughie.

– “Apenas o que disse”, respondeu Trevor. “O velho que você viu hoje no estúdio é o Barão de Hausberg. É um grande amigo meu, compra todos os meus quadros e esse tipo de coisa, e deu-me uma comissão há um mês para pintá-lo como mendigo. O que quer? É a fantasia de um milionário! E devo dizer que ficou magnífico em seus andrajos, ou melhor, nos meus andrajos. É um traje velho que consegui na Espanha”.

– “Barão Hausberg!”, bradou Hughie. “Deus do céu! Dei a ele um soberano!”, e afundou na poltrona: era o retrato da desolação.

– “Deu a ele um soberano”, gritou Trevor, explodindo numa gargalhada ruidosa. “Meu caro jovem, jamais terá seu dinheiro de volta. Seu negócio é o dinheiro dos outros”.

– “Penso que você deveria ter-me dito, Alan”, disse Hughie, aborrecido, “e não ter me deixado fazer papel de tolo”.

– “Bem, para começar, Hughie”, disse Trevor, “nunca imaginei que você fosse sair por aí distribuindo esmolas desse modo afoito. Posso entender que você beije uma bela modelo, mas que dê um soberano a um modelo feio... por Júpiter, não! Além do mais, para todos os efeitos eu não estava em casa hoje. Quando você chegou, não sabia se Hausberg gostaria de ter o nome mencionado. Você sabe que ele não estava corretamente vestido”.

– “Que idiota ele deve ter pensado que sou!”, disse Hughie.

– “De jeito nenhum. Ele ficou extremamente bem humorado depois que você saiu. Ficou dando pancadinhas em si mesmo e esfregando as mãos enrugadas. Não pude entender por que ele tinha ficado tão interessado por saber tudo a seu respeito, mas agora compreendo. Ele vai investir seu soberano, Hughie, pagar-lhe os juros a cada seis meses e ter uma história interessantíssima para contar depois do jantar”.

– “Sou um pobre diabo sem sorte”, resmungou Hughie. “A melhor coisa que posso fazer é ir para casa dormir e, meu caro Alan, não conte nada a respeito. Eu não teria mais coragem de aparecer em público”.

– “Bobagem! Isso dará o mais alto crédito ao seu espírito filantrópico, Hughie. E não fuja. Fume outro cigarro e poderá falar de Laura o quanto quiser”.

Mesmo assim Hughie não se deteve, e caminhou para casa sentindo-se muito infeliz, deixando Alan Trevor rindo a solta.

Na manhã seguinte, enquanto tomava o desjejum, o criado trouxe-lhe um cartão em que estava escrito:

“Monsieur Gustave Naudin, da parte de M. Le Baron Hausberg”.

– “Suponho que tenha vindo exigir desculpas”, disse Hughie para si mesmo; e disse ao criado para deixar entrar o visitante.

Um cavalheiro idoso, de cabelos grisalhos e usando óculos de ouro, entrou na sala e disse, com um leve sotaque francês:

– “Tenho a honra de me dirigir ao Monsieur Erskine?”.

Hughie inclinou-se.

– “Venho em nome do Barão Hausberg”, prosseguiu. “O barão...”.

– “Eu rogo, sir, que ofereça a ele minhas mais sinceras apologias”, gaguejou Hughie.

– “O barão”, disse o cavalheiro idoso com um sorriso, “me encarregou de trazer-lhe esta carta”, e estendeu um envelope selado.

No exterior estava escrito:

“Um presente de casamento para Hughie Erskine e Laura Merton, de um velho mendigo”, e dentro havia um cheque de dez mil libras.

Alan Trevor foi o padrinho do casamento e o barão fez um discurso durante a recepção.

– “Modelos milionários”, observou Trevor, “são bastante raros; mas, por Júpiter, milionários modelos são ainda mais raros!”.
_________________________________
*Variedade de chá preto.

Carolina Ramos (Poemas Escolhidos) 12

O INVENTOR


Desde cedo, sonhara ser, um dia,
um inventor famoso de verdade!
E alimentava a doce fantasia,
no enlevo de servir à humanidade!

Cresceu ao acalanto da poesia.
E ao vê-la sucumbir à realidade,
sentiu que a fibra, aos poucos, lhe fugia,
dando morada aos sonhos e à saudade.

Velho e cansado, em fuga da amargura,
acomodou-se a conquistar afetos
e a descobrir tesouros de ternura!

E na humilde renúncia às próprias glórias,
rodeado de filhos e de netos,
nada mais foi que um inventor de histórias!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DOM QUIXOTE

Dom Quixote... "Quijote de la Mancha"
- herói do impulso... arrojo sem plateias!
Seco de corpo, como seca a terra
que pisavas em tuas epopeias!
Pigmeu ante gigantes poderosos,
de longos braços a lembrar "molinos"!
Quando lutavas, em teus desatinos,
em defesa da frágil Dulcinéia,
fiel, tremia Sancho Pança, em zelos!
Mas, Quixote... "Quijote de la Mancha"
não estavas errado nem sozinho,
que a Humanidade inteira tem, também,
seus arroubos de sonhos... pesadelos,
a explodir dentro da alma dos que têm
um grande ideal guardado com desvelos!

Dom Quixote... "Quijote de la Mancha",
ante a réstia de luz que se desmancha,
já libertei das rédeas meu corcel,
de crinas brancas e de indócil passo!
Já dispersei meus sonhos, sem quartel!
]á cavalguei um Rocinante lasso!
E quixotando sigo pela vida,
a cumprir minha sina, mal cumprida,
a quebrar lanças... a enfrentar moinhos...
E a carregar nos ombros meus cansaços,
eu vou deixando a marca dos meus passos
e pedaços de mim, pelos caminhos!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

MISSÃO CUMPRIDA!

Fecho a porta a mim mesma! E ao colocar a aldrava,
nego ao sonho o direito à vida que insinua.
No pranto já chorado, a alma se lava,
despida de ilusões e de esperanças nua.

Não quero mais sofrer! Cansei de ser escrava
de desejos não meus. Não trilho mais a rua
dos desencantos, basta! A dor que eu carregava,
nestas rimas entrego, em confidência, à lua!

Sem nada ambicionar, com pouco me contento.
E, seca de emoções, chego a invejar as folhas
que flutuam, sem dono, aos caprichos do vento!

Ah! Pudera eu dizer, enfim: - Missão cumprida!
E tudo o que viesse, aceitar sem escolhas,
nesse afã de viver... sem mais pensar na vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

RETORNANDO…
de uma festa poética

Obrigada, Senhor, eu Te agradeço
os dias de emoção que me ofertaste;
este sol, esta luz, que não tem preço
e faz do céu azul o seu engaste;

estes campos viçosos que se estendem
numa carícia aos olhos que, cansados,
buscam repouso e o brilho reacendem
na veludosa ondulação dos prados.

Obrigada, Senhor, pela ternura
colhida em cada gesto, em cada olhar…
ficou mais bela a minha noite escura
depois do beijo suave do luar.

Obrigada, Senhor, muito obrigada,
pela doce esperança que acarinho
de que a Poesia, que me abriu a estrada,
me ajude a reencontrar este caminho!

Fonte:
Carolina Ramos. Destino: poesias. São Paulo: EditorAção, 2011.
Livro enviado pela poetisa.