quinta-feira, 23 de junho de 2022

Contos e Lendas do Mundo (Birmânia) A promessa

Era uma vez a bela filha de um Homem rico, que estudava na universidade.

Ela era uma aluna muito aplicada e um dia, quando estava sentada próximo à janela da sua sala de aula escrevendo com um estilo(*) numa folha de palmeira, uma fórmula importante que o douto professor estava ditando para a classe, o estilo escorregou das suas mãos cansadas e caiu pela janela, indo parar no chão.

Ela achou que seria desrespeitoso pedir ao professor que fizesse uma pausa, mas se ela se levantasse para ir pegar o estilo, perderia a fórmula. Enquanto estava nesse dilema, um colega seu passou perto da janela, e a moça lhe pediu, num sussurro, que pegasse o estilo para ela.

Ora, o rapaz que passava era um filho de rei e uma pessoa muito má. Fazendo troça, ele respondeu: "Prometa-me que você vai me dar sua primeira flor na primeira noite".

A jovem, absorta na fórmula do professor, compreendeu apenas a palavra flor e aquiesceu com um gesto de cabeça.

Ele logo esqueceu a brincadeira que fizera; a jovem, porém, refletindo sobre o episódio, compreendeu o significado pleno das palavras do príncipe, mas não pensou mais nelas e esperou que tivessem sido ditas de brincadeira.

Ao fim dos respectivos cursos na universidade, o príncipe voltou para o seu reino e logo depois subiu ao trono do pai, e a jovem voltou para sua casa, num reino vizinho, casando logo em seguida com o filho de um homem rico. Na noite do casamento, ela se lembrou do incidente do estilo e, atormentada pela sua consciência, contou ao marido à promessa que tinha feito, expressando, porém, a certeza de que o jovem estava apenas brincando.

"Minha querida", o marido disse. "Quem tem de dizer se estava brincando ou não é o jovem. Uma promessa nunca deve ser quebrada." A jovem, depois de fazer uma reverência diante do marido, partiu imediatamente numa viagem ao reino vizinho, para cumprir a promessa que fizera ao rei, caso ele quisesse cobrar o prometido.

Quando andava sozinha na escuridão, um ladrão a agarrou e disse:

"Que mulher é essa que sai andando pela noite, enfeitada de ouro e joias? Me entregue suas joias e seu vestido de seda".

"Oh, ladrão", a jovem respondeu, "leve minhas joias, mas deixe-me o vestido de seda, pois não posso entrar no palácio do rei nua e cheia de vergonha."

"Não", o ladrão disse. "Seu vestido de seda é tão valioso quanto suas joias. Dê-me o vestido também."

Então a jovem explicou ao ladrão o motivo por que estava viajando sozinha na escuridão.

"Estou impressionado com o seu senso de honra", o ladrão disse. "E, se você me prometer voltar aqui depois de dar a primeira flor ao rei, eu a deixo ir embora."

A jovem fez a promessa, e pôde então continuar viagem.

Ela foi andando até passar sob uma figueira-brava.

"Que mulher é essa, tão jovem e delicada, que vaga sozinha à noite?", o ogro da árvore disse. "Vou comer você, pois todas as pessoas que passam sob a minha árvore depois que escurece me pertencem."

"Oh, ogro", a jovem suplicou. "Por favor, poupe-me, porque se você me comer agora não poderei cumprir a promessa que fiz ao príncipe."

Depois que ela explicou o propósito de sua viagem noturna, o Ogro disse:

"Estou impressionado com seu senso de honra, e, se você me prometer voltar aqui depois de se encontrar com o rei, eu a deixo partir".

A jovem fez a promessa e pôde continuar viagem.

Finalmente, sem nenhum outro incidente, ela chegou à cidade, e logo estava batendo nos portões do palácio do rei.

"Que tipo de mulher é você?", os guardas do palácio perguntaram. "O que pretende vindo ao palácio e pedindo para entrar em plena meia-noite?"

"É uma questão de honra.", a jovem respondeu. "Por favor, digam ao meu senhor, o rei, que sua colega de universidade veio cumprir a promessa."

O rei, que ouvira o tumulto, olhou pela janela do seu quarto e viu a jovem iluminada pela luz das tochas dos guardas, em toda plenitude da sua beleza. Ele a reconheceu e a desejou, mas quando ouviu a sua história, admirou-a por sua fidelidade à promessa e pela coragem de enfrentar todos os perigos e dificuldades para cumprir a palavra.

"Minha amiga", ele disse. "Você é uma mulher maravilhosa, pois coloca a sua honra acima até mesmo do seu recato de donzela. A promessa que lhe pedi não passou de uma brincadeira, e a esqueci. Por isso, volte para o seu marido."

A jovem voltou ao ogro da figueira-brava e disse: "Oh, ogro, coma meu corpo, mas, depois de tê-lo comido, pegue meu vestido de seda e minhas joias e os leve ao ladrão que está me esperando a alguns metros daqui".

O ogro disse: "Amiga, você é uma mulher maravilhosa, porque coloca sua honra acima até da própria vida. Você está livre para partir, pois eu a dispenso da sua promessa".

A jovem voltou então ao ladrão e disse: "Oh, ladrão, tome as minhas joias e o meu vestido de seda. Embora eu tenha que voltar para o meu marido nua e envergonhada, os criados haverão de me deixar entrar, pois vão me reconhecer".

O ladrão respondeu: "Amiga, você é uma mulher maravilhosa, porque coloca a sua promessa acima de joias e de belas roupas. Você está livre para ir embora, pois eu a dispenso da sua promessa".

E assim a jovem voltou para o seu marido, que a recebeu com todo afeto e consideração, e eles viveram felizes para sempre.
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(*) Estilo: Ponteiro ou pequena haste de madeira, metal, osso, pedra etc. com que os antigos escreviam em tábuas recobertas por uma camada de cera

Fonte:
Angela Carter. 103 contos de fadas. Publicado originalmente (Angela Carter's book of fairy tales) em 2005.

Caldeirão Poético XLVIII


ALDA PEREIRA PINTO
Rio de Janeiro/RJ, 1919 – ????

Sonatina XII

É bom que eu viva ao léu, pois me acostumo
à solidão que assusta a quem não crê,
pois se de algum receio eu sou mercê,
passeio, canto e ando, rio e fumo.

Num certo dia que virá, presumo,
não tendo amigos nem sequer você,
talvez que eu me lamente, só porque
a sorte não nos pôs no mesmo rumo.

E, se ao chegar a hora em que se apaga
a luz da vida, uma saudade vaga
quiser velar na minha soledade,

ouvidos não darei ao seu alento,
porque saudade é sempre sofrimento
por mais que seja alegre uma saudade.
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ALFREDO DE ASSIS
Riachão/MA, 1881 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

Pranto e riso


No pranto da criança não diviso
mágoa nenhuma: é todo luz e encanto.
Tem, nuns restos de céu, de paraíso,
toda a doçura matinal de um canto.

Mas de um velho, num rápido sorriso,
mágoas profundas eu percebo, entanto.
No pranto da criança, há quase um riso;
no sorriso do velho, há quase um pranto.

Um velho ri: — É um por-de-sol que chora;
chora a criança: — É como se uma aurora
um chuveiro de pétalas abrisse.

E tem muito mais luz, mais esperança,
a lágrima nos olhos da criança
que o sorriso nos lábios da velhice.
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ALICE DE PAULA MORAES
Ilhabela/SP, 1908 – ????

Horas iguais


Outono... As andorinhas friorentas
em bandos já desertam dos beirais...
São mais tristes as tardes macilentas
e as rosas já desmaiam nos rosais...

O meu outono! As horas passam lentas,
cheias de nostalgias, sempre iguais!
Ó coração, por que é que te atormentas?
Estanca o pranto, não soluces mais!

Depois verás, mais triste e mais cansado,
quando as nuvens, em forma de novelos,
rolarem pelo céu, em fins de agosto,

verás sim, coração desconsolado,
que estão muito mais brancos meus cabelos
e as rugas são mais fundas no meu rosto!
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ALINE BRITTO SOARES
Rio de Janeiro/RJ

Cântico do Nordeste


Já não ouvem as palmas dos coqueiros
doces palavras vindas de além-mar;
não lhes sussurram cânticos brejeiros
trêfegos ventos vindos de ultramar.

Onde andarão os vendavais arteiros
que suas folhas vinham estalar,
pelas noites sem fim, dias inteiros,
nuvens de areia levantando ao ar?

Já outras nuvens que, rolando ao léu,
bailavam, céleres, no azul do céu,
não sombreiam os belos coqueirais.

O árido solo de cuidados urge.
Torna-se agreste a cada sol que surge.
Secam-se os rios nos mananciais!

Fonte:
Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Benedita Azevedo (Voo de liberdade)

Lúcia desde muito jovem tinha uma autonomia que às vezes lhe rendia bons castigos. Após ingressar na escola pública, despertou para a vida em todos os sentidos. Conheceu um mundo diferente daquele em que vivia até então. Participava de todas as atividades que lhe permitiam. A diretora sempre incentivava seus alunos, não só para as atividades escolares, mas também para as religiosas. Sempre que havia festas na igreja, não se sabia se era atendendo ao pedido do pároco, ela liberava os alunos maiores, de algumas aulas, para pedir, como chamavam à época, “uma joia” a São Benedito, Nossa Senhora das Dores, Santa Cruz ou ao Espírito Santo.

Certa vez, um grupo de dez alunos queria conhecer o local onde nascera Gomes de Sousa, o grande matemático maranhense. Aproveitando a saída para pedir “joia” para Nossa Senhora das Dores, iria até onde fora a casa paterna do conterrâneo ilustre. Saiu logo após a aula de português. Os alunos andaram dois ou três quilômetros por entre árvores e quintais de casas modestas. Lúcia esperava encontrar coisa melhor do que a casa onde morava com seus pais, à beira do Rio Itapecuru. Não tinha nada a ver com suas expectativas, era parecida com a sua.

Mais uma vez projetou-se à altura de Gomes de Sousa e Humberto de Campos. Se os dois tinham sido pessoas tão simples quanto ela, nada a impediria de vencer os obstáculos e um dia chegar pelo menos próximo ao que eles foram. Mas não falava isso para ninguém. Perdia-se em divagações e muitas vezes perguntavam se estava no mundo da lua. Ficava aborrecida, tinha medo de que alguém penetrasse em seus pensamentos e estragasse tudo.

Depois que entraram e olharam a casa de taipa, com poucos cômodos, coberta de palhas de palmeiras e um quintal cheio de fruteiras, voltaram. Paravam em todas as casas. Não poderiam perder aquela caminhada tão longa e voltar de mãos vazias. Batiam palmas nas portas e com a cara mais deslavada, repetiam o mantra: “Uma joia para Nossa Senhora das Dores”.

Recebiam as coisas mais inusitadas: arroz em cacho, espigas de milho verde, galinhas, farinha de mandioca, ovos, etc. Uma senhora queria oferecer alguma coisa à Santa, mas só tinha vinagreira, um arbusto de folhas azedas, que os maranhenses usam para fazer o arroz de cuxá, prato típico daquela região, servido com peixe frito. Os alunos aceitaram um maço enorme da verdura. Voltaram carregados de “joias”.

A diretora disse que poderiam deixar na casa da tabeliã da cidade. Ela mandaria entregar na igreja. Naquela noite, aconteceria um leilão, no coreto localizado entre a igreja e a casa paroquial, onde se concentravam as “joias” compostas de tudo que se poderia imaginar. Dependendo do prestígio do Santo e do alcance dos milagres às promessas dos fiéis. De um boi ao maço de vinagreira, cuja renda o padre usaria nas obras da igreja.

Lúcia levou um susto quando viu a hora. Passava de meio dia. Certamente, seria repreendida quando chegasse na casa. Mesmo sabendo disso, resolveu esperar o lanche que a simpática senhora negra de sorriso largo, vestindo xadrez com avental branco, devido ao adiantado da hora, prontificou-se a fazer, para os alunos, antes de voltarem para casa.

A casa de Lúcia ficava a quatro quilômetros da escola e mais alguns metros até a casa da tabeliã. Ela estava preocupada com a mãe que não fora avisada que se atrasaria naquele dia. Mas, estava faminta. Esperaria. De qualquer maneira o castigo seria certo. Todos sentaram à enorme mesa da sala de jantar. A simpática senhora fez suco de maracujá, fritou alguns ovos que estavam um pouco amassados, colocou dentro dos pães e distribuiu aos alunos. Lúcia comeu apressada, enquanto os outros comiam, calmamente. Agradeceu, despediu-se dos colegas e partiu.

Ao atravessar a ponte sobre o Rio Itapecuru, correu até a casa. Era quase catorze horas. A mãe muito preocupada saíra à sua procura e entrara na casa da irmã para contar que a filha ainda não chegara da escola, até aquela hora. O sobrinho entrou e disse que vira a prima passar correndo em direção à casa da tia.

A mãe voltou aliviada por sabê-la em casa, mas não poderia deixar de corrigi-la para que não voltasse a acontecer tal situação.

“Onde já se viu uma menina de treze anos até àquela hora fora de casa, seja lá por que razões fossem! Duas horas atrasada!” – resmungava nervosa.

Ao chegar, procurou-a pela casa e não encontrou. Perguntou à filha mais velha se viu a irmã. Ela disse que Lúcia entrara no quarto, trocara o sapato e fora para a cozinha.

- Ela falou alguma coisa, onde estava?

- Não. Eu disse a ela que ia apanhar.

A mãe ficou apreensiva e repreendeu a filha por adiantar tal informação. Procuraram Lúcia por todos os lugares e não encontraram. A mãe voltou à casa de sua irmã. Perguntou pela vizinhança e nada da menina.

O sol já declinava no horizonte. O pai chegou e tomou conhecimento da situação. Reclamou da mania da mulher de não ouvir primeiro o porquê da menina se ter atrasado, antes de ameaçar castigá-la. A mãe defendeu-se dizendo que nem vira a filha. A irmã começou a chorar e gritar o nome de Lúcia ao redor da casa. Os parentes e vizinhos foram chegando. Alguém comentou que a mocinha poderia ter fugido com medo. Outros que poderia estar no rio. Não adiantava, já haviam procurado em todos os lugares..

A mãe apanhou uma vela na gaveta da mesa e acendeu aos pés da imagem de São Longuinho e da estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pendurada na parede da sala. Fez promessa para Lúcia aparecer e prometeu ao pai que não castigaria a filha quando chegasse.

Já escurecia. O pai dirigiu-se ao enorme quintal e gritava o nome da filha. Pedia que voltasse para casa que ele não deixaria a mãe molestá-la. Já emocionado dizia:

- Filhinha, vem para casa! Já está ficando escuro! Daqui a pouco pode aparecer algum bicho. Vem que o pai te protege!

Naquele momento, ouviram alguém chorando na direção do rio. O pai correu e todos o acompanharam. Não havia ninguém. Fizeram silêncio e ouviram outra vez o choro. A mãe gritou:

- É ela. É o choro dela!

O pai desorientado correu até o pé de mangueira, olhou para cima e viu o corpo franzino da menina, curvado sobre um galho, abraçado ao tronco, chorando.

Ele subiu tal qual um gato, em dois pulos alcançou a filha e a trouxe no colo. Andou até o quarto e colocou-a na cama. A mãe e a irmã se aproximaram e abraçaram-na. Os vizinhos discretamente foram para suas casas.

A mãe lembrou-se de que a filha ainda não almoçara, mandou que a irmã cuidasse do jantar e levou-a para tomar banho no rio. Só então ela pôde contar da visita à casa de Gomes de Sousa e das “joias” para Nossa Senhora das Dores.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Adega de Versos 84: Francisco N. Macedo

 

Lima Barreto (A questão dos telefones)

Andam sempre os jornais com uma birra, uma briga por causa do serviço telefônico desta cidade.

Implicam sempre com a Light, mas creio que essa poderosa companhia é simplesmente pseudônimo de uma outra que tem um nome alemão.

Das muitas inutilidades de que, para mim, está cheia esta vida, o telefone é uma delas. Passam-se anos e anos que não ponho um fone ao ouvido; e, de resto, quando me atrevo a servir-me de um desses aparelhos, desisto logo. Entre as razões está a que não compreendo absolutamente a numeração das moças do telefone. Se digo seis qualquer coisa, a telefonista imediatamente me corrige: meia dúzia qualquer coisa. Não quero expor a minha sabedoria em elementos de aritmética; mas meia dúzia é uma coisa, pois nunca vi dizer meia dúzia vinte e sete e sim seiscentos e vinte e sete.

Esta é uma das minhas quizílias com o telefone. Uma outra é a tal história: “está em ligação”; e há mais. De forma que muito me surpreende esse interesse dos jornais por esse negócio de telefones.

Observei, porém, que as moças gostam muito de falar no aparelho.

Não se entra numa casa de negócio de qualquer ordem que não se encontre uma dama a falar ao fone:

– Minha senhora, faz favor?

– ?

– Sete meia dúzia três, Vila.

– ?

– Sim, minha senhora.

Durante cinco minutos a dama troca com a invisível Alice frases ternas e dá risadinhas.

Perguntei a um negociante da minha amizade:

– Que querem essas moças tanto com o telefone?

– Não sei. Há dias que é um nunca acabar... Formam uma fileira que nem em bilheteria de teatro em dia de espetáculo... Na semana passada, quase perdi um negócio urgente e do meu interesse, porque tive de esperar que mais de vinte “freguesas” dessas, dessem o seu recadinho ao aparelho... Levaram, todas, cerca de meia hora ou mais.

– Então é por isso que os jornais tanto nos atazanam com essa questão do telefone, de Light? Servem as senhoras...

– Qual o quê! – fez o negociante.

– Então, por que é?

– A questão é o preço do aluguel dos aparelhos e essas meninas são freguesas de graça, que, às vezes até, nada compram na casa.

Fica, para mim, ainda insolúvel essa questão de telefone.

Fonte:
Lima Barreto. Vida Urbana. Brasiliense, 1956.  Publicada originalmente em 1921 na revista Caretas.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLII

GRANDE SOL A ENTRETER


Grande sol a entreter
Meu meditar sem ser
Neste quieto recinto...
Quanto não pude ter
Forma a alma com que sinto...

Se vivo é que perdi...
Se amo é que não amei...
E o grande bom sol ri...
E a sombra está aqui
Onde eu sempre estarei...
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HÁ LUZ NO TOJO E NO BREJO
 
HÁ luz no tojo e no brejo
Luz no ar e no chão...
Há luz em tudo que vejo,
Não no meu coração...

E quanto mais luz lá fora
Quanto mais quente é o dia
Mais por contrário chora
Minha íntima noite fria.
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HÁ MÚSICA. TENHO SONO
 
Há música.  Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
'Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.

A música é pobre mas
Não será mais pobre a vida?
Que importa que eu durma? Faz
Sono sentir a descida.
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HÁ QUANTO TEMPO NÃO CANTO
 
Há quanto tempo não canto
Na muda voz de sentir.
E tenho sofrido tanto
Que chorar fora sorrir.

Há quanto tempo não sinto
De maneira a o descrever,
Nem em ritmos vivos minto
O que não quero dizer...

Há quanto tempo me fecho
À chave dentro de mim.
E é porque já não me queixo
Que as queixas não têm fim.

Há quanto tempo assim duro
Sem vontade de falar!
Já estou amigo do escuro
Não quero o sal nem o ar.

Foi-me tão pesada e crescida
A tristeza que ficou
Que ficou toda a vida
Para cantar não sonhou.
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HÁ UMA MÚSICA DO POVO
 
Há uma música do povo,
Nem sei dizer se é um fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado...

Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser...
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver...

E ouço-a embalado e sozinho...
É isso mesmo que eu quis ...
Perdi a fé e o caminho...
Quem não fui é que é feliz.

Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção ...
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração ...

Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido...
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!
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HÁ UM FRIO E UM VÁCUO NO AR
 
Há um frio e um vácuo no ar.
‘Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.

Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
‘Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.
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HÁ UM GRANDE SOM NO ARVOREDO
 
Há um grande som no arvoredo.
Parece um mar que  há lá em cima.
É o vento, e o vento faz um medo...
Não sei se um coração me estima...

Sozinho sob os astros certos
Meu coração não sai da vida...
Ó vastos céus, iguais e abertos,
Que é esta alma indefinida?
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HÁ UM MURMÚRIO NA FLORESTA
 
Há um murmúrio na floresta,
Há uma nuvem e não já.
Há uma nuvem e nada resta
Do murmúrio que ainda está
No ar a parecer que há.

É que a saudade faz viver,
E faz ouvir, e ainda ver,
Tudo o que  foi e acabará
Antes que tenha  o que esquecer
Como a floresta esquece já.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Teste do Naby

O saudoso médico e político Naby Zacarias, assíduo frequentador da antiga “Boca Maldita”, falava ali certa vez sobre um teste que costumava aplicar em amigos seus que sonhavam candidatar-se a cargos eletivos. A experiência consistia em levar o candidato a candidato a algum lugar onde houvesse alguma grande concentração de pessoas, a fim de medir o prestígio do cidadão.

Dias antes ele havia levado um amigo ao “Bailão do Atlântico” para submetê-lo ao tal teste. Ficaram os dois de pé, próximos à porta principal. As pessoas iam entrando e quase todas cumprimentavam o Naby, trocando com ele amistosas palavras e abraços. Ninguém cumprimentava o distinto ao lado.

– Está vendo? – perguntou o médico – está vendo o que significa popularidade? Essa gente toda me conhece, sabe o meu nome, brinca comigo, muitos já foram ou são meus pacientes... Pois com essa popularidade toda eu não consegui me eleger deputado estadual. Imagine você, que não tem a mínima intimidade com o eleitorado... Quantos votos espera ter?

Pelo menos uns dez candidatos se descandidataram após passar pelo bem-bolado teste do Naby. O fulano se convencia de que voto que pesa nas urnas é o das pessoas simples; verificava que nessa área não teria futuro; fazia as contas; mudava logo de planos... Porque uma coisa é ser conhecido nas chamadas altas rodas, outra muito diferente é ser alguém capaz de misturar-se de alma e corpo com a moçada que realmente decide.

Há muita gente bem preparada que poderia estar exercendo cargos públicos com grande eficiência. Contudo, se o cargo depende de eleição, não basta ser bom sujeito, inteligente, competente e tal e tal: é preciso ter o dom de entrar sem chave no coração do povo, e isso é coisa que o sujeito tem ou não tem; não adianta forçar.

Trata-se de algo muito especial. E não é nem necessário ter nascido em berço pobre ou morar na periferia. Getúlio Vargas, Juscelino Kubistcheck, Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros, nenhum deles foi criado na favela; no entanto alcançaram níveis altíssimos de popularidade.

A questão é que nasceram com um carisma forte, aliado ao dom da comunicação. Sabiam abraçar e entender os mais humildes. De um jeito ou de outro criaram a imagem de advogados do povo, defensores dos pequenos, voz dos sem-voz. Esse tipo de coisa é que de fato conta.

Gente assim todo mundo conhece. Por isso o bom Naby, tão filósofo, sociólogo, psicólogo quão doutor cardiologista, ficava preocupado quando um amigo dele, sem suficiente popularidade, sonhava candidatar-se a alguma coisa. Levava o amigo ao “Bailão” para o teste infalível. Dessa forma evitou que muito sonhador gastasse tempo e dinheiro em aventuras eleitorais provavelmente decepcionantes.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 23-9-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 55

Os astecas ergueram uma das mais importantes civilizações antes da chegada dos europeus na mesoamérica, onde hoje é o México. Cultura rica herdada de diversos povos regionais, além da agricultura, também realizavam comércio com outros habitantes da região.

Na rápida incursão pelo Vale do México nos séculos XIV e XV, enveredamos pelos caminhos da cultura, do espiritual, do social e do religioso deste povo.

O povo asteca sempre foi abundante nas coisas do coração, do pensamento, da filosofia.

Para dizer o que é uma vida que vale a pena, usavam a palavra " neltiliztli ", que seria para nós " arraigada ", " enraizada ", e ela (vida) poderia ser alcançada em quatro níveis: o regime diário de exercícios, um deles; o enraizado na própria psique, envolvendo mente e sentimento; o terceiro, envolvimento na comunidade e, quarto, enraizamento na divindade " teoti ", que é a natureza.

E dizer-se que nos priscos tempos os sumérios, egípcios, gregos, romanos, dentre outros, cultivavam formas de cultura em busca de alguma qualidade de vida, desde a saúde ao material, passando pelo cultivo do espiritual, da intimidade, sintonizando com a natureza.

Pela instabilidade e inconstância de seres humanos, todas elas tiveram debacles (fracassos), quedas e ruínas. E nós, séculos depois, tão avantes em cultura, conhecimento e sabedoria, de repente estamos no mesmo barco dos antepassados. Por inações ou ações desequilibradas nos vemos perdidos nos umbrais, nas fronteiras, nas barrancas do nosso mundo. Buscamos mudanças e restauração. Hora de lembrar Steve Blank: " A renovação sempre surge nos momentos de crise ".

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Daniel Maurício (Poética) 33

 

Washington Daniel Gorosito Pérez (Cenizas Nocturnas)

Nota do blog: tradução para o português após poema em espanhol.

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CENIZAS NOCTURNAS

La ciudad se ha dormido
arrullada por el ritmo cansino
de la lluvia.

En la negrura porfiada de la noche
se funden leyendas y versos.

La vida cruza en las esquinas
y muestra arrugas
en su frente curtida.

Los bichitos de luz
emprenden una danza frenética bajo los faroles
de luces sosegadas a pesar del agua.

La anunciación del alba
la marca
una muchedumbre oscura
con un ir cabizbajo
viendo su reflejo en los charcos.

Se confunden con el viento,
voces de esperanza y espanto.

Pequeñas eternidades.

Las primeras estrías del sol
parten la sombra en pedazos.

Observo las cenizas de la noche volar.
La ciudad renace…

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CINZAS DA NOITE
                                                                         
A cidade adormeceu
embalada pelo ritmo cansativo
da chuva.

Na obstinada escuridão da noite
lendas e versos se fundem.

A vida cruza nas esquinas
e mostra rugas
em sua fronte envelhecida.

Os insetos de luz
empreendem uma dança frenética sob os faróis
de luzes calmas, apesar da água.

O anúncio da aurora
a marca
uma multidão escura
com um caminhar cabisbaixo
vendo seu reflexo nas poças.

Se confundem com o vento,
vozes de esperança e medo.

Pequenas eternidades.

Os primeiros raios do sol
quebram a sombra em pedaços.

Eu vejo as cinzas da noite voarem.
A cidade renasce...
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Biografia

“Há caminhos por traçar no exílio das palavras”.

Washington Daniel Gorosito Pérez nasceu em 1961, em Montevidéu, Uruguai, residindo desde 1991 em Irapuato, Guanajuato, México. Naturalizado mexicano em 1999. Candidato a Doutor em Ciências com Especialidade em Pedagogia.

Escritor. Poeta. Ensaísta. Investigador. Jornalista. Conferencista. Catedrático Universitário. Autor da coluna “Encuentro con Gorosito” de temas de política internacional e culturais que se publica em vários países da América Latina e Europa. Analista de Informação Internacional e Defesa. Parte de sua obra literária e jornalística foi traduzida e publicada em inglês, russo, japonês, romeno,  italiano e português.

- Membro do catálogo do Registro Nacional de Escritores - Uruguai Cultural Letras do Ministério de Educação e Cultura (MEC).

- Membro do catálogo da Coordenação Nacional de Literatura - da Secretaria de Cultura do México - Instituto Nacional de Belas Artes (INBA).

- Membro como Autor da Enciclopedia da Literatura no México – Fundación para las Letras Mexicanas - Consejo Nacional para la Cultura y las Artes - Gobierno del México.

- Alguns de seus poemas sobre temas históricos do Uruguai como “Victoria Oriental en las Piedras” e  “El genocidio Charrúa”, são objeto de estudo, declamação e representação em Escolas e Atos Pátrios Oficiais.

- O poema “Gaucho del Uruguay” foi pintado pelo artista Mario Giacoya e forma parte da coleção pictórica: “Homenaje a los poetas uruguayos”.

- Alguns de seus poemas têm sido ilustrados pela artista plástica espanhola Geles Conesa.

- Seus Haikus têm sido ilustrados pelol Mestre Muralista e pintor mexicano Salvador Almaraz López, reconhecido como “el último eslabón del muralismo mexicano”. Várias Revistas de Universidades da Espanha publicam seus trabalhos.

- Obteve prêmios de poesia, conto, jornalismo, ensaio literário e ensaio histórico no Uruguai, México, Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos, Espanha, França e Itália.

- Tem participação em 40 antologias literárias (livros) em diferentes países da América e Europa.

Entidades que pertence:

Membro da Unión Católica Internacional de la Prensa (UCIP), com sede em Genebra-Suiça.

Membro de Poetas del Mundo. (PM), com sede em Santiago de Chile - Chile.

Membro da Red Mundial de Escritores en Español, com sede em Madrid - Espanha.

Membro da Academia de Poesía de Ciudad de México - Sede em CDMX - México

Fonte:
Poema e biografia enviados pelo poeta (em espanhol). Tradução para o português, por José Feldman.

Aparecido Raimundo de Souza (Dias enfartados)

DAVI DA SILVA e PIPOCÔNCIO SALGADO, amigos de velhos carnavais, se encontram por mera casualidade dentro do metrô super lotado no caminho de volta para casa. Se cumprimentam e logo entabulam conversa animada. A certa altura, Pipocôncio indaga o motivo do sumiço do querido companheiro dos tempos em que moravam na mesma rua e bairro na Casa Verde:

— E ai, amigo Davi, anda sumido?

— Nada, Pipocôncio Todo dia o mesmo esquema: de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Trem cheio, sem lugar para descansar o esqueleto. O ano todo, de segunda a sábado, este percurso tresloucado da Estação da Luz até Santo André. Você é que desapareceu. Faz um tempão que não lhe vejo por aqui...

— Qual o quê, Davi. A rotina  segue a de sempre. Igual você. Sem tirar, nem pôr. Trem com gente saindo pelo ladrão, tanto na vinda, quanto na volta, eu em pé no meio dessa multidão de desconhecidos calmo como um templo budista, cheirando sovacos mal lavados, desodorantes vencidos, perfumes que só me fazem espirrar. Sem falar nos infelizes que fazem cara de cachorro sem dono que caiu do caminhão de mudanças. Só me liberto quando pulo fora em Prefeito Saladino.

— Verdade, amigo. Tem total razão.

— Ei, espera lá. Te conheço de longos e bons janeiros. Apesar de não nos vermos há tempos, estou sentindo seu semblante meio que carregado. Algo  aborrece a sua paz. Você me passa a impressão de estar  entre a bigorna e o martelo.

— Sim, Pipocôncio. E, por conta, me vejo por demais aperreado e sem saber o que fazer.

— Quer falar sobre?  Estou aqui. Se abre, mano. Somos amigos faz anos... até onde sei a nossa amizade não surgiu em mesa de boteco, tampouco em copo sujo de birosca.

— Coisa de família.

— Ainda com a Inácia, pois não?

— Ainda com a Inácia.  E você firme e forte com a Remilda?

— Eu e a Re, tudo às mil maravilhas. Ei, não mude o  rumo da prosa. Acabou de me dizer que está com problemas de família. Começa a cantar...

— Nada demais. Bravatas que ela me conta sobre a sua vida quando no local de  trabalho...

— E o que ela te conta, exatamente?

— Deixa baixo. Melhor não remexer com o que está quieto.

— Eu insisto, meu irmão.  Abra a guarda.

— OK, Pipocôncio. Talvez você me aconselhe pelo fato de ser mais velho e mais vivido. O que devo fazer? Como agir?  

— Sou  todos ouvidos.

— A Inácia me engana.

— Qué isso, meu broder! Sério?

— Pois é. Me engana. E pior, fala na minha fuça, com todas as letras.

— E o que o leva a pensar que é verdade? Talvez só esteja  testando o seu amor por ela, apenas para sacanear, tirar um sarro... coisas de esposas deixadas de lado. Elas gostam de criar situações para nos deixar constrangidos e embaraçados. Tem dado a devida assistência? Chega junto?   

— Sempre. Quase todo dia!

— Meu amigo Davi, me escuta. A sua Inácia é igual a minha Remilda. Ou seja, a sua metade da maçã é uma mulher de fibra, de opinião formada, cabeça feita. Dessas criaturas que não se  prestam a enganar quem quer que seja. Sua esposa é honesta. Lembra do nosso tempo de namoro, quando fomos eu, você, Inácia e Romilda conhecer os pais e os irmãos, em Jabaquara? Sinceramente? Acho que você está vendo chifres em cabeça de cavalo. Inácia é honesta, te ama... largue a mão de pensar besteira, homem... por acaso você já pegou alguma coisa, um deslize que seja?

— Nunca.

— Então, meu amigo. Siga em frente. Você me pediu um conselho. O que fazer e como agir. Para deixar as coisas em pratos limpos, de vez em quando dê umas incertas no serviço dela. Leve a beldade pra jantar, pegue um cineminha... mande flores...

— Já fiz tudo isso. Até detetive particular contratei. Apesar de não ter pego nada, ando com pulgas atrás das orelhas. Desde que nos casamos, há cinco anos, ela me diz que tem um admirador secreto, um homem mais novo que eu: resumindo, Pipocôncio, a Inácia tem um amante...

— Um amante?

— Sim, um amante. Estou pensando em mandar a filha da mãe passear. O mais intrigante, meu prezado...

—... Fala logo, Davi. Desembucha... minha estação chegou...

— Desde que nos casamos, ela vem me dizendo que tem um amante. Um amanteeeeeee... e eu sei que não é verdade!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 19 de junho de 2022

Varal de Trovas n. 562

 

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 65, 66 e 67


BOM TEMPO, SEM TEMPO


Não chovia, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam. As plantas submergiam, os animais morriam, as pessoas não tinham tempo de emigrar. Assim era a vida naquele lugar privilegiado, onde medrava tudo para todos, havendo bom tempo. Mas não havia bom tempo. Havia o exagero dos elementos.

O mágico chegou para reorganizar a vida, e mandou que as chuvas cessassem. Cessaram. Ordenou que a seca findasse. Findou. Sobreveio um tempo temperado, ameno, bom para tudo, e os moradores estranharam. Assim também não é possível, diziam. Podemos fazer tantas coisas boas ao mesmo tempo que não há tempo para fazê-las. Antes, quando estiava ou chovia um pouco — isto é, no intervalo das grandes enchentes ou das grandes secas —, a gente aproveitava para fazer alguma coisa. Se o sol abrasava, podíamos fugir. Se a água vinha em catadupa, os que escapavam tinham o que contar. Quem voltasse do êxodo vinha de alma nova. Quem sobrevivesse à enchente era proclamado herói. Mas agora, tudo normal, como aproveitar tantas condições estupendas, se não temos capacidade para isto?

Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda.
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CARTA EXTRAVIADA

Por que a sua carta ao ministro da Agricultura foi parar em Wagra, no emirado de Catar, de onde a devolveram a ele, remetente, com a declaração de que o destinatário era desconhecido, ou coisa que o valha?

Evidente que não podiam conhecê-lo, pois o ministro despachava em Brasília. E o endereço estava bem claro. Ou antes, esteve. O envelope voltou tão cheio de anotações, riscos, caracteres indecifráveis, carimbos, pequenas etiquetas, que não se distinguia mais o que fora escrito inicialmente.

Ia reclamar do correio, mas lembrou-se que dois meses antes lera a notícia do assalto a um carro postal, de onde foram retiradas as malas. Certamente alguém tirara de uma delas a sua carta e divertira-se mandando-a para Catar. De que modo? Ora, viajara para lá, ou a dera a um portador, que a postou em Wagra.

Abriu o envelope, e qual não foi a sua surpresa ao deparar, não com a sua carta, mas com uma do ministro da Agricultura de Catar: “Meu caro senhor Filipe, considerei com a maior simpatia a sua proposta de venda de camelos para transportes de passageiros e cargas na região árida. Lamento não poder aceitá-la, pois já temos nosso sistema de transportes funcionando satisfatoriamente. No mais, venha visitar nossas ruínas fenícias”.
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CASOS DE BALEIAS

A baleia telegrafou ao superintendente da Pesca, queixando-se de que estava sendo caçada demais, e a continuar assim sua espécie desapareceria com prejuízo geral do meio ambiente e dos usuários.

O superintendente, em ofício, respondeu à baleia que não podia fazer nada senão recomendar que de duas baleias uma fosse poupada, e esta ganhasse número de registro para identificar-se.

Em face dessa resolução, todas as baleias providenciaram registro, e o obtiveram pela maneira como se obtêm essas coisas, à margem dos regulamentos. O mar ficou coalhado de números, que rabeavam alegremente, e o esguicho dos cetáceos, formando verdadeiros festivais no alto oceano, dava ideia de imenso jardim explodindo em repuxos, dourados de sol, ou prateados de lua.

Um inspetor da Superintendência, intrigado com o fato de que ninguém mais conseguia caçar baleia, pôs-se a examinar os livros e verificou que havia infinidade de números repetidos. Cancelou-se o registro, e os funcionários responsáveis pela fraude, jogados ao mar, foram devorados pelas baleias, que passaram a ser caçadas indiscriminadamente. A recomendação internacional para suspender a caça por tempo indeterminado só alcançará duas baleias vivas, escondidas e fantasiadas de rochedo, no litoral do Espírito Santo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas L


O mundo precisa crer
num Deus que se chama Amor.
Se essa crença não valer,
nada mais terá valor!
A. A. de Assis
Maringá – PR
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Velho trem me faz lembrar
os meus tempos de menino,
em que eu me punha a cismar
qual seria o meu destino…
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos – SP
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Felicidade é encanto
que se vive por um triz,
mas celebro, por enquanto,
apenas o que Deus quis.
Antonio Cabral Filho
Jacarepaguá – RJ
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Em noites frias, sem lua,
quando meus versos componho,
eu cubra verdade nua
com meu casaco de sonho.
Antônio Juraci Siqueira
Belém – PA
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Quando esta mágoa me invade,
meu peito em dor se resume,
e eu percebo que a saudade
também usa o teu perfume.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG
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Já velhinho, sonha ainda,
mantendo o brilho no olhar,
que a juventude só finda
quando é impossível sonhar!
Carolina Ramos
Santos – SP
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Voltas… e eu acho tão triste
a emoção de disfarçar,
que, por mim, já que partiste,
nem precisavas voltar…
Divenei Boseli
São Paulo – SP
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O nosso amor escondido,
sem papel, sem aliança,
tem o sabor proibido
da fruta da vizinhança
Domitila Borges Beltrame
São Paulo -SP
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Mesmo que a Terra se mude
e os montes vão para os mares,
Deus é refúgio e quietude
na angústia em que te encontrares.
Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP
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Vive a coroa adoentada,
com o esposo desnutrido:
de dia… tome gemada!
de noite…tome gemido!
Edmar Japiassú Maia

Nova Friburgo – RJ
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Meu beijo tem a fragrância
dos perfumes da amizade,
mas.. dado assim à distância
tem mais sabor de saudade!
Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo – RJ
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È certo, é pura verdade,
que se diz do casamento:
Que só, se tem liberdade,
com um mal comportamento!
Fabiano Wanderley
Natal – RN
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Nos trigais do sentimento que
contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis
Fortaleza/CE, 1949 - 2020
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Na rapidez da informática
meu sonho dura um segundo,
numa proposta automática:
paz, ponto com, ponto mundo.
Francisco Neves de Macedo  
Natal/RN, 1948 – 2012
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O mar é o mais doce amante
pois não cansa de beijar,
num lirismo alucinante,
toda praia que encontrar!
Gislaine Canales  
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS
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Dupla festa eu preconizo,
para noites de luar:
A festa do teu sorriso,
na festa do meu olhar!…
Hermoclydes S. Franco   
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ
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Me esculpindo a cada dia,
vendo no Mestre o padrão,
tento chegar – que utopia! –
mais perto da perfeição.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis – RJ
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Uma chave carregamos,
porta de um mundo melhor,
entretanto não largamos
a muleta de um pior.
José Feldman
Campo Mourão – PR
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Bendigo a lágrima doce
da chuva que cai lá fora.
Bom seria se assim fosse
o pranto que a gente chora!
José Valdez C. Moura
Pindamonhangaba – SP
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Se não me dás teu carinho,
se não me queres amar,
sou barco triste e sozinho,
que já não quer navegar.
Luiz Carlos Abritta
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG
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A distância, o céu aberto,
não podem mudar o amor,
que, embora longe está perto,
como a raiz junto à flor.
Maria Thereza Cavalheiro
São Paulo/SP , 1929 – 2018
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Minhas trovas são singelas,
sem marcas nem pedantismo,
pois eu faço, assim, com elas,
arautos do romantismo.
Maurício Norberto Friedrich
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR
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Se a saudade não consegue
destruir meu dia a dia,
quero, ao menos, que carregue
esse tédio, essa agonia!
Messody Ramiro Benoliel
Rio de Janeiro - RJ
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Enquanto espero a velhice
eu passo a vida trovando,
pois sei que é muita burrice
passá-la só lamentando.
Nei Garcez
Curitiba – PR
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Teu amor que me enternece,
que acaba todo meu pranto,
da sobra faço uma prece,
e ainda sobra outro tanto.
Professor Garcia
Caicó – RN
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Na ansiedade das demoras,
quando chegas e me encantas,
mesmo sendo às tantas horas,
as horas já não são tantas…
Rodolpho Abbud  
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013    
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O belo na juventude
traz orgulho, por costume.
Mas beleza sem virtude
é qual rosa sem perfume…
Ruth Farah Nacif Lutterback
Cantagalo/RJ, 1932 – 2017
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Nas cartas, sê verdadeiro!
Cuida bem tudo o que dizes:
pois cartas são travesseiro
nas noites dos infelizes.
Selma Patti Spinelli
São Paulo – SP
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Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
amor será sempre Amor.
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba – PR
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Anjos brancos, as fumaças
dos casebres, no sertão,
aos céus sobem, dando graças
pelo almoço no fogão.
Yedda Patrício
São Paulo – SP

Nilto Maciel (Incêndio)

Carlinhos brincava no quintal. Olhou para o chão e viu uma sombra deslizar, correr. Cheiro de coisa queimada. Depois o mormaço. Ergueu a cabeça. Talvez a nuvem prenunciasse chuva. O sol quase o cegou. Levou as mãos à testa e correu para junto da mãe, que lavava roupa próxima ao tanque. Nem sequer deu atenção ao menino. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos.

Carlinhos atravessou o corredor e chegou à porta da rua. Às janelas, mulheres debruçavam os olhos para as bandas do céu. Mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigo dos pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

— Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia a cachaça. Talvez fugisse para a Serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, sentia-se cansado de conduzir a carga de bugigangas nos caçuás. E olhava o chão, imune ao medo.

— Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como a alertar o animal. O fogo devorava a fábrica de descaroçar algodão. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Olhos fitos na fumaça que passeava sobre todas as coisas, mais e mais pessoas saíam às ruas. Ninguém ia apagar o fogo?

Apavorado, Carlinhos voltou ao quintal. Acocorou-se ao pé de uma bananeira. A terra úmida lhe molhava os pés e o confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Carlinhos olhou para o muro. Não fossem os cacos de vidro, poderia ver as ruas, a fábrica, o incêndio. Línguas vermelhas lambiam o céu azul e branco. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas, pessoas, animais. A menos que fossem todos para o meio da rua, das praças. Melhor para a igreja matriz. Lá o fogo não chegaria. O padre dizia que, quando o mundo pegasse fogo, só as igrejas seriam poupadas. E quando o mar invadisse a terra, no dilúvio final, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior das igrejas. As águas não passariam dos degraus do patamar. O resto do mundo estaria todo alagado.

— O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que não corriam todos para a igreja?

— Vamos, mãe.

Fazer o que na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, Carlinhos atravessou de novo a casa, aos pulos. Da janela avistou o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, o menino buscou refúgio no quarto de dormir e se ajoelhou diante do santuário. Deus o protegeria. Olhou para o teto: a telha de vidro servia de claraboia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E seu pai, onde estaria? Correu mais uma vez para perto da mãe. Ela saberia do pai.

— Está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo. Numa carreira medonha, atravessou a cozinha, a sala de janta, e chegou à sala.

— O que é isso, meu filho?

O homem tirou o chapéu da cabeça e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo do fogo.

Mais longe, o jumento não parava de mastigar. Onde andaria o homenzinho suado? Carlinhos esticou o pescoço — o desgraçado apareceu à porta de uma bodega e cuspiu.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 18 de junho de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 7

 

Mia Couto (A morte, o tempo e o velho)

O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera do que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.

Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos, se encontra a moradia da morte.

Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo.

Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, com rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal aparentado, com ar maleitoso.

— Esta é a Morte. — disse o homem apontando o cão. E acrescentou: — Sou eu que a passeio pelo mundo.

— E você quem é?

— Eu sou o Tempo.

E explicou que caminhavam assim, atrelados um no noutro, desde sempre.

Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os viventes, se desfalecia agora a olhos vistos, por dar cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.

O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da morte:

— Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.

— Vai ser difícil.

— Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.

— Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.

— Mas eu queria tanto terminar-me!

– Impossível, insistiu o Tempo.

E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou, decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:

— O que posso fazer por si?

— Eu só quero beber.

Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso, mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças.

O velho prometeu garimpar entre todos seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reanimar o mais perdido fôlego. Urdia seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma porção de palavras.

Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.

— Trouxe?

Ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.

E assim se seguiu durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.

— Amanhã vou cumprir o meu mandato. — anunciou ela.

Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. E sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. Até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações — com o risco do arrependimento — ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.

No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:

— Já matei.

— Matou? Matou quem?

— Matei o Tempo.

E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:

— Agora, leva-me tu a passear!

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 9

A “COR” DO OLHAR

("Eu não sei de que cor é seu olhar…”)

Repare bem e veja, meu amigo,
se não há um matiz em cada olhar…
Bem sei que há fantasia no que eu digo;
porém não custa nada reparar...

Vamos ficar os dois observando,
nesse banco de pedra à beira-mar;
assim, de qualquer um que for passando,
eu lhe direi a cor de seu olhar…

Aí vem... Repare aquela ali no meio.
Traz um sorriso... é jovem... vaporosa...
"Sou toda amor..." — no seu olhar eu leio…
No seu olhar que é todo cor de rosa...

Eis que aparece em lúbricos volteios,
um corpo esguio pelo sol tostado...
Vermelha a boca... dois nervosos seios…
e um rubro olhar repleto de pecado!

Vem atrás, em contraste, distraída,
uma formosa e virginal criança...
— Estão seus olhos muito além da Vida!
Trazem no olhar as cores da esperança,

E aquela como vem toda taful...
Vai encontrar alguém... Quanta ansiedade!
— Eis um olhar profundamente azul!...
Vem transbordante de Felicidade!...

E agora adeus, pois se aproxima alguém,
cujos olhos eu vivo a analisar...
— É meu amor... e ainda não sei bem
a indecifrável cor do seu olhar...
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DEVANEIO

Uma casinha escondida,
entre montanhas... além...
Longe do Mundo... da Vida...
Perto do Céu, com meu bem...

Uma fonte de água pura...
Flores... Aves... Pinheirais,
Poesia... Amor… e Ternura
Silêncio… Ventura… Paz...
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NATAL SERTANEJO
Para Angelí e Silvia Lúcia

A Noite toda estrelada!
E a pequena e humilde aldeia,
totalmente iluminada,
pois no Céu há lua cheia!

E a igreja pequenina,
com sinos a repicar,
lá do topo da colina
convida o povo a rezar...

Pois é Noite de Natal,
noite de Paz e de Amor,
em que se evoca o nascer
de Jesus, Nosso Senhor...

Passam velhinhos na Estrada…
Um galo põe-se a cantar…
E a igreja, pouco a pouco,
vai ficando sem lugar…

Depois da Missa do Galo,
a Festança... a consoada...
Um vinho bom que é um regalo!
A castanha... a rabanada...

Vai dormir a criançada,
ansiosa para acordar,
pois o bom papai Noel
esta Noite irá passar...

E despede-se a família...
(Há filhos em profusão!)
— Ó Natal bem brasileiro
lá do fundo do sertão!...
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NEGLIGÊNCIA

Nós vivemos, tanto, tanto,
a sonhar com a Ventura,
a almejar um grande bem!...
Se um belo dia, no entanto.,
depois de luta e de pranto,
a Felicidade vem,
não sabemos desfrutar,
tampouco sentir também,
tudo o que ela pode dar,
tudo o que a Ventura tem...
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PRESENTE A PAPAI NOEL...

Papai Noel pode entrar...
Descansa da lida incerta!
Sê benvindo ao nosso Lar;
a nossa porta está aberta...

O nosso Lar é um Encanto,
tem muita Paz e Ternura...
Mas sabemos, que no entanto,
muitos sentem desventura...

Quando seguires caminho,
(se faz falta à Humanidade),
podes levar um pouquinho
da nossa Felicidade…
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VALERÁ?!

Ao pensar, meu grande amor
que sem menos esperar,
um dia virá a Morte,
nossas vidas separar...
Ao pensar, sinto um tremor,
e fico a conjecturar,
se teremos fé, vigor,
para tudo suportar,
e se vale tanta dor,
nossa ventura sem par...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Irmãos Grimm (Os Trapaceiros)


Disse o galo à galinha:

- Chegou o tempo das nozes; vamos subir a montanha e comer à vontade antes que o esquilo as leve todas.

- Boa ideia! - respondeu a galinha. - Vamos, e nos divertiremos a valer.

Saíram juntos para a montanha e por lá ficaram até anoitecer.

Não sei se comeram demais ou se a fartura os tornou pretensiosos, o certo é que não quiseram voltar a pé para casa e o galo armou uma carruagem com a casca das nozes. Depois de pronta, a galinha acomodou-se nela e disse ao galo:

- Agora puxa o carro!

- Era só o que faltava! – exclamou ele. - Antes ir a pé do que atrelado. Concordo em ser cocheiro e me sentar na boleia, mas eu mesmo puxar? Isso é que não!

Enquanto estavam discutindo, uma pata se aproximou, grasnando:

- Ladrões! Quem lhes deu licença para entrar no meu nogueiral? Esperem, vocês vão me pagar caro!

E, de bico aberto, lançou-se sobre o galo. Este, sem perda de tempo, atacou a pata com toda a força que tinha e tanto lhe meteu os esporões que ela acabou pedindo misericórdia, deixando-se atrelar à carruagem, como castigo. O galo sentou-se na boleia, fazendo as vezes de cocheiro, e lá se foram eles em disparada.

- Corre, pata, o mais que puderes!

Percorrido um trecho do caminho, encontraram dois pedestres. Eram um alfinete e uma agulha de costura, que lhes gritaram:

- Parem! Parem!

Os dois queriam uma carona, pois conforme alegaram, logo estaria escuro como piche e não poderiam dar mais um passo, e também porque havia muito barro na estrada. Vinham da taverna do alfaiate, onde se tinham atrasado tomando cerveja. Como se tratava magros que não ia ocupar muito espaço, o galo mandou que embarcassem, recomendando, porém, que não pisassem nos seus pés nem nos da galinha.

Tarde da noite, chegaram a um albergue e, como não quisessem viajar no escuro e também porque a pata não era boa andarilha, resolveram entrar. A principio o estalajadeiro opôs-se, dizendo que não havia mais lugar na casa, pois decerto pensou que aqueles hóspedes não eram muito distintos. Afinal, diante da conversa comprida que eles fizeram, prometendo-lhe o ovo recém posto pela galinha e mais o da pata, que punha um todos os dias, o estalajadeiro concordou em dar-lhes pousada por aquela noite. Mandaram, então, servir uma mesa bem farta e regalaram-se com o que havia de bom e de melhor.

Pela madrugada, quando todos ainda dormiam, o galo acordou a galinha, trouxe o ovo, quebrou lhe a casca a bicada e ambos o saborearam; a casca, jogaram ao fogão. Depois foram onde estava agulha, que ainda dormia, pegaram-na pela cabeça e a espetaram na almofada do estalajadeiro; o alfinete, enfiaram na sua toalha de rosto. Feito isto, partiram sem mais aquela. A pata, que gostava de dormir ao livre e ficara no pátio, ouviu quando os dois se afastavam. Espanejou-se, saiu do seu canto e logo encontrou um arroio, pelo qual escapou a nado.

Só depois de alguma horas é que o estalajadeiro saiu da cama. Lavou-se e, ao enxugar na toalha, o alfinete lhe arranhou rosto, fazendo-lhe um risco vermelho de orelha e a orelha. A seguir dirigiu-se à cozinha com a intenção de acender o seu cachimbo, mas quando se aproximou do fogão as cascas do ovo lhe saltaram nos olhos.

- Esta manhã tudo me sai às avessas! - disse, aborrecido, e deixou-se cair na cadeira de balanço. Mas no mesmo instante ergueu-se de  um salto e berrou: "Ai"!

A agulha o espetara ainda mais do que o alfinete...e não no rosto! Tomando de fúria, começou  a desconfiar dos hóspedes que haviam chegado tão tarde no dia anterior. Saiu a procurá-los, mas já se tinham ido. Jurou, então, que nunca mais acolherá em sua casa gente trapaceira, que muito come, não paga e, ainda por cima, em agradecimento, faz uma porção de patifarias.

1a. Edição da Coletânea CULTURA (Prazo: 30 de agosto)


Edital de participação


A Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio Grande do Sul – ALBL/RS, em parceria com a Editora Alternativa e com apoio do Instituto Cultural Português, lança a primeira edição da Coletânea CULTURA.

A ALBL/RS tem a satisfação de convidar os escritores Acadêmicos e seus convidados de todo o Brasil a participarem deste momento ímpar da literatura nacional. Esta histórica edição confirmará o destaque dos escritores independentes no panteão da literatura luso-brasileira de todas as regiões dos países.

A Coletânea CULTURA publicará poemas, contos, crônicas, artigos e trabalhos visuais, como pinturas ou imagens, revelando e ampliando a pujança e diversidade de nosso universo literário.

Escreva ∞ Participe ∞ Publique

Para participar, envie seu texto (poesia, crônica, conto, artigo ou ilustração) para o e-mail contato@editoralternativa.com, juntamente com uma biografia resumida e uma fotografia em boa resolução.

Cada página publicada possibilitará o recebimento de dois exemplares da obra, por um investimento de R$ 100,00 cada página, sem limite de páginas por escritor.

A temática da coletânea é livre, podendo conter textos originais ou já publicados anteriormente. Também será possível encomendar exemplares extras antes da impressão, por R$ 35,00 a unidade.

O prazo para o envio dos textos é até 30/08/2022.

As opções de pagamento serão pela emissão de boleto (+ R$ 3,00 por unidade), PIX ou depósito bancário.

A sua participação é essencial para a qualidade e diversidade da obra, expressando a força da literatura nacional.

Coordenador
João Riel de Oliveira Brito
Presidente da ALBL/RS
 
Organizador
Milton José Pantaleão Junior
Editora Alternativa


Fonte:
email da Editora Alternativa

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 22

 

Manuel Du Bocage (Sonetos) IX

Lá onde o Fado impenetrável mora,
Voa o menino Amor entre os Amores:
Loureja a trança, que matizam flores,
Cintila o facho, que a Razão devora :

Entra, saúda o nume, ao nume implora
Que de Marília os olhos tentadores
Vejam sempre ante as Graças, e os Louvores
De seus anos gentis surgir a aurora:

Fronte rugosa vezes três sacode
O deus, cujo poder tudo atropela,
E às súplicas de Amor destarte acode:

"Escape às minhas leis Marília bela,
seja, seja imortal ; durar não pode,
o mundo sem amor, amor sem ela".
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Quantas vezes , Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até reagia a mão do fado,
Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo de existência à morte!

Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida;
É da lei da Natureza ,é lei da sorte
Que seja o mal e o bem matriz da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitosa, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:

Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:

Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;

E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que umedece o Ganges.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar c’o sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Adeja, coração, vai ter aos lares,
Ditosos lares, que Gertrúria pisa;
Olha, se inda te guarda a fé mais lisa,
Vê, se inda tem pesar dos teus pesares:

No fulgor dos seus olhos singulares
Crestando as asas, tua dor suaviza,
Amor de lá te chama, te divisa,
Interpostos em vão tão longos mares:

Dize-lhe, que do tempo o leve giro
Não faz abalo em ti, não faz mudança,
Que ainda lhe és fiel neste retiro:

Sim, pinta-lhe imortal minha lembrança;
Dá-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro,
Que alente, coração, tua esperança.

Fonte:
Manuel Maria Barbosa Du Bocage. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994.