segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (A amiga que se contenta com um simples toque de dedos)


QUANDO ELE CHEGOU, ela estava na sala, sentada confortavelmente no sofá de frente para o novo aparelho de televisão. Assim que a avistou foi logo soltando as cachorras:

— Como é que faço para me livrar de você?

Ela se ajeitou de um modo que ele pudesse ver os fundilhos no reflexo do abajur encostado num canto em cima da mesinha do telefone.

— Não vejo como! Por favor, tome assento. Não mordo.

— Deve haver uma maneira... disse ele desmoronando o corpo moído ao lado dela.

— Se ao menos você morasse numa casa que comportasse um aparelho de energia solar...

Ele ficou furioso com a desditosa observação:

— Casa, para mim é impossível. Você sabe disso melhor que ninguém. Mas não conte vantagens, mocinha. Encontrei a solução.

— Posso saber qual?

— Vou sair deste apartamento e morar no morro. Estou na dúvida: Se Rocinha ou Complexo do Alemão.

— Sozinho ou com a família?

Ele pareceu hesitar antes de responder:

— Não é da sua alçada.

— Bem, se vai sozinho ou com a família, isso não importa realmente. O fato é que estarei lá.

— Numa favela bem longe daqui do centro de Vila Isabel? Duvido!

— Não esqueça que me faço presente nos lugares mais longínquos do planeta.

— Maldita.

— Posso até ser, mas necessária.

— Não para mim.

— Sem a minha presença em sua vida você não é nada.

— Sem a sua presença minha vida é tudo.

— Prove!

— Já que não quer entregar os pontos, deixa que eu mesma direi.

Para início de conversa, não terá seu banhozinho quente depois de um dia estafante no serviço.  Esqueceu dele?

— Sempre tomei banho frio.

— Não poderá usar o barbeador elétrico que ganhou de sua filha.

— Os aparelhos de barbear descartáveis são mais baratos e seguros.

— Terá que subir escadas.

— Faz bem para o coração...

— Não na sua idade. Escute, meu velho. Esqueça as mágoas. Reflita comigo. Sem mim não poderá ver seu time preferido no dia que for jogar...

— “Grande droga”. No dia que meu time for jogar, paro em frente a uma dessas muitas lojas que vendem aparelhos eletrodomésticos espalhadas por todos os cantos da cidade.

— Viu só? Nesse momento você lembrará de mim. Estarei lá, olhando para sua cara, e rindo do mico que você estará pagando. Vai deixar o conforto do seu sofá para ficar de pé no meio da rua? Faça-me o favor. Ponha na sua cabeça uma coisa: você depende de mim para tudo, tudo, tudo, T-U-D-O.

— Não, não, não.

— Sim, sim, sim...

— Ah! Ia esquecendo. Sexta-feira agora tem corrida de Fórmula Um...

— Acompanho pelo radinho de pilha. É até mais emocionante.

— Sábado também é dia do Caldeirão do Mion. Você ama o “Caldeirola...”.

— Não me interesso mais pelo programa daquele maluco.

— Hum! Seus filmes preferidos, esqueceu?  

— Já vi todos.

— Sua tevê a cabo... depois que as crianças e a sua esposa se recolhem... você não terá mais o canal pornô. E você é amarradão num filminho mais apimentado. É ou, não é?

— Deixei de assinar. Tudo não passa de bobeira.

— Bobeira maior é você querer se livrar de mim...

— E conseguirei, esteja certa.

— Como fará com sua mulher e filhos?

— Já são todos grandinhos. Saberão se virar sozinhos...

— Sua mãe doente. Além de precisar de você, do seu carinho e dos seus cuidados, necessita, igualmente, de mim. Penso até mais de mim que de você. Desculpe, só estou lembrando. Nada pessoal.

— Olhe, sua vagabunda. Me deixa em paz.

— Mas é exatamente o contrário. Você não me dá sossego. Sou sua escrava. Você me faz de cachorrinha. Me usa, abusa da minha bondade, dos meus préstimos. Em troca, meu amigo, em troca eu lhe dou paz. Trago tranquilidade a seu lar. Proporciono momentos bons e alegres para toda a sua família.

Ela faz uma pausa e continua, a língua solta:

— A um comando seu, me abro num leque de prazeres ilimitados. Faço das tripas coração só para ficar perto de você. Diria que estou preso e acorrentado a você, como o ar que corre em seu nariz, como os movimentos das suas mãos e das suas pernas. Resumindo: sem eu por perto, você é um zero à esquerda.

— Comprarei um monte de caixas de velas e fósforos.

Risos.

— Vai fazer algum despacho? As pessoas... seus amigos... sua esposa... até seus filhos pensarão que você perdeu o juízo de vez...

— Perderei realmente o juízo de vez se continuar aqui sentado falando com você feito um bobo da corte.

— Preste atenção. Você mandou cortar o telefone. Como a sua esposa controlará as crianças na escola? Suponhamos que aconteça algum imprevisto? Sua mãe... sua mãe tem que tomar remédios controlados, de duas em duas horas... como vocês – quero dizer, como a infeliz da sua esposa (que fica o dia inteiro com ela) fará para ligar para o farmacêutico vir aplicar as injeções?

— Que use o telefone do vizinho... ela não é quadrada.

— Acha justo? É correto incomodar os demais albergados? Tire por você. Odeia perturbações. Lembra de quando o filho do morador aqui do lado se machucou? Você ficou uma fera quando o pai do moleque tocou a sua campainha...

— Ele atrapalhou o meu jornal...

— Se ponha, por um momento, no lugar da criatura: é correto você interromper o jornal, a novela, ou o filme dos outros? Esqueceu que onde seus direitos acabam começam os do seu próximo? Desde o começo do mundo tem sido assim e continuará indefinidamente. O melhor que tem a fazer é fechar a boca.

— Fechar a boca?

— Perdão. O certo seria controlar os dedos...

— Os dedos?

— Exatamente.

— Não entendi.

— Serei clara. Aliás, sou sempre clara e transparente. Meu nome deveria ser Clara ou Claridade. Você não acha?

— Não mude de assunto.

— Eu falava dos dedos. Você, aliás, vocês deveriam aprender a controlar os dedos. A começar pelo seu casal de filhos. Concordo que eles se aproveitam de mim... fazem da minha pessoa gato e sapato... igualzinho você. Todavia, particularmente tenho em mente que se você tiver uma conversinha de pé de ouvido com os dois... evidentemente... obterá sucesso. Ensine a seus diabinhos pequenas normas corriqueiras... no final do mês, seu bolso não sentirá muito o peso da minha presença...

— Continue...

— Sua esposa, tenho notado, é muito dedicada e controlada. Gasta extremamente o necessário. Não fosse por ela, você estaria no mato sem cachorro, com um nabo desse tamanho enterrado no...

Tomou fôlego em nova interrupção e, em seguida, concluiu:

— Acho que não preciso mencionar onde exatamente o papo... sua mãe, coitada, vou deixá-la de fora de nosso papo. É a única que não contribui em nada para que você acabe no buraco. Sem falar no dinheiro da pensão que ela recebe da aposentadoria e todo mês você embolsa. Que vergonha! Que falta de hombridade! Eu ficaria vexada de me olhar no espelho...

— Está desvirtuando a prosa de novo.

— Não está mais aqui quem falou. Voltando aos dedos. Ensine a seus filhos, quando forem à cozinha, durante o dia, usarem os dedinhos e desligarem os respectivos televisores. Para que dois aparelhos tagarelando em espaços diferentes se ambos vêm os mesmos desenhos nos mesmos canais?

Ela mais uma vez imprimiu uma estancada curta ao bate papo:

— Não podem fazer certas coisas juntos, sentados aqui na sala, como nós estamos agora?  Se você está no quarto, use o dedo e apague a cozinha, se está na varanda, use o dedo e apague o corredor. Para que tantas lâmpadas acesas por aí à fora, sem razão? No fundo, meu amigo, no fundo quero seu bem. Sei que vai dizer que a nota fiscal de energia elétrica vem alta. Concordo. Controle, pois, tudo com seus dedos. Faça uma experiência. Pense que não é só o seu consumo de lâmpadas acesas aqui dentro que aumenta as despesas dos talões a serem pagos. Tem as cobranças de terceiros, iluminação publica, juros por atrasos nos pagamentos, multas, I.C.M.S, ajuste de centavos e outras coisinhas que aparecem escritas numas letrinhas desse tamanho que nem Cristo consegue enxergar. Lembre sempre: quero ser sua amiga e mais ainda, amiga de seu bolso. Promete, ao menos, que vai parar e meditar com mais atenção no assunto?

— Fiquei convencido. Você está com a razão.

— Amanhã procure acertar um dos talões que estão jogados no meio dos papéis dentro de sua pasta. Você está no terceiro mês sem pagar. Não demora o sujeito da companhia vem lá embaixo e passa os dedos, digo, a tesoura no seu medidor. Se não levar o relógio, o que poderá ser pior. Se tal ocorrer, você carecerá, de fato, de muitas caixas de velas e fósforos.

— Obrigada pelos conselhos. Você realmente provou nessa nossa conversa que é minha amiga. Eu diria que é você é a luz do meu caminho...

— Estarei na sua vida para sempre. Agora, por favor, movimente a sua poupança gorda deste sofá, caminhe até o interruptor do banheiro, use o dedo indicador e me apague. Espie. Estou sendo gasta desnecessariamente iluminando um local vazio, e o mais chato, vendo a bacia da privada falando besteiras ao celular. Me poupe, me poupe.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

domingo, 21 de agosto de 2022

Carlos Leite Ribeiro (Achado arqueológico)

Num dia de sol ardente, estava o José Pinoca a fazer umas escavações numa terra em Riba d’Aves, para a construção de uma casa.

(Riba d’Aves, para aqueles que não sabem, fica a cerca de 10 Km da cidade de Leiria)
 
A certa altura das escavações, o Pinoca começou a encontrar uns ossos "olha que engraçado encontrei uns ossos... Mas eles têm formas esquisitas...". Voltando-se para os trabalhadores que o estavam a ajudar nas escavações, disse-lhes: "Podem ir para as vossas casas descansar!".

Muito intrigado com o achado, o Pinoca dirigiu-se rapidamente a casa para ir contar a sua mulher, a D. Piquita, a boa nova, pois, se fosse aquilo que ele julgava ser, ia-lhe dar uns tostões na sua exploração.

Piquita, Piquita... Oh mulher, estás aí?” A mulher quando o ouviu assim tão aflito, começou logo a descer as escadas e por fim respondeu-lhe: "Sim, homem, estou aqui. Aonde é que querias que eu estivesse?!"

Oh mulher, tu nem calculas o que é que eu encontrei nas escavações que estou a fazer!" tentando dizer alguma coisa com graça, a Piquita respondeu-lhe: "Pela tua cara... deixa cá ver, deixa cá ver: já sei, encontraste uma cobra!" - disse-lhe a mulher em tom de gozação.

Qual cobra, qual carapuça! Encontrei uns ossos que não sei de quem poderão ser. Percebeste mulher?!"

“Oh, homem, eu não sou estúpida de todo e já compreendi há muito tempo o que tu encontraste. Mas diz-me uma coisa: já foste falar com o coveiro?"

José Pinoca, antes de responder à mulher, sentou-se num banco e só depois lhe respondeu: "Minha esposa esperta, é lógico que não fui falar com o coveiro, pois vim logo para casa e além disso, estou muito cansado. Talvez amanhã vá. Entretanto, estava a esquecer-me de algo muito importante. Peço à minha querida "comandante" que não vá contar isto a ninguém."

A D. Piquita tirou o avental, compôs o cabelo a pôs-se em posição de sentido, respondendo ao marido: "Muito bem, meu comandante! O meu excelentíssimo e digníssimo comandante quer que eu guarde mais alguma coisa, ou esta chega?" O Pinoca sorriu.

No outro dia logo pela manhã, o José Pinoca foi ter com o seu compadre Malaquias, que ao avistá-lo, logo o saudou: "Olha o compadre José Pinoca! então o que o trás por cá ?"

Compadre, nem sei como hei de começar...”. O Malaquias começou a ficar muito curioso e desconfiado com aquela visita do Pinoca e, em determinada altura disse-lhe:

"Não sei o que me quer, mas desde já peço-lhe que esteja à vontade comigo. Vá lá, diga-me lá o que me quer!"

"Então aqui vai... Sabe que eu tenho andado a fazer uns alicerces para uma casa e, qual o meu espanto quando em determinada altura encontrei uns ossos. Ora, como você é perito nesta matéria de ossos, gostaria de saber se aqueles ossos são ou não humanos."

Embora algo admirado, o Malaquias não "desarmou" e com uma certa vaidade, respondeu ao Tinoca: "Fez muito bem em vir ter comigo, pois como diz (e muito bem) eu sou um grande especialista em ossos! Vamos então lá ver esse seu achado."

E lá foram os dois compadres a caminho das fundações. Ao chegar ao local, logo o Malaquias se meteu na vala para melhor examinar os ossos. Depois de um demorado exame, saltou da vala, encarou o compadre, tossiu, piscou os olhos e com ar de pessoa "muito entendida" expressou-lhe a sua avalizada opinião: "Compadre... São ossadas de dinossauro!"

Oh, compadre, estou tão nervoso que nem sei se choro ou se rio! ... Olhe lá, e se fossemos contar o sucedido à D. Fúfia?".

Sou da sua opinião, Pinoca!"

E os dois compadres dirigiram-se a casa da D.Fúfia, uma senhora de certa idade, que não era nada bonita, mas que há muito tinha aprendido a comer com faca e garfo.

Chegaram e logo bateram à porta. Do outro lado respondeu-lhes uma voz muito rouca e autoritária: "Quem é ?!" Depois dos compadres se terem identificado, a D.Fúfia veio abrir-lhes a porta com o seu ar quase marcial, olhando-os por cima dos seus óculos encarapitados no seu quase adunco nariz.

Olá! Entrem, entrem e ponham-se à vontade. Querem um chazinho?... Pelas vossas caras estou mesmo a ver o que vocês queriam era aquilo que eu, para o conseguir beber, tenho sempre que fechar os olhos, ou seja, vinho! Mas infelizmente bebi ainda há pouco a última pinguinha que tinha cá em casa".

"D.Fúfia, por favor não se incomode, cá com a gente" - disse-lhe o Malaquias, e logo o Pinoca concluiu: "Para não incomodar muito a senhora, podemos ir já à questão que cá nos trouxe?"

A senhora mais uma vez os convidou a sentarem-se, sentando-se em seguida, tirando antes de um cesto a sua enorme jiboia de estimação que a pôs ao pescoço.

"Digam-me lá então que questão é essa... será dinheiro?"

Os compadres sorriram e o Pinoca adiantou-se:

"A questão desta vez não é de dinheiro. É o seguinte, eu estava a fazer um buraco numa construção que ando a fazer perto da Lameira, e qual o meu espanto que em determinada altura encontrei umas ossadas, que aqui o nosso distinto coveiro diz que são ossos de dinossauro".

Ao ouvir isto, a D.Fúfia quase que deu um pulo na cadeira e, agarrando a jiboia com a mão esquerda e espetando o dedo indicador em direção dos compadres, logo deu a sua opinião:

"Oh, pessoal!... Vocês tomem muito cuidado, pois o que encontraram pode ser uma manobra política/desportiva. Tomem muito cuidado!".

O Pinoca ficou um tanto ou quanto atrapalhado e foi o seu compadre Malaquias que ousou perguntar à D.Fúfia:

"Então o que é que podemos fazer com as ossadas?!"

"Pois é... deixem-me cá ver, deixem-me cá ver... Ah já sei! Vocês vão já falar com o diretor do Museu de Arte Natural de Riba d` Aves, e apresentem este caso."

Em princípio, o Pinoca não estava nada, mas mesmo nada disposto a ir falar com o diretor do Museu, pois chegou a pensar que aquelas ossadas de dinossauro lhe podiam dar-lhe umas boas coroas (notas...). Mas por fim e aproveitando a sugestão da D.Fúfia, lá foram os compadres falar com o diretor.

Algum tempo depois vieram uns técnicos de Lisboa e, ao fim de alguns meses o enorme esqueleto já se encontrava montado.

No dia da exposição para a apresentação ao público das ossadas do dinossauro, a D.Fúfia, embrulhada na sua enorme echarpe bolorenta e já com alguns buracos de traça, orgulhosamente dizia a toda a gente que tinha sido dela a iniciativa para que as ossadas fossem entregues ao Museu.

Nisto aproximou-se mais do esqueleto para o melhor poder admirar, quando perante a estupefação geral deu um enorme grito e exclamou:

Mas... Mas estas ossadas são do meu querido e único namorado que morreu há mais de 60 anos!!!"

E dizendo isto, caiu redondamente no chão.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 18


claro calar sobre uma cidade sem ruínas
(ruinogramas)


Em Brasília, admirei.
Não a niemeyer lei,
a vida das pessoas
penetrando nos esquemas
como a tinta sangue
no mata-borrão,
crescendo o vermelho gente,
entre pedra e pedra,
pela terra adentro.

Em Brasília, admirei.
O pequeno restaurante clandestino,
criminoso por estar
fora da quadra permitida.
Sim, Brasília.
Admirei o tempo
que já cobre de anos
tuas impecáveis matemáticas.

Adeus, Cidade.
O erro, claro, não a lei.
Muito me admirastes,
muito te admirei.
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o náufrago náugrafo

a letra A a
funda no A
tlântico
e pacífico com
templo a luta
entre a rápida letra
e o oceano
lento

assim
fundo e me afundo
de todos os náufragos
náugrafo
o náufrago
mais
profundo
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bem no fundo

no fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas
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sem budismo

Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.
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o amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro
ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos
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a lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!
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anch’io son pittore

fra angélico
quando pintava
uma madona col bambino
se ajoelhava e rezava
como se fosse um menino

orava diante da obra
como se fosse pecado
pintar aquela senhora
sem estar ajoelhado

orava como se a obra
fosse de deus não do homem
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podem ficar com a realidade
esse baixo-astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
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litogravura

Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco de triunfo.
Mil duzentos e cinquenta.

Qualquer pedra na Europa
é suspeita de ser
mais do que aparenta.

Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.
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parada cardíaca

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento
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imprecisa premissa

(quantas curitibas cabem numa só Curitiba?)

Cidades pequenas,
como dói esse silêncio,
cantilenas, ladainhas,
tudo aquilo que nem penso,
esse excesso
que me faz ver todo o senso,
imprecisa premissa,
definitiva preguiça
com que sobe, indeciso,
o mais ou menos do incenso.
Vila de Nossa Senhora
da Luz dos Pinhais,
tende piedade de nós.
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sujeito indireto

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, indireto sujeito.

Fonte:
Paulo Leminiski. Distraídos venceremos.  Publicado em 1987.

Sammis Reachers (Ri por último quem ri de bolso cheio)

 As catanças de ferro-velho abarcavam, a partir de nosso sub-bairro Jardim Nazareth ou Palha Seca (a “fronteira” entre os bairros de Tribobó e Arsenal) diversos outros bairros: No poder arcano da canela, alcançávamos Jockey Club e Anaia, Capote e Arsenal, chegando até a Rio do Ouro e Maria Paula, quando não Colubandê e Bairro Almerinda. Era muito chão!

Naqueles finais da década de 80, o bairrismo não era armado pelo tráfico como depois tornou-se, mas existia: Os daqui não se misturavam com os de lá. Mesmo que os de lá fossem os dali, da rua seguinte à sua...

Nessa época de “galeras” e entreveros, surgiu certa feita aqui na Beira do Rio uma dupla de irmãos folgazões, ou folgadaços mesmo. Metidos a bambas, vinham na intenção de namoricar as meninas da área. Bem, as NOSSAS meninas. Na época eu não estava realmente interessado em namoros, mas a marra daqueles espertões incomodava, tanto a mim quanto a muitos outros. Mais fortes que eu e Renato, me lembro de uma feita em que, em plena e nossa área, os sacanas nos intimidaram com sinistras ameaças. Acuados, num tempo em que eu ainda era um péssimo ou inútil boxer de rua, colocamos a viola no saco e ficamos quietinhos...

Eles vinham de uma área próxima, uma espécie de sub-bairro a que chamávamos de “Buraco Quente”. Acontece que este mesmo Buraco Quente era área fiel de nossas coletas, pois havia lá um enorme lixão comunitário, instalado numa espécie de cratera. E não é que foi numa dessas andanças naquelas paragens que acabamos descobrindo em que casa moravam os tais Romeus valentões?

Tempo passou, e belo dia fomos nós nos abeirando da casa deles, cuja cerca de arame farpado, já banguela, coitada, fazia lado a um terreno baldio, coberto por moitas e arbustos. Apenas batíamos aquele terreno em busca de algo, inchados de inocência, quando, lá ao fundo do tal terreno e fronteiriço à cerca da casa dos sacanas, percebemos uma enorme caixa de ferro – um desses baús de geladeiras antigas. Ao nos acercarmos com cuidado, a falha dos valentinos foi descoberta: Os trouxas deixavam, do lado de fora de seu quintal, um depósito de reciclagens composto apenas de alumínio, cobre, chumbo e metal, um depósito repleto. Alumínio já bem amassado, fios de cobre já descascados ou queimados, com sabor de mel.

Não era preciso dizer mais nada, e Renato nem tentou. Apenas sorriu cinicamente; e Deus, como sinto falta daquele sorriso! Eu entendi o que faríamos.

Nas semanas seguintes, aplicamos sobre aqueles canalhinhas nossa velha e experimentada tática do morde-e-assopra: A cada semana pegávamos uma pequena “carga” das mercadorias, para que as vítimas não sentissem o impacto.

A marra daqueles garotões, que depois acabaram “expulsos” de nossa área pelos moleques maiores, nós a consumimos nos sabores Chocolate e Flocos dos sorvetes da Kibon, nossos preferidos...

O dono da padaria sorria quando entrávamos, sujos e amarrotados, mas cheios de dinheiro de nosso suado trabalho – e nossa justa e vingativa rapina!

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 20 de agosto de 2022

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 12

 

Renato Benvindo Frata (Nanocontos) 3

AFIRMAÇÃO


Poesia não é "crime de lesa-vida"*: com ela diariamente, até jiló se adoça.
* Paulo Leminski
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BELEZA

As asas de borboletas são esconderijos dos arco-íris. Só saem dali quando chova.
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CONFISSÃO

O calor do seu corpo sempre foi lenitivo; hoje é cobertor contra a frieza da minha idade.
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IDADE

No conta-gotas sendo espremido a ânsia de não vazar dose além da sobrevivência.
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IMPIEDOSO

Sem clemência, pintou de vermelho-amarronzado a pele branca do veranista.
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LEMBRANÇAS

Hoje nosso beijo tem sabor saudade do primeiro. O tremor nas pernas também e a paixão continua.
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MADRUGADA NA FEIRA

Olhou-se no pastel como a num espelho: a cara de sono e ressaca confessaram-a massa enrugada.
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PARADA DE ÔNIBUS

O tempo que passa nunca dá carona e a vida se escorre na espera.
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PAIXÃO

No momento em que a vi, o Cupido trouxe o Amor e o espetou com a flecha em meu coração.
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PROFESSOR

Quando abria a boca, um facho de luz vencia trevas; eram suas explicações.
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RESGUARDO

O amor armazenado num coração, se esconde na saia do gostar quando nota violência.
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VAGANDO...

Meu amor fez brotar relva aos pés da árvore, e ali depositei você.
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VELHICE 2

Pelos eriçavam e o peito batia ao menor toque de mãos; hoje os remédios é que o fazem.
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VERGONHA

De trás da montanha o sol, enamorado, espia a lua na passarela; mas, inibido, deixa-se mergulhar.
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VESTIBULAR


As voltas dos ponteiros dobraram-no sobre cadernos; hoje a alegria se desdobra nas horas de folga.

Fonte:
Renato Benvindo Frata. 308 Nanocontos. Paranavaí/PR: Autografia, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas LV


Nossa distância é tamanha,
mas não me curva o revés...
- És a imponente montanha,
eu sou um vale aos teus pés!...
Adelir Coelho Machado
São Gonçao/RJ, 1928 - 2003, Niterói/RJ
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Do passado, ouço a cantiga
que recorda, ternamente,
que há sempre uma rua antiga
nos velhos sonhos da gente...
Albertina Moreira Pedro
Rio de Janeiro/RJ
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Dorme o menor na calçada...
e a rua se estende ao léu,
feito uma rede amarrada
aos dois extremos do céu!
Antonio de Oliveira
São Paulo/SP
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Para mudar a visão
de quem não muda as retinas,
Deus, em sábia decisão,
encheu as ruas de esquinas!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora/MG
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Amanhece... a luz se espraia...
triste, vai-se a noite embora
e a lua branca desmaia
nos róseos lençóis da aurora.
Carolina Ramos
Santos/SP
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Minha rua era encantada...
Só na infância pude tê-las,
sob a luz, numa calçada
eu brincava com estrelas! ...
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ
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Preso à saudade infinita,
percebo, em minha inconstância,
que a montanha é mais bonita
quando se avista à distância...
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ
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Neném... Zé Gordo... Tuinha...
Zeca saci... (Que distância!)
- Cadê a turma que eu tinha
na rua da minha infância"?
Eduardo A. O. Toledo
Pouso Alegre/MG
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Fazer o bem ao irmão
é muito gratificante,
pois faz bem ao coração
torna o amor exuberante.
Ester Figueiredo
Barra do Piraí/RJ
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Camuflando a dor no olhar,
vou vivendo assim, sozinho,
como a fonte a deslizar
sobre as pedras do caminho!
Eugênia Maria Rodrigues
Rio Novo/MG
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À mesa e antes de dormir,
cada um faz sua prece,
enquanto há fogo a luzir,
a Deus a gente agradece!
Glória Marson

São José dos Campos/SP
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De minha mãe cozinhando
minha vozinha também…
fogão de lenha lembrando
tudo que tanto fez bem!
Henrique Eduardo
Ocara/CE

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Quando o silêncio é uma prece,
sob a lua, em noite calma,
no meu bairro até parece
que as velhas ruas, têm alma...
Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP
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Com o frescor das ideias
que a primavera lhe traz
encanta suas plateias
o trovador perspicaz.
Jerson Brito
Porto Velho/RO
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Sou criança e, de alma nua,
o sonho em minh'alma cresce...
E há ruas, na minha rua,
que só meu sonho conhece!
João Freire Filho
Rio de Janeiro/RJ, 1941 – 2012
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Em cada verso, a emoção...
em cada linha, o carinho...
Faço a trova… e é o coração
que me conduz no caminho.
José Feldman
Campo Mourão/PR
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Em ser pai ou em ser filho
não se vê qualquer valor,
se não houver, nisto, o brilho
da doação, por amor.
Julimar Vieira
Aracaju/SE
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Num ninho de passarinho,
num sorriso de criança
e num gesto de carinho,
dorme, tranquila, a esperança.
Juraci Siqueira
Belém/PA
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De inspiração sem medida
é o dia se abrindo em flor,
é o sol espalhando vida,
da vida brotando amor.
Lilia Souza
Curitiba/PR
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Entre moças animadas,
dançando em festas juninas,
também vejo entusiasmadas
muitas crianças pequeninas!
Lucília Trindade Decarli
Bandeirantes/PR
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Símbolo de amor ardente,
a rosa acompanha a vida…
Vermelho, um amor latente,
que aos namorados convida!
Lucy Almeida
Maceió/CE
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A vida é, para os meus passos,
uma rua de tropeços ...
Mas, se é rua de fracassos,
também é ... de recomeços! ...
Marcelo Zanconato Pinto
Juiz de Fora/MG

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Até hoje, sem canseira,
vou brincando o São João
com noiva casamenteira
vou dançando um bom modão.
Marcos Coelho
Dourados/MS
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Enquanto o sol se levanta
e espanta a névoa da mata,
a fonte branca se encanta
e canta... feito cascata!...
Marina Bruna
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP
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Ao vento, dançando , as rosas,
vão saudando o amanhecer;
secam-se as folhas chorosas
que o orvalho molhou sem ver!…
MIFORI
São José dos Campos/SP
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Eu não entendo, Senhor,
a diferença das ruas:
- Umas, repletas de amor,
outras, de amor, sempre nuas.
Milton Nunes Loureiro
Campos/RJ, 1923 – 2011, Niterói/RJ
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Do antigo fogão de lenha
hoje, só restam lembranças…
Embora saudade eu tenha,
vivo novas esperanças!
Neiva Fernandes
Campos dos Goytacazes/RJ
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O presente tem voltado,
e, embora não tenha ido,
já tem gosto de um passado,
que nem sequer foi vivido.
Nélio BessanT
Pindamonhangaba/SP
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Pétalas rubras… macias…
belas rosas tu me deste…
lembram doces poesias
que, num dia, me disseste…
Olga Ferreira
Pelotas/RS
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Pingos de sol – pequeninos
teus lindos olhos, criança,
são dois milagres divinos
iluminando a esperança...
P. de Petrus
São Paulo/SP, 1920-1999
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As lembranças são tão fartas,
da rua que eu não esqueço,
que até mesmo as minhas cartas
sabem de cor o endereço! ...
Rodolpho Abbud
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013
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Vai, meu verso, e luta em prol
de quem maneja a charrua,
lavrando de sol a sol
a terra que não é sua!
Sérgio Bernardo
Nova Friburgo/RJ
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Ah! o Correio Elegante,
corações de cartolina.
Primeiro amor, radiante,
ele, um menino, eu, menina.
Sílvia Svereda
Irati/PR
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Aquele seu bilhetinho
deixou-me toda ofegante…
Ainda guardo com carinho
o seu Correio Elegante!
Solange Colombara
São Paulo/SP
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É a rua da minha infância!
Revejo a casa... ouço o trem...
E cismo, em sonho e à distância,
que ela envelheceu... também!
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP
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Unindo dois corações
na fria noite de inverno,
são tristes minhas canções
por mais que eu seja fraterno
Ubiraci Conceição
Belém/PA
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Na infância a gente brincava,
eu de sol, você de lua ...
e o universo começava
e acabava em nossa rua!
Zaé Júnior
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP
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Belas rosas perfumadas
de várias tonalidades!…
Enfeitam  nossas jornadas
trazendo felicidades.
Zilnete Moraes
Campos dos Goytacazes/RJ

Nelson Rodrigues (A mulher das bofetadas)

Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:

— Olha, telefonaram pra ti.

— Homem ou mulher?

— Mulher.

— Deixou recado?

— Não. Disse que telefonava depois.

Arregaçando as mangas, bufou:

— OK! OK!

Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:

— Aristides!

Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou. A pessoa perguntava: — “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro: — Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.

Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:

— Sou Dorinha.

Aristides quase cai para trás, duro.

Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:

— Ah, como vai você?

— Bem. E você?

— Navegando.

E, então, Dorinha diz-lhe:

— Preciso muito falar contigo.

— Comigo? E quando?

— Já.

— Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?

Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.

Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:

— Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.

Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:

— Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.

O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:

— Você acha que eu posso fazer má idéia de ti? Oh, Dorinha!

Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:

— Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e... Está compreendendo?

Numa confusão total, balbuciou:

— Mais ou menos.

E ela:

— Para falar português claro: — estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!

Deslumbrado, exclama:

— Oh, Dorinha!

Ele pagou, trêmulo, a despesa.

Saem e, lá fora, Dorinha observa:

— Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?

Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo. Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”. Dorinha interrompe: — “Ótimo!”.

Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:

— Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.

Protesta, veemente:

— Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!

Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:

— Você não me beija?

Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:

— Eu não sabia que gostavas tanto de mim!

Dorinha vira-se, com divertida surpresa:

— Mas eu não gosto de ti.

Atônito, pergunta:

— E isso que aconteceu entre nós? Não conta?

A pequena está de pé:

— Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.

Ele insiste, desesperado:

— Quer dizer que não vamos continuar?

Responde:

— Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe: — eu telefono pra ti.

Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir. Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.

Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si: — “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: — era ela. Perguntava, alegremente: — Vamos lá, outra vez?

Foram. E, no apartamento, ela suspira:

— Imagina, deu-me outra bofetada.

Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:

— Os homens são muito burros!

— Por quê?

E Dorinha:

— Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?

Fonte:
Nelson Rodrigues. A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...; seleção de Ruy
Castro. SP: Cia das Letras, 1993.

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 26

 

Clarisse da Costa (Clarice com C: Perder e Ganhar)

Para Clarice o amor tinha eternas e imortais sensações, que só um coração bom conseguia sentir. Claro, coração inundado de trevas não teria como ver ou sentir qualquer coisa.

Ela mesmo já teve seu momento de trevas, achando que a vida tinha acabado para si, mas com o passar do tempo e o seu amadurecimento a sua percepção foi mudando. É bom mudar às vezes.

Ela já amou e perdeu inúmeras vezes nessa vida, e com essas perdas aprendeu a lidar com muitas coisas. Leva tempo, a dor é profunda, por anos pensou que não fosse se acostumar, mas os livros lhe ajudaram nesse processo tão difícil.

Tem um trecho do livro Jardins da Alma que diz: “- Nunca me perguntaram como é perder alguém que se ama, se me perguntassem eu teria a resposta. Perder alguém é como não ter mais para onde ir. A gente se sente perdido como se não tivesse mais um lar. Falta tudo, falta aquele abraço, carinho…”

Mas perder não é o fim, ao mesmo tempo que a gente perde a gente ganha. Passamos a aprender a saber lidar com a perda e a dor que fica. Depois ganhamos força para mudar o nosso destino.

Claro, a gente não se acostuma. Nem tem como, os laços de afetos são fortes, não morrem. Então perder é necessário às vezes. Até eu entender isso eu ficava me perguntando "por que eu". Obviamente, como tantas pessoas, eu achava que não merecia perder alguém. Mas aí eu virei o jogo, busquei mudanças na minha vida. Era hora de seguir em frente. A saudade fica, choramos às vezes, no entanto, precisamos seguir com a vida.

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. da Costa

Luiz Otávio (Jardim de Trovas) IV

* Na época não era obrigatório rimar o 1. com o 3. verso, somente foi normalizada esta obrigatoriedade com a fundação da União Brasileira de Trovadores, em 1966.

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A minha alma está. vazia,
alegre e gentil Princesa!
— Vem casar tua alegria
à minha grande tristeza!…
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As vidas têm — mesmo aquelas
mais felizes e serenas —
ondas de tédio tão grandes,
e alegrias tão pequenas!...
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Até a dor eu bendigo!
E declaro, francamente:
— Foi tanto afeto de amigo
que valeu ficar doente!
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Carregando só desgosto,
tristeza e desilusão,
o meu Natal tem o gosto
de uma noite de Paixão...
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Deves ter uma só alma,
em qualquer ocasião…
Sê sincero, embora sofras!
Traze puro o coração!
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É bem cruel esta dor
que me acabrunha., espezinha.
— saber que é meu teu amor,
mas, que nunca serás minha…
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E chegam depressa os anos!
E passam assim os dias:
— Milhares de desenganos
e bem poucas alegrias...
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... E há no mundo quem reclame
e que sinta a alma vazia,
tendo na vida quem o ame,
tendo o pão de cada dia!...
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... E os amigos fui perdendo...
Alguns, repentinamente...
Coração, triste, sofrendo,
levando a Vida pra frente...
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Eu, hoje, olhei-me no espelho,
e tive cruel desengano...
— Quantos anos fiquei velho,
no período de um só ano!
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Hoje, saudoso, relembro
nosso Passado tão doce...
Foi no Natal... em dezembro.
que o Papai Noel te trouxe…
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Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
— Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos...
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Não paras quase ao meu lado...
E em cada tua partida,
eu sinto que sou roubado
num pouco da minha vida…
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Olhando o mar, penso em Deus.
E também, não sei porque,
no céu pondo os olhos meus,
eu me lembro de você...
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Os dias dos namorados
são singelos e risonhos!
Os dedos entrelaçados
e entrelaçados os sonhos!...
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Para o triste, Deus concede
— na sua grande clemência —
o consolo da Saudade
— Nossa Senhora da Ausência…
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"Perder tempo" — contingência
que o Homem traz aturdido,
sem saber que na existência
o melhor tempo é o perdido...
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Primeiro amor… doce encanto.
— Feliz página da vida
que, raramente, entretanto,
pode um dia ser relida...
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Se aos filhos tu podes dar
tua vida como exemplo,
não terás somente um lar,
mas, sim, um sagrado templo!
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Saudade... Quando partiste,
nunca pensei que assim fosse!
— Não há tristeza mais triste,
nem há palavra mais doce!...
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Teríamos a alma em paz,
lembrando a todo momento,
que, às vezes, sofremos mais
na espera do sofrimento!...
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Tu ficaste bem zangada!
Não sei a razão, contudo...
Tudo, talvez, por um nada...
E às vezes, um nada é tudo...
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Um dia é que eu percebi
o que há muito aconteceu;
o maior bem, que eu perdi,
foi a fé que já morreu!
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Um mês assim tão risonho,
eu juro: nunca vivi!
— Uns dias cheios de sonho..
Uns sonhos cheios de ti...


Fonte:
Luiz Otávio. Cantigas dos sonhos perdidos. Coleção Trovas e Trovadores, organizada por Aparício Fernandes e Zalkind Piatigorky. RJ: Livraria Freitas Bastos, 1964.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Therezinha D. Brisolla (Trov’ Humor) 01

 

Raul Pompéia (Decotes de quinze anos)

Curiosa coincidência, pensava Otília, debruçando-se à janela com a carta que lhe escrevera a prima, curiosa coincidência, aquela carta e aquela situação!

Do outro lado da rua em frente, erguia-se em grande prédio de dois andares. Na última janela do segundo andar, à direita, lá estava ele, o impertinente vizinho, que não lhe tirava os olhos de cima, uns vivos olhos vorazes de meter medo.

Com ela, com a sisuda Otília aquele rapaz perdia o seu tempo.

Mas era interessante a coincidência... Ela e aquele sujeitinho ali... e o assunto da carta, da terrível carta!...

Sob a fuzilada de olhares que lhe chegavam da última janela à direita do 2o. andar fronteiro, a mocinha tornou a ler.

"... Nada conheces, na tua idade de inexperiência e de surpresas.

Sou do número das trintonas de Balzac, um escritor que ainda não leste, entendido nos mistérios da alma feminina, sou do número das educadas do amor, mulheres de curso completo na ciência do coração.

Mas já tive a tua idade, os deliciosos quatorze ou quinze anos de criança, quando o sexo nos revela apenas pela prevenção desconfiada do pudor, essa tolice adorável do sangue.

Amanhã, muito breve, saberás o que valem as flores de fogo que às vezes te abrasam o lindo rosto. Então na hora do amor, compreenderás os vagos temores, indefinidos sustos que te assaltam, como um rebate, de extraordinárias coisas. O coração fugir-te-á do peito, a internar-se como um herói de balada, pela floresta das fantasias. Sonharás o eleito dos teus afetos.

Instintivamente entregar-te-ás à impaciente urdidura de quantas armadilhas imaginares para a caçada do ideal.

A propósito, conto-te uma historieta dos meus quinze anos. Uma lição que te dou de experiência galante.

Eu morava na rua dos Arcos, naquela casa assobradada, de seis janelas, onde hoje habita a família da R . C.

Enclausurada na rede de solicitude, com que nos cercava, a mim e às manas, meu pai, avaro dos seus tesouros (tesouros éramos nós) arredada severamente do comércio da sociedade, ardia-me o desejo curioso de uma aventura, fora do círculo conhecido dos carinhos domésticos.

Diante da nossa casa morava um moço moreno, esbelto... circunstância propícia! Um belo companheiro para a minha escapula.

Ser amada por um rapaz como esse, eu não queria mais! Um só olhar de amor que ele me dirigisse, arrebatar-me-ia às sonhadas viagens azuis.

Dezoito anos parecia ter; sobre os lábios começava a acentuar-se-lhe o desenho volteado de um futuro par de bigodes; grandes olhos negros, exprimindo mansidão, pupilas que se moviam devagar, oleosamente no corte das pálpebras.

De manhã, cedo, aparecia à janela do sótão que lhe servia de quarto e, com um copo-d'água, regava amorosamente o vergel de madressilvas que diante dele se espraiavam pelo telhado até envolver as goteiras prolongadas sobre a rua em bocas de corneta.

Banhava as flores e as flores enviavam-me baforadas de doce perfume.

Mas só as madressilvas se apercebiam de mim. Cândido demais, ou demasiado altivo, o vizinho não me ligava importância.

Ora eu tinha veleidades de beleza; avalias o meu despeito.

Dizem que a melhor maneira de atrair o olhar é olhar. Eu olhava, olhava e perdia o esforço. Cheguei a supor que o inflexível moreno, já não era senhor do seu coração e caprichava em manter a lealdade dos seus compromissos.

Era para desesperar.

Felizmente, um dia, eu o surpreendi a observar-me.

Oh, júbilo! Mas era preciso cativar de uma vez aquele olhar que me podia fugir para sempre, esquivo como a ocasião. O demoninho dos quinze anos soprou-me um expediente. Devia ser aquele beija-flor que me passou pelo rosto zunindo.

O pudor é uma grande força.

Esse tesouro de graça saibam-no despender as mulheres.

Loucas as que distribuem, cegamente, o seu patrimônio de rosas. Tolas as que o soterram no segredo desnaturado da inteira reserva, revelando-o quando muito às frias confidências de cristal do espelho.

Toda esta teoria endiabrada do decote ocorreu-me num segundo.

Na tua idade, eu adivinhava os homens!

Resolvi afrouxar o laço de vexame com que me estrangulava, nos vestidos afogados, prescritos por minha mãe.

Fingi que desdenhava o olhar do vizinho, voltando o rosto para outro lado. E atrevidamente soltei um... dois... três... botões da gola do meu princesa!

Ora, minha bela Otília, dai a pouco, eu guardava no seio submisso, rendido o olhar rebelde do meu moreno; acolhia-o no tépido decote dos meus quinze anos, como um pombo no vinho, friorento, trêmulo.

Assim, no dia seguinte, e no outro e no outro...

E começaram a secar de ciúmes as madressilvas..."

Neste ponto, sem saber como, viu Otília que um... dois... três botões do paletó branco, tal qual na história da prima, se lhe haviam desprendido.

Que horror!

E, sob a fuzilada de olhares da última janela do 2o. andar fronteiro, as abas de fustão, como grandes pétalas, abertas num desabrochar audacioso de magnólia, entremostravam colorações de carne virgem e fugitivas sombras, rendilhadas, ao fundo, por encantadora desordem de crivos claríssimos de camisa.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

Filemon Martins (Poemas Escolhidos) XVII

GALOPANDO...

Vou galopando em busca do meu sonho
que retrata o que penso desta lida.
No compasso da Fé, hoje componho
e me preparo para a despedida...

Por onde vou, a agradecer me ponho,
que a gratidão é flor sempre querida
e quem a tem se torna tão risonho
e conquista o poder que rege a vida.

Sou valente e não temo que o perigo
venha me perturbar no meu abrigo,
porque me considero um vencedor.

Pois encontrei, feliz, grande tesouro
com mais valor que o cobiçado ouro,
em quilates de Luz, o nosso Amor!
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INSPIRAÇÃO

Busquei a inspiração a duras penas
para escrever, com fé, este soneto,
e quero que as palavras mais amenas
sejam a Paz e o Amor, como dueto.

Que vou dizer das provações terrenas,
se o ninho é construído com graveto?
- Será melhor curar dores pequenas
e confirmar aquilo que prometo.

Mas teimo em encontrar a inspiração
que se escondeu e foge com razão,
deixando amargurado este poeta...

Clamo de novo e então ela aparece
trazendo junto ao peito farta messe
e agora, sim, a noite está completa!
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IPUPIARA

Feliz é quem trilhou estes caminhos
que levam à vibrante Ipupiara,
ouvindo o som de belos passarinhos
numa paisagem deslumbrante e rara.

Ibipetum, Pintada e outros vizinhos
Sodrelândia, Vanique e Caiçara,
Chiquita, Bela Sombra com seus ninhos,
Brejões, Coxim que muito me ensinara.

Jamais vou esquecer... O Olho d'Aguinha,
Veríssimo, Barreiro e até Matinha,
Deus me Livre, Umbaúba e Boa Vista.

Felicidade, então, é ter nascido
e neste berço um dia ter vivido
com gente hospitaleira e idealista!
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JUDAS MODERNO

Tu que habitas palácios decantados,
amante da aparência e do dinheiro.
Os teus castelos ricos, chumaçados,
nada serão no dia... derradeiro.

Tens riquezas e carros importados,
- contas bancárias pelo mundo inteiro,
- trabalhadores pobres, explorados,
tudo para chegares em primeiro...

Esqueceste do exemplo verdadeiro,
quando morreu o pobre carpinteiro,
pregado ao lenho de uma rude cruz.

Queres poder, és Judas do presente
vendendo o que aparece pela frente,
traindo, uma vez mais. Cristo Jesus!
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O LAVRADOR

Sou lavrador do campo e planto certo,
mantenho a crença de quem é cristão:
- a minha vida é como um livro aberto
plantando Paz, Amor, Compreensão...

Mas, se o terreno é seco qual deserto
nada vale investir na plantação,
que a semente caindo a descoberto
se perde e não germina nenhum grão.

É preciso primeiro arar a terra,
tirando a praga que produz a guerra,
que o mundo terá nova diretriz.

Quando o respeito se fizer presente,
nosso Planeta será mais decente
e o Ser Humano será mais feliz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Sonetos & Trovas. RJ: CBJE, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Jaqueline Machado (As visões de um certo Júlio Verne)

“Tudo que um homem pode imaginar, outros homens poderão realizar.”

Essa frase de Júlio Verne desperta o meu imaginário, e me faz viajar tanto ao passado quanto ao futuro em busca de loucas aventuras. Tão loucas, que chegam a lapidar-se em uma lucidez rara e, portanto, pouco conhecida.
 
Esse pensamento Verneano me faz viver as reflexões desse homem que possuía uma mente genial, capaz de prever melhor do que se bruxo fosse, a face do amanhã.
 
Certa vez, em profundo estado de meditação, fui ao passado e adentrei a cabeça prodigiosa de Verne. Dentro dela, enxerguei um ancião de cabelos compridos, barba longa e acinzentada. Ele conversava com os neurônios daquele que, em pouco tempo ficaria, através de suas obras, conhecido como o pai da ficção científica.

O velho lhe contava sobre as engenhosas invenções humanas, que logo se tornariam reais no mundo:  o helicóptero, o arranha-céus, os tanques de guerra, o submarino, a televisão, o cinema falado etc...
 
Resta–nos saber se o sábio que visitava a cabeça do escritor era uma espécie de “guia espiritual” à parte, ou se era um duplo de sua personalidade. Mas isso pouco importa. O importante foi alojar-me em sua mente nos dias em que ele resolveu descrever em seus livros de forma mágica, tudo o que estava por vir.
 
Encantei-me por Júlio Verne. Enamorei-me por sua capacidade de prever o futuro e pelo seu estilo infanto juvenil de criar histórias capazes de despertar as utopias mais secretas do ser humano. Afinal, nem só de previsões viviam seus escritos. Mas também de fábulas lúdicas e inocentes ...
 
Em a Viagem ao Centro da Terra, por exemplo, o professor Otto Lidenbrock é um senhor de idade avançada, mas cheio de sonhos e especulações que decide partir em viagem para confirmar a teoria de que a Terra tem um centro fecundo. Aliando-se a Axel, seu sobrinho e ajudante, parte em expedição. O ponto de partida é um vulcão inativo numa ilha da Islândia. Chegando lá eles encontram um guia chamado Hans, um homem frio e corajoso.
 
No decorrer da inusitada e excêntrica caminhada, os aventureiros ficam sem água, se perdem, se acham, dão de cara com monstros, mastodontes, homens gigantes... Depois da comprovação de que a Terra possui sim, um cetro mágico, eles retornam através da chaminé de um vulcão desativado localizada no sul da Itália.
 
Moral da história: Quem ousa acreditar com pureza, descobre. Quem descobre, enxerga. Quem enxerga, vive. E quem vive, sabe mais. Muito mais...

Portanto, acredite em algo que todos consideram impossível... 
 

Fonte:
Texto enviado pela autora.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Nélio Bessant (Caderno de Trovas) 2

 

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 11

A distância, é infinda, intensa!
Por mais que o tempo me iluda,
muda essa distância imensa,
mas a saudade, não muda!
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A honradez não se enxovalha,
nem se faz dela, adereço;
mas a honradez de um canalha
se compra por qualquer preço!
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Daquelas noites antigas,
no altar da velho abadia,
vagueiam sombras amigas
nas sombras da nostalgia!
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Dos meus bens que eu tive outrora,
de todos o mais amado,
é o pião que, cochila e chora,
com saudade do passado!
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Enquanto as filhas cantando,
seguem meus passos discretos,
vão meus cabelos nevando
de exemplos bons aos meus netos!
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É tarde!… Os monges cochilam
com o breviário na mão;
e, em volta deles, desfilam
almas, sonho e solidão!
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Há uma inquieta sensação;
um silêncio... E, de repente...
Uma estranha solidão,
desfaz o sonho da gente!
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Há um contraste, na verdade,
em quem vive de ilusão
e, troca a luz da humildade
na treva da ostentação!
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Lágrima, gota vertida
do olhar triste da emoção;
lágrima, essência da vida,
gota d'água do perdão!
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Lembro das noites antigas,
mesmo apesar da distância,
de velhas sombras amigas
dos tempos de minha infância!
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Logo assim que o sol se põe,
minha alma, aflita e dolente,
um lindo verso compõe
nos varais do sol poente!
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Na aurora, o que me fascina,
e, à ventura me conduz,
é ver a luz peregrina
banhando a aurora de luz!
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Não reclames das pedradas
que te dão pelos caminhos.
Vê, que às vezes, de mãos dadas,
há aqueles que vão sozinhos!
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No céu, brilha seminua;
no mar, minha alma vagueia,
enquanto os dedos da lua
escrevem versos na areia!
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Nós dois, graças ao Senhor,
até no olhar, se traduz,
que eu peço esmolas de amor,
e tu, esmolas de luz!
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O velho sino enlouquece,
toda tarde, na abadia;
e, no ensaio de uma prece,
desperta a melancolia!
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Por mais que a angústia persista,
crê na força da oração!...
Não há mágoa que resista
ao silêncio do perdão!
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Quando a natureza tinha
a fauna e a flora completas,
o orvalho da noite vinha
beijar os pés dos poetas!
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Sábia lição, tive um dia,
de um sabiá inocente,
que por cantar, não sabia
que era poeta como a gente!
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Se é ilusão, pouco me importa;
mas ouço no pensamento,
os passos dela, na porta,
no sopro da voz do vento!
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Senhor!... Não sei se mereço,
seguir teus passos, Senhor!
Mas sigo, e em cada tropeço,
tropeço nos pés do amor!
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Se o infortúnio nos condena,
o perdão, aperfeiçoa;
e, é Deus quem perdoa a pena
da pena de quem perdoa!
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Só cinzas e plantas mortas!…
Lenhador, tu que destróis,
não percebes quando cortas
que cortas a todos nós.?!…
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Tanto plano desejado,
ilusões, sonhos, canseira.
Pra ver tudo sepultado
nas cinzas da quarta-feira!
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Tuas cãs loiras, sedosas,
reclamam da sorte ingrata;
serão bem mais preciosas
quando pintadas de prata!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Adega de Versos 88: Carolina Ramos

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLV

NADA. PASSARAM NUVENS E EU FIQUEI

 
Nada.  Passaram nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei o meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?
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NADA QUE SOU ME INTERESSA
 
Nada que sou me interessa.
Se existe em meu coração
Qualquer que tem pressa
Terá pressa em vão.

Nada que sou me pertence.
Se existo em que me conheço
Qualquer coisa que me vence
Depressa a esqueço.

Nada que sou eu serei.
Sonho, e só existe em meu ser,
Um sonho do que terei.
Só que o não hei de ter.
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NA MARGEM VERDE DA ESTRADA
 
Na margem verde da estrada
Os malmequeres são meus.
Já trago a alma cansada -
Não é de si: é de Deus.

Se Deus me quisesse dá-la
Havia de achar maneira...
A estrada de cá da vala
Tem malmequeres à beira.

Se os quer, colho-os, e tenho
Cuidado com os partir.
Cada um que vejo e apanho
Dá um estalinho ao sair.

São malmequeres aos molhos,
Iguaizinhos para ver.
E nem põe neles os olhos,
Dá a mão pra os receber.

Não é esmola que envergonhe,
Nem coisa dada sem mais,
É pra que a menina os ponha
Onde o peito faz sinais.

Tirei-os do campo ao lado
Para a menina os trazer...
E nem me mostra o agrado
De um olhar para me ver...

É assim a minha sina.
Tirei-os de onde iam bem,
Só para os dar à menina -
E agradeceu-me a ninguém.
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NA NOITE QUE ME DESCONHECE
 
Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.

Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheiamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.

Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite. embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres?
Tudo enfada Antes só sintas, coração.
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NÃO DIGAS NADA!
 
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender -  
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
 
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
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NÃO FIZ NADA, BEM SEI, NEM O FAREI
 
Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.

Vivemos ao encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.

A. A. de Assis (O trem do amor)

A cerimônia estava marcada para as seis da manhã. Isso mesmo: ao nascer do dia. Porque o maria-fumaça passava pela estação de Cambuci-RJ às sete e meia.

Noivos e convidados já estavam de pé antes das cinco; a noiva por certo nem dormira. Seis horas em ponto, escutava-se a marcha nupcial. Qualquer descuido com o relógio significaria o risco de perder o trem.

Casamento bonito, solene, com missa e cantos em caprichado latim, comovente sermão do padre Othon. Terminou às sete, igualmente em ponto. Em meia hora deveríamos, após trocar de roupa e cortar o bolo, estar prontos para o embarque na estação.

O normal era o trem atrasar, mas justamente naquele sábado quebrou a regra: chegou na horinha... sem que lá estivéssemos. O recurso foi os convidados plantarem-se em cima da linha, na frente da locomotiva, impedindo a partida. Sorte que o maquinista estava de bom humor e acabou aderindo à brincadeira, aproveitando para comer a fatia de bolo que alguém se lembrou de oferecer-lhe. Entre podes e não podes, gritos, apitos e assobios, espera-um-pouco e espera-um-pouco-mais, uns quinze minutos se passaram... e o trem ali parado.

Quinze ou vinte minutos, sei lá. Naquele alvoroço, o embarque foi um tumulto. Além de nós, que viajaríamos para o Rio de Janeiro, iriam juntos até São Fidélis e Campos dezenas de convidados. Gente cantando, gente tocando violão, gente gritando “é pique, é pique, é pique...”, gente jogando arroz... O recolhedor de passagens quase endoidou naquela confusão.

Após o desembarque dos barulhentos convidados, Lucilla e eu, enfim sós, poderíamos prosseguir tranquilos nossa lua de mel sobre trilhos, o trem rolando pachorrento a 40 ou 50 quilômetros por hora, soltando fumaça, apitando em cada curva, batendo sinos...

Porém o “enfim sós” pouco durou. Por obra do atraso forçado na estação das núpcias, ficamos famosos e superparicados. Os passageiros todos se fizeram figurantes da história, batendo palmas, gritando vivas, se acercando para abraçar os dois pombinhos. O maquinista mandou perguntar se estávamos bem. O vendedor de jornais ofereceu os matutinos de graça: “Pra vocês escolherem um bom programa na capital”. O baleiro trouxe bombons: “Não precisam pagar, é cortesia da casa”.

Passamos dois dias no Rio, um dia em Aparecida, dois dias em São Paulo, e dali para Maringá. O aeroporto era ainda de chão batido. A Avenida Brasil, por onde passou o táxi, não tinha asfalto. Um poeirão de dar medo. Lucilla não comentou nada, mas até hoje, sessenta e quatro anos depois, fico imaginando o que ela pensou naquele instante. No mínimo sentiu uma vontade enorme de pegar o avião de volta.

Mas quando a gente é jovem tudo é festa. Em pouco tempo ela se adaptou ao jeito maringaense de viver. Graças a Deus.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 28-7-2022)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.