domingo, 3 de março de 2024

Carolina Ramos (Ming)

Devagarinho… chego ao último cãozinho que encantou a existência de quem muitas vezes o abraçava, a enxugar naquele pelo macio algumas lágrimas, em fuga aos inevitáveis desacertos da vida, calados por conveniência.

Testemunhos espontâneos, como este, comprovam que, os animaizinhos que acompanham nossos passos, vida afora, fazem parte do maravilhoso acervo que não apenas consola, mas também enfeita o dia a dia de quantos, por saberem amá-los, conseguem o privilégio de por eles também muito serem amados.

O último "bichinho" de estimação desta narrativa, é um cãozinho pequinês. Chamava-se Ming, graças ao nariz arrebitado, que nada tinha a ver com a personagem de Lobato, mas fazia lembrar distantes terras chinesas e suas dinastias milenares, de acordo com a origem da sua raça.

Ming foi comprado em Riacho Grande, cidadezinha à beira da represa Billings, entre São Paulo e Santos. Era o menor cãozinho da ninhada. Por isso mesmo, o escolhido, passando a ser meu companheiro inseparável, a partir daquela data!

Em 1965, a ciática apanhou-me de jeito agudíssimo. Engessada de meio corpo, fiquei presa ao leito por três dias, entre ais e uis de intensidade alarmante. Foi então que o meu querido Ming perdeu a noção de tudo, inclusive do próprio tamanho!

Ao ouvir-me gemer, postava-se de guarda no corredor, à entrada do meu quarto, latindo desesperadamente para impedir que alguém se aproximasse de mim.

Sua veemência sempre foi maior que o porte! Mais tarde, o mesmo aconteceria, quando trocada a casa pelo apartamento fronteiro ao mar.

Eu descia com ele para passear a fim de que não sentisse falta do amplo quintal a que estava acostumado. E então as coisas mais se complicavam!

Era só ver pelas imediações um cão qualquer, geralmente três ou quatro vezes maior do que ele, meu minúsculo defensor, o Ming, agigantava-se, atirando-se ao pretenso adversário com ímpeto de alarmar!

Naqueles instantes, que me apavoravam, eu procurava salvar aquela desvairada "formiguinha" da sanha das feras que encontrava pelo caminho e contra as quais se atirava desafiante, como se nunca tivesse visto a própria imagem num espelho!

Temendo vê-lo estraçalhado por algum "pitbul" adversário, eu o erguia, pelo peitoral, até onde meu braço podia alcançar, enquanto aquela "coisinha" minúscula e esperneante, lembrava pequena aranha pendente de um fio, a esbravejar e a desafiar canzarrões que simplesmente o ignoravam, quando poderiam calar aquele valente escarcéu com uma só dentada.

Ming... Que saudade desse cãozinho querido - único modelo que posou ao vivo para uma de minhas telas. E como era difícil conseguir que aquele irrequieto cachorrinho permanecesse imóvel, por instantes, em cima de uma cadeira, para que meus pincéis, pouco destros, pudessem captar o brilho dos seus olhos, o tom da sua pelagem cor de mel e a rebeldia daquele narizinho arrebitado que o destacava dentre os demais cãezinhos já citados.

Apesar dos percalços, o retrato conseguiu ficar bastante fiel, merecedor de elogios da consagrada pintora Guiomar Fagundes, que, ao ver a tela, enviou-me um recado, muito especial, afirmando que me queria para sua aluna.

Embora, naquela ocasião, isto fosse absolutamente impossível, segui à risca o sábio conselho que ela graciosamente acrescentou: - "dê uma leve pincelada branca na ponto do nariz do seu cãozinho" - o que, fielmente executado, acrescentou um brilho úmido e muito especial àquele narizinho petulante.

E aquela pincelada especial, que acrescentou vida ao retrato do meu Ming, sempre me reportará à grande Guiomar Fagundes e, também, à preciosa oportunidade por mim perdida, de não poder aceitar, momentaneamente, aquele seu espontâneo convite, bastante significativo quanto honroso e que, lamentavelmente, não teve ocasião de ser repetido, já que a mestra partiu, em definitivo, não muito depois.

A foto da tela que retrata o Ming enfeita a capa deste livro. E a pincelada sugerida pela grande Guiomar Fagundes, lá está, valorizando-a.

Sigo a discorrer sobre o meu pequenino-grande amigo, lembrando o enorme susto que um dia ele meu deu! Morávamos ainda na Ponta da Praia, quando, num fim de tarde, eu abrira o portão com cuidado, com o Ming trançando meus pés, como sempre. E foi quando, de repente, aquele cãozinho indisciplinado viu um gato qualquer saltar no passeio oposto. Sem perda de minuto, Ming agilizou suas perninhas curtas saindo-lhe ao encalço e atravessando intempestivamente a rua.

Tudo aconteceu rápido demais! Gritei... e, desesperadamente, cobri os olhos com as mãos, ao vê-lo sumir sob as rodas de um caminhão, que sequer tivera ocasião de ter o freio acionado.

Desalentado, o motorista deteve o veículo um pouco adiante, vindo ao meu encontro gaguejante, a desfazer-se em desculpas. - "Me perdoe… pelo amor de Deus! Eu nem cheguei a ver o seu cachorrinho... não sei como isto foi acontecer! Me perdoe... Me perdoe, por favor!" - o pobre homem estava arrasado!

A esse tempo, entretanto, eu já sorria... apontando-lhe o Ming, que atravessara a rua entre as rodas do caminhão e, apesar do susto, lá estava, no passeio oposto, a desacatar o gato que sumira ressabiado por detrás de um muro! Ming fazia o seu escarcéu costumeiro, sem a mínima noção do susto que nos pregara. E nem, tampouco, do tremendo risco que enfrentara! São Francisco, naquele instante, estaria tão feliz, quanto eu, com certeza! E quanto o pobre caminhoneiro, também!

E uma reflexão impõe-se, fazendo saltar a pergunta, ainda que tardia:

- Será que em tempos atuais, tão diversos quanto adversos, aquela cena seria a mesma? Será que alguém, certo de ter atropelado um animalzinho de estimação em frente à sua dona, e, tendo possibilidade de escapar, acelerando o carro e fugindo à responsabilidade, teria, em vez disso, sensibilidade e coragem suficientes para estacionar seu caminhão e enfrentar, cara a cara, o desespero de quem, com os próprios olhos, vira o seu querido cãozinho desaparecer sob as rodas do veículo por ele dirigido?!

Não seria bem mais fácil calcar o acelerador, deixando tudo para trás, sem mais problemas?!

Pois é... admiravelmente, não foi isso o que aquele homem simples fez! E, se, displicentemente, agora o chamei de simples, que se leia nobre, sem favor algum. Que Deus tenha recompensado a sensibilidade daquele motorista - é o que pede minha tardia admiração.

E  o tempo passou... Como sempre, depressa demais!

Os filhos cresceram. O Ming, não... Mas, isto não quer dizer que tenha sido poupado pelo implacável peso da idade. Mudamos para o bairro do Boqueirão, Tínhamos, agora, à frente, aquele mar de Vicente de Carvalho, nem sempre verde como cantado pelo poeta, mas sempre encantadoramente lindo!

Mas... O que não é lindo vem agora... a constatar que a vida por vezes é carrasca. E até mesmo bastante cruel.

Apesar de querer muitíssimo bem àquele cãozinho, que tanta ternura trouxe a minha vida, coube, justamente a mim, ter de aceitar, tão só por piedade e sem outra qualquer alternativa, os argumentos do veterinário que garantiu, compungido, que nada mais seria possível fazer para aliviar o sofrimento daquele cãozinho que ganira de dor, por uma noite inteira, sob os olhos atônitos da família que o tentava confortar.

Já bastante velhinho e quase que totalmente cego, nosso tão querido Ming fraturara o maxilar inferior, o que, dolorosamente, o impedia de se alimentar. E sofria demasiado! - Suplício que aquele valente e querido cãozinho estava longe de merecer.

Nada mais poderia ser feito! - A sentença, implacável: - Ming, aquele heroico e fiel companheiro de longa data, precisava ser sacrificado.

Sem mais me alongar na descrição que ainda hoje me faz sofrer, digo que, embora de coração sangrando, eu mesma tive que dar o sim para que tudo fosse consumado.

Drama acontecido no tristíssimo janeiro de 1977 – podendo ser somado ainda como angústia menor, às demais acumuladas nas proximidades daquela mesma data. Mas... esta é uma outra história que não cabe aqui.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

Projeto Poetizar o Mundo (Poemas Premiados em Fevereiro de 2024)


Seleção: Décio Romano
Curadoria: Isabel Furini

1. Lugar
José Feldman
Campo Mourão/PR

A VELHA CHATA

Essa é uma história ridícula,
com certeza é puro papo,
que vivia em uma edícula
uma velha... que era um trapo.

Sempre estava resmungando,
sobre todos, sobre tudo,
e sua vida, estagnando
em seu modo carrancudo.

Passam horas, passam dias,
se esvaindo as alegrias 
passa o tempo sem cessar.

Só esta velha não passa,
chata... parece pirraça,
a todos a azucrinar.
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2. Lugar
Atílio Andrade
Curitiba/PR

RUELA

Uma janela
Olhando a lua
Desenha meu mundo
Eterna corrente, bem no fundo
Tentando fugir para a rua
Preso numa (ar) ruela.
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3. Lugar
Solange Colombara
São Paulo/SP

CHÁ DA TARDE

Pequenas emoções são
transmitidas em sorrisos,
são delicadas meiguices

ou apenas algumas velhas mesmices.
Na nostálgica revoada em lembranças
o tempo testemunha vagas peraltices.
Nos sentimentos de lágrimas poéticas
a saudade transmuta-se em crendices.
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4. Lugar
Sonia Cardoso
Curitiba/PR

MULHER IMÓVEL

A mulher imóvel 
Não assusta o pássaro 
Aquela que se move 
Sim. 

Não quero assusta-lo 
Mas mover-me 
E voar como ele.
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5. Lugar 
Antonio Castilho
Avaré/SP

A CHUVA 

Bendita a chuva que cai
Para molhar a poeira e a poluição
Para melhor a gente respirar

Bendita a chuva que cai
Para evitar as secas
Salvar as lavouras
Para termos arroz e feijão
Para se alimentar

Bendita a chuva que cai
Para salvar as matas
Para os bichos
Não exterminar
Bendita a chuva que cai
Para os rios não secarem
Para termos água
Para beber e o banho tomar

Bendita a chuva que cai
Que é para nos refrescar
E o planeta não acabar

Bendita chuva que cai
Pode até demorar
Mas nunca deixe de aparecer
Pois sem você
Todos nós vamos deixar de viver

Bendita a chuva que cai
Bendita a chuva que cai
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

6. Lugar
Gisela Maria Bester
Curitiba/PR

Por horas imóvel
junto à porta de casa
um gafanhoto!
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7. Lugar
Daniel Maurício
Curitiba/PR

Da alma quebrada
Escapa uma essência
Que chega até Deus.

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8. Lugar
Célia Evaristo
Alverca/Lisboa/Portugal

DEIXEM-ME CHORAR

Deixem-me chorar.
Não me limpem as lágrimas, por favor.
Deixem-me desabafar
cada vestígio que ainda sinto de dor.

A mágoa magoa-me a alma,
fere-me sem compaixão.
E quem me magoou a alma
não merece qualquer perdão.

Deixem-me chorar.
Lágrimas doces, que brotam do coração.
Lágrimas salgadas, arrancadas do mar.
Lágrimas perdidas numa oração.

E depois de tanto chorar
as lágrimas secarão nos meus olhos,
ficarei apenas a soluçar.
A fonte que tenho em mim
lá acabará por secar.
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9. Lugar
Daniel Rodas
Campina Grande/PB

RETRATO DE UMA TEMPESTADE

azuis
os ganchos agarram a cerca
arrastando a luz
os cactos

baila o turbilhão de água 
o céu que enxágua a vastidão 
do pote

o tanque aberto
as crianças na bica

cinco gatos aglomerados no
alpendre

fios elétricos correndo na 
ponte 

a avó 
rezando o terço
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10. Lugar 
Daniel Freitas
Belo Horizonte/MG

SINTO MUITO PELA MINHA VIDA LOUCA

Sinto muito pela minha vida louca
Minha loucura solta
É onde me elevo
Se quiser te levo

Uma vida leve
É o que você quer
Mas te ofereço 
Poesia intensa para você ler 

E se quiser voar
Te empresto minhas asas
Cigarro em brasa 
Sinta-se em casa

A visão rasa
E rotulada
Discriminada
Bem vinda 

Ao meu mundo 
Minha amada

Fonte: Grupo do Facebook “Poetas amigos de Isabel Furini”.

Contos das Mil e Uma Noites (Joias de Goha)

Conta-se, ó afortunado rei, nos antigos anais dos sábios, que vivia certa vez na cidade do Cairo um camarada de aparência idiótica que ocultava, sob uma bufonaria extravagante, uma fonte inesgotável de sagacidade e saber. Era o mais divertido, o mais instruído e o mais irônico homem de seu tempo. Seu nome era Goha. Não exercia profissão alguma, embora substituísse vez ou outra o pregador nas mesquitas. 

Certa vez, perguntou a um grupo de homens: “Ó muçulmanos, sabeis por que Alá não deu asas ao camelo e ao elefante?” 

Responderam: “Nós não sabemos. Mas tu, para quem nenhuma ciência tem segredos, podes com certeza esclarecer-nos.” 

Explicou Goha: “Se o camelo e o elefante tivessem asas pousariam nas flores em vossos jardins e, sendo muito pesados, esmagariam as flores.” 

Outra vez, um amigo bateu na porta de Goha, dizendo: “Em nome da amizade, ó Goha, empresta-me teu burro, pois preciso fazer uma viagem urgente.” 

Goha, que não confiava no homem, respondeu: “Atenderia com prazer a teu pedido. Infelizmente, já vendi meu asno.” 

Neste momento, o asno pôs-se a zurrar e zurrar. 

O amigo gritou: “Mas teu asno está aqui!” 

Numa voz que simulava profunda ofensa, Goha replicou: “Se confias na palavra de um asno mais do que na de um sábio, és um tolo e não quero mais ver tua cara.” 

Outra vez, Goha estava viajando com uma caravana que dispunha de poucos mantimentos. Na hora da refeição, sentaram-se para comer e dividiram igualmente o que havia. Todos sabiam que Goha tinha um apetite de camelo. Naquele dia, porém, retraiu-se discretamente. Seus companheiros insistiram para que apanhasse o rolo de pão e o ovo cozido que eram seu quinhão. 

Respondeu: “Não! Não! Pelo nome de Alá, comei e ficai felizes! Mas se fizerdes mesmo questão de que coma algo, que cada um de vós me dê a metade de seu rolo de pão e a metade de seu ovo, pois meu estômago não pode engoli-los inteiros.”

Goha foi certa vez ao açougue e disse ao dono: “Estou oferecendo uma festa hoje em casa. Dá-me o melhor pedaço de um cordeiro gordo!” 

O açougueiro deu-lhe um lombo de carneiro de peso considerável. Goha levou-o para casa e pediu à mulher que preparasse quebabs (espeto de carne) temperados com cebola. E foi dar uma volta no mercado. Assim que saiu, a mulher preparou a carne às pressas e comeu-a toda com o irmão. Quando Goha voltou, esfomeado, com o apetite aguçado pela expectativa, a mulher serviu-lhe um pão mofado e um pedaço de queijo grego. 

– Onde estão os quebabs? perguntou. 

- O gato comeu-os todos quando saí por um momento. 

Goha levantou-se sem dizer uma palavra, apanhou o gato e pesou-o na balança da família. Não pesava nem a metade da carne comprada. Goha virou-se para a mulher com raiva: “Sórdida filha de mil cachorros, se este peso é da carne, cadê o gato? E se é do gato, cadê a carne?” 

Certa noite, os amigos de Goha disseram-lhe: “Ó Goha, como sabes tudo sobre a astronomia, dize-nos o que acontece à lua após o último quarto.” 

- Não vos ensinaram nada na escola? ironizou Goha. Após o último quarto, Alá tritura a lua para fazer estrelas. 

Um dia, o terrível conquistador Timur Lenk, que não era somente zarolho e coxo, mas também extremamente feio, estava conversando com Goha enquanto o barbeiro real cortava-lhe o cabelo. Quando o homem passou-lhe o espelho, olhou-se a si mesmo e pôs-se a chorar. Goha pôs-se a chorar também. Quando ambos haviam chorado e suspirado durante três horas, Timur-Lenk se acalmou, mas Goha prosseguiu nas suas lamentações. 

- Qual é o problema? perguntou o conquistador, surpreso. Chorei porque vi minha feiura no espelho, enquanto tu, que não tens motivos para sentir-te infeliz, continuas a verter lágrimas. 

- Só posso responder com franqueza e respeito, ó soberano do mundo. Se choraste três horas por uma simples olhada à tua feiura no espelho, será surpreendente que teu escravo chore horas ilimitadas por ter que olhar para essa mesma feiura ao longo dos dias. 

Em vez de ficar enraivecido, Timur-Lenk riu até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. 

Um dia, o califa perguntou a Goha:

“Ó Goha, sabes quantos doidos há em Bagdá?” 

– A relação seria um pouco longa, meu senhor, respondeu. 

- Assim mesmo, peço-te prepará-la, e vê que seja completa. 

Goha deu uma risada e disse: “Como detesto qualquer trabalho pesado, farei uma lista das pessoas de bom senso que vivem em Bagdá. Os que não figurarem nela são os doidos.” 

O mestre dos provérbios disse: “Quando alguém é um cão, filho de um cão, neto de um cão, e toda a sua linhagem é formada de cães, como poderá deixar de ser um cão e de agir como cão?” Disse também: “Felizes os cegos e os surdos porque não se expõem às calamidades que resultam para nós do que entra pelos olhos e os ouvidos.” 

Dizem a Goha: “O tempo passa.” E ele não compreende, pois nada vê passar. 

Dizem a Goha: “Nossa hora chegará.” E ele, examinando o céu azul, o acha vazio e nada vê chegar. 

Os homens com quem dialoga mostram-lhe um relógio: “Vê. Cada vez que esta pequena agulha faz a volta do quadrante, um dia se vai.” 

Goha pergunta: “Será este o tempo? E em que m interessa? A agulha gira sem tocar em mim.” 

Dizem-lhe: “A cada volta da agulha, a cada palavra que pronuncias, o tempo passa.” 

– E se eu ficar calado? 

- O tempo passa da mesma forma. 

- Para os outros, não para mim. 

- Para ti como para os outros. 

- E se eu for dormir no deserto? 

- O tempo passará assim mesmo, pois em teu peito teu coração continuará a bater. 

- E se fizer parar meu coração? 

- Farás parar o tempo. 

Uma turma de jovens maliciosos, querendo brincar, convidam Goha a uma festa. Ele aceita e fica surpreendido com a magnífica recepção que lhe reservam. Mas sua surpresa dura pouco. Incapaz de discernir a ironia nos discursos enfáticos que lhe dirigem, breve sente-se igual a eles. Uaddah As-Salem, Makram Kendi e Abu-Zeid apressam-se em volta dele e enchem-no de guloseimas e de adulações. Goha sente um bem estar celestial. Responde espontaneamente a todas as perguntas e ri com os outros, sem perceber que se riem dele. 

- Suponhamos, diz Uaddah, que uma beduína, montada num camelo, seja detida no seu caminho por uma ponte, pois a sua cabeça ultrapassa a altura da ponte. Que deve ela fazer? 

- Demolir a ponte, responde gravemente Makram Kendi. 

- Cortar as pernas do camelo, retruca AbuZeid no mesmo tom sério. 

- Por quê? reclama Goha. Basta-lhe abaixar a cabeça.

Ao ouvir essas palavras, os moços apoderam-se de Goha, beijam-lhe as faces, abraçam-no com força e gritam: “Ó flor da inteligência! Tu, o mais formoso entre nós!” 

Goha aperta as mãos que se lhe estendem e, a garganta sufocada pela emoção, repete:

- Basta-lhe abaixar a cabeça.

- Vem cá, Mohamed, grita Uaddah a um servente. O filho de Hajji Mahmud falou! Está morrendo de sede. Traze bebidas! 

Um dia, Goha recebeu a visita de um de seus amigos, que o encontrou estendido num divã, com os pés cruzados sob o corpo, à maneira oriental, o narguilé na boca e, sobre uma grande mesa, sua bebida e seus aperitivos.

- Dize-me como te arranjas para viver tão bem quando não fazes nada o dia todo, disse o amigo.

- É muito simples, replicou Goha. Com minhas economias, comprei o único poço da aldeia, e meu asno gira a roda doze horas por dia, fornecendo-me jarras e jarras de água, que vendo a toda a população. 

- Mas quem te diz que teu asno não para de trabalhar? Do interior de tua casa, não podes vigiá-lo. 

- Quando a sineta que amarrei a seu pescoço deixa de tocar, sei que ele não está mais trabalhando. 

– Mas supõe que teu asno se senta e agita a cabeça da direita para a esquerda: pensarás que está trabalhando quando está repousando. 

- Quando meu asno se tornar tão inteligente assim, concluiu Goha, então tomará meu lugar e eu girarei a roda do poço.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Hinos de Cidades Brasileiras (Araras/SP)


Incrustada na Pátria altaneira,
Como joia de raro esplendor
Tu traduzes, Araras faceira
A bonança, o progresso, o valor...

As canções do trabalho pujante
Desde o tempo dos velhos barões
Te fizeram tão grande e vibrante
Que transbordam dos bons corações.

Ó Cidade Encantamento,
Jovem, bela, varonil
Ó Cidade Encantamento,
Esperança do Brasil.

Das primeiras tu fostes na história
A romper os grilhões dos escravos
E te encheste de paz e de glória,
Orgulhosa de filhos tão bravos...

Sob o manto da Virgem Maria
O teu povo é ordeiro e cristão,
Cada prece do teu dia-a-dia
E a mais doce sublime oração.

Quando a árvore amiga plantaste,
Numa festa jamais esquecida,
A ternura que então revelaste
É por todos agora seguida.

Cana cana-de-açúcar de pé
Se traduz em riqueza nos lares,
Mas plantaste também o café
E as laranjas dourando os pomares.

As indústrias, escolas, usinas,
Prenunciam radioso futuro
E o vigor dos teus jovens destinas
Ao timão do teu barco seguro.

Minha terra, feliz paraíso,
Neste ardente lampejo de afeto
O teu solo desejo por piso
E o teu céu sempre azul como teto…

Mitos Indígenas (Mandioca - o pão indígena)

Mara era uma jovem índia, filha de um cacique, que sonhava com o amor e um casamento feliz. Em noites quentes, enquanto todos dormiam, deitava-se na rede ao relento e ficava a contemplar a lua, alimentando seu desejo de tomar-se esposa e mãe. Porém, não havia na tribo jovem algum a quem daria seu coração. 

Certa noite, Mara adormeceu na rede e teve um sonho estranho. Um jovem loiro e belo descia da lua e dizia que a amava. O sonho repetiu-se muitas vezes e ela acabou por apaixonar-se. Entretanto, não o contou a ninguém. O jovem, depois de haver conquistado seu coração, desapareceu de seus sonhos como por encanto, deixando-a mergulhada em profunda tristeza. 

Passado algum tempo, a filha do cacique, embora virgem, percebeu que espetava um filho. Contou então a seus pais o que sucedera; a mãe deu-lhe seu apoio, mas o severo pai, não acreditando no que ouvira, passou a desprezá-la. 

Para a surpresa de todos, Mara deu à luz uma linda menina, de pele muito alva e cabelos tão loiros quanto a luz do luar. Deram- lhe o nome de Mandi e na tribo era adorada como uma divindade. 

Pouco tempo depois, a menina adoeceu e acabou falecendo, deixando a todos amargurados. Somente seu avô, que nunca aceitara a netinha, manteve-se indiferente. 

Mara sepultou a filha em sua oca por não querer separar-se dela. Desconsolada, chorava todos os dias de joelhos diante do local, deixando cair leite de seus seios na sepultura. Talvez assim a filhinha voltasse à vida, pensava. 

Até que um dia surgiu uma fenda na terra de onde brotou um arbusto. A mãe surpreendeu-se; talvez o corpo da filha desejasse dali sair. Resolveu então remover a terra, encontrando apenas raízes muito brancas, como Mandi, que ao serem raspadas exalavam um aroma agradável. 

Naquela mesma noite, o jovem loiro apareceu em sonho ao cacique, revelando a razão do nascimento de Mandi. Sua filha não mentira. A criança havia vindo à Terra para ter seu corpo transformado no principal alimento indígena. O jovem ensinou- lhe como preparar e cultivar o vegetal. 

No dia seguinte, o cacique reuniu toda a tribo e, abraçando a filha, contou a todos o que acontecera. O novo alimento recebeu o nome de Mandioca, pois Mandi fora sepultada na oca.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

sábado, 2 de março de 2024

Professor Garcia (Reflexão do Dia) = 01

Trova obtida no facebook do trovador
 

Laé de Souza (Cada filho tem a mãe que merece)

Mãe tem de todos os tipos, jeitos e manias. Igual a minha, a tua, a do vizinho, a do amigo, a da namorada. Aquela que chega da feira e te traz na cama o pastel de queijo que você tanto gostava quando menino, e que hoje enjoa só de sentir o cheiro. Mas ela vem com tanta festa, que você não tem coragem de recusar. Mais chato ainda quando você está numa ressaca por ter saído à noite com os amigos e ela te acorda: "Olha o pastelzinho do menininho da mamãe." Dá até ânsia.

Tem aquela que quando sabe que o namorado da filha vem para almoçar, se arruma mais do que ela, usa aquela roupa especial e percebe-se no seu jeito um olhar de sedução. Muitas já perderam o namorado e outras evitam apresentá-los à mãe. Mas isso já é aberração da natureza e acontece muito raramente.

Tem as que quando a filha sai para namorar, obrigam a levar o irmãozinho (que sempre é enrolado para não ver nada e quando vê é subornado). Estas, naturalmente, já estão ultrapassadas, mas têm algumas que resistem à modernidade.

Tem a que quer conhecer todos os amigos do filho e saber quem são os pais, se a família tem tradição. Namorada, então, é vigiada constantemente e a qualquer desvio ou comportamento inadequado, um batom mais vermelho, uma saia mais curta ou pequena mostra dos seios, ela cai de pau em cima e difama a moça, aconselhando o filho que acabe com o romance.

Tem a que quer os filhos sempre unidos e faz questão de tê-los juntos todos os domingos para o almoço, em sua casa. E você tem que fingir que adora aquela macarronada sempre igual, que já era feita pela tua avó. Segurar a mulher para não reclamar e não ter nenhuma encrenca entre as cunhadas e ainda aguentar aquela mais exibida que se apresenta todo santo domingo cheia de badulaques para fazer inveja às outras.

Tem a que não quer que você saia à noite, espera que seja caseiro e não acredita que você cresceu. Pede satisfação de tudo e ainda dá as ordens.

Tem a que reza por você sempre e pede a Deus que tudo de ruim passe de longe e se não tiver jeito, que seja desviado para ela.

Tem a que pega na extensão para ouvir as confidências, que lê o diário às escondidas, que revira os cadernos para verificar as lições ou até um bilhetinho para a colega.

Aquela que quando você diz que vai num lugar às vezes ela aparece de surpresa para conferir. E as que dão a maior força e se tornam cúmplices em tuas traquinagens enfrentando até o pai feroz.

De qualquer forma, geralmente todas elas amam demais os filhos e passam a se amar menos depois que os têm. Conduzir o comportamento da mãe depende deles. E cada filho tem a mãe que merece. E não esqueçam daquele domingo de maio que é o dia delas. Portanto, nesse dia, demonstrem interesse em ouvir o desenrolar do capítulo da novela que ela te conta e deixe pelo menos um dia de se ligar no rock, dê o direito de ela colocar na vitrola aqueles antigos discos do Roberto. Ela vai adorar.

Fonte: Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor.

Araceli Rodrigues Friedrich (Pequenos Versos)


Cara amiga, neste dia,
gentilmente eu ofereço,
com modéstia e alegria,
a pureza do meu verso.
= = = = = = = = = 

A dezenove de julho
foi que a Ida Márcia nasceu.
Estava frio... era inverno...
Mas a minha alma aqueceu.
= = = = = = = = = 

Afonso, meu queridinho,
bisneto do coração
veio bem de mansinho
para alegrar-me a visão!
= = = = = = = = = 

Ao ler tanta poesia
enorme emoção me invade
e aumenta em meu coração
o perfume da saudade.
= = = = = = = = = 

A quadrinha é uma prece
que recito com fervor
nela minha alma agradece
as graças do Criador.
= = = = = = = = = 

Das palavras pequeninas
"não" é a que mais força tem.
Tanto leva para o mal
como serve para o bem.
= = = = = = = = = 

De Joinvile, na lembrança,
eu trago uma laranjeira,
grande, onde havia um balanço
e eu brincava a tarde inteira.
= = = = = = = = = 

De manhã quando levanto
logo tomo um bom café,
dando ao corpo mais encanto
com mais firmeza no pé.
= = = = = = = = = 

Do coração, bem no fundo,
tenho uma grande ambição:
- Que desta copa do mundo
o Brasil seja o campeão.
= = = = = = = = = 

Ele fugiu da escola
não quis mesmo aprender
até parece uma bola
no subir e no descer.
= = = = = = = = = 

E meu coração, em prece,
em carinhoso fervor
reverente Te agradece
“Obrigado, Deus de amor!"
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Em oposição à guerra
e às tristezas que traz
alguém inventou na terra
a suavidade da paz.
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Eu tenho medo do dia
daquele que vai chegar
ele não traz só alegria
mas, também, muito pesar.
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Eu tenho uma dor constante,
judia de hora em hora,
ela maltrata bastante
e não pensa em ir embora.
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Hoje é dia de eleição;
são tantos os candidatos
que meu pobre coração
não distingue os mais sensatos.
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O menino brincou com a bola
a bola rolou e caiu;
O mesmo aconteceu na escola
o estudo rolou. Ninguém viu.
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Ó nosso Jesus amado,
Senhor, Nosso Deus do Céu
De Ti nos afasta o pecado;
não nos abandone ao léu!
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O primeiro beijo eu dei
escondidinho e sapeca
foi aquele que apliquei
na minha primeira boneca.
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Os primeiros versos fiz
quase todos pé quebrado
- foi isto mesmo que eu quis,
eles me lembram o passado.
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Pela minha honestidade
eu alcancei a vitória
e com discreta vaidade
vou desfrutando esta glória...
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Quando eu escrevo um versinho
é de alegria que o faço
é verdadeiro caminho
pra te mandar um abraço.
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Quantas flores há nas serras,
do Estado do Paraná
Eu desconheço outras terras
tendo tanto manacá.
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Que o trovador tem seu dia
não me disseram. Confesso.
Hoje, é com grande alegria
que lhe dedico este verso.
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Querida seleção atente
para meu desejo profundo;
- Volte feliz e contente
trazendo a Copa do mundo.
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Recebi hoje a notícia
encantadora! Vejam só:
- Pra mim foi uma delícia;
- "Logo serei bisavó."
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Recebi uma visita
lá da terra do meu pai
foi a minha prima Roly
que veio do Uruguai.

Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.