domingo, 3 de novembro de 2024

José Feldman (Reflexões sobre a Solidão Coletiva)

Houve um tempo em que a solidariedade existia nas pequenas ações do cotidiano. Lembro-me de histórias contadas por meus pais sobre como as comunidades se uniam durante momentos difíceis. Os vizinhos se ajudavam, as portas estavam sempre abertas, e a empatia era uma norma não escrita. As desgraças alheias eram sentidas como se fossem próprias, e a coletividade era um valor inegociável.

Hoje, no entanto, vivemos em uma era marcada pela insensibilidade. A compaixão parece ter se esvaído, dando lugar a um egoísmo crescente. As desgraças que antes nos uniam agora são frequentemente ignoradas. Vemos imagens de catástrofes naturais, guerras, e crises humanitárias deslizando nas redes sociais, como se fossem apenas mais um item na lista interminável de conteúdos a serem consumidos. O coração, antes pulsante de solidariedade, parece ter se petrificado.

A falta de ação diante do sofrimento alheio é alarmante. O que poderia ser um chamado à empatia se transforma em um mero espetáculo. As tragédias se tornam cifras em estatísticas, e as pessoas, rostos anônimos em uma multidão. O “like” nas redes sociais substitui a verdadeira ação; compartilhar uma postagem é considerado um ato de solidariedade, quando, na verdade, é apenas um gesto vazio.

Enquanto a empatia se esvai, o que vemos na televisão e nos meios de comunicação é um festival de desavenças e baixarias. Programas que promovem a discórdia, que elevam o conflito ao status de entretenimento, se tornaram comuns. A audiência ri e se diverte com as provocações, enquanto a verdadeira conexão humana se perde em meio a gritos e insultos. O respeito ao próximo foi substituído pelo espetáculo da desgraça alheia, e a cultura da crítica feroz tomou conta.

Esses programas não apenas alimentam a insensibilidade, mas também moldam comportamentos. A banalização da hostilidade se infiltra no cotidiano das pessoas, que começam a ver a desavença como norma. As discussões se tornam debates acalorados, onde a razão dá lugar à ofensa. O diálogo, antes um espaço de construção, se transforma em um campo de batalha.

E, como se não bastasse, o som alto dos carros ecoa pelas ruas como um símbolo da falta de respeito. A música, que poderia ser uma forma de expressão e celebração, se transforma em uma arma de desrespeito. O barulho ensurdecedor invade o espaço público, desconsiderando aqueles que buscam paz e tranquilidade. Os motoristas, absortos em seu próprio prazer, ignoram os olhares de reprovação e os pedidos silenciosos por um pouco de silêncio.

Essa cultura do “eu primeiro” se reflete em todas as esferas da vida. As pessoas se tornam ilhas em meio a um mar de indiferença, cada uma preocupada apenas com seu próprio bem-estar. O respeito ao próximo, que outrora era um pilar fundamental das interações sociais, se torna uma relíquia do passado.

Vejo muitos poetas, trovadores e outros literatos que escrevem sobre fraternidade, sobre humanidade, sobre solidariedade, mas são palavras vazias por quem, ao contrário delas, só pensam em si mesmas, não movem um dedo em favor da empatia. Ficam simplesmente em cima do muro. Falam de respeito, mas não respeitam os outros. Lembro que meus pais sempre diziam, se você quer mudar o mundo deve primeiro mudar a si mesmo, seus pensamentos, suas atitudes, senão serão ações vãs. Ou como se diz: “O inferno está cheio de boas intenções”.

Entretanto, mesmo em meio a essa escuridão, há pequenas chamas de esperança. Existem aqueles que ainda lutam pela solidariedade, que se mobilizam para ajudar os necessitados, que se importam com o bem-estar do outro. Grupos comunitários, ONGs, e iniciativas locais são exemplos de que a empatia ainda vive em algumas partes do mundo. Essas ações, embora muitas vezes ofuscadas pelo barulho da indiferença, são fundamentais para reacender o espírito solidário que parece ter se perdido.

A reflexão sobre a falta de solidariedade do ser humano nos tempos atuais nos convida a repensar nossas próprias atitudes. Como podemos ser agentes de mudança em um mundo que parece se desumanizar? A resposta pode estar nas pequenas ações do dia a dia: um gesto de gentileza, um ouvido atento, um momento de silêncio respeitoso.

A solidariedade não é uma característica inata; ela deve ser cultivada. Cada um de nós tem o poder de transformar o ambiente ao nosso redor, de ser a mudança que desejamos ver. Ao olharmos para o próximo com olhos de compaixão, podemos começar a restaurar a conexão que foi perdida.

Assim, enquanto caminhamos por um mundo que muitas vezes parece indiferente, é essencial lembrar que a verdadeira força reside na solidariedade. O eco do egoísmo pode ser ensurdecedor, mas a voz da empatia, quando unida, pode criar um coro poderoso. Que possamos, juntos, redescobrir o valor da compaixão e do respeito, e que nossas ações sejam um lembrete de que a humanidade ainda tem um longo caminho a percorrer, mas que o primeiro passo começa dentro de cada um de nós.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

Vereda da Poesia = 148 =


Trova de
BORGES DA CRUZ
Lisboa/Portugal

Coração, não tenhas pressa...
Bate mais devagarinho...
Quem muito corre, tropeça
ou pode errar o caminho.
= = = = = =

Soneto de
ANTERO DE QUENTAL
Ponta Delgada/Portugal. 1842 – 1891

Transcedentalismo

Já sossega, depois de tanta luta,
Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta,
No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta...

Não é no vasto Mundo - por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade -
Que a alma sacia o seu desejo intenso...

Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espírito impassível!
= = = = = = 

Trova de
NOEL DE ARRIAGA
Porto/Portugal

Casar? Casarmos os dois?
Não vejo qual o proveito.
Só faríamos depois
o mesmo que temos feito...
= = = = = = 

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Joio

Por que nós complicamos singelezas
pelo simples sabor de afirmação;
por que não escutar o coração
que pulsa as vibrações das incertezas...

se temos ao alcance o corrimão;
degraus que facilitam mãos coesas;
o dom de emocionarmos às belezas...
Por que só ver a luz na escuridão?

Estamos de passagem simplesmente.
Abrindo com desvelo nossa mente
o mundo é bem maior em nosso espaço.

Por que nós complicamos as passagens
seguindo a realidade das miragens?
A vida é bela e o tempo é bem escasso!
= = = = = = 

Trova Premiada de
ÉLBEA PRISCILA DE SOUSA E SILVA
Piquete/SP, 1942 – 2023, Caçapava/SP

Bem escrito… mas sem chance
de sucesso, é voz geral:
ao nosso morno romance
falta a página final!
= = = = = = 

Poema de
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/Portugal

Dom

Que vontade te impele
a ausentares-te dos demais
no ermo desse horizonte infinito.
A escutares o silêncio onde esculpes
apurada arte de aprofundares o mundo
dom de sussurrares palavras sentidas ao vento
impregnadas de acentuadas essências multicores.
Sementes engravidando a imponência da montanha
numa tocante melodia, elevada ao céu da eternidade.
= = = = = = 

Fábula em Versos
adaptada dos Contos e Lendas do Brasil
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

O Saci e a Natureza

No verde profundo, o saci se esconde 
entre as folhas… ele observa e guia 
com seu olhar sagaz… a vida responde, 
e a natureza pulsa em harmonia. 

As pessoas sentem a força do vento 
com o saci, a terra ganha voz 
e em cada lenda, um novo intento 
de respeitar o mundo… somos todos nós. 

Ele traz a sabedoria do chão, 
e ensina a ouvir o canto das flores, 
a arte da vida em plena união, 
Celebra as cores e os nossos amores. 

Assim, no ciclo eterno de toda ação, 
o saci é a ponte entre o céu e a criação.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Chamaste-me tua vida,
eu tua alma quero ser:
a vida acaba com a morte,
a alma não pode morrer.
= = = = = = 

Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Meiga flor

Esse encanto sem par me extasia
E conduz aos portais do pecado
Plenamente envolvido, abismado
Sou refém duma rara euforia

Provocante, tu és a culpada
Das torrentes de amor, desvario
Tua ausência produz um vazio
Meiga flor, em meu ser tatuada

Aspirando o frescor desse aroma
Enclausuro-me em doce redoma
Onde encontro um prazer colossal

Quando imerso nas cores da bruma
Que meus passos domina e perfuma
Provo, enfim, d'alegria integral
= = = = = = 

Trova de
DELCY CANALLES
Porto Alegre/RS

Tinha portas de poesia
e janelas de luar
essa morada que um dia
deixou meu amor entrar.
= = = = = = 

Poema de
PABLO NERUDA
Parral/Chile (1904 – 1973) Santiago/Chile

Se eu morrer…

Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente.
= = = = = = 

Trova de
JESSÉ NASCIMENTO
Angra dos Reis/RJ

Nossos puros sentimentos
são comparados, na vida,
a afinados instrumentos
numa orquestra bem regida.
= = = = = = 

Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Heresia

Talvez minha garganta revoltada.
Espinhosa ficasse, e enrouquecesse.
Ou para meu castigo enlouquecesse,
Por a manter tão muda, tão calada!

Quero falar, a voz sai embargada,
Como se algum mal eu lhe fizesse.
Eu juro que não fiz, e isso acontece.
Minhas cordas vocais fiquem paradas!

Eu preciso gritar minha revolta,
Engolir todo o mal que não tem volta,
E na glote se encontra aprisionado!

Eu quero ler a minha poesia.
Limpar do meu passado, a heresia,
Engolir as tristezas do meu fado!
= = = = = = 

Trova de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN (1951 – 2013) Natal/RN

O Carnaval irradia
prazeres aos foliões,
mas o melhor da folia
está em nossos corações!
= = = = = = 

Sonetilho de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos


Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca , na rua
A vejo chorar sozinha!...

As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas...

Só a triste, coitadinha....
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha....

Eu chego então à janela:
E fico a olhar pra lua...
E fico a chorar com ela!…
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Sobre a tua sepultura
um frouxo raio da lua
parece a gota do pranto
celeste, na terra tua.
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Um Certo Tom Lilás 

Gratidão ao abençoado 
dia reina mansamente, 
confabulando a poesia 

em entrelinhas do meu verso
com o universo. Em sorrisos
amanheço no ar da calmaria
das rimas. No horizonte azul
o crepúsculo voa na sintonia.
= = = = = = 

Trova de 
JOSÉ CORRÊA FRANCISCO
Ponta Grossa/PR

O tempo, veloz, avança,
consumindo nossos anos.
Vamos perdendo esperança
e colhendo desenganos…
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Oração

Senhor me ajuda a ser o sal da terra
e luz do mundo, tal qual nos ordenas.
Sou um alguém que sempre muito erra,
querendo agir com meu conceito apenas...

Em ânsia de acertar, já fiz novenas...,
porém meu bom intento sempre emperra
nas fraquezas humanas, que às centenas,
meu peito tão incrivelmente encerra!

Aumenta, pois, em mim o dom do amor,
a grande graça que se pode opor
a toda insana e egoísta cupidez!

Que eu possa dar sabor e claridade
aos que deles precisam... E, talvez,
eu corresponda, assim, Tua bondade!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Até como terapia, 
crer em Deus faz muito bem: 
– banha a gente na alegria 
que da eterna luz provém!
= = = = = = 

Escada de Trovas de
FILEMON MARTINS
São Paulo/SP

TOPO:
Saudade, de quando em quando,
provoca mágoas e dores,
pois vai de amores matando
quem vive lembrando amores.
Mário Barreto França
(In memoriam)

SUBINDO:
Quem vive lembrando amores
vai perdendo a emoção,
porque viver velhas dores
não faz bem ao coração.

Pois vai de amores matando
momentos bons, sem iguais,
que a vida vai cultivando
ao longo dos ideais.

Provoca mágoas e dores
quem vai e fica também,
pois todos os dissabores
são as saudades de alguém.

Saudade, de quando em quando
sem ser plantada, floresce,
no peito já vai brotando
como se fosse uma prece.
= = = = = = 

Triverso de
TAMAIALE AKSENEN 
Irati/PR

Férias de verão
Dormir até mais tarde
Ui! Galo chato.
= = = = = = 

Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

Pêndulo
 
De tudo o que busquei, foram-se os anos,
De tudo o que sonhei sobram resquícios,
De tudo o que cantei  - vãos desenganos –
Restaram só profundos precipícios...
 
Por tudo o que velei, tracei meus planos
E quando caminhei fiz meus auspícios,
E dos meus ferimentos, dos meus danos
Ergui os meus castelos fictícios...
 
Enfim, onde cheguei, nessas quimeras?
Um pêndulo oscilante, eis o que sou,
Bailando entre rosas e entre feras,
 
Sou títere que a vida utilizou,
E ao cabo de uma vida só de esperas,
Não sei exatamente nem quem sou…
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Num pagode eu fui dançar
diz o velho, e "aconteceu"
quando a moça eu fui tirar:
– "Quer dar-me a honra?" E ela deu!
= = = = = = 

Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Porto (1919 – 2004) Lisboa

Navio naufragado

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Velha viola, na orfandade,
calou-se, pois seus segredos
não suportam a saudade
nem o toque de outros dedos!
= = = = = = 

Hino de 
Bagre/PA

Salve, salve terra altaneira
Marcada por tristes lembranças
Que representa sua luta,
Sua história e esperança
Para ser independente
E triunfar com confiança.

"Oh! Bagre, sustenta teu valor"
No teu povo jamais vencido
E eleva teu nome em memória
De teus heróis destemidos.

No vasto leito de teus rios
Casco estreito a velejar
Dentro dele se esconde
O açaí e o jacundá
O sustento de teu povo
Que sempre te elevará.

Na imensa história da vida
Um currículo a se lembrar
Até os pássaros que aqui gorjeiam
Estão o teu nome a festejar
De um peixe sem destino
Que o mundo lembrar.

Tua juventude participa
Nas leis da nação, trabalho e estudo.
Preserva a tua beleza natural
Na arte, esporte em tudo
Abrindo horizonte de muita esperança
Para teu nome brilhar no futuro.
= = = = = = 

Trova de
MAURÍCIO NORBERTO FRIEDRICH
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR

Foram refúgio de sonhos
as tuas cartas de amor;
hoje, traços enfadonhos
que só causam muita dor.
= = = = = = 

Soneto de 
FRANCISCA JÚLIA
(Francisca Júlia da Silva Munster)
Eldorado/SP (antiga Xiririca) 1874 –  1920, São Paulo/SP

Musa impassível (II)

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

O trovador finge tanto
que ao cantar a própria dor,
finge que a dor no entanto
é de um outro trovador.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
MATRIZ OU FILIAL 
(samba-canção, 1964) 

Quem sou eu     
pra ter direitos exclusivos sobre ela
se eu não posso sustentar os sonhos dela
se nada tenho e cada um vale o que tem
 
Quem sou eu     
pra sufocar a solidão da sua boca
que hoje diz que é matriz e quase louca
quando brigamos diz que é a filial
 
Afinal     
se amar demais passou a ser o meu defeito
é bem possível que eu não tenha mais direito
de ser matriz por ter sòmente amor pra dar
 
Afinal  
o que ela pensa em conseguir me desprezando
se sua sina sempre é voltar chorando
arrependida me pedindo pra ficar
= = = = = = = = = = = = = 

Paulo Mendes Guerreiro Filho (Aurora e a sua cognata)

A casa dela fica na extremidade da areia, com o lago Guaíba, à direita, um píer, onde estacionam as canoas e os caiaques e, na varanda, uma rede. A paisagem d'alva não esfria o interior do veículo. Ironia uma moça cega morar na Ilha da Pintada.

- Obrigada por me levar ao show, eu sei que não é bem o seu estilo.

- Adorei o show. Já vai amanhecer. Eu te levo ate a porta.

- Espera... Me fala como é a Aurora?

- A cantora ou o sol nascente?

- A cantora, mas, agora, também quero saber o que você está vendo.

- Ok. A tintura do sol recai no lago em tons de bordô e rosa sobre um leve fundo azul...

- Assim não! Fala de uma forma que eu consiga entender.

Neste instante, eu pensei em esganar "Viktor Chklovski" e rasgar sua teoria.

- Antes do sol despontar, é igual ao silêncio que antecede o início do show. Então, o espetáculo se inicia calmo e delicado como a voz da Aurora em “It happened quiet”, e o céu é marinho-vento-frio de outono. Os primeiros raios surgem como um sorriso delicado em um cálice de um Bordeaux Carménère e rosa de All soft inside.

- Sim, eu estou conseguindo ver! A voz, o sorriso dela, e as cores do frio e do vinho.

- Agora, o sol invade o céu com sutileza em tons de amarelo, laranja e vermelho, irradiando todas as formas ao som de “Forgotten love”. É como se aquecer ao leve rebolar da fogueira.

- Você está falando dos quadris dela!? Safado! – diz Luísa ironizando e rindo.

- Não, estou descrevendo o sol nascendo nesta ordem: o amarelo e morno, o laranja é quente e o vermelho queima. – eu respondo rindo.

- São 7:07h, e o sol, em ascensão, conquista a noite com seu brilho amarelo, como o azul do olhar da cantora conquista os fãs, e a canção seria: “Queendom”.

- Sei não. Achei que os olhos dela fossem azuis. – Luísa ironiza.

- Os olhos são o céu, e o olhar é o sol, seria como tomar banho de água fria sob o sol quente. Agora vamos, já é dia.

Luísa sorri, dizendo;

- Espera! Descreve para mim o corpo dela...
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(Este conto obteve o 1. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

sábado, 2 de novembro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 63: Confusão

 

José Feldman (O Mistério do Barco Celta)


Na pequena vila de Caerwyn, localizada na costa acidentada da Escócia, uma antiga lenda circulava entre os moradores. Falava-se de um barco celta perdido, que, segundo as histórias, trazia consigo uma maldição. Aqueles que ousassem tocá-lo eram impelidos a ir para o mar, como se as ondas o chamassem. A lenda, até então, era considerada apenas uma história para assustar crianças, até que uma equipe de arqueólogos decidiu investigar a costa em busca de vestígios da cultura celta.

A equipe, liderada pelo Dr. Angus McGregor, um renomado arqueólogo, chegou à vila em um dia nublado de primavera. Com um grupo de estudantes e assistentes, ele começou a escavar uma área próxima a uma enseada isolada. Após dias de trabalho árduo, uma tempestade repentina fez com que o grupo se abrigasse em uma caverna próxima. Enquanto esperavam a chuva passar, um dos estudantes, Lucas, notou algo brilhando sob a água turva da enseada.

Intrigado, ele e Angus decidiram investigar. Com a água ainda agitada, mergulharam e, para sua surpresa, descobriram um barco celta, perfeitamente preservado, encalhado entre rochas. A madeira estava coberta de musgo, mas os entalhes e desenhos que adornavam a proa eram claramente visíveis.

Assim que o barco foi descoberto, a equipe imediatamente começou a estudar o local. Angus, ciente das lendas que cercavam a embarcação, hesitou em tocá-la. No entanto, a curiosidade foi mais forte, e, com cuidado, ele estendeu a mão e acariciou a madeira fria e úmida.

No instante em que sua pele tocou a superfície do barco, uma sensação estranha o envolveu — um chamado suave, quase hipnótico, que parecia vir do mar. “É só a adrenalina,” pensou Angus, tentando se convencer. Mas, ao olhar para Lucas, viu que ele também estava enfeitiçado, seus olhos fixos no horizonte, como se estivesse ouvindo uma música distante.

Na manhã seguinte, enquanto a equipe se preparava para continuar as escavações, Lucas não apareceu. A princípio, pensaram que ele poderia ter decidido dormir mais um pouco, mas conforme as horas passavam, a preocupação crescia. Angus, sentindo uma inquietação crescente, decidiu investigar.

Após perguntar aos outros membros da equipe, ele seguiu em direção à enseada. Para seu horror, encontrou Lucas de pé, na beira da água, olhando para o mar com uma expressão sonhadora. “Lucas! O que você está fazendo?” ele gritou.

Ele virou-se lentamente, como se estivesse despertando de um transe. “Eu… eu não sei. Senti que precisava vir aqui,” ele murmurou, seus olhos ainda perdidos nas ondas.

Angus o puxou para longe da beira, mas a inquietação permaneceu. A maldição da lenda parecia estar se manifestando.

Preocupado, Angus decidiu se reunir com os moradores locais para pedir conselhos. Ele se encontrou com Mairead, uma anciã da vila, conhecida por sua sabedoria. Ao ouvir a história da descoberta do barco, Mairead balançou a cabeça com seriedade.

“Aquela embarcação não é apenas um artefato. É um portal,” disse ela. “Os antigos celtas acreditavam que os espíritos dos marinheiros mortos habitavam suas embarcações. Aqueles que tocassem o barco poderiam sentir o chamado do mar, como se fossem levados por aqueles que já partiram.”

Mairead advertiu Angus sobre os perigos de continuar a exploração. “Os que foram atraídos para o mar não voltaram. Você deve respeitar a vontade dos que vieram antes de nós.”

Apesar do aviso, Angus e sua equipe decidiram continuar suas investigações. Naquela noite, enquanto os membros da equipe se reuniam em volta de uma fogueira, mais uma pessoa desapareceu: Sarah, a assistente de Angus. Na manhã seguinte, sua mochila foi encontrada na areia, mas Sarah não estava em lugar algum.

Com o coração acelerado, Angus e os outros começaram a procurar na enseada. Quando finalmente a encontraram, Sarah estava novamente na beira da água, hipnotizada pelo mar. “Sarah, volte!” Angus gritou, mas Sarah não parecia ouvir.

Com esforço, conseguiu puxar Sarah de volta para a segurança da areia. “O que aconteceu?” perguntou, ofegante.

“Eu… eu não sei. Senti que precisava ir,” Sarah respondeu, com os olhos ainda vidrados.

Com a situação se deteriorando, Angus decidiu que era hora de confrontar o barco. Naquela noite, ele se aproximou da embarcação sozinho, determinado a entender o que estava acontecendo. Quando tocou a madeira novamente, a sensação do chamado se intensificou, quase irresistível.

“Atraí-los para o mar não é o que você quer!” ele gritou, desafiando os espíritos que habitavam o barco. “Respeito sua dor, mas não posso permitir que mais vidas sejam perdidas!”

Nesse momento, o vento começou a soprar com força, e as ondas rugiam. Angus sentiu uma presença ao seu redor, como se as almas dos marinheiros o observassem. “Libere-os!” ele implorou. “Deixe-os encontrar paz!”

De repente, as visões começaram a aparecer diante dele: imagens de marinheiros antigos, navegando em tempestades, lutando contra as ondas. Angus pôde sentir a dor e a perda desses espíritos, mas também a sua tristeza por não poder partir. Ele percebeu que o barco era um símbolo de esperança e um lembrete dos que haviam se perdido no mar.

Com uma determinação renovada, fez um ritual de despedida, falando em voz alta para os espíritos. “Vocês não estão sozinhos. Não precisam mais chamar os vivos. Em vez disso, sigam em paz!”

A tempestade começou a acalmar, e um silêncio profundo caiu sobre a enseada. Angus sentiu uma onda de alívio e compreensão, como se os espíritos finalmente fossem libertados.

Na manhã seguinte, após a tempestade, a equipe encontrou Sarah e Lucas acordados na praia, sem lembrança do que havia acontecido. Relataram que haviam sonhado com o mar, mas não tinham ideia de como haviam chegado ali.

Angus contou a eles sobre a noite anterior, e juntos decidiram que era hora de deixar o barco em paz. Com o apoio dos moradores da vila, fizeram uma cerimônia de despedida, envolvendo o barco em flores e agradecendo aos espíritos.

Embora a lenda do barco celta continuasse a existir, a experiência de Angus e da equipe trouxe um novo entendimento. O barco não era apenas uma relíquia; era um lembrete da conexão entre os vivos e os mortos, e da necessidade de respeitar o que havia sido.

Ao deixar Caerwyn, Angus olhou para o mar, sentindo-se em paz. A maldição havia sido quebrada, e os espíritos agora poderiam finalmente descansar. E assim, enquanto o sol se punha no horizonte, a equipe partiu, levando consigo não apenas uma história, mas também um profundo respeito pela herança dos que vieram antes deles.

Fonte: José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.