terça-feira, 16 de novembro de 2021

João Batista Xavier Oliveira (Trovas de Quem Entende de Trovas) V


A alegria despertava
quando a porteira se abria.
Hoje aberta... sem a trava...
só transita nostalgia!
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A goteira enciumada
feriu a rosa em botão
porque à chuva misturada
nunca chamou atenção.
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A neve em nossos cabelos
não arrefece a união;
o tempo com seus desvelos
aquece nossa paixão.
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Anos dourados, orquestras,
rostos colados, penumbra,
voltas em passadas destras...
o meu passado vislumbra!
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Após a invenção da roda
apressa, numa rodada,
parece que virou moda
na roda-viva enrolada!
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Busquei na vida sentido
para compreender meus ais:
um grande orgulho contido
e amor pequeno demais!
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Como sou tão distraído!
Após você ir embora
notei quem tinha fugido:
eu de mim... somente agora!
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Cultivar rosas consiste
em saber do espinho oculto;
a ilusão dorida existe
na vida envolta num vulto.
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Dinheiro não cai do céu
e de pedra não sai leite;
quem espera sempre ao léu
não passa de um vil enfeite.
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Eu me sinto um fugitivo
sem teu olhar prisioneiro
pois na prisão em eu vivo
o amor é o meu carcereiro!
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Minha luz interior
tomou forma e consistência
quando descobri o amor
na mais singela existência!
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Não é ilusão dos meus olhos
nem delírio de carência;
são os sinais dos escolhos
desenhando a tua ausência!
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Não quero rimar espera
na tua ausência dorida;
ao chegar a primavera
a esperança é colorida!
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Nas noites esperançosas
meu sonho... apenas um vulto...
é um jardineiro entre as rosas
nos seus espinhos oculto!
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No jardim da minha infância
quantas flores eu colhi!
Ainda sorvo a fragrância
toda vez que volto aqui!
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O chilrear matutino
numa cadência sem fim
é o legado do menino
cantando dentro de mim!
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O ponto de referência
que nos uniu de verdade
foi a esquina da paciência
com as ruas da saudade!
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Parece um sonho e me espanta
nosso amor tanto expandir.
A felicidade é tanta
que receio até dormir...
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Pés na calçada da fama;
mãos abanando fortuna...
porém sua alma reclama
na solidão que importuna!
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Procurei felicidade
todos momentos da vida.
Encontrei-a na humildade:
estava em mim... escondida!
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Procurei na vida um jeito
de viver que me incentiva:
no jardim, amor-perfeito;
na esperança a sempre-viva!
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Quando o céu desaparece
o espírito em desarranjos
para encontrar-se na prece
precisa de muitos anjos!
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Quando se enxerga o inimigo
o embate é menos atroz,
pois ele é maior perigo
estando dentro de nós!
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Que valor tem conquistar
poder e glória sem fim...
se no aconchego do lar
solidão ganha de mim?!
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Quisera, nos meus delírios
que alcançam versos celestes,
a liberdade dos lírios
nos vastos vergéis agrestes.
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Quisera uma flor apenas
no meu portal de esperanças;
suas pétalas pequenas
são sorrisos de crianças!
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Teatral! Muito fagueira
a trova não é pequena:
representa a peça inteira
em uma única cena!
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Um grande amor é igual planta
pois cresce sem ser notado.
Diamante somente encanta
depois de ser lapidado.
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Um pequeno gesto basta;
pode mudar uma vida:
No instante que a mão se afasta
de outra mão na despedida.

Contos e Lendas do Paraná - 6 (Mamborê) Pala Branca


O conhecido Pala Branca veio da região de Caçador, Santa Catarina, após um tiroteio com a polícia daquele lugar. Passou a residir na região de Pensamento e possuía um documento com o nome de Fermino Caneveze, outro com o nome de Augusto Cela e havia, ainda, um terceiro documento.

Era chamado de Pala Branca, pois sempre usava um pala desta cor, para cobrir as armas de fogo que carregava presas ao seu corpo. Ele tinha três filhos e três filhas, todos muito educados. Todos os membros de sua família eram muito acolhedores, segundo contam os antigos. Ao chegar, à noite, na casa de alguém, por mais que fosse conhecido, não incomodava. Dormia próximo à cerca e só pela manhã chamava os donos da casa.

O Pala Branca era temido por aqueles que o conheciam ou sabiam de sua fama. Ao mesmo tempo, para os amigos, era um bom homem e estes usufruíam de sua proteção. Não era difícil para ele tirar a vida de alguém. Bastava que este o provocasse, ou prejudicasse um amigo seu.

Numa festa em Pensamento, um bêbado o provocou e o ameaçou com uma faca. Pala Branca afastou-se até os limites dos galhos de uma árvore. Aí o bêbado o feriu na cabeça. Pala Branca sacou sua arma e o matou. Entre os integrantes de sua gangue, destacavam-se Pé Grande, Cabeça de Tigre e Camisa de Couro.

Numa ocasião chegou a entrar a cavalo num bar em Mamborê, à procura de alguém.

Alguns proprietários de cavalos procuravam fazer amizade com Pala Branca; assim, ficavam mais tranquilos e os animais não seriam roubados. Para alguns que o conheceram, ele não era um “ladrão de cavalos”, propriamente dito. Houve casos nos quais ele e seus homens retiraram animais de propriedades, só com a intenção de prejudicar o proprietário, inimigo seu. Estes animais não eram para ser vendidos nem utilizados por Pala Branca.

Ele, porém, era envolto num grande mistério. Ninguém explicava como Pala Branca desaparecia nos momentos em que sua liberdade parecia ameaçada. Casos como o de uma festa com os amigos, numa residência em Mamborê. Lá pelas tantas, apareceu a polícia à procura de Pala Branca. Simplesmente ele desapareceu, voltando ao meio dos amigos algum tempo mais tarde.

Numa ida a Pensamento com um amigo, à noite e a cavalo, após aproximadamente cinco quilômetros da cidade, Pala Branca avistou dois Jeeps da polícia vindo em sentido contrário; disse ao amigo para que seguisse adiante. Assim ele fez. Passando a ponte, os policiais perguntaram ao amigo por Pala Branca. Este disse não saber. Os policiais seguiram em frente. Minutos mais tarde Pala Branca alcançou o amigo. Acontece que naquele trecho a estrada se transformava num verdadeiro corredor, com mato e cerca dos dois lados, não havendo a mínima possibilidade de se esconder.

Numa outra feita, Pala Branca e os amigos estavam numa zona do baixo meretrício, que se localizava nas proximidades da esquina da atual Av. Paulino F. Messias e rua Pirai. A polícia apareceu de repente na porta. Pareceu ser automático: entrou a polícia, Pala Branca sumiu. Os amigos disseram aos policiais que ele estava ali e que não sabiam para onde tinha ido. Apenas sua mula foi levada para a delegacia. Uma hora mais tarde, mais ou menos, Pala Branca já estava novamente entre os amigos e as mulheres.

Quando saiu de mudança para Pinhão foi ferido e escondeu-se em Pensamento, por um certo tempo. Veio a morrer mais tarde em uma briga com seus capangas, em Laranjeiras do Sul. Nesta, morreram, além de Pala Branca, mais duas pessoas.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Isabel Furini (Poema 23) Escrever

 Isabel é de Curitiba/PR


Baú de Trovas XXXVII



Traz o palhaço a mão cheia
de sementes de esperanças;
e alegremente as semeia
no coração das crianças!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Em momentos exaltados
sem poder falar e agir
o silêncio dá recados
que poucos sabem ouvir.
Alba Christina Campos Netto
São Paulo/SP
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Trago vivos na memória
lampejos do que passou...
São retalhos de uma história
que o passado recortou.
Ana Cristina de Souza
Teresópolis/RJ,  ????  – 2020, São Paulo/SP

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Dia a dia vai se impondo
este conceito batata;
a Terra é um mundo redondo
repleto de gente chata...
Aparicio Fernandes
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

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Êste mundo é um grande circo,
nós somos palhaços seus;
ele tem o céu por pano
e seu diretor é Deus.
Bernardo Guimarães Filho
Belo Horizonte/MG

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Eu já não tenho mais vida!
Tu já não tens mais amor!
Tu só vives para os risos,
eu só vivo para a dor.
Castro Alves
Curralinho/BA, 1847-1871, Salvador/BA

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Regressas… verás, contudo,
que enquanto o tempo passou,
tua ausência matou tudo
o que já fui… e o que sou,
Divenei Boseli
São Paulo/SP

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Da mulher, tanta feiúra
o espelho não aguentou,
escapuliu da moldura.
fez-se ao chão... se suicidou!
Élbea Priscila S. e Silva
Caçapava/SP

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Perdi-me na curva infinda
deste mundo de meu Deus,
por partir sem ter ainda
toda a luz dos olhos teus.
Evandro Moreira
Cachoeiro de Itapemirim/ES

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Tudo descora e se apaga,
é esta do mundo a lei;
desde a choça do mendigo,
até os paços do rei!
Fagundes Varela
Rio Claro/RJ, 1841 – 1875, Niterói/RJ

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Cai o orvalho, de mansinho,
nesta aridez do sertão...
E o povo aceita o carinho
que ameniza a insolação!
Giva da Rocha
São Paulo/SP

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Certos corações fechados,
a bater no isolamento,
têm mais mistérios guardados
do que um cofre de avarento!
Héron Patrício
Ouro Fino/MG, 1931 – 2018, Pouso Alegre/MG

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Tão etérea, tão airosa,
passou naquele momento,
que parecia uma rosa
despetalando-se ao vento...
Luiz Otávio  
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

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Só ruínas... e mais nada...
- e me entristeço de novo -
Na herança mal preservada
se perde a história de um povo.
Luzia Brisolla Fuim
São Paulo/SP

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Na altivez deste meu porte
de rainha em pedestal,
existe a mulher que é forte
e a outra… que é de cristal!
Maria Lúcia Daloce
Bandeirantes/PR

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Na partilha dos teus bens,
segue essa ideia que é linda;
divide o pouco que tens
com quem tem menos ainda.
Maria Madalena Ferreira
Magé/RJ

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Ao homem Deus deu Terra
e veja o que o homem faz:
cria as hienas da guerra
e mata as pombas da paz.
Olympio da Cruz S. Coutinho
Belo Horizonte/MG

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Passou... Bonita de fato!
E o mar, ao vê-la, tão bela,
sentiu não ser um regato
para correr atrás dela!
Orlando Brito
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

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Nos caminhos que, hoje, eu trilho
nos lares não se usa mais...
Eu sou do tempo em que o filho
pedia a bênção aos pais.
Therezinha Dieguez Brisolla
São Paulo/SP

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Meu portão velho e sem brilho...
mas, na pintura sem cor,
os rabiscos do meu filho
valem poemas de amor!
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

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Saudade vive e contesta,
acorda de madrugada,
faz lembrar o fim da festa...
o beijo... e a noite estrelada...!
Vânia Ennes
Curitiba/PR

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A quem cultiva um jardim,
a natureza lhe ensina:
se a estiagem não tem fim,
orvalho é benção divina.
Yedda Ramos Maia Patrício
São Paulo/SP

Rita Mourão (Ebook Cristais Poéticos)


Ebook com poemas e trovas da Magnífica Trovadora e Poetisa Rita Marciano Mourão, de Ribeirão Preto/SP.

Baixe o e-book no link:

 

domingo, 14 de novembro de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 16: Durval Mendonça

 


Aparecido Raimundo de Souza (O Gaiato)


Nesta manhã o patrão chega mais cedo ao escritório e entra porta adentro todo alegre e saltitante. Antes de pisar em seu gabinete para começar o dia, reúne todos os funcionários no refeitório para divulgar a boa nova:

— Gente, eu pediria um minutinho só da sua atenção. Pode ser? Hoje tenho uma ótima notícia para dar...

A galera, em peso e a uma só voz:

— Nós ganhamos alguma concorrência?

— Não.

O chefe da produção arrisca:

— O senhor acertou na loteria?

— Quem dera...!

A secretária, bonita e encantadora, sumariamente acondicionada num vestido que praticamente deixa tudo à mostra, se levanta e manda um palpite:

— O senhor comprou aquele carrão que fomos ver no final de semana?

0 sujeito fuzila a moça com os olhos. Pensa em mandá-la às favas, mas, devido a magia do contentamento que o acompanha e contagia, sorri e acaba respondendo educadamente:

— Não senhorita Silvia. Meu sócio se antecipou...

Priscila, do RH se aventura:

— Vamos, finalmente, mudar para o prédio novo?

— Creio que isso ainda demorará um pouquinho. Pelo menos mais uns trinta a quarenta dias.

O Waldir da informática também se faz presente:

— O senhor saiu vitorioso naquela briga acirrada na justiça com a nossa maior rival no caso dos postes pré-fabricados com sensores anti-cachorros?

— Meu rapaz, você errou o alvo. A notícia da qual sou portador é melhor do que tudo que foi ventilado até agora. E esse tiro que vou anunciar com o coração em festa, não saiu pela culatra. Grosso modo, a bala foi certeira...

Dona Maria do financeiro se adianta confiante:

— O senhor botará em prática aquela promessa antiga de premiar a melhor equipe com uma viagem ao exterior com tudo pago e direito a acompanhante?

— Ainda não, Maria. Talvez no próximo ano...!!!

— Vai nos dar um bom aumento? — grita um engraçadinho anônimo lá do fundo do salão.

— Pessoal, eu estou falando sério. Muito sério!

— Dá uma dica ai, patrão — pede dona Dulce, da copa, com uma alegria intensa no rosto envelhecido.

— Não tem graça, tia Dulcinha. Ficaria fácil demais.

— Uma colher de chá...!

— Ao menos de café, pode ser?

— Melhor que nada.

— Ok! Vou realizar meu maior sonho.

— Sonho? Ah, tá. O senhor comprará um iate?

— Seu palpite está gelado. Super gelado!

— Um jatinho particular?

— Passou longe, amigo.

— Uma mansão numa praia afrodisíaca?

— Já tenho uma.

— Vai ter seu próprio canal de televisão?

— Não!

— Vai se mudar de mala e cuia para um apartamento de cobertura em Las Vegas?

— Nem pensar...

— Trocará os móveis, as cadeiras e os computadores aqui da empresa por outros novos e de última geração?

— Vocês terão tudo isso e muito mais quando mudarmos para o prédio novo.

Nesse momento os funcionários gritam, assoviam, dão vivas e batem, com fortíssimo entusiasmo, uma salva de palmas. O todo poderoso a um gesto com as mãos, volta a pedir silêncio:

— Galera, como já disse, e volto a repetir, estou falando sério. Seríssimo!

— Já que ninguém deu uma dentro, conta aí, doutor. Manda o papo numa boa...

—... Pois bem. A minha mulher, finalmente, ficou grávida. Não é sensacional? Minha mulher está buchuda, prenha, barriguda. Cíntia vai ter um nenê. Vai me dar um filho...!!!

O mesmo engraçadinho anônimo de alguns minutos atrás, sentado, ainda, no fundo da sala torna a se levantar, desta vez berra, chamando a atenção de toda a turma, em sua direção:

— E o senhor, por acaso, sabe quem é o pai?

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Como matar sua mulher sem deixar vestígios. SP: Sucesso, 2012. (ebook enviado pelo autor)

Rachel de Queiroz (Pedra encantada)

A pedra é grande, escura, e fica debaixo de uma ingazeira, à beira do riacho. Tem vagamente a forma de uma mulher de joelhos.

É a pedra encantada. Pelo menos é o nome que lhe deram, e muita gente acredita.

A história é que toda véspera de ano-bom, ao bater da meia-noite, a pedra se desencanta. Diz que vai amolecendo, amolecendo; não muda num átimo, pelo contrário. A pedra primeiro abranda, aos poucos perde o grão áspero e se torna macia, depois a corcunda se apruma, levanta-se a cabeça, vão brotando as feições do rosto, o pescoço se alongando, os braços se estiram e se abrem, os seios apontam e se arredondam, o gargalo da cintura se afina e depois se alarga nas ancas — molda-se a mulher toda na pedra mole como o barro no torno do oleiro.

E por fim está a moça toda pronta, mas ainda adormecida, ainda na cor limosa da pedra. Sempre lentamente, ela então se desencanta do sono, abre os olhos, corre a vista em redor e examina o próprio corpo. Verifica com horror que conserva a pele suja da pedra, exposta à chuva, ao sol e à poeira nos 12 meses do ano. Se já choveu em dezembro e o riacho empoçou água, a moça se encaminha até lá embaixo, em passos trôpegos, mais rolando que andando, banha-se no poço, e a sua cor se limpa.

Mas se ainda não choveu e o riacho está seco, ela fica muito tempo ajoelhada na areia e diz que é no sereno da noite que se lava — custa mais a desencantar direito, claro, esperando que a marugem do orvalho lhe banhe o corpo todo, e assim mesmo a pele não fica tal qual ela queria, alva e lustrosa. Por isso se conta também que, em certos anos, a mulher da pedra encantada é uma moça branca e em outras é cabocla roxa, como bugra do mato.

Depois de lavada, torna a moça a subir ao seu lugar e procura imitar a posição em que estava quando virada em pedra: de cabeça baixa e ajoelhada, Para uns, essa hora é de penitência — a mulher fica rezando e pedindo perdão dos pecados de outros tempos, que foram muitos. Para outros, fica assim apenas imaginando, se recordando de quem é, do que veio fazer, acabando de despertar daquele sono comprido de 12 meses.

A maioria, entretanto, diz que não é nada disso, que a bruxa fica assim só de maldade, que bem esperta já é ela desde o tempo em que ainda nem era pedra. Se se põe assim encolhida é para enganar os passantes, a fim de que não sintam falta do vulto corcovado que estavam habituados a encontrar ali.

Tem ano em que toda santa noite a mulher espera em vão, e não passa quem ela quer. Com o nascer do dia ela volta a se encantar, mas com uma raiva tão danada que durante o ano inteiro, quando o sol lhe bate de rijo, vê-se uma fumacinha serpeando no ar, saída da pedra: é a raiva da moça, fervendo lá dentro.

Mas nas noites de sorte, aponta no caminho estreito, entre as moitas, o moço bonito que ela já havia escolhido. Sim, porque durante o ano que se passou muitos moços hão de ter andado diariamente por ali, dando ensejo a que a bruxa da pedra escolha o seu preferido — o mais bonito de todos.

E assim vem vindo ele, coitadinho, de repente dá com os olhos naquela moça ajoelhada — nua! — com a cabeça caída sobre o peito — os braços cruzados —, e no alvoroço de vê-la já nem lhe ocorre perguntar por que estará a mulher no mesmo lugar em que sempre costumou haver uma grande pedra. E ela, sentindo a presença do homem, levanta a cabeça, abre os olhos, abre devagar os braços, se desvenda toda — e o moço então se perde, porque nunca o atraiu chamado igual. Se entrega, se abandona como se fosse se matar.

E por fim, exausto, dorme, e quando o dia amanhece ele acorda à beira d'água, junto às moitas de muçambê, e vê a pedra escura ao seu lado, e tudo lhe diz que as suas lembranças foram um sonho.

Mas que sonho esse, meu Deus! É um sonho que ele não esquece jamais. Todo o seu resto de vida ele ficará escravo daquele sonho, e mal anoitece procura o lugar à beira do riacho, e abranda o passo ao chegar — mas a pedra continua preta e morta. Ignora ele que só uma vez por ano poderá reencontrar aqueles braços.

E de tanta ansiedade o moço vai se consumindo, envelhecendo, se desgastando, só naquela esperança. Mas afinal chega a nova noite de Ano. Como em todas as outras noites, ele passa fielmente à hora certa — aquela hora de antes, em que a criatura o recebeu nos braços. Maravilhado descobre que ela está ali de novo, bem o seu coração lhe dizia, bem teimava! Mas em pleno abraço de amor a lua clareia e a moça enxerga a face do seu amante, enrugada, escaveirada, que não é mais a cara bonita, radiante de mocidade que ela escolhera. Fica então furiosa e jura que o homem é outro, não o moço que ela ama. Daí, talvez nem seja maldade nem ingratidão. Ela é fiel a um homem, um rosto, um nariz, uma boca, um corpo. Mas se aquilo se gasta e se transforma, como é que ela vai saber que ainda é o mesmo — ela que não conhece idade nem velhice e pelos tempos afora é sempre a mesma, de carne ou de pedra?

Aí ela expulsa o homem, na sua fúria, e, se ele teima, pode até matá-lo com aqueles braços que têm a força da pedra onde se geraram. E o desgraçado, mesmo quando escapa, para ele é pior do que se morresse, porque fica ali rondando, feito um louco, e sempre volta, até que outro lhe toma o lugar,

O povo, durante anos, não sabia por que na noite de ano-bom muitas vezes se encontrava à beira do riacho um homem morto, estrangulado. Certa vez foram mesmo achados dois mortos. Eram o velho e o novo amante da pedra encantada que se tinham pegado à faca. E, quando se descobriu o mistério, resolveram arrancar a pedra dali. Trouxeram um trator, mas o trator nem aluiu o rochedo, era como se ele estivesse enterrado a cem braças do chão. Tentaram em seguida dar um tiro de dinamite, mas também a dinamite falhou; detonou só um pequeno estalo que mal arrancou uma lasca da pedra.

Estavam estudando outro jeito — quando alguém que olhava a pedra deu um grito, e todo mundo, vendo o que era, largou de mão, assustado.

Na lasca da pedra, que a dinamite abrira, saía correndo um filete de sangue, bem vermelho, sangue vivo, lustroso na luz do sol.

Fonte:
Rachel de Queiroz. Pedra encantada e outras histórias. RJ: José Olympio, 2011.

Minha Estante de Livros (Sôbolas manhãs, de Nilto Maciel)


O último livro de Nilto Maciel, Sôbolas Manhãs, foi publicado pouco antes de sua morte de forma enigmática, no dia 29 de abril de 2014, em Fortaleza.

“Tenho certeza de ter escrito um livro de boas ideias ou, pelo menos, com o melhor dos intuitos: o de divulgar os escritores brasileiros avessos ao ‘jornalismo de resultado’, à crítica tendenciosa e aos vendedores de pedras falsas”. (Nilto Maciel)

O objetivo do livro é claro: nominar escritores que veem na literatura um fim em si mesmo. Contrário, portanto, a tudo que venha de encontro a esse projeto (o “jornalismo de resultado”), o que supõe um rol de escritores dos mais variados matizes, mas comungando dos males referidos acima.

Apesar de “programático”, “Sôbolas Manhãs” é um livro múltiplo, abrangendo gêneros imprecisos como os que matizam a crônica, o comentário, artigo e o ensaio curto embora, rigoroso, divididos em quatro seções mais ou menos distintas. Ao final do volume, é possível saber-se, entre outras coisas, que o autor é cearense da Serra de Baturité, que na adolescência quis ser revolucionário como Vladimir Ylitch Ulianov, que cursou direito, que dirigiu revistas literárias (“O saco”) etc.

É possível saber-se o essencial: que Nilto Maciel publicou vasta obra, entre contos, romances, poesia, ensaio e crônica. Neste último gênero, três títulos felizes: “Menos vivi do que fiei palavras”, “Como me tornei imortal” e “Quintal dos dias”. Além disso, alguns dos seus livros receberam prêmios, e que tem contos e poemas traduzidos no estrangeiro.

A morte de Nilto Maciel esteve em circunstâncias cercadas de mistérios e enigmas. Por trás dessa obscuridade – em geral provisória, se a perícia tiver sorte – é possível se discernir um rosto e algumas ideias.

Por exemplo, é possível perceber que há temas recorrentes ao longo de suas páginas, como a tentativa de explicar o impulso escritório. Aliás, um de seus textos tem justamente esse título: “Por que escrevemos?”, no qual diz Nilto Maciel: “Escrevemos para depois de nós; nunca para antes nem para o nosso tempo (o hoje, o agora). Por isso, queremos registrar tudo no papel, em livro. E, assim, chegamos à conclusão de que escrevemos porque queremos nos perpetuar e não porque queremos ganhar dinheiro, fama, homenagens, admiração”.

Em “Literatura de violência e literatura de baixo nível”, ele é mais incisivo: “[...] Não escrevo de acordo com a moda. Também não escrevo como os antigos [...] Quero ser eu mesmo, embora reconheça influências. Não desse ou daquele escritor, mas de um modo, de um estilo [...] Como não sou só, minhas memórias são também as dos outros. Até dos que fazem ‘literatura mediana’ e ‘literatura ruim’. Portanto, todos são necessários, como na natureza do verme ao leão”.

“Sôbolas manhãs”, com seu eco camoniano incontornável, repõe em discussão muitos temas que marcam a literatura nordestina dos nossos dias, sem avançar soluções fáceis, antes propondo uma cultura de si que encontra correspondência na própria divergência que a alimenta. Em suma, um livro de boas ideias, como quis seu autor.
(trechos do artigo de Nelson Patriota)
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Excertos do prefácio do autor:

A ORIGEM DAS ESPÉCIES DE LETRAS

Para este livro arranjei um título esdrúxulo: Insertas garabulhas. Mudei de ideia; como se pode ver. Adotei Sôbolas manhãs. E pergunto: Como terão eles surgido? (…) Ao publicar Gregotins de desaprendiz, recebi algumas reclamações. Não sei se referiam a "gregotins" ou a "desaprendiz". Falavam em desuso e antiguidade. Ante Insertas garabulhas, certos críticos poderiam estranhar o primeiro vocábulo. Outros teriam oportunidade de demonstrar erudição: Garabulha está em fulano, obra tal, capítulo...

A fim de deixar o leitor mais à vontade, dividi o todo em quatro partes. Na primeira faço um passeio pela história da literatura fantástica e descambo para o lado mais repugnante da História do homem. Para terminar, constato que a imprensa se deleita mesmo é com a miséria, a violência, a morte. A segunda parte é de relembranças e homenagens a escritores fantásticos e minha memória deles, de viagens e de mim mesmo. A terceira completa a segunda: outros escritores (uns mortos, outros na "lida insana", "no tropel das paixões").

Encerra-se o volume com algumas considerações, nada científicas ou acadêmicas, a respeito da gênese (no indivíduo) da escrita literária, do processo criativo e da constatação de que a minha agonia — e de cada um de nós escritores — nada tem de fantástica ou sobrenatural. Porque tudo é feito de barro e servirá a outras construções, ou simplesmente será levado ao lixo ou ao cemitério do esquecimento. Memento, homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris.*

Assim como alguns artigos de Gregotins foram redigidos entre 1976 e 1993, na presente coletânea também há textos desse período: "Literatura fantástica no Brasil"; "Utopias, mentiras e verdades"; "A devassa dos labirintos selvagens"; "O massacre dos Waimiri Átroari"; e "Histórias de um povo Xetá".

(…) O primeiro desses cinco escritos, por ser o mais longo, se manteve inédito em papel até agora. Originou-se de pedido (pode ser chamado também de induzimento ou insistência) de Carlos Emílio Correia Lima, desejoso (imagino) de ser incluído no rol dos mais notáveis cultores da literatura fantástica. Aceita a petição, dediquei boa parte de meus dias (não me lembro mais do ano) a pesquisas e leituras, para alcançar o objetivo: um histórico da literatura fantástica no Brasil, Como o trabalho tomou proporções de ensaio, não tive onde publicá-lo. E permaneceu na gaveta por alguns anos. Até descobrir um sítio na Internet (virtualbooks.terra.com.br), no qual pude expô-lo, na íntegra. Os outros quatro estudos podem ser vistos como resenhas de ensaios e breves comentários reunidos em livro, relativos à questão indígena brasileira.

Artigos diversos desta coletânea são dos anos 1990. Cito dois: "Um doutor em poesia" [Poiésis, setembro de 1995) e "Uilcon Pereira, um escritor do século XXI" (edição de janeiro de 1998 daquele informativo). As demais garabulhas deste conjunto são de lavra mais recente, já da época dos blogs. A maioria deles não apareceu em jornal impresso.

Divido, minha vida de leitor, em quatro períodos: infância (da descoberta das letras ao encontro do primeiro livro); adolescência (correspondente à fase de deslumbramento com tudo, sem orientação, na doida, curioso feito rato em cozinha nova): juventude (vontade de imitar os clássicos, sem deixar de lado os novos; ser outro Camões e, ao mesmo tempo, inventar a roda e o alfabeto); e decadência (lembrança constante do primeiro livro lambido, medo de ratos e ratoeiras, respeito ou veneração pelas imagens dos fundadores da santa madre igreja literária, aceitação do conceito de que toda roda é redonda e de que nenhuma letra nos salvará do fim).

Minha vida de crítico tem apenas duas etapas: a dos jornais e revistas impressos e a da rede mundial de computadores. Ou, noutros termos, dois modelos de apreciação crítica: o modelo tradicional (resenha ou artigo) e o modelo novo (misto de crônica e conto).

Todos os pedaços que constituem Gregotins são da primeira etapa e do primeiro modelo. Alguns deste caderno (os noticiados no início desta apresentação) são também da era dos suplementos e jornais literários etc. Os demais já nasceram sob o signo da net e, portanto, não conheceram papel e tinta de jornal. Os com cara de crônica ou conto serão reunidos em dois ou três livros, em breve.

Costumo ler com lápis à mão. Chamam-me a atenção não apenas vocábulos antigos, em desuso ou completamente estranhos a mim. Não sou de andar com dicionário, embora o consulte no exercício do burilamento do texto. Grifo, quase sempre, falhas, cochilos, dissonâncias, desarmonias, cacofonias, repetições, obscuridades. E também frases harmoniosas, versos musicais e claros ou capazes de causar perplexidade, marcados pela originalidade, com força retórica. Poesia pensada e não mero artifício verbal. Entretanto, não me atenho a fazer anotações em peças consagradas, a não ser para me deliciar mais depois e quando me sentir enjoado (eu não disse enojado) da sandice — em forma de poema, conto, romance — inserta em certos livros.

Tenho seguido um rumo: leio tudo – de Esopo ao fabulista pós-moderno – porém só comento obras desconhecidas por Heráclides do Ponto ou Demétrio de Faleros. Ou seja, brasileiros nascidos no século XX. Depois de Machado, minha intenção é torna-los lidos por gregos, galegos, galaicos e galagos. Mais Esopo, mais fábula, mais brincadeira, mais galhofa, pois somos pó e ao pó reverteremos. És o pó e ao pó voltarás… quia pulvis es, et in pulverem reverteris.
(Fortaleza, 24 / 29 de setembro de 2013)
_________________________
*Lembra-te, homem, que és pó e em pó te tornarás.

Fontes:
– Excertos do artigo por Nelson Patriota para a Tribuna do Norte. 04/05/2014
– Nilto Maciel. Sôbolas manhãs. Porto Alegre: Bestiário, 2014. Trecho do prefácio do autor. (livro enviado pelo autor)

sábado, 13 de novembro de 2021

Adega de Versos 56: Elisa Alderani

 


Fernando Sabino (Primeiro andar)

— O senhor não devia continuar morando aqui. Convinha ir para Minas, para Campos do Jordão, qualquer lugar assim.

Depois que o médico saiu, ele deixou cair pesadamente o corpo na cama-patente, as molas rangeram. Ficou fumando para o teto sem pensar em nada. Aos poucos o quarto ia-se escurecendo. Pela janela estreita o reflexo vermelho de um anúncio luminoso. Lá embaixo na rua o ruído do tráfego. Findo o cigarro, esmagou-o no cinzeiro de ferro e ergueu-se, espreguiçando. Tossiu duas vezes, foi até a pia a um canto e escarrou. Acendeu a luz para ver: não havia mais sangue. Deixou que a água da torneira corresse um instante, depois ficou a andar pelo quarto — em duas passadas percorria-o em toda a sua extensão. Deteve-se diante da mesinha, encheu meio cálice de conhaque e bebeu. Era o que restava na garrafa. Bateram à porta.

— Entra! — resmungou, aborrecido:

O porteiro entrou, olhando-o alarmado:

— O senhor está melhor?

— Não foi nada! — explicou, displicente. — Um acesso à toa, já estou acostumado. Bom sujeito, esse médico que você me arranjou, não quis cobrar nada.

O outro continuava a olhá-lo como a um fantasma.

— Que cara é essa? Nunca me viu?

— O médico disse...

— Esquece isso.

Voltou a andar de um lado para outro. Acostumara-se àquele quarto, às luzes da Cinelândia que mal podia vislumbrar da janela, ao elevador de grades enferrujadas que subia rangendo até o quinto andar. Era um hotelzinho antigo, apertado entre dois grandes prédios do centro — em breve seria vendido para demolição. Viera para ali apenas de passagem, depois do apartamento de que tivera de se desfazer. E fora ficando. As coisas não andavam nada boas para um homem de rádio como ele, sem emprego fixo, compositor de outros tempos, doente e, o que era pior, de inspiração escassa. Acabara se afeiçoando ao porteiro: um ratinho assustado que deslizava sem ruído pelos corredores, e de quem sabia desenterrar velhos casos do hotel, ainda nos seus bons tempos. Já pensara até em dedicar-lhe um samba.

— Olha aí! — mostrou-lhe a garrafa — Já acabou.

Fora o único que se lembrara dele no último Natal, tivera a suprema delicadeza de lhe trazer aquele conhaque — nacional, mas dos melhores.

— Como é? Vamos jantar?

De vez em quando jantavam juntos num restaurante da Lapa, cada um pagava o seu. Mais de uma vez, porém, o homenzinho lhe emprestara dinheiro.

— O senhor, com essa sua saúde, não devia ficar bebendo não.

— Essa é boa! Foi você mesmo quem me deu!

— Sabe? O senhor, assim doente, morando aqui...

Via-se que ele queria dizer alguma coisa, não sabia como:

— Já sei! Você acha que eu devia me internar.

— Não! Eu acho é que o senhor devia se mudar para o primeiro andar.

— Primeiro andar? Mas se eu preciso é justamente de ar fresco... Devia me mudar é para o andar de cima.

— Não, não! — fez o homenzinho, cada vez mais aflito — O senhor não está me entendendo! Um quarto no primeiro andar seria melhor.

— Os do primeiro andar são tão ruins como este, meu velho.

— É, mas aqui tem esse elevador que não cabe nada dentro.

Olhou-o, intrigado:

— Onde é que você quer chegar com essa conversa? Fale de uma vez, homem.

— O senhor por favor não me leve a mal. É que se acontecer alguma coisa... vai criar um problema para mim. Já imaginou? A dificuldade?

Só então, estupefato, entendeu o que o outro, na sua aflição, não tinha coragem de dizer. Sua primeira reação foi achar graça:

— Você acha que eu estou tão mal assim, é?

— Quem, eu? Não, longe de mim. Ê que o médico disse...

— Eu não seria o primeiro a morrer neste hotel, que é que há? — riu-se ele.

— O senhor está rindo? Deus me livre que aconteça uma coisa dessas, mas imagine minha situação se acontece. O senhor é muito comprido, olha só o tamanho das suas pernas. E o elevador...

— Desce pela escada. — sugeriu.

— Não dá! — o outro atalhou com intensidade — Já estive estudando a situação. Não dá de jeito nenhum. É muito apertadinha, cheia de curvas.

Resolveu interessar-se pelo problema:

— Como é que não dá? Vamos até ali fora para ver.

Saíram os dois do quarto e junto à escada puseram-se de frente um para o outro, curvados, como se transportassem uma coisa pesada.

— Assim. Agora vai virando devagar. Olha aí, eu não dizia? Chegando aqui tem uma quina, não passa de jeito nenhum.

— E são cinco andares...

— Para o senhor ver.

— Pela janela?

— Ah, isso então nem é bom pensar. Calaram-se, ficando olhando um para o outro.

— Está bem! — encerrou ele - Eu me mudo. Agora, por favor esquece isso e vamos jantar.

Foram jantar, e no dia seguinte ele se mudava para o primeiro andar.

Morreu dois meses depois. Na rua.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Barão de Itararé (Versos Diversos) 4

A VER NAVIOS


No porto, à tarde, passo horas ideais,
Vendo a entrada e a saída dos vapores
E ouvindo os altos gritos infernais,
Dos marujos e o ruído dos motores.

Mas, além disso, mora em frente ao cais,
Uma menina, linda como as flores,
Dona duns lindos olhos tentadores,
Olhos tão belos que não têm iguais.

Se chove ou venta, a angélica donzela,
Talvez seguindo um paternal conselho,
Não deita o rosto fora da janela.

E é por isso que nestes dias frios,
Batendo o queixo e de nariz vermelho,
passo a tarde inteira a ver navios.
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DERRETIDO

Que calor, santo Deus! A gente sua,
Por quantos poros tem para suar?
O sol malvado, que no céu flutua,
Parece e creio que nos quer torrar.

Mas não quero saber se há sol na rua...
Eu prometi... eu prometi passar
E hei de vê-la, custe o que custar,
Que um homem de palavra não recua.

40 graus ! Em ponto algum há sombra.
Esse calor, contudo, não me assombra,
Que tenho o peito em fogo convertido.

Mas, se ela surge ou vem me ver passar
E sobre mim dardeja o seu olhar,
Então, sim! Fico todo derretido...
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DESESPERO

Minha amada — uma pérola sem jaça —
Já declarou, perante o mundo inteiro,
Que só se casará (ai! que desgraça!)
Com um homem de juízo e de dinheiro.

O que será de mim? Por mais que faça
O fado ingrato que me ver solteiro.
Sinto fugir-me o sonho alviçareiro
De me casar e perpetuar a raça.

Juízo? — Bem sei não tenho, que estou louco,
Pela ingrata, que me enche de feitiço,
Com o estranho fulgor dos olhos místicos.

Dinheiro? — Trinta contos... É bem pouco
Não chegam para nada... e além disso
Os meus contos são contos… humorísticos…
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JUVENTUDE ESTUDIOSA

O tufão das paixões na juventude
Em nosso ser um fogo estranho ateia.
Qualquer olhar suspeito nos enleia,
Qualquer sorriso arisco nos ilude.

A nossa alma, robusta na virtude,
Vive de sonhos e quimeras cheia.
O sangue nos borbulha em cada veia,
Em borbotões de força e de saúde.

Mas agora, nesta época de estudo,
Devemos abafar, antes de tudo,
Este fogo nas folhas d'um compêndio.

Pois não convém passar pelo vexame,
De vermos os bombeiros, num exame,
extinguir com suas bombas este incêndio.
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PRESENTE DE ANO BOM

Neste ruidoso dia, em que começa
Um novo ano, eu venho, reverente,
Pedir de tua bondade um bom presente,
Que um prêmio mau não é coisa que se peça.

Quero um presente bom (desculpa-me essa
Exigência atrevida e impertinente)
Um presente dos outros diferente,
Que eu não possa esquece-lo tão depressa.

Nada te custa o mimo desejado,
Mas deve ser assim sincero e puro,
Como este grande amor puro e sincero.

Renovando as promessas do passado,
Prometendo cumpri-las no futuro,
Podes dar-me um presente como quero...

Fonte:
Apporelly (Barão de Itararé). Pontas de cigarros: livro de versos diversos. Rio de Janeiro: O Globo, 1925.

Cláudio de Cápua (O Mundo Literário em Preto & Branco) José Mauro de Vasconcellos


Indicado por Valter Avancini, participei, no final de 1970, da adaptação da novela de José Mauro de Vasconcellos, "Meu Pé de Laranja Lima". Avancini era velho conhecido, filho do seu Pedro, pedreiro que já trabalhara na casa dos meus avós maternos em Moema.

Numa 5a. feira, dei uma passada pela sede da União Brasileira de Escritores. Na secretaria da entidade, Caio Porfírio, grande contista e secretário administrativo da U.B.E., conversava com um membro de uns 50 anos e de boa aparência. Acomodei-me na sala de estar, quando, de repente, o tal senhor que falava com o Caio chegou-se a mim bastante alterado afirmando que eu tinha ajudado a transformar seu livro (obra consagrada pelo público leitor) em caca. Fiquei sem ação pois não sabia quem era o tal senhor e muito menos a qual livro se referia.

O tal cidadão, após discurso exaltado, saiu, muito bravo, sem se despedir de ninguém. Olhei para o Caio surpreso, indagando quem era aquele sujeito. Caio sorrindo adiantou-me tratar-se do escritor José Mauro de Vasconcellos, autor do "Meu Pé de Laranja Lima", e que estava "fulo" com a TV Tupi, pois achava que a emissora fizera uma péssima adaptação de seu livro.

Bastante irritado com o tal de Zé Mauro, prometi a mim mesmo que, no próximo encontro, caso viesse ele com novas grosserias, iria levar um soco no queixo.

Duas semanas após o episódio com o Zé Mauro, estava eu na U.B.E. quando chega Zé Mauro, passa pela secretaria, atravessa o salão e vem em direção ao bar, onde eu me encontrava. Desabotoei calmamente o meu colete para ter mais mobilidade para o que desse e viesse. Zé Mauro chega e surpreendentemente me abraça emocionado dizendo: - Estou chegando do Rio de Janeiro, da casa da minha mãe, eu sou filho de um comerciante português e uma índia analfabeta da Paraíba.

Emocionado, confessou o que sua mãe lhe dissera: graças à novela conseguira entender do que se tratava o seu livro. Ela me disse com voz embargada: – O livro tem muito de você. – E o Zé Mauro completou: - Se não fosse essa adaptação para novela, minha mãe desconheceria o enredo do meu livro.

Eu não sabia o que falar. Foi a minha vez de ficar emocionado. Caio Porfírio interferiu convidando-nos a uma rodada de cerveja no bar do outro lado da rua.

Depois desse episódio, ficamos grandes amigos, Zé Mauro e eu. Lancei sua candidatura, em 1974, a Intelectual do Ano - "Prêmio Juca Pato", Zé disputou o título com Sérgio Buarque de Holianda e perdeu a disputa. No desenrolar da campanha, a ex-crítica literária do Diário de São Paulo, poetisa Maria Rosa Moreira Lima, co-sogra do Edmundo Monteiro, presidente do Grupo dos Diários Associados, em conversa telefônica, fica sabendo por meu intermédio que o Zé era candidato ao "Prêmio Juca Pato"e a meu pedido votaria nele por ser fã dele e de sua obra.

Eu lhe disse que naquele momento o Zé se encontrava na sede da U.B.E.. Ela me afirmou que gostaria de falar-lhe ao telefone. Quando solicitei ao Zé Mauro que correspondesse ao chamado explicando a causa, veio dele uma das suas respostas impensadas: - Se ela quiser votar em mim que vote mas eu não falo com ninguém sobre esse assunto.

Dei uma desculpa razoável a Maria Rosa. E muito revoltado falei ao Zé: - Você destratou uma senhora de 86 anos e que é sua grande fã, além de ser uma renomada intelectual que merece todo o respeito.

Daí em diante, não lutei mais com o mesmo afinco pela sua candidatura. Entretanto, José Mauro de Vasconcellos, apesar de rude algumas vezes, era bastante emotivo e sempre pronto a ajudar financeiramente a alguém em apuros. Pagava os estudos dos sobrinhos e também dos onze filhos de seu motorista. Nunca se ligou definitivamente a uma mulher. Seus romances eram passageiros e três deles bastante conhecidos: um deles foi Cacilda Becker, quando ela contracenou com ele em Lírios do Campo. Outro, a grande comunicadora de TV, Hebe Camargo, que sempre punha o escritório de sua casa à disposição de Zé Mauro para escrever seus romances. E, posteriormente, a poetisa paulista Mariazinha Congiglio. Nenhum desses romances durou mais do que alguns meses, mas Zé Mauro manteve sempre boa amizade com elas.

Eu já morava em Santos quando, através da rádio, tomei conhecimento da morte do José Mauro. Fiquei sabendo que, após ter feito uma cirurgia, três pontes de safena e uma mamária, o impetuoso Zé Mauro antes de completar 60 dias da delicada cirurgia, resolveu dar um mergulho de 16 metros de profundidade, o que teria ocasionado uma embolia pulmonar fatal.

O velório lotado com cerca de 300 pessoas. Entre estas, Hebe Camargo muito triste e Mariazinha Congiglio, entre lágrimas. Quis o destino que uma das alças do caixão ficasse ao alcance da minha mão e, com tristeza, reportei-me ao enterro de Plínio Salgado, em 1975, quando o mesmo acontecera.

Mais uma vez uma honra cercada de grande tristeza. Assim, despedi-me de outro grande amigo, que em outra dimensão deve ter sido recebido por Cacilda Becker, sua fã que partira antes dele.

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retrovisor: crônicas.
1.ed. Santos/SP: Publicação Mônica Petroni Mathias, 2021.
Livro enviado pelo escritor.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Varal de Trovas n. 533


Marques de Carvalho (Conto do Natal)

O velho padre Jacinto estava já abroquelado (protegido) na dupla couraça da virtude e da idade. Não havia cara bonita de mulher nova que lhe atraísse um olhar mais demorado, assim como não existia pecado, venial ou mortal, cuja denúncia pudesse conturbá-lo. Tinha o sacerdote ouvidos castos para quantos delitos lhe segredavam as beatas, através da lâmina de folha esburacada do confessionário.

E era sempre com a mais tranquila meiguice, toda paternal, que monotonamente prescrevia um Padre-Nosso e uma Ave-Maria como penitência às mais reincidentes pecadoras.

Trinta anos de pastoreio de ovelhas espirituais haviam-lhe dado, com a calma imperturbável, o anestésico da sensualidade. Dentre as suas mais assíduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa devoção, uma jovem mulatinha, filha de um fazendeiro da comarca de Chaves. Era um primor, a Maricota, requestada por muitas léguas em torno, na cálida terra marajoara, onde o amor bebe roborantes (confirmados) filtros aperitivos, na doce emanação das gordas pastagens restolhadas.

Ninguém mais atenta do que ela aos deveres do culto católico e ao cumprimento de suas obrigações domésticas: "rapariga da ponta", consagrava-a a opinião da comarca, pelo órgão competentíssimo do conspícuo juiz de direito.

Quando chegou dezembro, Maricota combinara com o vaqueiro Antônio, seu namorado de infância, que a fosse pedir em casamento no dia de Natal. Tinha fé na data, que havia de angariar-lhe maior messe de venturas; e ainda em obediência à inclinação religiosa, abalou campos a fora, até à residência do clérigo, a quem confiou a tarefa de formular perante seus progenitores o pedido sacramental em nome do rapaz.

Ao trêmulo pastor d'almas agradou aquela incumbência intencional, como lisonjeira homenagem à sua dupla autoridade de confessor e velho amigo da família.

Que fosse com Deus e ficasse certa de que, no dia de Natal, pela tarde, lá estaria a representar o maganão.
                                               ***
À porta da casa principal da fazenda, à beira-rio, em Marajó. Tarde assoalhada pomposamente, na magnificência vencedora do grande astro a descambar pelo espaço translúcido. Chovera uma hora antes e o céu, azul e brunido, estava ermo de nuvens. Dos campos infinitos, muito verdes ao perto, gradativamente azulados à medida que a vista buscava o horizonte, subiam olores adocicados, o bom cheiro dos fortes pastos ensopados d'água. E do lado dos estábulos, era um retinir jovial de cavaquinhos e violas, o ardente sapateio das danças campesinas.

Toda a família da Maricota, sentada no alpendre em derredor da secular mangueira frondosa da esquerda, palestrava contente, ouvindo as boas chalaças inofensivas do sacerdote.

Os dois noivos - noivos desde meia hora antes - conversavam a alguns passos de distância do grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida. Pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupilas, que refletiam a imagem, sempre meiga e adorada de sua querida Maricota.

Parecia-lhe que a voz da rapariga, nesse primeiro colóquio já realizado com o assenso da família, e por isso dotado de um sabor novo, possuía inflexões desconhecidas, entonações estranhas, um aveludado espesso como o refresco do açaí.

À moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preocupava. Duas vezes já, deixara sem resposta, ou respondera demoradamente, a uma apaixonada interrogação do noivo, ternamente segredada em trêmulo balbucio de emoção.

Notou-o o velho padre, ao observá-los de longe. Erguendo a voz, perguntou-lhe num sorriso:

- Que tens, filha? Em que pensas?

E a Maricota, levantando-se de ao pé do noivo, acercou-se da família e:

- Penso, explicou, que por ser hoje dia de Natal, o sr. padre bem poderia obter para mim a graça de ficar sempre "virgem antes do parto, no parto e depois do parto"...

E voltando-se para o vaqueiro, a sorrir - inocente ou maliciosa? Ninguém poderia reconhecê-lo, no meio da estupefação geral, - acrescentou:

- Não deves zangar-te com isso: Jesus foi filho de Deus, e São José não “deu o cavaco”*!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
* Dar o cavaco = irritar-se, zangar-se.

Fonte:
Marques de Carvalho. Contos do Norte. Publicado originalmente em 1907.

Chico Anysio (A Moça da Vila)

"Vila Santa Cecília" eram as palavras que ocupavam, com letras góticas, o alto do arco que servia de entrada para a vila de 12 casas de porta e janela — seis de cada lado — onde moravam famílias pobres, porém honradas. Não ficava num subúrbio, mas numa travessa da Rua do Catete, perto do Palácio. Não era incomum um garoto chegar correndo com a notícia.

— Paiê. Vi o Presidente.

— O Dr. Getúlio? — desacreditava o pai. — Viu mesmo?

— Na janela do Palácio. Tava de pijama.

Se ver Presidente já era uma coisa que pouca gente no Rio tinha oportunidade, ainda mais de pijama.

Quando o carro preto passava, com batedores à frente, quem viajava nos carros ou nos bondes abaixava a cabeça numa tentativa de descobrir o Presidente no banco traseiro e nem sempre conseguia essa glória. E o menino da vila, voltando do armazém com um quilo de açúcar, vira-o. E de pijama!

Seu Olegário, um dos moradores da "Vila Santa Cecília", motorneiro à beira da aposentadoria, fazia disso um bicho de sete cabeças.

— Viu mesmo?

— De pijama — sublinhava o pai do menino a quem Deus dera a subida honra de ser testemunha da intimidade presidencial.

— Mentira.

— De pijama, colega! De terno, qualquer um pode ter visto. Até eu já vi.

— Eu também vi. — incluiu-se Olegário.

— Mas de pijama só quem viu foi o meu filho. — vangloriava-se — De pijama, só ele. Olegarinho! — gritava — Vem contar como foi que tu viu o Dr. Getúlio?

E o garoto recontava o que contara mil vezes, acrescentando, como já se habituara, qualquer coisinha no final.

— De pijama, na janela. Fazendo ginástica, como a gente faz na escola. Abrindo e fechando os braços, assim. Ginástica, sabe, moço?

Na casa 4 da vila morava Seu Pacheco, um homem mais antigo do que essa estória. Ainda usava colarinho engomado, postiço, que mandava lavar e engomar numa pequena loja da Galeria Cruzeiro. Trabalhava na Caixa Econômica fazia 19 anos. Qual a sua ocupação, ninguém sabia, mas, pela importância que se dava, calculava-se que era o homem que dizia "sim" ou "não" aos empréstimos solicitados. Creio que nem a mulher tinha conhecimento do seu serviço real. Se a própria mulher ignorava, muito menos sabiam seus filhos, que eram cinco: quatro homens e uma moça.

Esta, a moça da vila, que dá nome à estória. Maria da Glória tinha 18 anos. Era professora primária e ensinava advérbios e conjunções, numa escola pública de Laranjeiras. Morena, com a cor do sapoti e o gosto da cor. O corpo não ficava nada a dever àquele da moça sentada numa motocicleta que enfeitava a folhinha que o dono do açougue não se cansava de olhar, com pensamentos delicadamente malévolos.

Na folhinha estava o corpo de uma moça de Hollywood; em Maria da Glória, um corpo ao alcance não apenas dos olhos, mas, quem sabe... Tudo dependia de uma conversa. O homem do açougue não era dono. Viria a ser, depois que o pai morresse e ele, filho do dono, passasse a dono real das alcatras e das rabadas.

Tinha 26 anos, uma sombra azulada de barba, como os portugueses finos, e um jeito que, com boa vontade, chegava a lembrar Tyrone Power em Sangue e Areia.

— Me dá um quilo de contra-filé, Seu Nequinho — comandava Maria da Glória, na ida diária ao açougue.

— Prontinho. Pesado com carinho.

— Quanto é?

— Nada. Você pediu que eu desse, estou dando. É presente. Presentinho pra você. — falava Nequinho, mexendo muito com a boca, numa tentativa de charme.

— Oh, Seu Nequinho, deixa de coisa. — pedia sem vontade a moça da vila.

— Deixar de coisa, como? — acrescentava Nequinho, já de olhar prometendo pecado. — Eu quero é começar...

De início, Maria da Glória levou na brincadeira. Mas Nequinho não se incomodava. Um dia, ela iria entender que as intenções dele eram as melhores. Ou não seriam? Tinha que insistir, persistir, incomodar. Dizia, sempre, uma frase: — De uma boa conversa ninguém escapa.

Tenta de cá, busca de lá, procura daqui, insiste dali, joga indiretas hoje, concede contra-filé amanhã, convida agora, insiste depois, propõe uma, propõe duas, um dia deu pé.

Marcaram um passeio a Paquetá, de onde Maria da Glória, a moça da vila, voltou mulher.

Acontecesse isto hoje, talvez desse para ser contornado. Mas era 1951. E, para Seu Pacheco, 1951 ainda cheirava a trinta e poucos. Basta que se diga que ainda contava lances da revolução paulista como um fato acontecido ontem.

Maria da Glória contou para a mãe, que mãe é para essas coisas. Também e principalmente.

— Minha filha, o que você foi fazer?

— Agora está feito. — resumiu Maria da Glória.

— Tá feito, tá feito, — resmungou a futura vovó — é só o que você diz. E quando seu pai souber? Ele te mata de pancada.

— Mas meu pai não vai saber.

— Quem disse?

— Eu que tou dizendo.

— O jeito é você casar.

— Casar, eu não caso.

— E por que não?

— Só caso com um homem que eu goste.

Aí é que a mãe não entendia mais nada. Se ela não gostava do Nequinho, como foi que deixou que ele...? E se não foi por amor, então por que foi que ela...? E se era só brincadeira, como é que...?

— Essas coisas acontecem, mãe. — falou Maria da Glória, com uma tranquilidade que merecia o tapa que a mãe ameaçou.

— Acontecem, sim, mas não com filha minha.

Uma filha dela não era de se levar em conta. O diabo é que tinha acontecido com uma filha do Seu Pacheco, provável proprietário da Caixa Econômica Federal do Rio de Janeiro.

— Quem é que já sabe? — quis saber a mãe, numa aflição compreensível. Era 1951.

— Nós três, mãe.

— Nós três, quem? Eu, você e quem mais? Quem é mais que sabe dessa desgraça, menina?

— Nequinho, né?

Claro que Nequinho sabia. Antes de D. Guiomar, inclusive. Sabia e temia; tanto, que contou ao pai cardíaco.

— Pai, estou perdido. Sabe a Maria da Glória? Aquela moça da "Vila Santa Cecília"?

— Sei. Que é que tem?

— Foi comigo domingo a Paquetá e...

— E o quê? — indagou o pai, mostrando, pela total falta de inteligência, que se morresse não faria muita falta ao mundo.

— E aí eu... entendeu?

— Você o quê, Nequinho? — redarguiu o pai, pondo em néon sua burrice.

— Executei.

O pai sentou na banqueta de dividir o boi. Sentado, ficava devendo, na altura.

O pai de Nequinho, a quem chamavam no bairro de "Metade", andou de um lado para o outro, do boi ao porco, seguidas vezes, antes de chegar à conclusão.

— Você vai pra Minas.

— Pra quê?

— Pra não casar. Ou você quer casar com ela?

— Ninguém tá falando em casar.

— Ninguém aqui em casa. Você pensa que Seu Pacheco... ela não é filha de Seu Pacheco?

— É, acho que é.

— Acha, uma ova. Você sabe que é. Você pensa que Seu Pacheco...? Você vai pra Minas e, qualquer coisa, eu nego. Nego até morrer.

— Pois pode tirar Minas da ideia, que eu não vou! — exclamou Nequinho, já meio arrependido de ter feito o pai de confidente.

— Não vai? Então, casa. Pode preparar seu enxovalzinho, porque do altar você não escapa.

Realmente, à primeira vista, não havia outra solução: casar ou fugir. A não ser que Maria da Glória — moça muito evoluída e compreensiva até demais — tivesse algo melhor a sugerir.

— Mamãe, vou para os Estados Unidos.

— Pronto. Além do mais, ficou maluca. Como é que você vai pros Estados Unidos? Você pensa que seu pai é o dono do Lóide? Pensa que ele pode pagar uma passagem, te dar e acabou?

— Já resolvi. Vou pros Estados Unidos.

— Eu posso saber com que roupa?

— Não sei. De que jeito, não sei, mas eu vou, eu vou.

Pessoa alguma ficou sabendo o jeito que deu. Mas antes que a barriguinha se fizesse notar, Maria da Glória tinha passaporte, passagem, alguns dólares e as malas arrumadas.

Seu Pacheco aceitou a ideia da filha ir para aquela "terra de gente louca", graças à invejável catequese de D. Guiomar.

Maria da Glória tinha que agradecer à mãe não apenas a compreensão pela desgraça, mas o auxílio enorme para o consentimento do pai. Iria, mesmo sem o "sim" do Seu Pacheco, mas assim, com o beneplácito dele, era melhor.

E foi de avião.

A "Vila Santa Cecília", em peso, compareceu ao bota-fora, no aeroporto. E também foram duas pessoas do "Açougue Modelo".

 Seu Pacheco recebia duas cartas por mês. Lia-as no banheiro para que ninguém o visse chorar. As cartas contavam apenas novidades da terra. Dizia dos aparelhos elétricos, das máquinas formidáveis, do conforto excepcional, das majestosas estradas de alta velocidade, dos filmes que ela já entendia (já falava inglês) e dos teatros onde "você nem pode calcular quanta coisa divina apresentam". Falava da Broadway.

— "Comparada à Broadway, a Cinelândia é um deserto" — escrevia numa das cartas, o que fez Seu Pacheco calcular a claridade que havia, pois em 1951 a Cinelândia era a Broadway do Brasil.

— Deve ser dia.

— Só pode ser! — concordava D. Guiomar, preparando o guisado. — Não foram eles que inventaram a luz, Pacheco? Luz, lá, ninguém paga. Eles inventaram a luz, a luz, pra eles, é de graça.

— Mas você já notou uma coisa? Maria da Glória fala de tudo, mas não fala dela.

— Ora, Pacheco, — desconversava a mãe da ex-moça — não fala porque não tem o que falar. Ou você quer que a menina invente que é artista de cinema? Você tem cada ideia, Pacheco! Maria da Glória ser artista.

Seu Pacheco bem que já tinha admitido esta hipótese: a filha nas telas. Não estava na terra onde se fazem filmes? Não havia nada de espantar se, um dia, na rua, um homem do cinema olhasse para a filha...

Nas vezes em que ia ao Politeama ou ao São Luís, quando era filme passado em Nova Iorque, ele perdia o enredo, a tentar descobrir, no meio dos transeuntes, a figura da filha.

— Capaz dela estar por aí — cutucava D. Guiomar, sem saber que há muito ela procurava também descobrir a filha no povo da rua, que o filme ia mostrando.

— Acho que não. — respondia da boca pra fora. Achava que não, mas o fato é que desejava vê-la ali ainda mais do que o marido. Por dentro, tinha certeza de que ali a filha nunca seria vista. A não ser que fosse cena noturna.

 Primeiro chegou a carta em que Maria da Glória contava do desejo de voltar. Depois veio outra em que ela falava que não suportava mais a saudade. A terceira já trazia a data da chegada.

No dia em que ela ia retornar, a "Vila Santa Cecília" botou roupa de festa. Seu Pacheco, fugindo ao padrão de economia em que pautava seus gestos, mandou até fazer um terno de S-120, no "London Taylor's".

O irmão mais velho, casado e pai de dois meninos, que já não morava na vila, mas num quarto-e-sala, no Rio Comprido, compareceu para a recepção.

Chegou sem os filhos. D. Guiomar intrigou-se.

— Por que não trouxe meus netos?

— Porque não.

Ela entendeu a curta resposta.

O dono do botequim emprestou o carro que, dirigido pelo filho do seu Olegário (o que vira Dr. Getúlio de pijama), conduziu a família ao cais do porto.

Seu Pacheco ficava na ponta dos pés, querendo descobrir a filha no convés. Lembrou, por um segundo, do tempo em que procurava descobri-la na multidão, nos filmes.

— Ali, perto do padre! — gritou uma voz.

— Não é ela. A não ser que tenha engordado. — contestou outra voz.

— Lá! — aponta a D. Guiomar. — Lá, junto do comandante.

— Já vi. Está de vestido branco e chapéu — afirmou o filho do Seu Olegário, homem que se vira o Dr. Getúlio na janela, por que não veria Maria da Glória no convés?

— Onde? — perguntava sem parar Seu Pacheco. — Onde, que só eu não vejo?

— Perto da escada, papai — indicou o irmão mais velho, sem o menor entusiasmo.

— Ah, já vi. É ela, sim. Está dando adeus.

E todos os braços se ergueram no aceno de boas-vindas. D. Guiomar agitava o lenço — o mesmo que usava para aparar as lágrimas que insistiam em cair. Seu Pacheco desabotoou o paletó, para que a filha visse que ele já usava gravata colorida.

Maria da Glória gritava de lá, a vila gritava daqui, e os gritos caíam no mar onde o navio deslizava lerdamente, na atracação. Desceram a escada, e Maria da Glória não chegou para os abraços.

— Está a mesma coisa.

— Como vai, minha filha?

— Glorinha, é verdade que lá tudo que a gente ganha vai pro Governo?

— Trouxe o meu gravador?

— E o rádio?

— O que foi que você trouxe?

— Quantas malas?

— Você viu o Marlon Brando?

— Como é a televisão colorida?

Maria da Glória não disse uma palavra do porto até a vila. Não havia tempo de responder às perguntas que se sucediam, num metralhar histérico e incontrolável. Ela apenas segurava a mão da mãe, num aperto tão forte que contava a verdade.

— Até menininho de dois anos fala inglês, não é?

— Tu sabe falar inglês, mesmo?

— Fala aí, pra gente ver.

— E a moda?

— Por que você veio de chapéu?

— Não é verdade que lá só se come cachorro-quente?

Quando o carro parou na entrada da vila, parecia que era um deputado quem estava chegando. O povo fez um corredor por onde ela passou sob palmas e perguntas.

— Lá faz frio?

— Você pisou na neve?

— Cinema lá também tem letreiro?

— Veio pra voltar ou veio de vez?

Ela entrou em casa no silêncio em que vinha. Sentou na poltrona da sala sem notar que o estofamento tinha sido mudado, e de repente, como se todos tivessem combinado, na casa 4 da vila só estava a família. Seu Pacheco, de terno novo, D. Guiomar — de lenço nos olhos — e os 4 irmãos: 3 com um sorriso de esperança e o mais velho — sentado de costas — descascando uma tangerina. Seu Pacheco foi quem quebrou o silêncio.

— Glorinha, você, nas suas cartas — tá tudo guardado na gaveta da sua mãe — nunca disse o que era que fazia lá. Você era o quê, menina?

Maria da Glória olhou para o irmão mais velho, que se levantou em direção à cozinha, depois passou o olhar pela mãe, que lhe sorriu a compreensão materna. Espiou os três irmãos, que se afligiam de expectativa pelos presentes e, por fim, encarou o pai.

— Eu trouxe o gravador, Julinho. E trouxe o rádio japonês, também, José. Pra você, Mário, eu trouxe 5 discos de música de juventude. Trouxe uma torradeira pra mamãe. Uma torradeira que a torrada pula, quando está pronta. E pro senhor, papai, sabe o que eu trouxe? Um relógio que marca a data.

— Como é? — perguntou o irmão com cabelo de recruta.

— Estou dizendo. Tem os ponteiros, que marcam as horas, e, num canto, um quadradinho que marca o dia. O dia que for o relógio marca. Deixa abrir as malas que eu mostro.

— Mas você não me respondeu. — insistiu Seu Pacheco. — Você lá era o quê, Glorinha?

Foi D. Guiomar quem respondeu.

— Modelo, Pacheco. Eu nunca disse, porque podia ser que você não gostasse. Glorinha era modelo.

— Não gostar por quê? É uma profissão muito decente!

E repetia: "muito decente, muito decente", já agora abrindo os presentes que a filha trouxera.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão. Publicado em 1973.

Minha Estante de Livros (Rachel de Queiroz e Cora Coralina)

Pedra Encantada e outras histórias, de Rachel de Queiroz


Reúne contos de Rachel de Queiroz sobre eventos do cotidiano, episódios insólitos, memórias e impressões de viagem. Selecionados por Maria Luiza de Queiroz, irmã da escritora, os textos primam pelo bom humor e estilo cativante, marcas registradas de Raquel. Reeditada como parte do projeto de comemoração do centenário de nascimento da autora, comemorado em 2010.

Este volume oferece ao público juvenil uma criteriosa seleção de crônicas escritas por uma das maiores autoras brasileiras, Rachel de Queiroz. Através da leitura dessas histórias, o jovem leitor poderá entrar em contato com uma escritora fundamental, assim como aquele mais maduro redescobrirá o sabor de um clássico da nossa literatura. Esta coletânea reúne narrativas entre as melhores já publicadas, nas quais se encontra uma diversificação de temas, como: memórias, episódios vividos no Rio de Janeiro, registros do cotidiano, histórias insólitas, a morte, impressões de viagem, o sertão e o sertanejo, questões humanas. Tudo isto contado com humor em uma linguagem coloquial. Mas aqui também está presente o estilo despojado e destemido da autora de O Quinze e Memorial de Maria Moura.

Pedra encantada e outras histórias apresenta ao público uma seleta de narrativas fantásticas, crônicas egressas das páginas dos jornais, mas que são, no entanto, merecedoras da permanência entre o que há de melhor no patrimônio literário brasileiro.

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Estórias da Velha Casa da Ponte, de Cora Coralina

Escrito com a insuperável simplicidade e leveza de estilo de Cora Coralina, Estórias da Casa Velha da Ponte traça um retrato fiel e pitoresco da cidade de Goiás, no final do século XIX e início do XX, com as suas histórias domésticas, o registro de velhas tradições, as prostitutas segregadas, casos de assombração e assombramento.

Em 1985, seu primeiro livro de contos, Estórias da casa velha da ponte, é publicado, postumamente. Compõe-se de dezoito peças em escrita leve e bem humorada. São casos folclóricos alguns, mas em todos se sobressaem o cotidiano, o absurdo da vida e ensinamentos.

Vem de dentro um cheiro familiar de jasmins, resedã e calda grossa – doce de figo ou caju. Dispõe de uma linguagem despojada, bem aprumada e traz uma ressalva, cujo título é “Nada Novo...”, alertando o leitor sobre a possibilidade de encontrar mesmices já lidas, pois se trata de histórias diversas de cunho popular, recriadas por outros autores goianos, mas acrescenta que cada escritor tem seu estilo e recursos próprios, mostrando-se consciente da natureza do gênero e senso crítico em relação a possíveis comentários.

Cora Coralina conhece como ninguém histórias de sua gente e se insere no grupo de narradores clássicos que sem sair de seu país conhece suas histórias e tradições. Mesmo tendo vivido várias décadas longe da terra natal ela não consegue desvencilhar-se da tradição familiar de contadores de histórias e assume a tarefa de narrar à história de sua gente, dos reinos de Goiás, “antes que o tempo passe tudo a raso” . A partir de então, passa a cantar e contar notícias suas e dos outros

Os contos são escritos com linguagem simples e, ao mesmo tempo, complicada, já que Cora usa diversas expressões e palavras regionais o que faz com que o leitor tenha que recorrer ao dicionário para saber o significado de muitas delas.

Um tema recorrente nos contos deste livro é a gravidez indesejada que causava tanta vergonha às famílias mais puritanas, muito comum à época., porém a autora trata deste assunto de forma bastante humorada.
 
Fontes:
Amazon
Editora José Olympio

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Versejando 86

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 36 –

Manhãzinha ainda e não mais do que de repente ele chegou agitando as terras, os campos, as herdades. Com a sua cantoria inconfundível animou o ambiente dos beija-flores, do joão-de-barro, dos sabiazinhos e outros da linhagem. Assobiou, zuniu tarde a fora vaticinando mudanças na atmosfera. E assim anoiteceu.

Aos poucos a noite silenciou. O viandeiro do tempo seguiu rumos. Precursores de uma chuvinha, os velhos ventos viageiros seguiram a senda dos insondáveis caminhos. Os ponteiros do relógio grande já se preparavam para dar as doze badaladas da meia noite... quando ela chegou!

Veio mansinha, sem alarde, quase na surdina, como acontece com tantas coisas boas. E o bulício das aguinhas nos telhados avançou madrugada a dentro, embalando os sonhos dos mais dormidores, sem incomodar os sonâmbulos.

Chuvinhas noturnas são sonatas que acalentam as almas na nebulosa do sono e dos sonhos. Quisera ser bom dormidor para alcançar alvoreceres no colo das notas musicais do chuvisqueiro que se vai quando surgem os primeiros raios do sol.

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Rachel de Queiroz (Amigos)

SIM, amigo é coisa muito séria. Acho que a gente pode viver sem emprego, sem dinheiro, sem saúde e até sem amor, mas sem amigos, nunca. Pois o amigo é capaz inclusive de suprir discretamente essas faltas e lhe conseguir trabalho, lhe emprestar dinheiro, lhe tratar na doença. Só não pode se envolver em assunto de amor, porque aí deixa de ser amigo; e a maior tolice a que se arrisca a incorrer alguém é misturar amigo com amor.

Amizade e amor são quantidades paralelas na vida de cada um: se conhecem, até se estimam, mas nunca se encontram ou se confundem. Aliás não estou dizendo novidade nenhuma, todo mundo sabe que namoro, noivado, casamento, amores são relações essencialmente antípodas da amizade. Quer pela sua impermanência, ou, quando são permanentes, pela sua natureza tumultuária, absorvente, egoísta, as relações de amor têm que ter categoria à parte. Transforme em amante o seu amigo ou amiga, e você perde o amigo e terá um péssimo amante, que sabe de todos os seus defeitos, lhe conhece do tempo em que você não se enfeitava para ele, não lhe escondia as suas falhas do corpo e da alma, e que, portanto, sabe de todos os seus pontos fracos. Fica impossível.

A primeira lei da boa amizade creio que é ter poucos amigos. Muitos camaradas, colegas, conhecidos cordiais, mas amigos poucos. E, tendo poucos, poder e saber tratá-los. Jamais criar tempo de rivalidade entre os amigos: cada um há de ter a sua área específica, a sua zona própria de influência.

Não misturar os amigos uns com os outros. Não vê que cada amigo, por ser o único no seu território, não precisa sequer conhecer os donos dos outros territórios.

É que, sendo a nossa alma tão variada nas suas exigências, precisamos de amigos de acordo com os diferentes ângulos do nosso coração. O amigo da comunicação intelectual não pode ser o mesmo amigo da confidência íntima, o velho companheiro de infância não tem nada a ver com o precioso camarada adquirido nos anos da maturidade.

E há outras razões práticas para não misturar os amigos: eles podem se coligar contra a gente, ou se tornar amigos entre si, por conta própria, nos excluindo. Ou também podem se chatear uns com os outros, porque os compartimentos espirituais deles nem sempre correspondem aos nossos. Se você adora fulano porque toca em suas cordas nostálgicas contando-lhe lembranças de mocidade passadas na barranca de um rio em Mato Grosso, o seu amigo intelectual talvez não tolere regionalismo e por isso desdenhe intensamente as barrancas de Mato Grosso. Assim com o futebol, os debates sobre religião, as intrigas políticas, os negócios, o gosto de recordar  os sambas de Noel Rosa. Insisto, mantenha com rigor cada amigo no seu compartimento.

Axioma absoluto em assunto de amizade: amigo é insubstituível. O que um lhe deu, jamais outro lhe poderá dar igual. Pode vir um amigo novo para preencher a área vazia deixada pelo amigo que se foi por morte ou briga. Mas só ocupará mesmo aquele espaço físico. E há vezes em que nem isso é possível: e o melhor será fechar aquele nicho do coração, dada a dificuldade de encontrar outro ser vivo que satisfaça ante nós as especificações do ausente. Ai de mim, bem o sei. Minha amiga de infância que morreu, deixou no meu peito esse santuário vazio.

Respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos. E nisso está outra superioridade da amizade sobre o amor: a amizade conhece as nossas falhas e as tolera, e até mesmo as encara com condescendência e afeto. Já o amor é só de extremos e, ou se entrincheira na intolerância, ou se anula na cegueira total. Amigo entende, aguenta, perdoa, “Amigo é pra essas coisas”, como diz aquela cantiga tão bonita.

Se você não é capaz de ter amigos, você é um erro da natureza, você é como o unicórnio, o animal de que se fala mas que não existe. Porque até os bichos têm amigos; e dizem que, depois da morte, no outro mundo, as almas mantêm sublimadas as amizades cá de baixo, naquela quintessência de excelências que só o céu pode dar.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Paulo Leminski (Versos Diversos) 13

já fui coisa
escrita na lousa
hoje sem musa
apenas meu nome
escrito na blusa
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o mestre gira o globo
balança a cabeça e diz

o mundo é isso e assim

livros alunos aparelhos
somem pelas janelas

nuvem de pó de giz
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você para
a fim de ver
o que te espera

só uma nuvem
te separa
das estrelas
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ana vê alice
como se nada visse
como se nada ali estivesse
como se ana não existisse

vendo ana
alice descobre a análise
ana vale-se
da análise de alice
faz-se Ana Alice
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

tão longe eu lhe disse até logo
um pouco de tudo passou-se outra vez
e foi uma vez toda feita de jogos
aquela outra vez que não soube ser vez
pois voltou e voltou e voltou
sem saber que de duas uma
nunca são três
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carta ao acaso

a carta do baralho
grande gilete
corta sem barulho
o olho do valete
o rei a fio de espada
a água e a farinha
uma só passada
a espada na rainha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido

ninguém nasce sabendo
até que eu sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

meus amigos
quando me dão a mão
sempre deixam
outra coisa

presença
olhar
lembrança calor

meus amigos
quando me dão
deixam na minha
a sua mão
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nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
mistas a minha a tua a nossa linha
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

acordei bemol
tudo estava sustenido

sol fazia
só não fazia sentido

Fonte:
Paulo Leminski. caprichos & relaxos. Publicado em 1983.