segunda-feira, 31 de março de 2025

Olavo Bilac (O recruta)

Era um rapaz de vinte e dois anos, criado à solta, no campo. Desde pequenino, habituara-se à vida ao ar livre. Mal rompia a aurora, já ele andava, ao sol e à chuva, descalço, pulando e correndo, como cabrito montês. Aos oito anos, já montava em pelo os cavalos mais bravos. Com essa existência de exercícios fortes, fizera-se um colosso. Tinha a face corada, os cabelos negros e duros, uma musculatura possante, espáduas largas, pulso de abater um touro com um soco. 

Não aprendera a ler. Fora criado para, de enxada em punho, lutar com a terra, para lidar com os bois, para arcar com os trabalhos fortes da lavoura. Nada tinha de seu. 

O pai, ao morrer, deixara-lhe, como única herança, a saúde, a força e uma enxada. E era com isso que ele vivia, indo de roça em roça, à procura de emprego. E empregos nunca lhe faltavam, porque não havia, em toda aquela redondeza, quem com mais justiça ganhasse o pão de cada dia. Era sempre o primeiro a sair para o trabalho, e o último a recolher.

Nunca ninguém o vira triste. Com o grande chapéu desabado, atirado para a nuca, ou estivesse curvado sobre a terra cavando-a, ou pela estrada, ao sol ardente, viesse, de aguilhada em punho, guiando os bois morosos, — o Anselmo cantava sempre, com a sua larga voz alegre, que animava os companheiros, e tornava mais leve a canseira da tarefa. Os velhos, quando o viam passar, perguntavam sempre:

“Como vai essa mocidade, Anselmo?” E não havia quem não o amasse.

Também, não tinha dinheiro junto. O que ganhava gastava. Ninguém como ele sabia, nas noites de festa, tirar da viola as modinhas ternas. E era feliz, sem ambições, contentando-se com tão pouco.

Quando chegou ao sertão a notícia da guerra do Paraguai, o terror ganhou toda aquela gente simples, para quem o mundo se limitava àquelas léguas de terra, de cujos limites nunca havia saído. O recrutamento! — falava-se nisso, como na morte, com espanto e medo.

Dizia-se que ninguém seria recrutado. Mas a alma desconfiada do caipira bem adivinhava que essa declaração das autoridades era uma astúcia... Soube-se um dia que chegara ao lugar um destacamento de soldados, comandados por um cabo. Houve quem fugisse. Anselmo não fugiu. Mas quando se viu recrutado, um desespero terrível lhe encheu o coração.

Não era covarde! Muitas e muitas vezes ele, sozinho, lutara contra dois e três... nas brigas de arraial, nunca fugira das facas, que alumiavam na escuridão. Não sabia de perigo que o amedrontasse. E costumava dizer que só tinha medo de si mesmo, daquele gênio arrebatado, que não aturava afrontas. Não era covarde, não: o que o desesperava era o abandono forçado daquela existência, em que nascera e crescera, o apartamento daqueles lugares amados, daquele trabalho que era um hábito velho, daquela gente toda que era a sua família, a sua gente, o seu povo.

Para a sua alma inculta e primitiva de filho da roça, a Pátria não era o Brasil: era o pedaço de terra que ele regava com o suor de seu rosto. Fora daquilo não havia mais nada. Que tinha ele com o resto do mundo? Por que havia ele de vestir uma farda, e ir morrer abandonado e desconhecido, sem uma amizade, sem uma simpatia, numa terra estrangeira, por causa de gente que nunca vira, por causa de questões que não entendia e que não eram suas?

Nunca saíra do seu sertão. Aos vinte e dois anos, ainda não imaginava o que seria o mar. Se os paraguaios viessem até suas roças, então sim: ele e os outros saberiam repelir os invasores; seria o seu dever, a defesa do seu ganha-pão, do seu trabalho, dos seus hábitos. Mas, ir defender a Corte, ir defender o Sul, ir defender o Imperador!... que tinha ele com tudo isso?

Todas essas reflexões lhe passavam pela cabeça, à noite, recolhido, com uma dúzia de outros, à cadeia do lugar, como se fosse um criminoso... e já, antes de partir, tinha saudades daquele céu querido, daqueles matos tão conhecidos, daquela gente com quem se criara. E tinha medo, — tinha medo, ele tão valente! — de morrer crivado de balas paraguaias, longe dos seus... depois, ao seu caráter independente, à sua alma livre repugnava a escravidão da vida militar. Não ter vontade própria, ser governado com uma máquina, caminhar para a morte ao simples aceno de um chefe, sem ver a utilidade desse sacrifício, — tudo lhe parecia uma grande desgraça e uma terrível injustiça.

No dia seguinte os recrutas seguiram para o Rio de Janeiro. Havia pressa. A guerra ia acesa ao Sul, e o Brasil precisava das vidas de todos os seus filhos. Os companheiros de Anselmo iam, como ele, com a alma enlutada de tristeza. Também como ele, não compreendiam a violência do recrutamento, nem reconheciam à Pátria o direito de assim se apoderar da sua mocidade, para a atirar aos horrores do campo de batalha.

Triste viagem! Alguns, homens feitos, robustos e valentes, choravam como crianças. A gente do lugar assistiu à partida.

Havia mães que amaldiçoavam a guerra, gritando, torcendo os braços desesperadamente. Havia noivas que desmaiavam. Quantos daqueles voltariam?...

A chegada ao Rio de Janeiro foi uma tortura. Os recrutas estavam tontos, com aquele barulho, com aquele movimento. Como estava longe a tranquilidade da vida rústica! E que rigor, e que tormento no quartel! Na primeira noite, quando se viu, já fardado, estendido sobre a dura tábua da tarimba, Anselmo teve uma revolta.

Sentiu desejos de fugir dali, ainda que para isso fosse preciso matar alguém. Agitava-se, sacudia-se, mordia os pulsos, afogava na garganta os gritos de cólera e as imprecações. Por fim, essa crise terminou por um choro convulsivo. Dormiu, cansado: e ainda era noite escura, quando o acordou um toque de clarim. Era a hora do primeiro exercício.

Começou então a sua aprendizagem militar. O oficial inferior, que comandava as manobras, era brutal. A sua voz tinha asperezas que ofendiam como bofetadas. Quando um dos recrutas errava, dizia-lhe palavras duras, insultos pesados. Uma vez, como Anselmo não o ouvisse, porque estava pensando na sua roça tão calma e tão bonita a essa hora de sol ardente, o oficial deu-lhe no peito, com a folha da espada, uma pranchada forte. O rapaz sentiu o sangue subir à cabeça. Mas a infelicidade já o tornara submisso. Conteve-se, e obedeceu.

Já no terceiro dia, porém, sentiu-se mais resignado com a sua sorte. Familiarizara-se com os exercícios. Já se ia habitando ao rigor da disciplina. Já se interessava pelas manobras. Já prestava atenção às vozes de comando. Já ia compreendendo que, sem a brutalidade do comandante, nada se poderia conseguir de homens como ele, que nunca tinham visto aquilo, e cuja inteligência era refratária à compreensão daquelas palavras e daqueles movimentos calculados.

Depois, no quartel, começou a conviver com os soldados antigos. Tomou parte nas conversas, que se tratavam no “corpo da guarda”. E principiou a operar-se no seu espírito uma transformação radical. A convivência fazia-o sentir por aqueles homens um afeto de irmão. E tanto ouvia amaldiçoar os paraguaios, que principiou a amaldiçoá-los também, odiando-os de longe. Via agora bem o engano em que estava, quando acreditava que a Pátria era o seu sertão, e nada mais. Aqui, tão longe do sertão, vinha achar o mesmo céu, a mesma língua, quase os mesmos costumes. Em torno dele, só se falava na guerra. Lopes era odiado. Lopes aparecia aos seus olhos como um monstro, cuja única ocupação era matar e torturar os brasileiros. E um dia, Anselmo surpreendeu-se a dizer, com os olhos brilhantes de ódio: “Ah! Quando chegará o dia de irmos dar cabo daquele malvado!...”

O dia chegou. O seu batalhão ia partir. Dia de sol. Ninguém reconheceria naquele esbelto moço que ali ia, marchando com garbo entre os outros, o bisonho caipira, que tanta repugnância tinha outrora pelas coisas da guerra.

Anselmo marchava. E, ao compasso da marcha, ia cantando baixinho, entre dentes, uma daquelas mesmas alegres modinhas da roça, que a sua voz soltava na imensa extensão dos campos, quando, curvado sobre a terra, a cavava, ou quando, pela estrada ao sol ardente, vinha, com a aguilhada ao ombro, guiando os bois morosos.

As ruas estavam cheias de povo. Das janelas, senhoras acenavam com os lenços. Uma banda de música precedia o batalhão. Tocava uma marcha de guerra. Os instrumentos de metal giravam alto, entre as pancadas secas dos tambores. Que sol! Que entusiasmo! Anselmo tremia. Parecia-lhe que o inimigo estava ali perto, ao alcance da sua espingarda: parecia-lhe que ia encontrar, ao dobrar uma esquina, os exércitos paraguaios. E ambicionava cair imediatamente em pleno combate.

No cais, a multidão abria alas. E quando o batalhão estacou, quando se calou a música, o povo prorrompeu em vivas. À espera, perfilados, muitos oficiais, cujas fardas, cobertas de galões, brilhavam ao sol, examinavam a tropa disciplinada, bem disposta, garbosa no seu fardamento novo. De repente, a música tocou os primeiros compassos do hino nacional. Um vento brando, vindo do mar, agitou a bandeira brasileira, que estava no centro do pelotão. A bandeira desdobrou-se, palpitou no ar, espalmada, com um meneio triunfal. Parecia que o símbolo da Pátria abençoava os filhos que iam partir, para defendê-la.

E, então, ali, a ideia sagrada da Pátria se apresentou, nítida e bela, diante da alma de Anselmo. E ele, compreendendo enfim que a sua vida valia menos que a honra da sua nação, pediu a Deus, com os olhos cheios de lágrimas, que o fizesse um dia morrer gloriosamente, abraçado às dobras daquela formosa bandeira, toda verde e dourada, verde como os campos, dourada como as madrugadas da sua terra.
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Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro - Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias. No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas.
 
Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
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domingo, 30 de março de 2025

Adega de Versos 144: Eritânia Brunoro

 

Arthur Thomas (Floriswalêne)

Florisvaldo encontrou Waldêlene em um forró na casa de amigos. E logo a conheceu, no sentido bíblico da palavra, resultando em uma “inesperada” gravidez.

Ainda como zigoto, nossa heroína iniciou as orações, pressentindo o perigo do nome que lhe seria dado.

Infrutíferas rezas, pois ao nascer, registraram-na com o singelo nome de Floriswalêne.

Começou, então, o suplício em sua vida.

Desde pequena, tentou que a chamassem de Flor, mas a maldade dos colegas de escola não deixava.

Parecia terem prazer em realçar cada sílaba de seu nome.

Em todas as chamadas para verificar a presença dos alunos, no início das aulas, era vítima da zombaria dos colegas.

Passou a adolescência pensando que deveria encontrar um par que tivesse um nome simples e que não quisesse colocar nome composto nos filhos.

Antes mesmo de se aproximar de um rapaz, procurava saber seu nome.

Rejeitou alguns pretendentes, que eram até bonitos e interessantes, mas que tinham nomes como: Devernilson, Everalderson, Marcelinelson, Wellerson, Genilteleson e tantos outros.

Ficava horrorizada somente com a ideia de ter um filho ou filha com nomes estapafúrdios.

Através de uma tia, conheceu um rapaz muito tímido, nem um pouco bonito, mas trabalhador, e o principal para ela, era conhecido pelo apelido Zé.

Encantou-se quando o rapaz a chamou de Flor, mesmo sabendo que o nome dela era Floriswalêne.

Pensando ter encontrado o par quase perfeito, namorou, noivou e marcou a data do almejado casamento.

No dia da união, no cartório, o noivo declarou seu nome como Josevertson de Souza, e como prova de amor, após assinar o livro, disse à ela e às testemunhas que os filhos seriam batizados com a junção dos nomes do casal, para eternizar o amor dos dois.

Floriswalêne teve que ser amparada pelos parentes e atendida na unidade de emergência do hospital mais próximo.

Josevertson nunca entendeu o motivo do pedido de anulação do casamento.
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ARTHUR THOMAZ é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Poeta e escritor, publicou os livros: "Rimando Ilusões", "Leves Contos ao Léu - Volume I, "Leves Contos ao Léu Mirabolantes - Volume II", "Leves Contos ao Léu - Imponderáveis", "Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios", "Leves Contos ao Léu - Insondáveis", "Rimando Sonhos" e "Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro".

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: insondáveis. 1. ed. Santos/SP: Bueno Editora, 2024. Enviado pelo autor 
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José Feldman (A Velha Chata)



Lima Barreto (Os nossos jornais)

Na Câmara (houve um jornal que registrasse a frase) o senhor Jaurès observou que os nossos jornais eram pobres no tocante a informações da vida do estrangeiro. Afora os telegramas lacônicos naturalmente, ele não encontrava nada que o satisfizesse.

Jaurès não disse que fosse esse o único defeito dos nossos jornais; quis tão somente mostrar um deles.

Se ele quisesse demorar no exame, diretor de um grande jornal, como é e, habituado à grande imprensa do velho mundo, havia de apresentar muitos outros.

Mesmo quem não é diretor de um jornal parisiense e não está habituado à imprensa europeia, pode, do pé para as mãos, indicar muitos.

Os nossos jornais diários têm de mais e têm de menos; têm lacunas e demasias.

Uma grande parte deles é ocupada com insignificantes notícias oficiais.

Há longas seções sobre exército, marinha, estradas de ferro, alfândega, etc. de nenhum interesse, ou melhor, se há nelas interesse, toca a um número tão restrito de leitores que não vale a pena sacrificar os outros, mantendo-as.

Que me importa a mim saber quem é o conferente do armazém K? Um jornal que tem dez mil leitores, unicamente para atender ao interesse de meia dúzia, deve estar a publicar que foram concedidos passes à filha do bagageiro X? Decerto, não. Quem quer saber essas coisas, dirija-se às publicações oficiais ou vá à repartição competente, informar-se.

A reportagem de ministérios é de uma indigência desoladora. Não há mais nada que extratos do expediente; e o que se devia esperar de propriamente reportagem, isto é, descoberta de atos premeditados, de medidas em que os governantes estejam pensando, enfim, antecipações ao próprio diário do senhor Calino, não se encontra.

Demais, não está aí só, o emprego inútil que os nossos jornais fazem de um espaço precioso. Há mais ainda. Há os idiotas “binóculos”. Longe de mim o pensamento de estender o adjetivo da seção aos autores. Sei bem que alguns deles que o não são; mas a coisa o é, talvez com plena intenção dos seus criadores. Mas... continuemos. Não se compreende que um jornal de uma grande cidade esteja a ensinar às damas e aos cavalheiros como devem trazer as luvas, como devem cumprimentar e outras futilidades. Se há entre nós, sociedade, as damas e cavalheiros devem saber estas coisas e quem não sabe faça como M. Jourdain: tome professores. Não há de ser com preceitos escorridos diariamente, sem ordem, nem nexo – que um acanhado fazendeiro há de se improvisar em Caxangá. Se o matuto quer imiscuir-se na sociedade que tem para romancista o psiquiatra Afrânio, procure professores de boas maneiras, e não os há de faltar. Estou quase a indicar o próprio Figueiredo, o Caxangá ou o meu amigo Marques Pinheiro e talvez o Bueno, se ele não andasse agora metido em coisas acadêmicas.

De resto, esses binóculos, gritando bem alto elementares preceitos de civilidade, nos envergonham. Que dirão os estrangeiros, vendo, pelos nossos jornais, que não sabemos abotoar um sapato ? Não há de ser bem; e o senhor Gastão da Cunha, o Chamfort oral que nos chegou do Paraguai e vai para a Dinamarca, deve examinar bem esse aspecto da questão, já que se zangou tanto com o interessante Afrânio, por ter dito, diante de estrangeiros, na sua recepção na Academia, um punhado de verdades amargas sobre a diligência de Canudos.

Existe, a tomar espaço nos nossos jornais, uma outra bobagem. Além desses binóculos, há uns tais diários sociais, vidas sociais, etc. Em alguns tomam colunas, e, às vezes, páginas. Aqui nesta Gazeta, ocupa, quase sempre duas e três.

Mas, isso é querer empregar espaço em pura perda. Tipos ricos e pobres, néscios e sábios, julgam que as suas festas íntimas ou os seus lutos têm um grande interesse para todo o mundo. Sei bem o que é que se visa com isso: agradar, captar o níquel, com esse meio infalível: o nome no jornal.

Mas, para serem lógicos com eles mesmo, os jornais deviam transformar-se em registros de nomes próprios, pois só os pondo aos milheiros é que teriam uma venda compensadora. A coisa devia ser paga e estou certo que os tais diários não desapareceriam.

Além disso, os nossos jornais ainda dão muita importância aos fatos policiais. Dias há que parecem uma morgue, tal é o número de fotografias de cadáveres que estampam; e não ocorre um incêndio vagabundo que não mereça as famosas três colunas – padrão de reportagem inteligente. Não são bem “Gazetas” dos Tribunais, mas, já são um pouco Gazetas do Crime e muito Gazetas Policiais.

A não ser isso, eles desprezam tudo o mais que forma a base da grande imprensa estrangeira. Não há as informações internacionais, não há os furos sensacionais na política, nas letras e na administração. A colaboração é uma miséria.

Excetuando A Imprensa, que tem a sua frente o grande espírito de Alcindo Guanabara, e um pouco O Pal, os nossos jornais da manhã nada têm que se ler. Quando excetuei esses dois, decerto, punha hors-concours o velho Jornal do Comércio; e dos dois, talvez, só a Imprensa seja exceção, porque a colaboração de O Paiz é obtida entre autores portugueses, fato que pouco deve interessar à nossa atividade literária.

A Gazeta (quem te viu e quem te vê) só merece ser aqui falada porque seria injusto esquecer o Raul Manso. Mas, está tão só! E não se diga que eles não ganham dinheiro e, tanto ganham que os seus diretores vivem na Europa ou levam no Rio trem de vida nababesco.

É que, em geral, não querem pagar a colaboração; e, quando a pagam, fazem-no forçados por empenhos, ou obrigados pela necessidade de agradar a colônia portuguesa, em se tratando de escritores lusos.

E por falar nisso, vale a pena lembrar o que são as correspondências portuguesas para os nossos jornais. Não se encontram nelas indicações sobre a vida política, mental ou social de Portugal; mas, não será surpresa ver-se nelas notícias edificantes como esta: “A vaca do Zé das Amêndoas, pariu ontem uma novilha”; “o Manuel das Abelhas foi, trasanteontem, mordido por um enxame de vespas”.

As dos outros países não são assim tão pitorescas; mas chegam, quando as há, pelo laconismo, a parecer telegrafia.

Então o inefável Xavier de Carvalho é mestre na coisa, desde que não se trate de festas da famosa Societé d’Études Portugaises!

Os jornais da tarde não são lá muito melhores. A Notícia faz repousar o interesse da sua leitura na insipidez dos Pequenos Ecos e na graça – gênero Moça de Família do amável Antônio. Unicamente o Jornal do Comércio e esta Gazeta procuram sair fora do molde comum, graças ao alto descortino do Félix e a experiência jornalística do Vítor.

Seria tolice exigir que os jornais fossem revistas literárias, mas, isto de jornal sem folhetins, sem crônicas, sem artigos, sem comentários, sem informações, sem curiosidades, não se compreende absolutamente.

São tão baldos de informações que, por eles, nenhum de nós tem a mais ligeira notícia da vida dos estados. Continua do lado de fora o velho Jornal do Comércio.

Coisas da própria vida da cidade não são tratadas convenientemente. Em matéria de tribunais, são de uma parcimônia desdenhosa. O júri, por exemplo, que, nas mãos de um jornalista hábil, podia dar uma seção interessante, por ser tão grotesco, tão característico e inédito, nem mesmo nos seus dias solenes é tratado com habilidade.

Há alguns que têm o luxo de uma crônica judiciária, mas, o escrito sai tão profundamente jurista que não pode interessar os profanos. Quem conhece as crônicas judiciárias de Henri de Varennes, no Fígaro, tem pena que não apareça um discípulo dele nos nossos jornais.

Aos apanhados dos debates da Câmara e do Senado podia dar-se mais cor e fisionomia, os aspectos e as particularidades do recinto e dependências não deviam ser abandonados.

Há muito que suprimir nos nossos jornais e há muito que criar. O senhor Jaurès mostrou um dos defeitos dos nossos jornais e eu pretendi indicar alguns. Não estou certo de que, suprimidos eles, os jornais possam ter a venda decuplicada. O povo é conservador, mas não foi nunca contando com a adesão imediata do povo que se fizeram revoluções.

Não aconselho a ninguém que faça uma transformação no nosso jornalismo. Talvez fosse mal sucedido e talvez fosse bem, como foi Ferreira de Araújo, quando fundou, há quase quarenta anos, a Gazeta de Noticias. Se pudesse, tentava; mas como não posso, limito-me a clamar, a criticar.

Fico aqui e vou ler os jornais. Cá tenho o Binóculo, que me aconselha a usar o chapéu na cabeça e as botas nos pés. Continuo a leitura. A famosa seção não abandona os conselhos. Tenho mais este: as damas não devem vir com toaletes luxuosas para a Rua do Ouvidor. Engraçado esse Binóculo! Não quer toaletes luxuosas nas ruas, mas ao mesmo tempo descreve essas toaletes. Se elas não fossem luxuosas haveria margem para as descrições? O Binóculo não é lá muito lógico...

Bem. Tomo outro. É o Correio da Manhã. Temos aqui uma seção interessante: “O que vai pelo mundo”. Vou ter notícias da França, do Japão, da África do Sul, penso eu. Leio de fio a pavio. Qual nada! O mundo aí é Portugal só e unicamente Portugal. Com certeza, foi a república recentemente proclamada, que o fez crescer tanto. Bendita república!

Fez mais que o Albuquerque terríbil e Castro forte e outros em quem poder não teve a morte.
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AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO nasceu em 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Era negro e de família pobre. Sua mãe era professora primária e morreu de tuberculose quando Lima Barreto tinha 6 anos. Seu pai era tipógrafo, porém sofria de doença mental. Mas tinha um padrinho com posses - o Visconde de Ouro Preto (1836-1912) -, o que permitiu que o escritor estudasse no Colégio Pedro II. Depois, ingressou na Escola Politécnica, mas não concluiu o curso de Engenharia, pois precisava trabalhar. Em 1903, fez concurso e foi aprovado para atuar junto  à Diretoria do Expediente da Secretaria da Guerra. Assim, concomitantemente ao trabalho como funcionário público, escrevia os seus textos literários.  Em 1905, trabalhou como jornalista no Correio da Manhã. Lançou, em 1907, a revista Floreal. Em 1909, o seu primeiro romance foi editado em Portugal: Recordações do escrivão Isaías Caminha. O romance Triste fim de Policarpo Quaresma foi publicado, pela primeira vez, em 1911, no Jornal do Comércio, em forma de folhetim. Em 1914, Lima Barreto foi internado em um hospital psiquiátrico pela primeira vez. Se candidatou três vezes a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, recebeu dela, apenas uma menção honrosa em 1921. Morreu em 1922.

Fonte:
Publicado na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, em 20 outubro 1911. Disponível em Domínio Público.  
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sábado, 29 de março de 2025

Adega de Versos 143: Sandra Lira Rodrigues

 

José Feldman (O Livro Mais Chato do Mundo)

Era uma vez um escritor chamado Joaquim que sonhava em publicar seu grande romance. Ele passava horas em seu pequeno escritório, cercado por pilhas de papéis e canecas de café esfriando. A ideia era brilhante: um livro repleto de histórias sobre a vida de formigas, suas rotinas diárias e os desafios de encontrar migalhas. Joaquim estava convencido de que seu livro seria um sucesso.

Após meses de trabalho árduo, Joaquim enviou seu manuscrito para várias editoras. No entanto, as respostas foram desanimadoras. Uma editora até escreveu: “Agradecemos, mas suas histórias sobre formigas são... bem... formigáveis.” 

Ele ficou chateado, mas não desanimou. Ele acreditava que um dia alguém veria a genialidade de seu trabalho.

Finalmente, um dia, Joaquim recebeu uma notícia que o deixou radiante. Ele correu para o bar onde seus amigos costumavam se reunir e, com um sorriso de orelha a orelha, anunciou:

— Pessoal! Tenho uma novidade incrível! Recebi um pagamento por meu livro! 

Os amigos pararam de conversar e olharam para ele com curiosidade.

— Uau! Que legal, Joaquim! — disse Pedro, um dos amigos. — Finalmente, alguém reconheceu seu talento!

— Qual editora finalmente decidiu publicar seu trabalho? — perguntou Maria, entusiasmada.

— A Editora Formiguinha! Eles disseram que meu livro está prestes a ser lançado! — exclamou Joaquim, batendo palmas de alegria.

Os amigos começaram a aplaudir e a brindar em sua homenagem.

— Às formigas! — gritaram, rindo.

No entanto, Joaquim, ainda em seu estado de euforia, não percebeu que havia uma pequena sombra de dúvida pairando sobre a mesa.

— Isso é ótimo, mas como você conseguiu um pagamento antes mesmo do lançamento? — perguntou Carlos, franzindo a testa.

Joaquim, um pouco desconcertado, explicou que havia enviado o manuscrito há meses e que, por algum motivo, a editora decidiu pagar adiantado. Ele estava tão feliz que não via a necessidade de esclarecer mais.

Os amigos, animados, começaram a fazer planos para uma grande festa de lançamento. Joaquim estava nas nuvens, sonhando com o sucesso e as vendas. 

No entanto, quando a empolgação começou a se acalmar, uma dúvida surgiu na mente de Joaquim.

— Espera um pouco... — ele pensou. — Como seria possível receber um pagamento sem ter um contrato assinado?

Com isso, decidiu entrar em contato com a editora. Após várias tentativas, finalmente conseguiu falar com alguém.

— Olá, aqui é Joaquim, o autor de “As Aventuras das Formigas”. Eu recebi um pagamento, mas não estou certo sobre o motivo... — começou ele.

Do outro lado da linha, uma voz muito profissional respondeu:

— Ah, sim, Joaquim! O pagamento foi referente ao reembolso... 

— Reembolso? — perguntou Joaquim, perplexo.

— Sim, seu manuscrito foi extraviado pelos correios e, por isso, decidimos reembolsá-lo. Pedimos desculpas pela confusão.

Joaquim ficou em silêncio, tentando processar a informação. Ele havia confundido um reembolso por extravio com um pagamento por publicação. Com o coração na mão, ele desligou o telefone.

Desesperado e um pouco envergonhado, decidiu voltar ao bar, onde seus amigos ainda estavam celebrando. Ao entrar, a música parou e todos olharam para ele.

— E então, Joaquim? — gritou Maria, toda empolgada. — Vai ser uma grande festa, não é?

Joaquim respirou fundo e, com um sorriso amarelo, confessou:

— Na verdade, pessoal, eu não recebi um pagamento... O que aconteceu foi que os correios perderam meu livro e eles me reembolsaram!

O silêncio tomou conta da mesa, seguido por uma explosão de risadas.

— Então, você está dizendo que seu livro é tão chato que até os correios não conseguiram se interessar? — brincou Pedro, quase se engasgando.

Joaquim respondeu:

— É, parece que minha obra-prima não estava destinada a ser lida... nem pelos correios!

E assim, entre risadas e piadas sobre formigas, Joaquim decidiu que, talvez, fosse hora de reavaliar suas histórias e, quem sabe, escrever sobre algo mais emocionante. Afinal, ele já tinha experiência com histórias que ninguém queria.
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JOSÉ FELDMAN, poeta, escritor e gestor cultural nasceu em São Paulo, mas se radicou no Paraná desde 1999. Trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas em São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos. Diretor cultural. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, Assina seus escritos pela cidade de Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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José Feldman (Destino)





Abbie Philips Walker (Lafayette)

Embora “Lafayette” possa parecer um nome pomposo para um cachorro, estou aqui para contar a história de um poodle francês chamado Lafayette, ou Fay, como era chamado carinhosamente. Um dia, Fay estava descansando sobre uma almofada de seda azul colocada em um assento de janela que dava vista para o quintal. Ao ouvir um latido lá fora, ele se levantou e espiou pela janela.

Era um cachorro amarelo e desgrenhado perseguindo um gato que chamou a atenção de Fay. Inicialmente, ele franziu o nariz diante da visão daquele cão de aparência comum, pronto para voltar à sua soneca. Mas algo o fez continuar assistindo ao que estava prestes a acontecer.

O cão amarelo latia e dava saltos em direção ao grande gato que estava empoleirado no topo de uma cerca, com as costas arqueadas e o rabo eriçado, expressando raiva. Por mais que tentasse, o cachorro não conseguia fazer o gato sair do lugar. De repente, Fay ouviu um latido alto e, para sua surpresa, seu próprio focinho bateu contra o vidro da janela. Foi ele quem latiu dessa vez, tomado por um entusiasmo inesperado. Fay tinha certeza de que, se o cachorro do lado de fora pulasse um pouco mais alto, o gato certamente fugiria.

Uma empregada correu para o lado de Fay, curiosa para entender o que estava causando toda aquela agitação. 

“Ah, Fay, você não deve latir para esse gato horrível e esse cachorro com aparência suja”, ela reclamou, acariciando-o e ajeitando a almofada de seda para que ele voltasse a relaxar.

Com um suspiro, Fay se deitou novamente. Mas algo havia mudado dentro dele. Ele sentiu um desejo inexplicável de sair correndo para perseguir aquele gato. Ele também estava convencido de que poderia assustar o cachorro, afinal, aquele era o seu quintal.

Fay começou a refletir. “Lafayette”, murmurou. “Que nome para dar a um cachorro! Por que não me chamaram de Ned, ou Ted, ou até mesmo Bill? E minha pelagem, que coisa terrível – toda cacheada, longa e branca. Eu gostaria que algo acontecesse para que ela ficasse preta. Sempre que vou ao parque, todos os outros cachorros debocham de mim. Eu costumava pensar que eles estavam com inveja da minha aparência majestosa, mas agora percebo que eles estavam apenas zombando de mim. Eu não aguento mais isso!” Fay rosnou, frustrado.

“Mas o que há de errado com você esta manhã?” exclamou a empregada, correndo de volta ao lado de Fay. “Nunca ouvi você latir e rosnar assim antes.”

Fay apenas piscou os olhos, mas abanou o rabo de um jeito que indicava que mostraria à empregada exatamente como se sentia durante o passeio matinal. Eventualmente, a empregada voltou, vestida para levá-lo ao parque. Ela enfeitou a coleira de Fay com um laço e prendeu a guia.

Fay pulou do assento junto à janela e a seguiu com uma expressão abatida. Naquela manhã, ele não ergueu a cabeça nem desfilou como fazia normalmente. Sentia uma vergonha recém-descoberta sobre sua aparência. Quando chegaram ao parque, dois cães de rua emergiram dos arbustos, latindo e rosnando para Fay. Aquilo foi a gota d’água. Seu espírito de luta despertou, e, aproveitando-se de um momento de distração da empregada, Fay facilmente arrancou a guia das mãos dela e disparou. Apesar da guia limitar seus movimentos, Fay rapidamente fez os cães de rua de bobo, assustando-os e fazendo-os fugir com o rabo entre as pernas. “Que diversão!” pensou Fay. “Vou fugir, para onde a empregada nunca me encontrará. Ah, como eu gostaria de encontrar um gato!”

Com saltos e corridas, Fay cruzou o gramado, desaparecendo rapidamente da vista da empregada e de um policial que tentava persegui-lo. Em uma rua transversal, um jornaleiro tentou segurar Fay para ler o nome em sua bonita coleira, mas Fay conseguiu escapar dele, finalmente sentindo-se verdadeiramente livre.

O jornaleiro assustado entregou a coleira para o policial que tinha presenciado a tentativa frustrada de capturá-lo. Eles acreditavam que uma generosa recompensa estava esperando quem conseguisse trazer Fay de volta. No entanto, voltar era a última coisa na mente de Fay. O que ele realmente desejava naquele momento era encontrar um gato.

Fay continuou correndo, deixando para trás o bairro que ele chamava de lar havia tanto tempo. As ruas ficaram lamacentas e assim que ele se sentiu distante o suficiente da empregada, rolou, pleno de alegria, em uma poça de lama na sarjeta. Ele estava irreconhecível, muito longe do cão impecável e delicado que havia saído de casa naquela manhã.

Emergindo do esgoto, Fay parou por um momento para observar os arredores. Bem, ele não ficou realmente parado, ele saltitava e farejava, contemplando qual direção seguir. De repente, outro cachorro se aproximou.

“Olá”, cumprimentou Fay. “Não é este um mundo maravilhoso?”  

“Não sei, é mesmo?” respondeu o outro cachorro.  

“Mas é claro,” retrucou Fay. “Hoje de manhã, eu estava do outro lado do mundo, e agora fugi e vim parar aqui. Então, não é apenas ótimo, mas também um mundo esplêndido, como descobri.”  

“Não sei se concordo com isso,” ponderou o cachorro desconhecido. “Às vezes parece bastante difícil, especialmente quando não consigo encontrar um osso.”  

“O que é um osso?” indagou Fay, que durante sua vida só havia sido alimentado com carnes cozidas e restos de frango.  

“Você não sabe o que é um osso?” perguntou o cachorro estranho, olhando para Fay com surpresa. “Você não tem dentes?”  

“Claro que tenho,” respondeu Fay, mostrando seus dentes afiados. “Mas o que é um osso?”  

“Suponho que você nunca tenha vivido por aqui,” comentou o outro cachorro. “Ossos são escassos, mas ocasionalmente encontramos um. Veja bem, ossos são para comer.”  

Fay espiou pelo buraco na cerca, avistando a pilha de ossos, mas eles não o entusiasmaram nem um pouco. 

“Para que servem?” ele perguntou.  

“Para comer, é claro,” explicou o outro cachorro, observando com entusiasmo os ossos através do buraco. “Talvez não pareçam apetitosos para você, mas veja se você os gosta, por que não pega um?”  

“Eu já mencionei que o cachorro que é dono deles é um briguento,” respondeu o cachorro estranho.  

“Você tem medo dele?” perguntou Fay.  

“Certamente não quero que ele me pegue,” confessou o outro cachorro.  

“Bah,” desdenhou Fay. “Eu não tenho medo. Vou pegar um osso para você. Espere aqui.”  

“Tome cuidado,” alertou o cachorro estranho. “Quando ele te ouvir, ele vai sair correndo daquela casa, e ele é maior do que você.”  

Tamanho não importava para Fay; ele se considerava bastante imponente. Ele era mais alto do que a maioria dos cachorros que havia encontrado. Assim, ele se espremeu pelo buraco na cerca e rapidamente seguiu em direção à pilha de ossos.

Com um rosnado e um latido, o dono dos ossos apareceu. Fay manteve sua posição, encarando o cachorro grande.  

“Saia daqui,” o cachorro ameaçou. “Eu vou lutar com você se não for.”  

“Onde você conseguiu todos esses ossos?” Fay perguntou com coragem. “Tenho certeza de que você os roubou, e eu vou pegar um para um amigo meu.” 

Não que isso fosse totalmente o certo, mas é assim que às vezes os cachorros raciocinam.  

O cachorro grande ficou surpreso pelo fato de Fay não fugir, como todos os outros cachorros faziam. Ele não tinha certeza de como agir, mas quando Fay pegou um osso, aquilo foi demais para ele suportar sem tentar impedi-lo. Ele pulou em Fay, mordendo sua perna, mas assim que fez isso, Fay largou o osso e virou-se contra ele. Por um instante, parecia que haviam cachorros para todo lado. E então, com um forte ganido, o outro cachorro fugiu, deixando Fay sozinho com a pilha de ossos.  

Fay sacudiu-se e olhou para o buraco na cerca. “Entre e pegue à vontade,” ele disse ao cachorro estranho do outro lado. “Agora você pode pegar quantos quiser. Ele não voltará.”  

“Eu não achei que você fosse capaz disso,” disse o cachorro estranho, passando pelo buraco sem precisar de um segundo convite. “Qual é o seu nome?”  

Essa foi a primeira vez que Fay sentiu algo além de prazer, mas agora ele parecia abatido — ele simplesmente não conseguia contar ao outro cachorro seu terrível nome.  

“Ei, qual é o seu nome?” perguntou o cachorro novamente, enquanto mastigava um grande osso.  

“Meu nome é Bill,” respondeu Fay, pensando rápido. “E o seu?”  

“Tige,” respondeu o cachorro. “Eu odeio esse nome e queria que fosse Napoleão ou algo mais elegante.”  

“Eu acho Tige um nome legal,” disse Fay, “melhor que Bill, até, e eu gosto bastante do meu.”  

“Sim, é bom, mas alguns desses cachorros que vivem entre os ricos têm nomes elegantes. Eu encontro um deles no parque às vezes. Ele é branco, sempre tem uma empregada com ele, e às vezes usa um laço rosa ou azul no colar de prata. Acho que o nome dele é Fay ou algo assim. Nossa, ele é um sujeito bonito!” disse Tige, ainda roendo os ossos.  

“Não acredito que ele seja mais feliz do que você — quero dizer, do que nós,” disse Fay, aliviado por estar livre do laço e do colar.  

“Hum,” disse Tige, “aposto que ele é mais feliz do que jamais sonhamos ser. Veja bem, Bill, meu caro, esses cachorros ricos têm sua comida servida em pratos de prata, já ouvi dizer, e já cortada e pronta para comer, e ouvi dizer também que dormem em almofadas.”  

“Em que você dorme?” perguntou Fay, sem pensar no que estava perguntando.  

“No chão na maior parte do tempo. E você?” respondeu Tige.  

“Ah, claro,” disse Fay. “Eu achei que talvez você dormisse em um tapete.”  

“Parece que eu durmo?” perguntou Tige. “Nunca dormi em nada macio na minha vida.  Mas por que você não tenta um desses ossos, Bill? Esta é sua festa, e você ainda não provou um osso.”  

“Eu estava observando você comer,” disse Fay, “mas eu vou pegar um. Nunca comi um antes.”  

“Nossa, eu não achei que algum cão pudesse ser mais miserável do que eu,” disse Tige. “Mas você deve ser, se nunca comeu um osso.”  

O osso tinha um gosto muito melhor do que Fay esperava, e logo ele estava mastigando feliz, assim como Tige.  

“Esse é o seu cachorro?” perguntou uma voz.  

Fay largou seu osso e olhou ao redor, e lá estavam a empregada, o guarda do parque e outro policial.  

A empregada olhou para Fay e então disse: “Fay, é você, seu cachorrinho malvado?”  

Fay correu na direção do buraco na cerca, mas desta vez o guarda do parque foi rápido demais para ele.  

“Claro que esse é o seu cachorro, Maggie,” disse ele. “Mas ele parece um brigão; não muito como aquele tufo branco e fofinho com um laço rosa que você passeia de manhã pelo parque.”  

“Ah, o que a patroa vai fazer?” disse Maggie ao vê-lo. “E ainda por cima perdeu a linda coleira de prata.”  

“Ah, eu sei onde ela está,” disse o outro policial. “Um amigo meu a encontrou, mas esse cachorro não é nenhum bichinho de estimação; ele é um brigão. Você devia ter visto ele enfrentar um cachorro grande que tinha todos aqueles ossos.”  

“Ah, o que a patroa vai dizer ao saber que o cachorrinho dela esteve brigando?” choramingou Maggie. “Venha aqui, seu malvado Fay, e volte para casa comigo agora mesmo, e vou te dar um banho daqueles.”  

Fay se contorceu e tentou escapar, mas uma corda foi amarrada em seu pescoço, e ele estava sendo levado embora quando pensou em Tige. Ele mal teve coragem de olhar para se despedir, temendo que isso o fizesse hesitar.  

Tige, no entanto, estava apenas esperando por esse olhar, e assim que Fay se virou, Tige correu até ele e lambeu seu nariz.  

“Saia daqui, seu cachorro sujo!” disse Maggie.  

O policial riu. “Seu lindo poodle branco não está com uma aparência muito limpa,” ele disse.  

Mas não adiantava. Fay não iria pacificamente sem Tige, e Tige também não queria ser afastado, então lá se foi Maggie, conduzindo Fay, enquanto Tige trotava ao lado dele.  

Seria muito longa a história para contar tudo, mas vou resumir: Tige ficou rondando a casa de Fay depois que ele foi puxado para dentro pelo mordomo, e Fay ficou na janela uivando para Tige até que a dona de Fay acabou cedendo e deixou que Tige fosse trazido para dentro.  

Deram um banho em Tige, colocaram uma coleira em seu pescoço, e Fay e Tige ficaram sentados na janela em dias chuvosos, quando a empregada não podia levá-los ao parque, olhando para o quintal em busca de gatos na cerca. Mas como os gatos não gostam muito de tempo chuvoso, Tige teve que contar a Fay tudo o que sabia sobre eles.  

“E pensar que eu nunca tive a chance de perseguir um,” disse Fay. “Talvez algum dia possamos fugir de novo, e então você pode me mostrar onde encontrar um.”  

“Não,” disse Tige, balançando a cabeça. “Não vai ter esse ‘algum dia’, Bill, meu amigo. Não vou arriscar perder este lar agradável, e você e eu vamos trotar ao lado da Maggie todos os dias no parque. Eu sei o que significa não ter um lar, e você não sabe, então ouça minhas histórias de gatos e pense à vontade sobre persegui-los, mas deixe isso por aí.”  

E Fay, sendo um cachorro sensato e muito apegado ao seu novo amigo, fez o que ele disse.

Preciso te contar mais uma coisa: embora, entre eles, fossem Bill e Tige, para todos os outros eles eram Fay e Caesar, então Tige finalmente recebeu o nome elegante que merecia.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. 
Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

sexta-feira, 28 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 29 *

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JOSÉ FELDMAN, poeta, escritor e gestor cultural nasceu em São Paulo, mas se radicou no Paraná desde 1999. Trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas em São Paulo. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos. Diretor cultural. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, Assina seus escritos pela cidade de Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Newton Sampaio (O cântico)

| I |
Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda, em seus agudos instantes de plenitude.

Eu amo, eu amo a luta como se me apresenta, quando a vida me sorri, e quando a vida me castiga. Porque a luta tem a beleza intrínseca, como a fonte tem a água e o sol tem a luz.

| II |
Eu não gosto do céu nessas noites macias em que a lua romântica vai tecendo madrigais a seu amante milenário.

Eu gosto do céu quando o sol faz doer os olhos dos homens atrevidos.

Eu gosto do céu quando o céu enche o mundo de claridades que deslumbram.

| III |
Eu não gosto do mar quando as ondas só fazem carícias à praia brancacenta.

Eu gosto do mar quando o mar é fúria desencadeada enchendo o ar com estrondejamentos de apocalipse.

| IV |
Eu não gosto do vento quando a folhagem apenas baila um bailado pequenino.

Eu gosto do vento quando os cedros descrevem curvas penosas, e toda a floresta fica gemendo na devastação absoluta.

| V |
Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores que suam em trabalhos rudes.

Eu me sinto orgulhoso quando minha própria fronte é um só porejar abundante.

Eu bebo meu suor sem nojo, como os selvagens deglutem religiosamente os restos de seus guerreiros mortos.

| VI |
Eu bendigo o rosário de inquietações que o destino me concedeu, porque por essas contas se há de medir a força de minha mocidade.

Eu bendigo os golpes com que o mundo me faz sofrer, porque esses golpes estão pondo à prova as energias de meu espírito.

Eu bendigo, eu bendigo a sanha dos que me combatem e a impiedade dos que me odeiam, porque, com esse ódio e com esses combates, incendiarei substâncias novas do meu ser.

| VII |
Eu abomino as horas longas e largadas; porque nas horas largadas e longas, não se erguerão as catedrais imperecíveis.

Eu fujo do silêncio porque o silêncio é mensagem da noite e a noite é ausência do Sol.

| VIII |
Eu não quero morrer na posição que todos ensaiam, no fim do dia.

Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis. Ou rasgando o chão pela força de velocidades inauditas. Ou sentindo, no fundo da vida, onomatopeias de sangue gorgolejando, de todas as carnes se abrindo...

| IX |
Porque o cântico do homem novo é um cântico de guerra.

Escreve a última frase, larga a caneta. Chega-se à janela e respira fundo, deliciado.

Consulta o relógio.

— Tão cedo! Podia passar tudo a limpo, agora. Reflete.

— Não. De noite é melhor

Arruma o cabelo, prepara o nó da gravata, enquanto relê os períodos mais importantes.

— Modéstia à parte, esse negócio está bem passável. Só que me saiu um tanto bolchevista. Mas não faz mal. De vez em quando se deve assustar os burgueses...

Veste o paletó. Examina-se ao espelho. Sai do quarto assobiando um samba vitorioso.

Na sala de jantar, Clarita estuda um figurino.

— Que é isso? Tomando vento nas costas? Não tem medo de uma pneumonia?

— De uma não. Só de duas.

— Engraçadinha!

Fecha a porta do corredor.

— Onde está meu guarda-chuva?

— Pra que guarda-chuva?

— Ora, pra quê...

— Com esse tempo firme?

— Tempo firme, nada! Então eu não conheço este Rio de Janeiro?

Mira-se no espelho da étagère (estante). E recomenda:

— Não discuta mais com seu Gonçalves, ouviu? Não quero nenhuma encrenca com vizinhos.

(Eu amo a luta, transfiguradora e fecunda...)

— Mas o rádio do português é insuportável, Raimundo.

— Embora.

— Você fala assim porque não passa o dia inteiro em casa, como eu.

Não retruca. Faz o último exame no traje.

— Bem. Vou indo.

— Há mais tempo.

Ganha a rua. Um automóvel passa chispando. Tapa o nariz com o lenço, por causa da poeira.

— Maluco!

Espera que o sinal fique bem aberto, antes de atravessar.

— Vou eu aí quebrar a cabeça, por imprudência...

(Eu quero morrer varando o azul em saltos incríveis).

Perto do poste de parada, os homens da Companhia trabalham ruidosamente. Um negro exibe ao sol o dorso nu. Sua em bica.

— Xexéu safado!

(Eu vejo refrações magníficas na pele de trabalhadores...)

O veículo não tarda.

— Fazem um barulho, estes bondes...

(Eu fujo do silêncio porque...)

Procura lugar, pedindo licença a meio mundo. Senta-se.

A perspectiva de mais um inútil dia de repartição lhe dá certa melancolia. Conforta-o, entretanto, o acontecimento da nova página.

O bonde faz a volta da rua Bambina, e Raimundo dos Santos Filho começa a recapitular, inteiramente absorto, o “Cântico do Homem Novo”.
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NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
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