A sala das sessões já estava apinhada. Padre Zoroastro na presidência explicou os fins da reunião e deu a palavra para Antônio Vicente. Este falou:
- Os que como nós costumam buscar no passado os ensinamentos para o presente sabem que na Idade Média várias expedições armadas chamadas Cruzadas deixaram a Europa para arrancar Jerusalém das garras sacrílegas dos muçulmanos!
- Que é que nós temos com isso? - perguntou o genro de Zéquinha Silva.
- Muita coisa! Vossa Excelência não me deixou terminar o paralelo que pretendo esboçar! Com efeito, meus senhores, ao grito de Deus o quer! os cristãos do Ocidente mais de uma vez se levantaram de armas nas mãos para expulsar da Cidade Santa os infiéis do Oriente! Pois bem! Nós, os fundadores da República Nova, também nos levantamos ao grito de Revolução o quer! para exigir que os membros da atual comissão das obras da matriz, infiéis de 24 de Outubro, sejam destituídos e imediatamente substituídos pelos fiéis de Copacabana, pelos heróis...
Padre Zoroastro interrompeu:
- Eu acho que a discussão deve ser curta não é? - e se cingir aos fatos. É. Devemos economizar nosso tempo.
- Também acho, excelentíssimo senhor presidente desta augusta assembléia! E é por isso...
- O que o Senhor Antônio Vicente pede é a substituição da comissão atual. Não é? E funda seu pedido no fato do Senhor José Silva e demais membros da referida comissão não serem revolucionários. Pois então. Já estamos cientes. E eu vou dar a palavra ao Senhor José Silva para dizer o que julgar conveniente a respeito. Fica bem assim. Não é? Tem a palavra o Senhor José Silva.
Zéquinha Silva principiou dizendo que desconhecia revolucionários em Jataí-Vila a não ser alguns de última hora. Colocava pois a questão em outro terreno. Achava que se devia somente indagar se a atual comissão era ou não composta de gente trabalhadeira e honesta. Porque ser revolucionário só não adianta.
- Eu sou produto do meu trabalho honrado - gritou o major.
- Como é mesmo? - perguntaram.
- Ficam proibidos os apartes -~ falou Padre Zoroastro. - Não é melhor? Continue, Seu Zéquinha.
Zéquinha provou documentadamente que a comissão presidida por ele sempre se houve com diligência e probidade. Em todo o caso desistia, por si e pelo genro, de continuar nela se a maioria dos presentes quisesse. Mesmo porque confiança não se impõe.
Padre Zoroastro disse que era melhor recolher logo o voto dos presentes. Os presentes (com exceção do major, Antônio Vicente e Nicolau que queria a palavra para uma explicação pessoal) concordaram. E Padre Zoroastro falou que antes de proceder à votação desejava ler para governo de todos uma carta do bispo de Samburá. Na carta do bispo dizia que, caso fosse destituída a comissão atual que lhe merecia a mais absoluta confiança, não autorizaria outra que se formasse a dirigir as obras da matriz e suspenderia estas até melhores tempos.
- Ah! É assim? - berrou Nicolau. - O senhor, Padre Zoroastro, quer fazer pressão? O senhor se engana! Não estamos mais sob o domínio do perrepismo!
E a confusão se fez com injúrias pesadas. Mas Padre Zoroastro ameaçou se retirar e conseguiu assim restabelecer a calma. Então disse:
- Senhor Nicolau Foz, saiba que eu não fiz mais do que cumprir o meu dever de pároco lendo a carta do excelentíssimo senhor bispo desta diocese. Não é?
- Perfeitamente! - apoiaram.
- Mas se o senhor tem algum esclarecimento importante a dar e promete não se exaltar eu lhe concedo a palavra por cinco minutos.
Nicolau de olhos fechados fungava forte entre o major e Antônio Vicente.
- Não tem nada a dizer? - perguntou Padre Zoroastro.
Nicolau abriu os olhos, viu o sorriso vitorioso de Zéquinha Silva, pulou da cadeira, afirmou:
- Tenho! Tenho uma coisa a dizer!
- Não diga! - disse Antônio Vicente baixinho.
Nicolau se virou para o companheiro e falou:
- Digo!
- Diga de uma vez! - gritaram.
- Pois digo! Se a comissão atual não for destituída.
- Ela tem a seu favor a honestidade com que tem agido! aparteou o prefeito.
- Em face da revolução não há direitos adquiridos! - berrou Antônio Vicente.
- Que asneira é essa? - falou o Doutor Salomão.
- Que que o senhor está dizendo? Asneira? São palavras textuais do Ministro da Justiça!
- Está com a palavra o Senhor Nicolau Foz! - advertiu Padre Zoroastro.
- Se não destituírem a comissão do P.R.P. eu não revelarei um segredo...
- Não revelaremos! - secundou o major excitadíssimo.
- ... o qual segredo foi contado pelo falecido Padre Dito à minha senhora!
E a confusão se fez de novo. E Padre Zoroastro de novo conseguiu restabelecer a ordem.
- Temos o direito de saber, não é?
Então aos berros Nicolau soltou tudo menos o lugar onde se achava escondido o tesouro. E Padre Zoroastro desistiu de restabelecer mais uma vez a calma. Impossível. O genro de Zéquinha Silva subiu na cadeira e começou a arengar sem ser ouvido. Antônio Vicente só sabia dizer: Conheceram, papudos? Entre os que achavam que aquilo era uma mistificação ignóbil e os que pensavam que por via das dúvidas convinha verificar a coisa direito houve ameaças de tiros. O turumbamba estava armado. Puxaram o genro de Zéquinha Silva por uma perna, deram uns tabefes nele, ele rolou no chão gritando: Basta assassinos! Padre Zoroastro com muito custo salvou o coitado e se retirou com ele e Zéquinha abanando a cabeça.
- Sempre a maldita história do espiritismo estragando tudo! Não é? A mãe, a sogra, a mãe de Esmeralda, a sogra do Nicolau, já eram assim!
Aos poucos os mais chegados a Zéquinha Silva foram também saindo.
Disposto a aclarar o negócio do tesouro o Doutor Salomão em pé na cadeira da presidência perguntou se estavam numa terra de bugres. O silêncio respondeu que não. E o Doutor Salomão se declarou pronto a servir de intermediário entre os grupos adversos e fazer um acordo honroso.
- Não há acordo! - disse Nicolau.
Para o Doutor Salomão era chegada a hora de todos usarem da máxima franqueza. O Senhor Nicolau Foz não queria fazer acordo. Prescindia assim da colaboração alheia. Mas que essa colaboração era indispensável para ele estava patente no fato do Senhor Nicolau Foz, embora conhecendo o lugar onde se encontrava o tesouro, não haver até então se apossado dele.
- Porque fui educado na escola da honestidade! Sou brasileiro legítimo! De raça!
O Doutor Salomão insistiu em que a hora só admitia cartas na mesa. A honestidade do Senhor Nicolau Foz estava acima de toda e qualquer suspeita. Mas ele era de carne e osso como os outros. Se tivesse jeito de se apossar sozinho do tesouro já teria feito. Achava pois conveniente que antes de mais nada fosse revelado o lugar onde as cinco panelas de ouro estavam escondidas. O que foi aprovado com calor. As considerações do Doutor Salomão tinham abalado a assembléia. Nicolau sentia sobre ele e através dele sobre o tesouro o olhar ávido dos dois irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotônio de todos os presentes, de todos os ausentes. Canalhada. Felizmente estava armado. Matava. Morria. Mas não dizia.
O Doutor Salomão sentara-se fixando Nicolau. A assembléia sentou-se fixando Nicolau. O major se levantou:
- Somos todos pessoas de respeito e que se prezam, não é verdade? Pois muitíssimo bem. O que há a fazer é entrar num entendimento cordial com o nosso simpático amigo Nicolau a fim de que ele, certo de que não será prejudicado, possa revelar o lugar em questão. Pois não lhes parece assim?
- Compreendo - disse o Doutor Salomão. - O Senhor Nicolau impõe condições.
- Condições não! - falou o major. - Ou melhor: existem condições mas quem as impõe é o próprio Padre Dito que Deus tenha.
- Que condições? - perguntou o Doutor Salomão.
- Razoáveis, muito razoáveis - disse o major.
- Justíssimas até. E é preciso que sejam respeitadas. Está claro.
- Mas quais são elas? - insistiu o Doutor Salomão.
- O saudoso Padre Dito faz absoluta questão que noventa por cento do dinheiro fique pertencendo ao nosso prestante amigo Nicolau empregando-se os dez por cento restantes nas obras da matriz... Então? São ou não...
- O quê?
- Está brincando!
- Bandalheira!
- Quanto leva no negócio?
- Que piratas!
- A assembléia gritava de pé. O Doutor Salomão tornou a subir na cadeira, ameaçou dissolver a reunião com o destacamento, pediu calma, obteve relativa. E falou:
- O Senhor Nicolau sustenta o que disse o Maior Mourão?
Nicolau disse:
- Sustento até morrer!
O major suspirou aliviado. O Doutor Teotônio disse:
- Eu proponho para harmonizar as coisas que o dinheiro seja todo entregue ao benemérito governo provisório para ajudar o resgate da dívida nacional!
Houve uma salva de palmas. Mas não unânime.
- Nunca! berrou Nicolau. - Ao menos cinqüenta por cento eu exijo pra mim porque foi pra minha mulher que Padre Dito apareceu em sonho!
O major falou sincopado:
- Como? Cinqüenta por cento? Mas.. Ora essa! Cinqüenta por cento? Não pode ser! Há aí engano! Não... não é... não está certo!
Antônio Vicente se ergueu com altivez, foi até a porta, virou-se antes de sair e disse:
- Com traidor eu não discuto!
O Prefeito Idílio disse:
- Eu proponho que cinqüenta por cento sejam para as obras da matriz mesmo e cinqüenta por cento entregues à prefeitura para serviços de utilidade pública!
- Nunca! - berrou Nicolau. - Cinqüenta por cento pra mim! O resto pode ficar pro que quiserem!
Zizi disse:
- Eu proponho que o dinheiro inteirinho...
- Nunca! - berrou Nicolau. - A metade tem que ser pra mim!
O Tenente Messias disse engrossando a voz:
- Eu proponho que se obrigue o Nicolau a dizer já, mas já, imediatamente, nem que seja à força, onde é que está o cobre!
Nicolau quis falar mas não pôde. E os dois irmãos Tarantelli, o Tenente Messias Jesus Conrado, o Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, o Bibi, o Dadau, o Zizi, o Doutor Teotónio, os outros, todos, até o Doutor Salomão, até o Prefeito Idílio, até o Major Mourão que já não sabia direito o que fazia, com os punhos erguidos cercaram Nicolau. Aí Nicolau puxou o revólver.
- Cachorros! Ca... chorros!
Foi andando de costas até a porta, saiu correndo. Na rua o Afonso Henriques esperava o pai de baratinha. Nicolau brandindo o revólver entrou no auto. Mandou:
- Toca pro cemitério!
Afonso Henriques começou a chorar.
- Toca senão te mato!
O Ford pulava na Rua da Expiação. Afonso Henriques suplicava:
- Vamos... vamos voltar, Seu Nicolau! Por favor! O senhor está... está tão nervoso!
Nicolau dizia:
- Toca, seu covarde!
Não esperou o Ford parar. Saltou, tropeçou, quase caiu, entrou no cemitério de revólver na mão. Deu poucos passos, parou. Estava tonto. Olhava de um lado para outro. Pensava: Que é que eu vim fazer, meu Deus?
Com um enxadão Crispim surgiu por detrás da capela. Longe ainda. Nicolau deu com ele, correu para o túmulo do Padre Dito, sem largar o revólver começou a desmanchar um canteirinho. Crispim correu também gritando:
- Que é isso, Seu Nicolau? Não faça isso!
Nicolau viu Crispim já perto, pulou na frente do túmulo, apontou para o gavetão, atirou.
- Larga esse revólver, Seu Nicolau!
Nicolau enfrentou Crispim, disse com voz sumida:
- Me dá essa enxada!
- Eu dou se o senhor largar o revólver!
- Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!
- Não se chegue, Seu Nicolau!
- Me dá essa enxada! Me dá essa enxada!
Nicolau ia avançando, Crispim recuando.
- Por que que o senhor quer?
- Me dá essa enxada!
A voz sumia cada vez mais, o revólver tremia, os olhos se enchiam de lágrimas.
- Eu mato! Me dá essa enxada!
Mal podia suster o revólver, segurou com as duas mãos. Crispim recuou até o túmulo do padre. Com o enxadão erguido.
- No túmulo do Padre Dito o senhor não toca, Seu Nicolau!
- Eu te mostro!
Mas antes de apertar o gatilho, levou com o enxadão no alto da cabeça, caiu com os miolos de fora.
- Acuda! Acuda! - deu de gritar Crispim.
Foi quando no portão do cemitério pararam vários automóveis e seguida dos dois irmãos Tarantelli, do Tenente Messias Jesus Conrado, do Alcibíades Valentim vulgo Ali-Babá, do Bibi, do Dadau, do Zizi, do Doutor Teotônio, todos, até o Prefeito Idílio até o Doutor Salomão, até o Major Mourão com o chapéu de Nicolau na mão (O doido esqueceu a cabeça!), Dona Esmeralda entrou de carreira. Deu um grito, se jogou sobre o cadáver. Mas não chamava pelo marido não. Dizia só:
- Ah minha mãe, minha mãe!
Fonte:
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/alcantara-machado-obras/contos-avulsos.php