- Fernando: - O Augusto, telefonou-me ontem, muito alarmado, a avisar-me que o avô viria consultar um especialista a Leiria e, aproveitava para nos visitar. Contei tudo à Georgina, que foi quem me sugeriu esta farsa, decerto pelo seu hábito de interpretar comédias. O projeto parecia muito simples. Para mais, o avô partirá amanhã, e, não é provável que volte. O médico deu-me esta tarde, poucas esperanças. Os seus dias estão contados…
- Margarida: - Pobre velho… E o senhor estima muito esse avô, que não é verdadeiramente, seu avô?
- Fernando: - Devo-lhe eterna gratidão. Quando a nossa mãe morreu, o avô recolheu o Fernando, que era seu neto, e também a mim, que estava sozinho no mundo, e, que nada lhe era familiarmente. Custeou a minha educação, deu-me uma carreira, e, graças à sua ajuda, consegui caminhar na vida. Agora, tenho o ensejo de fazer alguma coisa por ele, mas a fatalidade, quase o não consente. Sim, é lamentável, mas deve compreender que não tenho culpa.
- Margarida: - Compreendo e avalio o seu assombro, ao defrontar-se com uma família caída do céu. Sobretudo esse terrível garoto. Onde é que o senhor o foi buscar?
- Fernando: - É filho da minha empregada doméstica. Não consegui encontrar outro melhor. É muito descarado, mas representa muito bem, não é verdade?
- Margarida: - Deu-me uns beijos tão ferozes, que ainda estou aturdida. Podia tê-lo escolhido mais engraçado e mais meigo!
- Fernando: - É bem verdade que não me posso orgulhar muito do meu "rebento". Que desastre... E eu a pensar que tudo parecia continuar a correr bem … Ainda a senhora não sabe o pior do caso…
- Margarida: - Ah... ainda mais complicações?
- Fernando: - Muito mais. Não sei se lhe disse o meu nome?...
- Margarida: - Ainda não disse, não…
- Fernando: - Desculpe-me, mas a confusão tem sido tanta. Chamo-me Josué Teixeira.
- Margarida: - Josué Teixeira?!... Então o senhor é o célebre compositor?
- Fernando: - Célebre, ainda não. Agradeço-lhe o adjetivo. Por enquanto, só compus músicas modernas, que, felizmente tiveram muita aceitação.
- Margarida: - Pelo menos, tornaram-no popular.
- Fernando: - Talvez. Olhe, hoje vou dirigir a orquestra na Marinha Grande.
Não se recordava, precisamente, se fora Josué Teixeira (o Fernando) quem lhe pedira que continuasse a farsa, ou se fora ela própria que se resolvera, espontaneamente, a persegui-la, reencarnando a suposta esposa do desvairado e verdadeiro Fernando, já falecido. Bom maroto fora esse rapaz! Mas não devemos falar mal dos mortos...
Pintou os lábios, e pintou os olhos. Queria parecer bonita, pelo inato desejo feminino do agradar, e para o palco!
Ao abrir a porta do quarto, sentiu a comoção da atriz que vê erguer-se o pano da noite da sua estreia. Não desejava aventuras?... Pois aí estava a mais original que teria podido sonhar. Só por umas horas, e tudo isto pouco tempo depois de ter descido do "Expresso"que a trouxera de Lisboa.
O avô Guido dormitava na salita, encolhido na mesma cadeira. Margarida atravessou nas pontas dos pés, e entrou na sala de jantar atraída pelo ruído de loucas e de vidros. A mesa apresentava um soberbo aspecto, coberta com uma toalha bordada, sobre a qual, se destacava um centro de mesa, cheio de rosas. O próprio Josué dispunha tudo, ajudado pelo Augusto...
- Margarida: - Observo que o senhor é um bom dono de casa...
- Fernando: - Acha?!... Olhe, quer um Porto? Dar-lhe-á ânimo…
- Margarida: - Aceito, pelo nosso "feliz lar"...
- Fernando: -Em honra da minha desconhecida "esposa"! Augusto, está tudo pronto e em ordem?
- Augusto: - Tudo pronto, senhor Josué. Creio que podemos começar a comer imediatamente, pois o senhor seu avô, deve recolher cedo ao hotel.
- Sandro: - Olhem lá, então, nesta casa nunca mais se come? Tenho cá uma fome...
-Augusto: - Cale-se menino, não seja mal-educado. Vamos já começar a jantar.
- Sandro: - Olhem lá, dão-me todas essas coisas boas que estão na cozinha?
- Fernando: - Se tiveres juízo, damos de tudo.
- Sandro: - Ai que bom, que bom!!!
- Margarida: - Anda, vem ao quarto de banho lavar as mãos, pois, vamos já sentar-nos à mesa.
-Fernando: - Avô Guido, avô Guido, acorde, venha jantar!
- Avô Guido: - Já vou indo, já vou indo... bonitas flores, pequena...tens que ir à minha quinta, lá em Trás-os-Montes, para veres as flores bonitas que eu tenho lá na estufa. Dantes, eu próprio cuidava delas, mas agora, estão ao cuidado do Augusto. Fernando, meu filho, porque não deixas a Margarida e o pequeno irem amanhã comigo, lá para o Norte?
- Fernando: - Impossível, avô!
- Avô Guido: - Impossível, porquê?
- Fernando: - Por... por...
- Margarida: - Por causa do colégio do Sandrito. Sabe, ele é muito aplicado e não quer perder as aulas... Até está a preparar-se para passar de classe...
- Avô Guido: - Era só uns diazitos...
- Fernando: - Iremos todos nas próximas férias. Agora, não posso deixar os meus negócios, avô…e além disso, não quero separar-me da minha mulherzinha!
- Avô Guido: - Isso agrada-me, isso agrada-me. Sinto-me feliz ao sabe-los amigos um do outro. Tu, minha filha, conseguiste torná-lo ajuizado. Houve tempo que receei que... Mas tudo isso passou. Agora, és um chefe de família exemplar, um marido modelo. A tua mulherzinha é encantadora, e o Sandrito…
- Fernando: - O Sandrito é um anjo…
- Sandro – Socorro!!! Socorro!!! Ai, que me afogo, que me afogo!!! Quem me acode?!
Ao ouvir este apelo do pequeno, logo Margarida e Josué se dirigiram ao quarto de banho. O quadro que se deparou, encheu-os de consternação: Sandrito, amigo de mexer em tudo, manobrara as torneiras do duche, e, ficara literalmente encharcado. Até pelos ouvidos deitava água.
-Avô Guido: - Que aconteceu ao meu netinho?...
- Fernando: - Nada avô, nada de importância. O Sandrito molhou-se um "pouco".
-Avô Guido: - Então, mudem-lhe a roupa rapidamente, não vá ele engripar-se.
- Fernando: - Que pena ele engripar-se. Maldito rapaz, que fizeste para ficares neste deplorável estado?
- Sandro: - Foi sem querer…
- Fernando: - Sem quer? És um estúpido, isso é que és!
- Sandro: - Eu quero ir para minha casa, eu quero a minha mãe!
- Fernando: - Querias... Querias a tua mãe, mas não vais, nem por sombras.
-Sandro: - Ai, isso é que vou! vou... vou...
- Fernando: - Não grites, senão afogo-te...
- Margarida: - Calma, calma, por favor, eu tratarei do Sandrito...
- Sandrito: - O meu nome é Paulo. Não quero chamar-me Sandrito. Nunca mais. Vocês são maus e malucos. Eu quero a minha mãe!
- Margarida: - Paulo, não grites tanto, porque assim o avô assusta-se, se te ouve....
- Sandro: - Esse velho não é meu avô, nem você é minha mãe, nem aquele é meu pai. Estou farto de vocês, que são uns malucos. Não quero jogar mais este jogo, quero ir para casa de minha mãe!
- Margarida: - Deixe para mim as questões diplomáticas, Josué. Ouve, Sandrito querido, não te ponhas assim zangado, pois, ainda nos havemos de nos divertir muito. Aconselho-te a não ires embora, sem comeres aquelas coisas boas que estão na mesa...
- Sandro: - Já comi um pudim, e, ninguém viu…
- Margarida: - Ah sim? e, olha lá, o pudim era bom?
- Sandro: - Se era bom, até lambi o prato!
- Margarida: -- E o pudim era de...baunilha, não era?
- Sandro: - Não. Era de chocolate…
- Margarida: - Que pena! os de morango, são os melhores . Pelo menos, eu gosto mais deles...
- Sandro: - E eu também…
- Margarida: - Pois não percas a ocasião, palerma. Podes comer todos quantos quiseres...
- Sandro: - Quantos? Pode ser quinze pudins?
- Margarida: - Tantos, não. Até podiam fazer-te mal.
- Sandro: - Não, não...se não me dás quinze, vou-me embora, e, já...
- Margarida: - Quinze pudins?... Isso é pudins a mais... Podias até rebentar...
- Sandro: - E se eu rebentar, a vocês não aconteceria o mesmo?
- Margarida: - Bem. Terás os quinze pudins, mas tens de prometeres que continuarás a representar o teu papel de Sandrito, até o avô se ir embora. De acordo?
- Sandro: - Está bem. Mas eu quero os quinze pudins...
- Margarida: - À mesa, procura falar o menos possível. Sabes, assim poderás comer mais coisas boas.
- Sandro: - Isso tudo, estou de acordo. Mas agora diga-me, que roupa é que a "mamã"me vai vestir?
- Margarida: - Sei lá, olha, enquanto a roupa seca, vais vestir uma bata minha. Olha lá, mas que é isto que tens aqui no braço?
- Sandro: - É a tatuagem das "Lobos Maus", e eu sou o chefe!
- Margarida: - Sim?!... Deves ser muito valente, e, por isso te nomearam chefe!
- Sandro: - Lá no bairro, ninguém me bate, e estão todos às minhas ordens.
- Margarida: - Estás a ver que és um homem importante. Fica aí quietinho que já te trago a roupa... E depois despacha-te para ir-mos para a mesa.
- Avô Guido: - Diz-me, Márcia, adaptas-te bem à tua nova vida, não tiveste pena de deixar a América?
- Margarida: - Em toda a parte se pode estar bem, desde que o "nosso querido marido” nos acompanhe…
- Avô Guido: - E tu, Sandrito? Não passas aqui melhor do que na América?
- Fernando: - O Sandrito gosta muito de cá estar...
- Sandro: - Eu gostava mais de lá estar …
- Avô Guido: - Ah, sim, então porquê?
- Sandro: - Divertia-me mais. Andava com o meu bando "Lobos Maus",e ia para outras galáxias. Assim...
- Margarida: - Come Sandrito. Não brinques. Queres mais um pedacinho de fiambre?
- Sandro: - Sim,"mamã", e dá-me também disso aí verde…
- Margarida: - Gelatina?
- Sandro: - Sim, mas que não se desfaça, pois gosto de comê-la com os dedos.
À roda daquela mesa, estavam sentadas pessoas tão diferentes umas das outras: o decrépito ancião, com a sua reluzente careca; o atraente Josué Teixeira; a linda jovem Margarida; e o endiabrado rapazito, que mantinha em sobressalto os falsos pais.
A essa hora, já estaria Isabel em algures na sua tournée. Quão longe estaria ela de pensar que a sua casa servia nesse momento de palco a uma peça cómica...cómica? Analisando melhor, também tinha os seus aspectos trágicos.
A ignorada morte do verdadeiro Fernando, a comovedora velhice do avô, o empenho de um rapaz agradecido, em evitar um grande desgosto ao seu benfeitor…
- Avô Guido: - Augusto, o meu remédio. Tu já te tinhas esquecido?
- Augusto: - Está aqui, senhor Guido. Olhe que eu nunca me esqueci...
- Avô Guido: - Sabes, minha filha, não posso sair de casa sem levar atrás de mim, uma farmácia. Este maldito coração... Mas espero que não dure muito...
- Margarida: - Não diga isso, avô. Olhe que está com um óptimo aspecto!
- Avô Guido: - Ora, ora. Não te aflijas, filha. Depois de vos ter visto tão felizes e contentes, nada mais me resta a fazer neste mundo. Vivi muito e a vida também cansa. Ir-me-ei tranquilamente, sabendo que o Fernando escolheu uma boa companheira. Toda esta favorável mudança do meu neto, é obra tua, Márcia, e, bendigo-te por ela.
- Margarida: - O Fernando sempre teve bom coração.
- Avô Guido: - Sim. Disso, estou certo, pois não desmente a minha raça. Todos nós, na juventude, fomos um pouco loucos, mas sem graves consequências. E agora me lembro, que é feito do teu irmão Josué?
- Fernando: - Josué?... Ah sim, Josué. Pois continua a dar muitos concertos no estrangeiro. Ele está bem...
- Avô Guido: - Costuma escrever-me pelo Natal. Há quanto tempo que não o vejo. É um bom rapaz, o Josué!
- Fernando: - Pois, concordo, não há melhor do que ele.
- Margarida: - Eu, pessoalmente, acho-o um pouco presumido. Claro, que só o conheço por carta...
- Avô Guido: - Presumido?! Talvez se tenha tornado assim agora, depois que compõe música. Ele continua com a mesma mania da música, não continua, Fernando?
- Fernando: - Creio que sim, avô. E parece que ganha bastante dinheiro.
- Avô Guido: - Ora, tolices! Eu não consigo compreender esta música moderna. Para mim, é um chinfrim que me ataca os nervos. Mas sejamos justos com Josué, o único defeito que ele tinha, era ser mais sossegado, mais obediente e mais aplicado do que tu, meu filho. Isto não podia eu perdoar-lhe, quando vocês eram pequenos. O meu amor-próprio de avô sofria, embora procurasse sempre dissimulá-lo.
- Fernando: - Ele estima-o muito, avô!
- Avô Guido: - E eu a ele. Parece que os estou a ver, quando tinham quinze anos. Vocês eram tão parecidos, que toda a gente os confundia. Mas tu eras muito alegre e brincalhão, ao passo que o Josué era mais comedido. Tomava a vida demasiadamente a sério. Punha tal veemência nos seus afectos e nos rancores, que me assustava...
- Margarida: - Muito interessante, gostava de travar mais amistosas relações com ele...
- Avô Guido: - Isso, também lhe agradaria, tenho a certeza. Vocês dar-se-iam muito bem.
- Margarida: - Talvez não, assusta-me tal veemência...
- Avô Guido: - Ele continua solteiro? Ouvi dizer que tinha grandes êxitos junto das mulheres...
- Fernando: - Ora, não acredite, avô. São só gabarolices!
- Avô Guido: - Gabarolices?! Mas tu próprio me disseste repetidas vezes que, as mulheres eram loucas por ele.
- Fernando: - Disse-o por graça, por troça...
- Avô Guido: - Nada disso. Lembro-me perfeitamente daquela artista brasileira, que esteve quase a suicidar-se por causa dele; e daquela milionária americana, que não conseguiu que o Josué casasse com ela, embora o seguisse por toda a parte. E de tantas outras…
- Fernando: - Mas isso já foi há muito tempo...
- Avô Guido: - Mas tu próprio me contaste tudo isso. Teu irmão é um conquistador como não há outro igual!
- Margarida: - Safa! Que homem tão perigoso, esse Josué!
- Sandro: - Mamã, só comi oito pudins, e, tu prometeste-me quinze!
- Avô Guido - Quinze pudins?! Mas isso é um disparate!
- Sandro: - Quero quinze pudins, já disse e bato o pé!
- Margarida: - Obedece ao avô, menino... (está calado, pois, comerás os outros na cozinha, não sejas palerma...)
- Avô Guido: - Conheci um menino que morreu de indigestão, por ter comido quinze pudins.
- Sandro: - Isso são histórias! E se eu morrer, melhor para mim, pois, o meu pai diz que eu sou "carne para canhão”.
- Avô Guido: - "Carne para canhão", que horror! Teu pai diz isso?
- Fernando: - Digo por brincadeira, avô. Esse pequeno é um tontinho.
- Avô Guido: - Pois, é uma brincadeira de muito mau gosto, Fernando. Parece-me que vocês estão a criar muito mal este menino. Deviam mandá-lo para um colégio interno...
- Margarida: - Tem muita razão, avô...
Ia para acrescentar mais qualquer coisa mas ficou em suspenso, ao escutar o ruído de uma chave rodando na fechadura.
(continua...)
Fonte:
Colaboração do autor.
- Margarida: - Pobre velho… E o senhor estima muito esse avô, que não é verdadeiramente, seu avô?
- Fernando: - Devo-lhe eterna gratidão. Quando a nossa mãe morreu, o avô recolheu o Fernando, que era seu neto, e também a mim, que estava sozinho no mundo, e, que nada lhe era familiarmente. Custeou a minha educação, deu-me uma carreira, e, graças à sua ajuda, consegui caminhar na vida. Agora, tenho o ensejo de fazer alguma coisa por ele, mas a fatalidade, quase o não consente. Sim, é lamentável, mas deve compreender que não tenho culpa.
- Margarida: - Compreendo e avalio o seu assombro, ao defrontar-se com uma família caída do céu. Sobretudo esse terrível garoto. Onde é que o senhor o foi buscar?
- Fernando: - É filho da minha empregada doméstica. Não consegui encontrar outro melhor. É muito descarado, mas representa muito bem, não é verdade?
- Margarida: - Deu-me uns beijos tão ferozes, que ainda estou aturdida. Podia tê-lo escolhido mais engraçado e mais meigo!
- Fernando: - É bem verdade que não me posso orgulhar muito do meu "rebento". Que desastre... E eu a pensar que tudo parecia continuar a correr bem … Ainda a senhora não sabe o pior do caso…
- Margarida: - Ah... ainda mais complicações?
- Fernando: - Muito mais. Não sei se lhe disse o meu nome?...
- Margarida: - Ainda não disse, não…
- Fernando: - Desculpe-me, mas a confusão tem sido tanta. Chamo-me Josué Teixeira.
- Margarida: - Josué Teixeira?!... Então o senhor é o célebre compositor?
- Fernando: - Célebre, ainda não. Agradeço-lhe o adjetivo. Por enquanto, só compus músicas modernas, que, felizmente tiveram muita aceitação.
- Margarida: - Pelo menos, tornaram-no popular.
- Fernando: - Talvez. Olhe, hoje vou dirigir a orquestra na Marinha Grande.
Não se recordava, precisamente, se fora Josué Teixeira (o Fernando) quem lhe pedira que continuasse a farsa, ou se fora ela própria que se resolvera, espontaneamente, a persegui-la, reencarnando a suposta esposa do desvairado e verdadeiro Fernando, já falecido. Bom maroto fora esse rapaz! Mas não devemos falar mal dos mortos...
Pintou os lábios, e pintou os olhos. Queria parecer bonita, pelo inato desejo feminino do agradar, e para o palco!
Ao abrir a porta do quarto, sentiu a comoção da atriz que vê erguer-se o pano da noite da sua estreia. Não desejava aventuras?... Pois aí estava a mais original que teria podido sonhar. Só por umas horas, e tudo isto pouco tempo depois de ter descido do "Expresso"que a trouxera de Lisboa.
O avô Guido dormitava na salita, encolhido na mesma cadeira. Margarida atravessou nas pontas dos pés, e entrou na sala de jantar atraída pelo ruído de loucas e de vidros. A mesa apresentava um soberbo aspecto, coberta com uma toalha bordada, sobre a qual, se destacava um centro de mesa, cheio de rosas. O próprio Josué dispunha tudo, ajudado pelo Augusto...
- Margarida: - Observo que o senhor é um bom dono de casa...
- Fernando: - Acha?!... Olhe, quer um Porto? Dar-lhe-á ânimo…
- Margarida: - Aceito, pelo nosso "feliz lar"...
- Fernando: -Em honra da minha desconhecida "esposa"! Augusto, está tudo pronto e em ordem?
- Augusto: - Tudo pronto, senhor Josué. Creio que podemos começar a comer imediatamente, pois o senhor seu avô, deve recolher cedo ao hotel.
- Sandro: - Olhem lá, então, nesta casa nunca mais se come? Tenho cá uma fome...
-Augusto: - Cale-se menino, não seja mal-educado. Vamos já começar a jantar.
- Sandro: - Olhem lá, dão-me todas essas coisas boas que estão na cozinha?
- Fernando: - Se tiveres juízo, damos de tudo.
- Sandro: - Ai que bom, que bom!!!
- Margarida: - Anda, vem ao quarto de banho lavar as mãos, pois, vamos já sentar-nos à mesa.
-Fernando: - Avô Guido, avô Guido, acorde, venha jantar!
- Avô Guido: - Já vou indo, já vou indo... bonitas flores, pequena...tens que ir à minha quinta, lá em Trás-os-Montes, para veres as flores bonitas que eu tenho lá na estufa. Dantes, eu próprio cuidava delas, mas agora, estão ao cuidado do Augusto. Fernando, meu filho, porque não deixas a Margarida e o pequeno irem amanhã comigo, lá para o Norte?
- Fernando: - Impossível, avô!
- Avô Guido: - Impossível, porquê?
- Fernando: - Por... por...
- Margarida: - Por causa do colégio do Sandrito. Sabe, ele é muito aplicado e não quer perder as aulas... Até está a preparar-se para passar de classe...
- Avô Guido: - Era só uns diazitos...
- Fernando: - Iremos todos nas próximas férias. Agora, não posso deixar os meus negócios, avô…e além disso, não quero separar-me da minha mulherzinha!
- Avô Guido: - Isso agrada-me, isso agrada-me. Sinto-me feliz ao sabe-los amigos um do outro. Tu, minha filha, conseguiste torná-lo ajuizado. Houve tempo que receei que... Mas tudo isso passou. Agora, és um chefe de família exemplar, um marido modelo. A tua mulherzinha é encantadora, e o Sandrito…
- Fernando: - O Sandrito é um anjo…
- Sandro – Socorro!!! Socorro!!! Ai, que me afogo, que me afogo!!! Quem me acode?!
Ao ouvir este apelo do pequeno, logo Margarida e Josué se dirigiram ao quarto de banho. O quadro que se deparou, encheu-os de consternação: Sandrito, amigo de mexer em tudo, manobrara as torneiras do duche, e, ficara literalmente encharcado. Até pelos ouvidos deitava água.
-Avô Guido: - Que aconteceu ao meu netinho?...
- Fernando: - Nada avô, nada de importância. O Sandrito molhou-se um "pouco".
-Avô Guido: - Então, mudem-lhe a roupa rapidamente, não vá ele engripar-se.
- Fernando: - Que pena ele engripar-se. Maldito rapaz, que fizeste para ficares neste deplorável estado?
- Sandro: - Foi sem querer…
- Fernando: - Sem quer? És um estúpido, isso é que és!
- Sandro: - Eu quero ir para minha casa, eu quero a minha mãe!
- Fernando: - Querias... Querias a tua mãe, mas não vais, nem por sombras.
-Sandro: - Ai, isso é que vou! vou... vou...
- Fernando: - Não grites, senão afogo-te...
- Margarida: - Calma, calma, por favor, eu tratarei do Sandrito...
- Sandrito: - O meu nome é Paulo. Não quero chamar-me Sandrito. Nunca mais. Vocês são maus e malucos. Eu quero a minha mãe!
- Margarida: - Paulo, não grites tanto, porque assim o avô assusta-se, se te ouve....
- Sandro: - Esse velho não é meu avô, nem você é minha mãe, nem aquele é meu pai. Estou farto de vocês, que são uns malucos. Não quero jogar mais este jogo, quero ir para casa de minha mãe!
- Margarida: - Deixe para mim as questões diplomáticas, Josué. Ouve, Sandrito querido, não te ponhas assim zangado, pois, ainda nos havemos de nos divertir muito. Aconselho-te a não ires embora, sem comeres aquelas coisas boas que estão na mesa...
- Sandro: - Já comi um pudim, e, ninguém viu…
- Margarida: - Ah sim? e, olha lá, o pudim era bom?
- Sandro: - Se era bom, até lambi o prato!
- Margarida: -- E o pudim era de...baunilha, não era?
- Sandro: - Não. Era de chocolate…
- Margarida: - Que pena! os de morango, são os melhores . Pelo menos, eu gosto mais deles...
- Sandro: - E eu também…
- Margarida: - Pois não percas a ocasião, palerma. Podes comer todos quantos quiseres...
- Sandro: - Quantos? Pode ser quinze pudins?
- Margarida: - Tantos, não. Até podiam fazer-te mal.
- Sandro: - Não, não...se não me dás quinze, vou-me embora, e, já...
- Margarida: - Quinze pudins?... Isso é pudins a mais... Podias até rebentar...
- Sandro: - E se eu rebentar, a vocês não aconteceria o mesmo?
- Margarida: - Bem. Terás os quinze pudins, mas tens de prometeres que continuarás a representar o teu papel de Sandrito, até o avô se ir embora. De acordo?
- Sandro: - Está bem. Mas eu quero os quinze pudins...
- Margarida: - À mesa, procura falar o menos possível. Sabes, assim poderás comer mais coisas boas.
- Sandro: - Isso tudo, estou de acordo. Mas agora diga-me, que roupa é que a "mamã"me vai vestir?
- Margarida: - Sei lá, olha, enquanto a roupa seca, vais vestir uma bata minha. Olha lá, mas que é isto que tens aqui no braço?
- Sandro: - É a tatuagem das "Lobos Maus", e eu sou o chefe!
- Margarida: - Sim?!... Deves ser muito valente, e, por isso te nomearam chefe!
- Sandro: - Lá no bairro, ninguém me bate, e estão todos às minhas ordens.
- Margarida: - Estás a ver que és um homem importante. Fica aí quietinho que já te trago a roupa... E depois despacha-te para ir-mos para a mesa.
- Avô Guido: - Diz-me, Márcia, adaptas-te bem à tua nova vida, não tiveste pena de deixar a América?
- Margarida: - Em toda a parte se pode estar bem, desde que o "nosso querido marido” nos acompanhe…
- Avô Guido: - E tu, Sandrito? Não passas aqui melhor do que na América?
- Fernando: - O Sandrito gosta muito de cá estar...
- Sandro: - Eu gostava mais de lá estar …
- Avô Guido: - Ah, sim, então porquê?
- Sandro: - Divertia-me mais. Andava com o meu bando "Lobos Maus",e ia para outras galáxias. Assim...
- Margarida: - Come Sandrito. Não brinques. Queres mais um pedacinho de fiambre?
- Sandro: - Sim,"mamã", e dá-me também disso aí verde…
- Margarida: - Gelatina?
- Sandro: - Sim, mas que não se desfaça, pois gosto de comê-la com os dedos.
À roda daquela mesa, estavam sentadas pessoas tão diferentes umas das outras: o decrépito ancião, com a sua reluzente careca; o atraente Josué Teixeira; a linda jovem Margarida; e o endiabrado rapazito, que mantinha em sobressalto os falsos pais.
A essa hora, já estaria Isabel em algures na sua tournée. Quão longe estaria ela de pensar que a sua casa servia nesse momento de palco a uma peça cómica...cómica? Analisando melhor, também tinha os seus aspectos trágicos.
A ignorada morte do verdadeiro Fernando, a comovedora velhice do avô, o empenho de um rapaz agradecido, em evitar um grande desgosto ao seu benfeitor…
- Avô Guido: - Augusto, o meu remédio. Tu já te tinhas esquecido?
- Augusto: - Está aqui, senhor Guido. Olhe que eu nunca me esqueci...
- Avô Guido: - Sabes, minha filha, não posso sair de casa sem levar atrás de mim, uma farmácia. Este maldito coração... Mas espero que não dure muito...
- Margarida: - Não diga isso, avô. Olhe que está com um óptimo aspecto!
- Avô Guido: - Ora, ora. Não te aflijas, filha. Depois de vos ter visto tão felizes e contentes, nada mais me resta a fazer neste mundo. Vivi muito e a vida também cansa. Ir-me-ei tranquilamente, sabendo que o Fernando escolheu uma boa companheira. Toda esta favorável mudança do meu neto, é obra tua, Márcia, e, bendigo-te por ela.
- Margarida: - O Fernando sempre teve bom coração.
- Avô Guido: - Sim. Disso, estou certo, pois não desmente a minha raça. Todos nós, na juventude, fomos um pouco loucos, mas sem graves consequências. E agora me lembro, que é feito do teu irmão Josué?
- Fernando: - Josué?... Ah sim, Josué. Pois continua a dar muitos concertos no estrangeiro. Ele está bem...
- Avô Guido: - Costuma escrever-me pelo Natal. Há quanto tempo que não o vejo. É um bom rapaz, o Josué!
- Fernando: - Pois, concordo, não há melhor do que ele.
- Margarida: - Eu, pessoalmente, acho-o um pouco presumido. Claro, que só o conheço por carta...
- Avô Guido: - Presumido?! Talvez se tenha tornado assim agora, depois que compõe música. Ele continua com a mesma mania da música, não continua, Fernando?
- Fernando: - Creio que sim, avô. E parece que ganha bastante dinheiro.
- Avô Guido: - Ora, tolices! Eu não consigo compreender esta música moderna. Para mim, é um chinfrim que me ataca os nervos. Mas sejamos justos com Josué, o único defeito que ele tinha, era ser mais sossegado, mais obediente e mais aplicado do que tu, meu filho. Isto não podia eu perdoar-lhe, quando vocês eram pequenos. O meu amor-próprio de avô sofria, embora procurasse sempre dissimulá-lo.
- Fernando: - Ele estima-o muito, avô!
- Avô Guido: - E eu a ele. Parece que os estou a ver, quando tinham quinze anos. Vocês eram tão parecidos, que toda a gente os confundia. Mas tu eras muito alegre e brincalhão, ao passo que o Josué era mais comedido. Tomava a vida demasiadamente a sério. Punha tal veemência nos seus afectos e nos rancores, que me assustava...
- Margarida: - Muito interessante, gostava de travar mais amistosas relações com ele...
- Avô Guido: - Isso, também lhe agradaria, tenho a certeza. Vocês dar-se-iam muito bem.
- Margarida: - Talvez não, assusta-me tal veemência...
- Avô Guido: - Ele continua solteiro? Ouvi dizer que tinha grandes êxitos junto das mulheres...
- Fernando: - Ora, não acredite, avô. São só gabarolices!
- Avô Guido: - Gabarolices?! Mas tu próprio me disseste repetidas vezes que, as mulheres eram loucas por ele.
- Fernando: - Disse-o por graça, por troça...
- Avô Guido: - Nada disso. Lembro-me perfeitamente daquela artista brasileira, que esteve quase a suicidar-se por causa dele; e daquela milionária americana, que não conseguiu que o Josué casasse com ela, embora o seguisse por toda a parte. E de tantas outras…
- Fernando: - Mas isso já foi há muito tempo...
- Avô Guido: - Mas tu próprio me contaste tudo isso. Teu irmão é um conquistador como não há outro igual!
- Margarida: - Safa! Que homem tão perigoso, esse Josué!
- Sandro: - Mamã, só comi oito pudins, e, tu prometeste-me quinze!
- Avô Guido - Quinze pudins?! Mas isso é um disparate!
- Sandro: - Quero quinze pudins, já disse e bato o pé!
- Margarida: - Obedece ao avô, menino... (está calado, pois, comerás os outros na cozinha, não sejas palerma...)
- Avô Guido: - Conheci um menino que morreu de indigestão, por ter comido quinze pudins.
- Sandro: - Isso são histórias! E se eu morrer, melhor para mim, pois, o meu pai diz que eu sou "carne para canhão”.
- Avô Guido: - "Carne para canhão", que horror! Teu pai diz isso?
- Fernando: - Digo por brincadeira, avô. Esse pequeno é um tontinho.
- Avô Guido: - Pois, é uma brincadeira de muito mau gosto, Fernando. Parece-me que vocês estão a criar muito mal este menino. Deviam mandá-lo para um colégio interno...
- Margarida: - Tem muita razão, avô...
Ia para acrescentar mais qualquer coisa mas ficou em suspenso, ao escutar o ruído de uma chave rodando na fechadura.
(continua...)
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Colaboração do autor.