QUANDO ELE CHEGOU, ela estava na sala, sentada confortavelmente no sofá de frente para o novo aparelho de televisão. Assim que a avistou foi logo soltando as cachorras:
— Como é que faço para me livrar de você?
Ela se ajeitou de um modo que ele pudesse ver os fundilhos no reflexo do abajur encostado num canto em cima da mesinha do telefone.
— Não vejo como! Por favor, tome assento. Não mordo.
— Deve haver uma maneira... disse ele desmoronando o corpo moído ao lado dela.
— Se ao menos você morasse numa casa que comportasse um aparelho de energia solar...
Ele ficou furioso com a desditosa observação:
— Casa, para mim é impossível. Você sabe disso melhor que ninguém. Mas não conte vantagens, mocinha. Encontrei a solução.
— Posso saber qual?
— Vou sair deste apartamento e morar no morro. Estou na dúvida: Se Rocinha ou Complexo do Alemão.
— Sozinho ou com a família?
Ele pareceu hesitar antes de responder:
— Não é da sua alçada.
— Bem, se vai sozinho ou com a família, isso não importa realmente. O fato é que estarei lá.
— Numa favela bem longe daqui do centro de Vila Isabel? Duvido!
— Não esqueça que me faço presente nos lugares mais longínquos do planeta.
— Maldita.
— Posso até ser, mas necessária.
— Não para mim.
— Sem a minha presença em sua vida você não é nada.
— Sem a sua presença minha vida é tudo.
— Prove!
— Já que não quer entregar os pontos, deixa que eu mesma direi.
Para início de conversa, não terá seu banhozinho quente depois de um dia estafante no serviço. Esqueceu dele?
— Sempre tomei banho frio.
— Não poderá usar o barbeador elétrico que ganhou de sua filha.
— Os aparelhos de barbear descartáveis são mais baratos e seguros.
— Terá que subir escadas.
— Faz bem para o coração...
— Não na sua idade. Escute, meu velho. Esqueça as mágoas. Reflita comigo. Sem mim não poderá ver seu time preferido no dia que for jogar...
— “Grande droga”. No dia que meu time for jogar, paro em frente a uma dessas muitas lojas que vendem aparelhos eletrodomésticos espalhadas por todos os cantos da cidade.
— Viu só? Nesse momento você lembrará de mim. Estarei lá, olhando para sua cara, e rindo do mico que você estará pagando. Vai deixar o conforto do seu sofá para ficar de pé no meio da rua? Faça-me o favor. Ponha na sua cabeça uma coisa: você depende de mim para tudo, tudo, tudo, T-U-D-O.
— Não, não, não.
— Sim, sim, sim...
— Ah! Ia esquecendo. Sexta-feira agora tem corrida de Fórmula Um...
— Acompanho pelo radinho de pilha. É até mais emocionante.
— Sábado também é dia do Caldeirão do Mion. Você ama o “Caldeirola...”.
— Não me interesso mais pelo programa daquele maluco.
— Hum! Seus filmes preferidos, esqueceu?
— Já vi todos.
— Sua tevê a cabo... depois que as crianças e a sua esposa se recolhem... você não terá mais o canal pornô. E você é amarradão num filminho mais apimentado. É ou, não é?
— Deixei de assinar. Tudo não passa de bobeira.
— Bobeira maior é você querer se livrar de mim...
— E conseguirei, esteja certa.
— Como fará com sua mulher e filhos?
— Já são todos grandinhos. Saberão se virar sozinhos...
— Sua mãe doente. Além de precisar de você, do seu carinho e dos seus cuidados, necessita, igualmente, de mim. Penso até mais de mim que de você. Desculpe, só estou lembrando. Nada pessoal.
— Olhe, sua vagabunda. Me deixa em paz.
— Mas é exatamente o contrário. Você não me dá sossego. Sou sua escrava. Você me faz de cachorrinha. Me usa, abusa da minha bondade, dos meus préstimos. Em troca, meu amigo, em troca eu lhe dou paz. Trago tranquilidade a seu lar. Proporciono momentos bons e alegres para toda a sua família.
Ela faz uma pausa e continua, a língua solta:
— A um comando seu, me abro num leque de prazeres ilimitados. Faço das tripas coração só para ficar perto de você. Diria que estou preso e acorrentado a você, como o ar que corre em seu nariz, como os movimentos das suas mãos e das suas pernas. Resumindo: sem eu por perto, você é um zero à esquerda.
— Comprarei um monte de caixas de velas e fósforos.
Risos.
— Vai fazer algum despacho? As pessoas... seus amigos... sua esposa... até seus filhos pensarão que você perdeu o juízo de vez...
— Perderei realmente o juízo de vez se continuar aqui sentado falando com você feito um bobo da corte.
— Preste atenção. Você mandou cortar o telefone. Como a sua esposa controlará as crianças na escola? Suponhamos que aconteça algum imprevisto? Sua mãe... sua mãe tem que tomar remédios controlados, de duas em duas horas... como vocês – quero dizer, como a infeliz da sua esposa (que fica o dia inteiro com ela) fará para ligar para o farmacêutico vir aplicar as injeções?
— Que use o telefone do vizinho... ela não é quadrada.
— Acha justo? É correto incomodar os demais albergados? Tire por você. Odeia perturbações. Lembra de quando o filho do morador aqui do lado se machucou? Você ficou uma fera quando o pai do moleque tocou a sua campainha...
— Ele atrapalhou o meu jornal...
— Se ponha, por um momento, no lugar da criatura: é correto você interromper o jornal, a novela, ou o filme dos outros? Esqueceu que onde seus direitos acabam começam os do seu próximo? Desde o começo do mundo tem sido assim e continuará indefinidamente. O melhor que tem a fazer é fechar a boca.
— Fechar a boca?
— Perdão. O certo seria controlar os dedos...
— Os dedos?
— Exatamente.
— Não entendi.
— Serei clara. Aliás, sou sempre clara e transparente. Meu nome deveria ser Clara ou Claridade. Você não acha?
— Não mude de assunto.
— Eu falava dos dedos. Você, aliás, vocês deveriam aprender a controlar os dedos. A começar pelo seu casal de filhos. Concordo que eles se aproveitam de mim... fazem da minha pessoa gato e sapato... igualzinho você. Todavia, particularmente tenho em mente que se você tiver uma conversinha de pé de ouvido com os dois... evidentemente... obterá sucesso. Ensine a seus diabinhos pequenas normas corriqueiras... no final do mês, seu bolso não sentirá muito o peso da minha presença...
— Continue...
— Sua esposa, tenho notado, é muito dedicada e controlada. Gasta extremamente o necessário. Não fosse por ela, você estaria no mato sem cachorro, com um nabo desse tamanho enterrado no...
Tomou fôlego em nova interrupção e, em seguida, concluiu:
— Acho que não preciso mencionar onde exatamente o papo... sua mãe, coitada, vou deixá-la de fora de nosso papo. É a única que não contribui em nada para que você acabe no buraco. Sem falar no dinheiro da pensão que ela recebe da aposentadoria e todo mês você embolsa. Que vergonha! Que falta de hombridade! Eu ficaria vexada de me olhar no espelho...
— Está desvirtuando a prosa de novo.
— Não está mais aqui quem falou. Voltando aos dedos. Ensine a seus filhos, quando forem à cozinha, durante o dia, usarem os dedinhos e desligarem os respectivos televisores. Para que dois aparelhos tagarelando em espaços diferentes se ambos vêm os mesmos desenhos nos mesmos canais?
Ela mais uma vez imprimiu uma estancada curta ao bate papo:
— Não podem fazer certas coisas juntos, sentados aqui na sala, como nós estamos agora? Se você está no quarto, use o dedo e apague a cozinha, se está na varanda, use o dedo e apague o corredor. Para que tantas lâmpadas acesas por aí à fora, sem razão? No fundo, meu amigo, no fundo quero seu bem. Sei que vai dizer que a nota fiscal de energia elétrica vem alta. Concordo. Controle, pois, tudo com seus dedos. Faça uma experiência. Pense que não é só o seu consumo de lâmpadas acesas aqui dentro que aumenta as despesas dos talões a serem pagos. Tem as cobranças de terceiros, iluminação publica, juros por atrasos nos pagamentos, multas, I.C.M.S, ajuste de centavos e outras coisinhas que aparecem escritas numas letrinhas desse tamanho que nem Cristo consegue enxergar. Lembre sempre: quero ser sua amiga e mais ainda, amiga de seu bolso. Promete, ao menos, que vai parar e meditar com mais atenção no assunto?
— Fiquei convencido. Você está com a razão.
— Amanhã procure acertar um dos talões que estão jogados no meio dos papéis dentro de sua pasta. Você está no terceiro mês sem pagar. Não demora o sujeito da companhia vem lá embaixo e passa os dedos, digo, a tesoura no seu medidor. Se não levar o relógio, o que poderá ser pior. Se tal ocorrer, você carecerá, de fato, de muitas caixas de velas e fósforos.
— Obrigada pelos conselhos. Você realmente provou nessa nossa conversa que é minha amiga. Eu diria que é você é a luz do meu caminho...
— Estarei na sua vida para sempre. Agora, por favor, movimente a sua poupança gorda deste sofá, caminhe até o interruptor do banheiro, use o dedo indicador e me apague. Espie. Estou sendo gasta desnecessariamente iluminando um local vazio, e o mais chato, vendo a bacia da privada falando besteiras ao celular. Me poupe, me poupe.
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Texto enviado pelo autor.
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