sexta-feira, 21 de junho de 2024

Vereda da Poesia = 40 =

 

Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Ao operar seu nariz
perdeu um olho, o Batista.
Vem outro louco e, então, diz
que o pagamento era... a vista!
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Soneto de Manaus/AM

ANIBAL BEÇA
(Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto)
(1946 – 2009)

Soneto com Estrambote Enviesado

Alfaiate de mim costuro a roupa
que cabe ao figurino que me coube.

Só meu verso protege essa amargura
desfiada de dia ao sol veloz,
para à noite tecer nova textura,
novelo de silêncio ao rés da voz.

Enxoval construído nessa usura
solitária de andaimes, num retrós
de linha vertical, que se pendura
na pênsil teia atada, fio em foz

desse rio agulha que me costura
ao rendilhado de águas tropicais,
que sabe de saudades no meu cais.

Viageiro de uma sanha que me traz
sempre de volta ao tear do meu destino
na seda depressiva me assassino.
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Aldravia de Brasília/DF

BENEDITO PEREIRA DA COSTA

lua
estrelas
mar:
eu
e
você
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Soneto de Recife/PE

MAJELA COLARES

O soldador de palavras

Fazer poemas é soldar palavras,
fundir o signo – literal sentido -
do verbo frio, transformado em chama,
aceso verso, pensado e medido

sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema,
fuga do verbo não mais definido.

Criado o texto, com ideia e tinta,
forma e figura na linguagem extinta,
quebrando regras de comuns fonemas.

A ideia é fogo. Fogo… o verbo aquece.
A tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas e, por fim, poemas.
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Trova Premiada em Petrópolis/RJ, 2003

MOACYR SALLES 
Brasília/DF

Numa aposta de carreira,
usa a mentira os atalhos.
A verdade chega inteira,
chega a mentira aos frangalhos.
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Poema de Maceió/AL

LYGIA MENEZES

Sonho

Ou foi sonho ou foi loucura,
Dizê-lo bem, nem eu sei.
Sei que apenas uma criatura...
Amei.

E foi tão grande e divino
O grande amor que senti...
Que querendo fugir do meu destino
Sofri.

Sonho lindo! Amor risonho!
Onde me levas? Aonde vais?
— Quem me dera que esse sonho
Não se acabasse nunca mais!...
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Quadra Popular

Amar e saber amar
são dois pontos delicados:
os que amam, são sem conta:
os que sabem, são contados.
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Soneto de Porto Alegre/RS

IALMAR PIO SCHNEIDER

Da Condição Humana

Jamais eu te direi que estou feliz
e me reservo agora este direito
de sofrer por aquilo que não fiz,
pois este é o meu destino e assim o aceito.

Não quero que me julgues satisfeito
e nem tampouco um mísero infeliz,
o meu caminho embora seja estreito
tem amplitudes que sonhei e quis.

Se desejarmos merecer a vida
profundamente além da concebida
iremos naufragar em dissabores…

Por isso aonde eu for e aonde fores
não é preciso conseguir extremos:
sejamos o que somos e seremos… 
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Trova de Curitiba/PR

MÁRIO ZAMATARO

Não há lágrima no pranto
“chorado” numa viola,
mas notas de um desencanto
que a lágrima não consola.
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Poema de Jaú/SP

ANGÉLICA TURINI FERREIRA

Neste labirinto que se chama terra,
que se chama cérebro
que se chama vida,
há estruturas complexas
fragmentos bíblicos
notícias escorrendo…

Pés sangrando.

Dragões alados
alfaias
palavras que se perdem
eis o resultado da meditação!
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Triverso de de Santos/SP

MAHELEN MADUREIRA 

Manhã de sol –
Na praia os caminhantes
Também as libélulas.
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Sextilha de Curitiba/PR

VANDA FAGUNDES QUEIROZ

Não revelo meu segredo,
se temo ventos ao léu…
Relâmpago é luz que acende;
se um trovão faz escarcéu,
eu penso: é festa de arromba
dos anjinhos, lá no céu!
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Trova de Corumbá/MT

RUBENS DE CASTRO

Você já foi escolhida
para ser, em meu caminho...
na Santa Ceia da Vida,
meu Céu... meu Pão... e meu Vinho!
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE: 
O beco é tão estreitinho, 
lá onde mora o Janjão, 
que da janela o vizinho 
cumprimenta dando a mão!
Jorge Murad 
Rio de Janeiro/GB, 1910 – 1998

GLOSA: 
O beco é tão estreitinho, 
que Janjão, sempre, ao cruzar, 
de manhã, com seu vizinho, 
tem que nele se esfregar! 

Tem um beco tão estreito 
lá onde mora o Janjão, 
que ninguém passa direito 
sem levar um esfregão! 

Janjão curte estar sozinho, 
mas o beco é tão estreito 
que da janela o vizinho 
vê tudo. Quem vai dar jeito? 

Pense num beco estreitinho, 
este, onde mora o Janjão; 
que, ao sair, o seu vizinho 
cumprimenta dando a mão!
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Aldravia de Juiz de Fora/MG

CECY BARBOSA CAMPOS

Nuvens
passantes
escondem
estrelas:
tímidas
top-models
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Soneto de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Ao Poeta

Imprime a tua lavra no papel,
teu sentimento expõe, sem medo, ali;
junta ao mover das cores, com cinzel,
a agilidade dada ao colibri!

Desliza os versos, sem pensar, ao léu,
revela tudo o que se esconde em ti,
pois tu consegues ir do inferno ao céu,
falar de amor com calma ou frenesi!

Depressa, enxuga as lágrimas do pranto,
põe na poesia o mais doce acalanto,
no sonho, o reflorir da primavera!…

Com teu cantar, que fica, além da vida,
podes curar, do amor, muita ferida,
com teu ressoar de vozes da quimera!…
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Trova Premiada de Bauru/SP

EULINDA BARRETO

Passaste por minha vida
e eu escrevi nossa história…
na página envelhecida
eu te prendi… na memória!
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Sonetilho de de Mogi-Guaçu/SP

OLIVALDO JÚNIOR

Num quartinho, sem ninguém…

Num quartinho, sem ninguém,
dorme o moço de Pasárgada,
sonha um homem que não tem
mais ninguém na madrugada.

Num quartinho, sem ninguém,
pousa o pássaro em jornada,
com jornais que não se leem
nestas margens da pousada.

Não tem sono, mas viola,
nota a nota, um violão,
com mil coisas na cachola...

Cão sem dono, pede esmola,
porta a porta, com seu cão
e, sozinho, os seus amola.
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Triverso de Curitiba/PR

ROSALVA FREITAS BRÜSCH

Vento de inverno
Folheou o meu livro
E não leu nada.
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Setilha sobre o Mar, de Ipu/CE

GONÇALO FERREIRA DA SILVA
.
Quando vejo o mar viajo
No doce rumorejar
A saudade evanescente
Como ao ouvido ditar:
Poeta a sua saudade
Recorda a necessidade
De novo retorno ao mar.
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

ADELMAR TAVARES
(Adelmar Tavares da Silva Cavalcanti)
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

O perfume do teu lenço
trago comigo na mão.
Mas o cheiro da tua alma,
dentro do meu coração.
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Acróstico de Belo Horizonte/MG

SÍLVIA MOTTA
(Sílvia de Lourdes Araujo Motta)

Coração de Férias
(Acróstico da desilusão Nº 5087)

Coração está quase a parar...
O ritmo sem motivação fez
Requerimento de férias
Amorosas e, sem ilusão
Cessou até de sonhar...
Agora, está vazio de emoção!
O tempo não quer parar!
 
Deixei o relógio cair ao chão
nem assim ele quebrou...
 
Felicidade não há na solidão!
É triste chorar sozinho no canto...
Recordando de tanta decepção!
Inaceitável ausência de carinho!
As férias estão em meu peito,
Sinto-me desfalecer deste jeito!
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Poetrix de Campo Grande/MS

ÉVANES PACHE

sobre a mesa
velas acesas
emprestam luz à sobremesa.
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Soneto de Sorocaba/SP

DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Soneto à Trova

Atrai-me um bom poema modernista,
embora eu mais o sinta como prosa;
por mais encanto nele, à minha vista,
é como se faltasse aroma à rosa.

Poesia clássica... há quem lhe resista,
dizendo que é cerceada e artificiosa.
Não é verdade; o poeta nasce artista,
brunir seu verso é lide venturosa.

Por isso à trova eu mais me delicío;
a rima, o metro, o ritmo, o desafio
de dizer tudo em quadra pequenina...

Para cumprir tão exigente prova
e compor essa joia que é uma trova,
certamente nos guia... mão divina.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Nas costas, leva a criança
seus livros numa sacola;
nos olhos, leva a esperança
como colega de escola!
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Poema de Cruz Alta/RS

JUÇARA VALVERDE
(Juçara Regina Viégas Valverde)

Noite

Na penumbra da noite,
desfio lembranças.
Escondidos sonhos afloram,
Despertam-me,
insone percebo a amplidão.

O cheiro da noite que a brisa trás
suavemente embala a vida.
Acalento recordações,
fantasias deliram
no passar das horas.

Surge a manhã.
Anunciado, vem o sol,
afaga as montanhas,
acaricia o mar
e me desperta.

Sigo dia adentro
entre bruma e sol,
fantasmas em despedida.
E a cada novo momento,
dispo-me
e livre
vou desfrutar o dia.

Recordando Velhas Canções (Gondoleiro do amor)


Compositores: Castro Alves/ Salvador Fábregas

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,
Ama um canto o pecador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
- Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!? ...

Teu amor na treva é - um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa - nas calmarias,
É abrigo - no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
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O Gondoleiro do Amor: Uma Ode à Paixão e à Beleza
A música 'O Gondoleiro do Amor', interpretada por Tonico e Tinoco, é uma bela e poética declaração de amor. A letra é rica em metáforas e imagens que evocam a profundidade dos sentimentos do narrador por sua amada. Os olhos da amada são comparados a noites sem luar e ao negrume do mar, sugerindo mistério e intensidade. A figura do gondoleiro, tradicionalmente associada a Veneza e ao romance, é usada para simbolizar o papel do narrador como alguém que navega pelos mares do amor, guiado pela beleza e pelo encanto de sua amada.

A voz da amada é descrita como uma cavatina, uma forma musical lírica e expressiva, que ressoa nos palácios de Sorrento. Esta imagem evoca uma sensação de serenidade e harmonia, como se a voz dela fosse capaz de acalmar e encantar, assim como as ondas beijam a praia e o vento. A música também faz referência às noites italianas, conhecidas por sua beleza e romantismo, reforçando a ideia de que o amor do narrador é uma experiência sublime e quase celestial.

O sorriso da amada é comparado a uma aurora, trazendo luz e esperança nas tempestades da vida. Esta metáfora sugere que o amor dela é uma fonte de conforto e alegria, mesmo nos momentos mais difíceis. A letra continua a explorar a sensualidade e a intimidade do relacionamento, com imagens do seio da amada como uma vaga dourada ao clarão da lua. O amor é descrito como um astro na treva, uma canção no silêncio, uma brisa nas calmarias e um abrigo no tufão, mostrando que ele é uma força constante e reconfortante em todas as circunstâncias. A música termina com uma declaração de amor incondicional, onde a amada é vista como uma rosa, um canto, uma sombra e uma estrela, encapsulando a profundidade e a beleza do sentimento do narrador. (https://www.letras.mus.br/tonico-e-tinoco/1722731/)

Abbie Phillips Walker (Como A Velha Bruxa Neda Roubou A Lua E O Sol)

Era uma vez, há milhares e milhares de anos, imagino, pois ninguém nunca ouviu falar da Bruxa Neda hoje em dia, uma velha bruxa chamada Neda costumava pular em sua vassoura com outra vassoura na mão. Ela voava pelo céu, afastando as teias de aranha, como ela as chamava.

O que ela fez mesmo foi afastar as nuvenzinhas de chuva que as estrelas usavam como véus quando se cansavam de brilhar.

“Você tirou nossos véus de nossos rostos”, disseram as estrelinhas, bastante zangadas com a velha Bruxa Neda. “Nós os queremos de volta. Sua velha bruxa perversa, vá embora, vá embora!

Mas a Bruxa Neda apenas dava uma risada cacarejante e continuava com sua vassoura, varrendo as teias de aranha. “Estrelinhas tolas,” disse a velha Bruxa Neda, “elas teriam o céu em um estado muito desarrumado se não fosse por mim. Eu tenho que varrer todas as noites. Se não o fizesse, o céu estaria cheio de teias de aranha. ‘Véus’, de fato! Essas coisinhas tolas não sabem a diferença entre um véu e uma teia de aranha.”

Uma noite, todas as estrelas estavam usando seus véus quando a velha Bruxa Neda apareceu com sua vassoura e os levou embora. As estrelinhas ficaram tão zangadas, que esqueceram suas boas maneiras, e muitas delas correram para a velha Bruxa Neda, lançando pequenas flechas afiadas em seu rosto e fazendo-a piscar e piscar para que ela não pudesse ver para onde estava indo. Ela esbarrou na lua, que estava saindo de trás de uma nuvem para ver o que estava acontecendo.

“Olhe para onde você está indo, velha bruxa,” ela gritou.

A velha Neda largou a vassoura e tentou agarrar a lua, mas também a acertou bem no nariz.

“Sai, sai, sai! Solte meu nariz!” ela gritou, mas a velha Bruxa Neda não soltou. Ela se segurou e a carregou para sua casa, no topo de uma alta montanha.

“Vou dar motivo para essas estúpidas estrelas chorarem agora”, disse a velha Neda, enquanto abria um armário escuro e jogava a lua dentro.

“Elas não terão luar por um tempo, e se eu conseguir o sol, posso ter as coisas do meu jeito no céu e fazer aquelas estrelas se arrependerem de terem sido tão rudes comigo esta noite.”

No dia seguinte, quando o sol brilhava, e sem pensar no mal que lhe poderia acontecer, a velha Neda pôs os óculos fumê, o boné de cano alto e uma capa comprida e preta.

Então ela pulou em sua vassoura e voou direto para o sol. Claro, as estrelas estavam adormecidas e não podiam avisar o sol, e ele pensou que era uma nuvem negra que ele viu navegando em sua direção.

“Ah! agora posso tirar uma soneca”, disse. “Aí vem uma nuvem negra atrás da qual posso me esconder por um tempo. Eu fico com tanto sono brilhando o dia todo.” E então o sol deu um bocejo só para se preparar para sua soneca.

Mas algo aconteceu, ele não sabia exatamente o quê, mas antes que pudesse parar o bocejo, ele sentiu um puxão, e então ele foi coberto por algo preto e zuniu a uma velocidade terrível que ele não sabia para onde.

“Pronto, acho que posso fazer as coisas como quiser agora”, disse a velha Bruxa Neda enquanto tirava o sol de debaixo de sua capa, piscando e piscando e se perguntando o que havia acontecido com ele.

Dentro do armário escuro com a lua, ela jogou o sol e fechou a porta.

Claro, as estrelas acordaram assim que escureceu. E escureceu logo quando a velha Neda roubou o sol, então as estrelinhas brilharam e piscaram a noite toda e o dia todo porque o sol não nasceu, e elas não souberam quando a noite acabou.

Na noite seguinte, elas piscaram, e no dia seguinte, mas então começaram a ficar tão sonolentas que não conseguiam manter os olhos brilhantes abertos, e uma por uma, começaram a cochilar.

“Eu me pergunto qual pode ser o nosso problema?” disse uma estrela, tentando se manter acordada. “Esta é a noite mais longa que já vi.”

“E eu me pergunto onde está a lua?” disse outra. “Se pudéssemos vê-la, poderíamos descobrir por que o sol está tão preguiçoso esta manhã.”

A velha bruxa Neda estava voando, escondida sob sua capa preta, e ela riu para si mesma ao ouvir o que as estrelas diziam.

“Posso te dizer onde está o sol e a lua também”, disse ela, tirando a capa e se mostrando para as estrelas. “Tenho os dois trancados em um armário em minha casa”, e saiu voando em sua vassoura, deixando as pobres estrelinhas sem palavras de espanto.

“Algo deve ser feito e deve ser feito de uma vez”, disse uma estrela. “Se deixarmos aquela velha bruxa ficar com o sol e a lua, quem sabe o que será de nós.”

“Mas o que nós podemos fazer?” perguntou outra estrela. “Aqui estamos nós no céu e a casa da velha Neda fica no alto de uma montanha. Além disso, ela os vigiará de perto, pode ter certeza. O que podemos fazer e o que será de nós?”

“Uma de nós deve descer lá e deixá-los sair”, disse a primeira estrela. “Agora, qual de nós irá? Essa é a primeira coisa a resolver.”

Ninguém respondeu por um minuto, e então uma estrelinha disse timidamente: “Estou disposta a ir, mas sou tão pequena que acho que não poderia fazer nenhum bem”.

“Você é melhor para ir, exatamente porque você é pequena”, disse a primeira estrela. “E agora vou lhe dizer como isso pode ser feito.

“A Velha Bruxa Neda estará aqui esta noite, pode ter certeza, porque ela está feliz agora que tem o sol e a lua e quer ver como estamos infelizes.

“Quando ela vier esta noite, devemos fazer um grande alvoroço e chorar porque estamos muito chateadas, sem saber se é noite ou dia, e implorar que ela nos ajude. Ela voará perto de nós, e quando ela estiver muito perto da Pequena Estrela, devemos lamentar e chorar e atrair sua atenção, e então a Pequena Estrela deve pular na vassoura bem atrás da velha Bruxa Neda…”

“Oh! oh! oh!” disseram todas as estrelas. “Oh! oh! oh!” pois eles estavam com medo da velha Neda. Mas a estrelinha não gritou; ela apenas piscou e piscou e ouviu o que a primeira estrela disse.

“Como eu disse,” continuou a primeira estrela, “Estrelinha você deve pular na vassoura logo atrás da velha Bruxa Neda e então fechar os olhos até que a velha Neda chegue em sua casa no topo da montanha.

“Claro, ela pode só dar uma olhada então, apenas para ver onde a velha bruxa vai, e a Estrelinha deve ficar bem quieta até a velha Neda ir para a cama, pois ela geralmente dorme durante o dia.

“Quando tudo estiver quieto e você tiver certeza de que a velha bruxa Neda dorme, então você deve andar com muito cuidado e silêncio até encontrar o armário onde o sol e a lua são mantidos prisioneiros e destrancar a porta.”

“Mas de que adianta isso?” perguntou uma estrela. “Eles vão sair do armário, mas como eles vão voltar para seus lugares no céu? A velha bruxa nunca os trará, é claro.

“Espere, minha querida irmã, e eu direi a você como isso pode ser feito”, disse a primeira estrela.

“Depois de liberar o sol e a lua, estrelinha, você deve se apressar até o local onde a velha bruxa guarda sua vassoura mágica e pular nela. Alise-a três vezes em um sentido e depois três vezes na direção oposta, e ela obedecerá a você.

“Você deve ter cuidado, no entanto, para alisá-la apenas quando você já tiver o sol e a lua em segurança com você. Mas silêncio, silêncio! aí vem a velha Bruxa Neda.

A velha Bruxa Neda cacarejou e riu quando ouviu o lamento e o choro das estrelas pela perda do sol e da lua.

“Oh, devolva-os para nós, devolva-os para nós!” elas choraram. “Nunca mais seremos rudes com você, mesmo quando você tirar nossos véus.”

“Ah-há!” disse a velha bruxa, rindo alto. “Acho que vocês não serão rudes comigo, minhas estrelinhas bobas, pois pretendo manter a velha lua e o sol trancados no meu armário e fazer vocês brilharem o tempo todo até ficarem com tanto sono que caiam do céu. Há, há, há!

“Oh! oh! oh!” gritaram as estrelas, todas juntas, e a velha Neda voou perto delas para ver melhor como elas sofriam, e então a Estrelinha fez como a primeira estrela lhe disse para fazer, e no instante seguinte ela estava voando junto com a velha Bruxa Neda em direção a sua casa no topo da montanha.

A Estrelinha olhou só uma vez e viu a velha Neda entrar em casa. Então ela fechou os olhos e esperou até ter certeza de que a bruxa estava dormindo.

Com muito, muito cuidado, ela abriu a porta e entrou. Então ela olhou em volta e, por baixo de uma porta, viu uma luz muito brilhante e soube que atrás daquela porta estavam o sol e a lua.

A chave estava na porta e demorou apenas um segundo para girá-la. “Silêncio!” disse a pequena estrela. “Eu vim para libertá-los. Não façam barulho, mas sigam-me.”

A estrelinha tirou de uma cadeira a grande capa preta da velha Bruxa Neda e jogou-a sobre o sol e a lua para que sua luz forte não despertasse a velha bruxa, e em um minuto estavam todos sentados na vassoura, enquanto a estrelinha alisava três vezes para um lado e três vezes para o outro. E então disse: “Vá para o céu. Leve-nos para casa, boa vassoura.”

Eles voaram para longe e, em pouco tempo, o sol estava brilhando no céu como se nada tivesse acontecido com ele, e as estrelas adormeceram e dormiram profundamente; elas estavam tão cansadas.

A estrelinha naquela noite ocupou seu lugar no céu muito discretamente, mas as outras estrelas queriam saber tudo sobre sua aventura.

“Oh, eu apenas fiz como a primeira estrela me disse,” respondeu modestamente a Estrelinha, “e trouxe de volta o sol e a lua, só isso.”

“Você foi uma estrelinha corajosa”, disse a primeira estrela, “e como recompensa, a vassoura da velha bruxa foi transformada em estrelas, que serão transformadas em uma grande cruz, e nesta cruz para sempre você brilhará. E você terá mais brilho do que qualquer uma de nós, brava, brava estrelinha.”

Claro, a velha bruxa, tendo perdido sua vassoura, não podia mais incomodar as estrelas, então elas brilhavam e piscavam alegremente, sempre se sentindo gratas à Estrelinha por ajudá-las a sair de seu grande problema.

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 20 de junho de 2024

José Feldman (Versejando) 141

 

Monteiro Lobato (Colcha de Retalhos)

— Upa!

Cavalgo e parto.

Por estes dias de março a natureza acorda tarde. Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol. A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através de um cristal despolido.

Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros marginais.

Agora, uma porteira.

Ali, a encruzilhada do Labrego.

Tomo à direita, direto ao sítio de José Alvorada.

Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato… Será a filha de Alvorada?

— Bom dia, menina! O pai está em casa?

É a filha única. Pelo jeito não vai além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas noruegas. Mas arredia e até como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água neste córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

— O pai está lá? — insisti.

Respondeu um “está” enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua casa um jornal.

Mas a vida foi-lhe áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de tudo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

Se o marido deu assim em urumbeva (caipira), a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes — uma para batizar, outra para casar, uma terceira para enterrar.

Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às pessoas. Fora uma vez à vila com vinte dias, para batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada. Que descalabro!…

Da casa velha aluíra (derrubara) uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas (enfurnadas) nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

Bati palmas.

— Ó de casa!

Apareceu a mulher.

— Está seu Zé?

— Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na maçaranduba do pasto. Apeie e entre.

Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei. Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara — e uma cor… Estranhei-lhe aquilo.

— Doença! — gemeu. — Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

— Metade é cisma — disse-lhe para consolo.

— Eu é que sei! — retrucou-me suspirando.

Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou:

— Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!…

— Mecê é gabola porque nunca padeceu doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova… Aí vem Zé.

Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a cara.

— Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos na caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

— Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

— Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”. Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não…

A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.

Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

— Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem — concluiu com ternura.

A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

Aproximei-me, admirado.

— Sim, senhora! Com setenta anos!

Sorriu, lisonjeada.

— É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço…

Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

— Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

Pingo d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo — escolha com rapadura.

— Está bem — rematei, levantando-me do mocho de três pernas. — Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

— Que dá, sei que dá — mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje…

— Nesse caso…
= = = = = = = = = 

Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.

— Como isso? Uma menina tão acanhada!…

— É para ver! Desconfiem das sonsas… Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi ser “moça”, a pombinha…

O incidente ficou a azoinar-me (perturbar-me) o bestunto (cabeça). À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

Fui.

Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.

— Ó de casa! — gritei.

Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra encurvada e trêmula.

— Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

— Tem coragem de estar aqui sozinha?

— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se — murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

— O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…

A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

— Viver setenta e dois anos para acabar assim… Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo, trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

— Que mais agora? — murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não queria morrer. Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu consolo. Desencaminharam a pobrezinha… Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

— Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu.

“Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda…

“Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me "óó aquina"…

“Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

“Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

“Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

“Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”

A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

— E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.

Depois:

— Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

— Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.

— Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

— É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

— Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.

Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.

Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!…

E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

Ela por fim quebrou o silêncio.

— Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao íntimo do coração.

Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?

Pieguices…

Fonte: Monteiro Lobato. Urupês. Publicado originalmente em 1918. Disponível em Domínio Público.