domingo, 5 de novembro de 2023

Graciela Pucci (Náufrago e Beira-mar)

Ela estava lá, perdida em pensamentos e ausente. Seus olhos navegavam à deriva em um mar que só ela conhecia. A fumaça do cigarro, esquecido entre os dedos, subiu até seu rosto e a fez piscar.

Ela era seu próprio universo.

Parei para olhá-la do outro lado do vidro, sorri para ela, ela sorriu de volta.

Novamente se retraiu.

Entrei no bar, aproximei-me de sua mesa e a cumprimentei. Com um gesto quase imperceptível, convidou-me a sentar. Fixou seu olhar em mim e disse:

-Obrigada por ter vindo, estou te esperando há muito tempo, precisava falar com você.

O mar pelo qual ela navegava tornou-se agitado, agarrou-se à minha orla e derramou a torrente, dizendo:

-Tudo está aqui, dentro de mim, em um lugar escondido ao qual não posso acessar para desenraizá-lo. É fertilizado com o tempo e dá frutos, que por sua vez criam sementes. Estas se reproduzem e crescem. Estou cheia de lembranças que quero esquecer, mas minha alma está desolada, é um buraco infinito de nostalgia e melancolia, um deserto indefeso, produto de uma mentira, que é minha única verdade desde então. Mas hoje, quando vejo você na minha frente, começo a acreditar que existem outras verdades que devo encontrar.

Com um brilho especial nos olhos, moveu sua cadeira, levantou-se e com passo firme e determinado dirigiu-se para a saída.

Eu nunca soube o nome dela, nem ela o meu.

Fomos náufrago e beira-mar.

Eu volto a esse bar com frequência, ela não está lá. Talvez ao retornar ao mar de seus sentimentos ela tenha encontrado seu caminho.

Eu ainda estou procurando o meu…
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Graciela Pucci é criadora da Revista Literarte. 

Eduardo Affonso (Traição)

– Tem certeza que o local é seguro?

– Claro que tenho.

– Discreto?

– Discretíssimo.

– Ninguém vai ver a gente entrar nem sair?

– Não, não vai.

– Tem que ser no sigilo.

– Será.

– Não tem câmera de segurança na rua?

– Não, não tem.

– Pode ser lá, então.

(Meia hora depois)

– Fecha bem as cortinas. Vai que alguém…

– Pronto. Fechei.

– Já fez varredura pra ver se não tem cam ou microfone escondido no teto, na tevê, na jacuze?

– Não leva a mal, mas você está parecendo paranoica…

– Fez ou não fez a varredura?

– Fiz.

– Desliga o celular, então.

– O quê? Você acha que eu… ?

– Eu sou uma pessoa conhecida, Paulo Roberto. Se isso vaza, minha vida está arruinada, minha carreira acabou.

– Ok, desliguei o celular.

– Tira a bateria.

– Tirar a bateria?

– Recebi um zap outro dia dizendo que o celular, mesmo desligado, continua ouvindo tudo, rastreando tudo.

– Olha, isso está ficando muito estranho. Melhor a gente deixar pra lá…

– Não, não. Eu quero muito. Eu preciso tanto! E sei que você não vai sair contando pra todo mundo, espalhando pros seus amigos.

– Pode confiar em mim.

– Posso mesmo? Olha como eu estou tremendo… Ai, meu Deus, meu marido jamais imaginou que eu fosse capaz disso, meus filhos nem sonham, e meus amigos… o que meus amigos iriam dizer?

– Não temos a tarde toda, Ana Lúcia. Vai, você é uma mulher adulta, independente. Tira essa culpa dos ombros, solta essas amarras. Liberte-se desses dogmas que te oprimem, dessa pressão da sociedade. Não tenha medo do que vão pensar. Diz pra mim, vai. Quero ouvir da sua boca…

– Trancou a porta?

– Tranquei.

– Deu duas voltas na chave?

– Dei.

– Apaga a luz.

A luz é apagada.

Na penumbra, Ana Lúcia respira profundamente. Semicerra os olhos. Passa a língua pelos lábios. Engole em seco. Do fundo da garganta, com a voz entrecortada, quase um sussurro, ela confessa:

– Paulo Roberto, eu apoio a Regina Duarte.

Estante de Livros (“As Meninas”, de Lygia Fagundes Telles)


As Meninas" é um romance da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, publicado em 1973. A história se passa durante os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, e acompanha a vida de três amigas que dividem um quarto em uma pensão em São Paulo.

No livro, três narradoras se alternam, produzindo a polifonia de vozes: Lorena, Lião e Ana Clara. São estudantes universitárias que moram em uma pensão.

A narrativa é conduzida por Lorena, uma jovem introspectiva e solitária, que se refugia em seus próprios pensamentos para escapar da realidade opressiva que a cerca. Ela divide o quarto com a alegre e extrovertida Ana Clara, e com a misteriosa e rebelde Lia.

As três amigas são completamente diferentes entre si, mas encontram conforto e companhia na convivência. Juntas, elas criam um universo próprio, repleto de fantasia e imaginação, que as ajuda a suportar a dura realidade do mundo lá fora.

As três amigas também se envolvem em diversas aventuras, que envolvem desde a descoberta de um mistério na casa em que moram até uma viagem de férias que se revela uma grande decepção. Em meio a tudo isso, elas encontram na amizade e na cumplicidade uma forma de se apoiar e de enfrentar as dificuldades.

Por fim, as protagonistas são confrontadas com escolhas que definirão seus futuros. Lorena precisa decidir se seguirá o caminho que sua família espera dela ou se buscará sua própria independência, enquanto Lia e Ana Clara precisam enfrentar suas próprias limitações e medos para encontrar uma forma de se libertar das amarras que as prendem.

No final, cada uma das três protagonistas enfrenta um desfecho diferente.

Lorena, a estudante de direito introspectiva e sonhadora, decide abandonar seus estudos e sua vida convencional para viver uma experiência de liberdade e aventura. Ela foge de casa e se junta a um grupo de hippies, buscando novas formas de viver e de se relacionar com o mundo.

Lia, a jovem rebelde e misteriosa, enfrenta um final trágico. Ela é assassinada pelo amante mais velho e casado, em um crime que deixa as outras personagens chocadas e abaladas.

Já Ana Clara, a estudante extrovertida e alegre, encontra uma nova forma de viver a vida. Ela deixa a pensão e se muda para o apartamento de um amigo, onde passa a trabalhar em uma galeria de arte e a viver novas experiências. Ela encontra uma forma de superar sua tristeza e de se reinventar, abrindo-se para novos horizontes e possibilidades.

O final do livro oferece uma visão complexa e emocionante da juventude brasileira dos anos 70, mostrando como cada uma das protagonistas enfrenta desafios e escolhas que definirão seu futuro. A obra é marcada por uma sensibilidade poética e por uma reflexão profunda sobre a vida e a liberdade em um contexto de opressão e de luta por direitos.

As Meninas é um romance marcante da literatura brasileira, que oferece uma visão sensível e poética sobre a juventude e a resistência em tempos difíceis. A obra é considerada uma das principais contribuições de Lygia Fagundes Telles para a literatura brasileira.

ANÁLISE DO LIVRO

AÇÃO

A ação do livro é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realidade exterior; a vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as visitas das personagens ao redor do quarto de Lorena - centro daquele microcosmo -, poucos momentos na faculdade e no 'aparelho'; as atitudes contraditórias de Ana Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem de um cadáver comprometedor.

Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem o passado e evocam suas experiências em busca de autoconhecimento, de solução para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização de seus 'fantasmas'.

PERSONAGENS

Lorena Vaz Leme, filha de fazendeiros, culta, fina, aristocrática, descende de bandeirantes. É aluna na Faculdade de Direito e bastante estudiosa: cita com frequência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, de filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada, onde se fundem harmoniosamente o erudito e o popular. Assistiu impotente à derrocada da própria família e evoca frequentemente esse passado, onde contrapõe os momentos felizes da infância, na fazenda, à morte acidental do irmão e a subsequente desagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo de fantasias, terapias e falsas ilusões.

Lorena tenta 'equilibrar-se' fechando-se em uma concha dourada dentro do pensionato de freiras, onde pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do irmão, visitas frequentes de colegas, e de onde ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa, mas pouco age. Segundo Lia, trata-se de uma burguesa alienada, apesar da bondade e do carinho com que recebe e ajuda a todos.

Mas o mundo insiste em invadir sua privacidade - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico mais velho colocam-na em frequente conflito com o mundo exterior. Procurando viver de sonhos, perde várias oportunidades de realizar-se afetivamente e ser feliz.

No entanto, diante da morte de A. Clara, consegue definir-se e agir positivamente, encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, de outro, um possível desfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a impossibilidade de um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor de Guga, enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a deixar sua 'concha' definitivamente.

Lia de Melo Schultz serve como contraponto à 'finesse' de Lorena: veste-se mal, usa alpargatas, não gosta muito de banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso de ex-oficial nazista. Matricula-se no curso de Ciências Sociais [foco de agitações estudantis na década de 60], onde se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel, que acaba preso.

Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o 'aparelho', e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e a pobreza do Nordeste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu engajamento político [doação de amor aos amigos e à liberdade da Pátria] e na segurança que encontra no amor de Miguel e no apoio da família, que, mesmo à distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu próprio caminho e resolve-se bem.

Ana Clara Conceição apresenta o temperamento mais problemático e a personalidade mais inconsistente das três, apesar do fascínio que a força de suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix, principalmente.

Filha de pai desconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos quais a induz ao suicídio pela ingestão de formicida. Ana foi seduzida por um dentista, que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o livro todo na cama com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito, seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes.

Sob o efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos [o roque-roque dos ratos e o barulho das baratas, nas construções], cheiros [do consultório do dentista, da bebida, do mar, do corpo de Max...], sensações variadas de frio e de calor entrecruzam-se enquanto ela desnuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à realidade, adia todas as soluções para 'o ano que vem'.

Só que o peso da memória é mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão de um noivo rico; nem a probabilidade da plástica restauradora da virgindade; nem a perspectiva de ascensão social através da Faculdade de Psicologia, da carreira de modelo, do dinheiro que conseguirá na clínica para a burguesia; nem o amor e os conselhos de Madre Alix e das amigas conseguem salvá-la. Seu fim é trágico: morre de overdose no quarto de Lorena, e, vestida e enfeitada, cumpre seu destino num banco de praça, sem prejudicar aquelas pessoas que conseguiram dar-lhe um pouco de afeto, mas não a paz de que tanto necessitava.

TEMPO

Subjaz à narrativa uma sequência cronológica pouco marcada de alguns dias ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil de precisar. O que prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente.

Alguns fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura de militantes políticos sob o enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o jovem e esmaga sua individualidade, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a busca de caminhos.

Passado e presente fundem-se de modo inextricável, e nos traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das três meninas - símbolos de toda uma geração massacrada e alienada por forças do passado e das circunstâncias.

ESPAÇO

Oprimidas pela cidade grande e sua violência, as três meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora de Fátima, na região central de São Paulo. O quarto-concha de Lorena constitui-se no refúgio para onde as pessoas convergem em busca de conforto, de carinho, de segurança, de afeto e compreensão - um tipo de oásis dentro de um mundo desorganizado, caótico e extremamente ameaçador, onde 'Deus vomita os mortos'.

FOCO NARRATIVO

O foco narrativo em primeira pessoa é manipulado pela Autora de forma magistralmente cambiante: ele se desloca constantemente [e inesperadamente!] para o fluxo de consciência das três amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos nessas frequentes invasões à privacidade de A. Clara, Lorena e Lião, que se vão desnudando paulatinamente diante de nós.

Existe uma dificuldade inicial para a leitura até a identificação do estilo peculiar de cada personagem, pois cada uma delas se exprime dentro de seu 'dialeto' coloquial - o discurso mais elaborado e culto de Lorena, o regionalismo politicamente engajado de Lião e o pensamento confuso e truncado de Ana 'Turva'.

Superada essa dificuldade, o leitor mergulha de corpo e alma no universo fantástico dessas três meninas encantadoras, representantes autênticas daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da mulher, para a liberdade de pensamento e para a realização individual dentro de um universo politicamente conturbado.

O romance As Meninas oferece-nos, de um lado, um painel saboroso das vivências de três pessoas em busca de si mesmas; de outro, uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventude durante um dos períodos mais conturbados da história do Brasil, que Lygia Fagundes Telles teve a ousadia e a coragem de denunciar.

Fontes: 
– Análise: Algo sobre. 
– Resumo: site Resumo de Livros. 
- Imagem: criação de JFeldman com Microsoft Bing

sábado, 4 de novembro de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 35

 

Mensagem na Garrafa – 24 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Hélder Proença
Bissau/Guiné Bissau (1956 – 2009)

NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes.

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nômade e igual
coagulava em todos os cárceres
em toda a terra
e em todos os homens.

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a «Deus Pai todo poderoso
criador dos céus e da terra».

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
as amaldiçoavam cada existência nossa.

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
no extenso breu de canto e morte.

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!

Nilto Maciel (A perseguição)

Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma prostituta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de ideia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.

Tenho pensado, e pensei na ocasião, mil besteiras, absurdos. Um ente sobrenatural, um ser qualquer, um robô, minha sombra.

De qualquer forma, continuei de mãos enfiadas nos bolsos. Talvez até pelo simples desejo de aquecê-las, resguardá-las do frio.

Andava sem jeito, como se tivesse presos os braços, amarrados por cordas, empurrado para o abismo. Mas quem me prendia e conduzia para a morte? Lembro-me de ter retirado dos bolsos as mãos, que, crescidas, inchadas, volumosas, custaram a saltar fora. E balançando os braços, pesados, quase paralisados, numa vontade imensa de voar, fugir, correr. Tentei apressar o passo. O chão parecia grudar-se aos meus pés. O som de nossas pisadas ressoava na calçada, como se a calçássemos com força, em marcha de tropas vitoriosas. Quantos já me seguiam? Olhei para trás. O homem continuava à mesma distância de mim, lento, preguiçoso, rastejante. Acalmei-me e julguei-o apenas um coitado, um idiota acostumado a caminhar sozinho dentro da noite. E se fosse um vampiro? Saltaria, devorador, ao meu pescoço. Passei a mão trêmula pela nuca. Senti calafrios. Apressei o passo mais ainda. Ia quase correndo. Atrás de mim, passos cadenciados de quem corre. Meu coração batia sem sossego. Cansado, parei. E deixei de ouvir também as pisadas do estranho. Voltei-me e ele me deu as costas. Enchi-me de coragem e fui em sua direção. Agora eu o perseguia. E ele fez-se perseguido. De novo parei. Se continuasse, nunca chegaria a minha casa. E ele deixou também de andar. Vi, por suas costas, que se parecia comigo: os mesmos ombros caídos, a mesma cabeleira despenteada. Por que não dirigir-lhe a palavra, perguntar-lhe o que queria, quem era, por que me seguia, por que me imitava em tudo? Não o fiz, voltei-me e tomei meu caminho, devagar, desiludido.

Mais adiante, já resolvido a esclarecer o mistério, reduzi a marcha e, sem me voltar, gritei: “Que quer você?” Minha voz ecoou: “Que quer você?” Não sei, talvez ele, o estranho, me arremedasse, zombasse de mim, para me amedrontar. Com febre, eu tremia e não sabia mais em que pensava. Cuidei, me vi diante de casa. Olhei para trás. O homem havia parado a uns vinte passos de mim. Abri o portão, percorri, sonâmbulo, o jardim, abri a porta e pulei para a sala. Tirei a camisa ensopada em suor e corri ao quarto. Caí na cama como um bêbado. Não vi, não senti, não pensei mais nada. Devo ter dormido profundamente.

De manhã, mal o sol despontava, abri a porta, percorri o jardim e cheguei ao portão. Na calçada, encharcado numa poça d’água, jazia um homem. E nem sei se se tratava do mesmo que me havia seguido.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao entardecer) – 4

A asa branca do teu lenço
no momento da partida,
selou o amargo consenso
que foi nossa despedida.
= = = = = = = = = 

Achando tudo enfadonho,
te elevas a tais alturas,
que passas pelo teu sonho
sem saber o que procuras.
= = = = = = = = = 

A lua beija a montanha
e debruça sobre a mata
seu clarão que tudo banha
em mistério cor de prata.
= = = = = = = = = 

A malefício eu dizia
que tinha o corpo fechado;
e fui tombar... (que ironia!)
ao mel do teu mau-olhado!
= = = = = = = = = 

À montanha tenebrosa
chego, enfim, e que surpresa!
É a mera sombra tortuosa
de minha própria incerteza.
= = = = = = = = = 

A rosa estava com frio...
O sol ficou com peninha,
mandou seu raio sadio
para aquecer a rainha.
= = = = = = = = = 

Beijando a macia alfombra
toda de orvalho molhada,
um raio de sol, na sombra,
diz adeus à madrugada.
= = = = = = = = = 

Cabo da Boa Esperança,
para sempre representas
o arrojo e a firme confiança
do luso, ao Mar das Tormentas.
= = = = = = = = = 

Cheguei tarde para a festa.
De véu, grinalda e um sorriso,
ela é a imagem que me resta
de um pretenso paraíso.
= = = = = = = = = 

De minha vida vazia
sinto que a voz se desgarra,
e assume a monotonia
da cantiga da cigarra.
= = = = = = = = = 

Em nosso mútuo abandono,
desfazemos um reinado:
És rainha já sem trono,
e eu, pobre rei desterrado!
= = = = = = = = = 

Juraste que não me amavas,
eu também, cedendo à ira.
E o amor, por águas tão bravas,
naufragou na vil mentira.
= = = = = = = = = 

Juro odiar-te, e a cada frase
a que ponho mais vigor,
da mentira envolta em gaze,
salta a emoção deste amor.
= = = = = = = = = 

Mais um gole de cachaça
e a tragédia aconteceu:
traçando a própria desgraça,
brigou, matou... e morreu.
= = = = = = = = = 

Minha ilusão exigente
que ambicionava um império,
hoje só busca, indigente,
um lugar no cemitério.
= = = = = = = = = 

Na tua calma aparente
vislumbro um certo rancor,
pois tentas, inutilmente,
desprezar o meu amor.
= = = = = = = = = 

Nuvem que ao vento te inspiras,
compondo painéis tão belos,
que os rasgues depois em tiras,
mas poupe os meus castelos.
= = = = = = = = =

Qual a Fênix renascida
das cinzas de um coração,
o amor dá o sopro de vida
ao fantasma da ilusão.
= = = = = = = = = 

Quais pétalas que arrancamos
a uma pobre margarida,
são as horas que atiramos,
inúteis, ao léu da vida.
= = = = = = = = = 

Que ao vento o barco me leve,
nada mais tenho que conte...
Somente a fé me descreve
um novo e belo horizonte.
= = = = = = = = = 

Se para "além da montanha"
nossa vida é só sorriso,
por que reação tamanha
a ir viver no paraíso?
= = = = = = = = = 

Ser bom, sem jamais no entanto,
qualquer retorno exigir,
é a pedra angular do encanto
e da razão de existir.
= = = = = = = = = 

Soluçava a margarida;
o sol quis saber por quê...
e ela, tremendo, encolhida:
"É saudade de você!"
= = = = = = = = = 

Sorvo a taça de amargura,
imune à dor que me invade,
mas não resisto à tortura
a que me impõe a saudade.
= = = = = = = = = 

Teu olhar meigo e risonho
para mim é uma promessa
de que das cinzas de um sonho,
de novo tudo começa.
= = = = = = = = = 

Vento de outono, passando,
varrendo as folhas do chão,
vai a velhice arrastando
os sonhos do coração.
= = = = = = = = = 
Fonte: Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013. Enviado pela trovadora.

Machado de Assis (O melhor remédio)

O que se vai ler passa-se num bonde. D. CLARA está sentada; vê D. AMÉLIA que procura um lugar; e oferece-lhe um ao pé de si.

D. CLA. Suba aqui, Amélia. Como passa?  

D. AMÉ. Como hei de passar?

D. CLA. Doente?

D. AMÉ. (suspirando) Antes fosse doente!

D. CLA. (com discrição) Que aconteceu?

D. AMÉ. Coisas minhas! Você é bem feliz, Clara. Digo muita vez comigo que você é bem feliz. Realmente, eu não sei para que vim ao mundo.

D. CLA. Feliz, eu? (Olhando melancolicamente para as borlas do leque) Feliz! feliz! feliz!

D. AMÉ. Não tente a Deus, Clara. Pois você quer comparar-se a mim nesse particular? Sabe por que é que saí hoje?

D. CLA. E eu por que é que saí?

D. AMÉ. Saí, porque já não posso com esta vida: um dia morro de desespero. Olhe, digo-lhe tudo: saí até com ideias... Não, não digo. Mas imagine, imagine.

D. CLA. Fúnebres?

D. AMÉ. Fúnebres. Sou nervosa, e tenho momentos em que me sinto capaz de dar um tiro em mim ou atirar-me de um segundo andar. Imagine você que o senhor meu marido teve ideia... Olhe que isto é muito particular.

D. CLA. Pelo amor de Deus!

D. AMÉ. Teve ideia de ir este ano para Minas; até aqui vai bem. Eu gosto de Minas. Estivemos lá dois meses, logo depois que casamos. Comecei a arranjar tudo; disse a todas as pessoas que ia para Minas..

D. CLA. Lembro-me que me disse.

D. AMÉ. Disse. Mamãe achou esquisito, e pediu-me que não fosse, dizendo que, para ela visitar-nos de quando em quando, era-lhe mais fácil se estivéssemos em Petrópolis. E era verdade; mas ainda assim não falei logo ao Conrado. Só quando ela teimou muito é que eu contei ao Conrado o que mamãe me tinha dito. Ele não respondeu; ouviu, levantou os ombros, e saiu. Mamãe teimava; afinal declarou-me que ia ela mesma falar a meu marido; pedi-lhe que não, ela porém respondeu-me que não era um bicho de sete cabeças. Petrópolis ou Minas, tudo era passar o verão fora, com a diferença que, para ela, Petrópolis ficava mais perto. E não era assim mesmo?

D. CLA. Sem dúvida.

D. AMÉ. Pois ouça. Mamãe falou-lhe; foi ele mesmo quem me disse, entrando em casa, no sábado, muito sombrio e aborrecido. Perguntei-lhe o que é que tinha; respondeu-me com mau modo; afinal disse-me que mamãe lhe fora pedir para não ir a Minas. “Foi você quem se agarrou com ela!” — “Eu, Conrado? Mamãe mesma é que me anda falando nisto, e eu até lhe disse que não lhe pedia nada.” Não houve explicação que valesse; ele declarou que não iríamos em caso nenhum a Petrópolis. “Para mim é o mesmo, disse eu; estou pronta até a não ir a parte nenhuma.” Sabe o que é que ele me respondeu?

D. CLA. Que foi?

D. AMÉ. “Isto queria você!” Veja só!

D. CLA. Mas... não entendo.

D. AMÉ. Eu disse a mamãe que não pedisse mais nada; não valia a pena, era perder tempo e zangar o Conrado. Mamãe concordou comigo; mas, daí a dois dias, tornou a falar na mudança; e afinal ontem o Conrado entrou em casa com os olhos cheios de raiva. Não me disse nada, por mais que lhe rogasse. Hoje de manhã, depois do almoço, declarou-me que mamãe tinha ido procurá-lo ao escritório e lhe pediria pela terceira vez para não ir a Minas, mas, a Petrópolis; que ele afinal consentira em dividir o tempo, um mês em Minas e outro em Petrópolis. E depois pegou-me no pulso, e disse-me que tomasse cuidado; que ele bem sabia por que é que eu queria ir para Petrópolis, que era para andar de olhadelas com... Nem lhe quero dizer o nome, um sujeito de quem não faço caso... Diga-me se não é para ficar maluca.

D. CLA. Não acho.

D. AMÉ. Não acha?

D. CLA. Não: é um episódio sem valor. Maluca havia de ficar se desse o que se deu hoje comigo.

D. AMÉ. Que foi?

D. CLA. Vai ver. Conhece o Albernaz?

D. AMÉ. O do olho de vidro?

D. CLA. Justamente. Damo-nos com a família dele, a mulher, que é uma boa senhora, e as filhas que são muito galantes...

D. AMÉ. Muito galantes.

D. CLA. Há mês e meio fez anos uma delas, e nós fomos lá jantar. Comprei um presente no Farani, um broche muito bonito; e na mesma ocasião comprei outro para mim. Mandei fazer um vestido, e fiz umas compras mais. Isto foi há mês e meio. Oito dias depois deu-se a reunião do Baltasar. Já tinha o vestido encomendado, e não precisava mais nada; mas, passando pela Rua do Ouvidor, vi outro broche muito bonito e tive vontade de comprá-lo. Não comprei, e fui andando. No dia seguinte torno a passar, vejo o broche, fui andando, mas na volta... Realmente, era muito bonito; e com o meu vestido ia muito bem. Comprei-o. O Lucas viu-me com ele, no dia da reunião, mas você sabe como ele é, não repara em nada; pensou que era antigo. Não reparou mesmo no primeiro, o do jantar do Albernaz. Vai então hoje de manhã, estando para sair, recebeu a conta. Você não imagina o que houve; ficou como uma cobra.

D. AMÉ. Por causa dos dois broches?

D. CLA. Por causa dos dois broches, dos vestidos que faço, das rendas que compro, que sou uma gastadeira, que só gosto de andar na rua, fazendo contas, o diabo. Você não imagina o que ouvi. Chorei, chorei, como nunca chorei em minha vida. Se tivesse ânimo, matava-me hoje mesmo. Pois então... E concordo, concordo que não era preciso outro broche mas isto faz-se, Amélia?

D. AMÉ. Realmente...

D. CLA. Eu até sou econômica. Você, que se dá comigo há tantos anos, sabe se não vivo com economia. Um barulho por causa de nada, uns miseráveis broches...

D. AMÉ. Há de ser sempre assim. (Chegando à Rua do Ouvidor.) Você desce ou sobe?

D. CLA. Eu subo, vou à Glace Elegante; depois desço. Vou ver uma gravura muito bonita, inglesa...

D. AMÉ. Já vi; muito bonita. Vamos juntas.

D. CLA. Há hoje muita gente na Rua do Ouvidor.

D. AMÉ. Olha a Costinha... Ela não fala com você?

D. CLA. Estamos assim um pouco...

D. AMÉ. E... e depois...

D. CLA. Sim... mas... luvas brancas.

D. AMÉ. ..................?

D. CLA. ...................!

AMBAS (sorrindo) Uma coisa muito engraçada; vou contar-lhe...

Fonte: Publicado originalmente em A Estação, 31/3/1884. Disponível em Domínio Público  

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 20: Noite de amor

Alguns dias se passaram. A natureza se movimentou. É noite que vai, dia que vem... Os peões trabalharam nas plantações e a vida continuou, sem cessar, a escrever as histórias de seus filhos. Histórias distintas, mas entrelaçadas na velha teia do destino da existência. 

Depois da lida, e do surgir de uma noite bonita, o casal apaixonado, Juca e Amélia, comemoraram seus dez anos de união, e trocaram repetidas confissões. 

- Há dez anos fiz a melhor escolha da minha vida. – disse o marido, com seu olhar apaixonado. 

- Digo o mesmo, meu querido. Tu és o presente que a vida me deu. 

- Somos o presente um do outro, minha flor.

- Atrasei o jantar. Queria preparar algo especial para nós dois. Até acendi umas velas, apanhei flores para enfeitar a mesa, perfumei o ambiente, tudo para um jantar romântico igual ao que vi uma vez no cinema.

- Está tudo lindo. Aliás, tudo que vem de ti é lindo, farto, cheio de entusiasmo. Vou me banhar. E já volto. 

Após o jantar, eles trocaram beijos ardentes. Juca, num impulso, puxou Amélia pela mão e os dois saíram para olhar as estrelas, agradecer a união rara, apegada e ao mesmo tempo, leve, livre, solta.  Eram como um casal de pássaros, livres na maneira de viver. Fizeram seus agradecimentos aos céus, e recordaram histórias passadas.

- Quando eu era guri, tu me perseguias – disse Juca.

- Eu?...

- Deixa de ser dissimulada... 

Eles eram filhos de agricultores de uma região próxima. Estudavam na mesma escola. Eram muito amigos, mas por volta dos onze anos de idade, Amélia, descobriu-se apaixonada pelo garoto que tinha o sonho de futuramente ser o capataz de uma grande fazenda. Foi Amélia quem se declarou, no recreio da aula de uma certa tarde de verão. Juca foi pego de surpresa. Sua timidez o deixou corado. Sorriu, e sem saber o que dizer, saiu correndo atrás dos colegas que estavam jogando futebol. Estava tão nervoso, que no primeiro chute, caiu, torceu o tornozelo e teve de ficar uma semana de repouso em casa. Amélia sentiu-se culpada, mas não era nada grave. E logo tudo voltou ao normal.  É curioso perceber o quanto as meninas amadurecem mais cedo do que os meninos. Ela, corajosa, decidida, e ele, cheio de medos. 

O momento romântico trouxe à tona essas e outras doces lembranças. A noite estava calma, mas a presença mágica da paixão a perfumar a atmosfera, a deixou agitada. E o minuano, antes escondido, à espreita da conversa do casal, se fez presente. As nuvens encobriram a lua e as estrelas, o vento soprou as flores, as folhas, inclinou os galhos das árvores. Cheio de marra, veio uivando o seu cantar impiedoso e rebelde, arrepiando a pele daqueles corpos presentes, quentes, sempre sedentos de amor.  Mas o frio não podia conter o ardor da paixão dos amantes, e logo o vento cessou. E as estrelas voltaram a brilhar no firmamento. Depois das tantas conversas, dos risos, dos beijos e abraços, eles despiram-se de suas roupas, e sem pudores, ali, em meio à natureza, ora rebelde, ora branda, se amaram na terra úmida de orvalho. 

- Eu te amo! – disse ele.

- Eu amo mais! - retribuiu ela, sussurrando. 
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continua…

Fonte: Enviado pela autora

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Isabel Furini (Poema 51): Metamorfose I

 Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.   (ver no Calibre)
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Isabel Furini ocupa a cadeira n. 10, da Confraria Brasileira de Letras, tendo por patrono Dario Vellozo

Mensagem na Garrafa – 23 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Charles Chaplin
Londres/Inglaterra (1889 - 1977) Corsiersur-Vevey/Vaud/ Suiça

CAMINHADA

Tua caminhada ainda não terminou
A realidade te acolhe
dizendo que pela frente
o horizonte da vida necessita
de tuas palavras
e do teu silêncio.

Se amanhã sentires saudades,
lembra-te da fantasia e
sonha com tua próxima vitória.
Vitória que todas as armas do mundo
jamais conseguirão obter,
porque é uma vitória que surge da paz
e não do ressentimento.

É certo que irás encontrar situações
tempestuosas novamente,
mas haverá de ver sempre
o lado bom da chuva que cai
e não a faceta do raio que destrói.

Tu és jovem.
Atender a quem te chama é belo,
lutar por quem te rejeita
é quase chegar a perfeição.
A juventude precisa de sonhos
e se nutrir de lembranças,
assim como o leito dos rios
precisa da água que rola
e o coração necessita de afeto.

Não faças do amanhã
o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo
que nunca mais.
Teus passos ficaram.
Olhes para trás...
mas vá em frente
pois há muitos que precisam
que chegues para poderem seguir-te.

Leandro Bertoldo Silva (A moça fantasma)

Há muitos anos existia uma mulher tão linda que fazia estremecer de inveja as ricas filhas dos homens mais ricos da recém-fundada Belo Horizonte. Eu disse “filhas”? Não somente elas, mas as mães também. Estamos no ano 1899, mais precisamente no dia 1º de janeiro, na inauguração de uma das entidades recreativas mais auspiciosas da nova capital — o clube Rose, no Palácio da Liberdade, sob os cuidados de D. Ester Brandão, nada menos do que a primeira dama do Estado e, portanto, a esposa do presidente Silviano Brandão. Que festa! Belo Horizonte acabava de completar o primeiro aniversário.

A causadora de tanta inveja chamava-se Magnólia, outros a conheciam Jasmine, pela semelhança alva que possuía. De qualquer forma era mesmo uma flor cândida e pura. Não me alongarei na descrição da adorável criatura, basta saber que sua beleza cegava os homens de tal maneira que não importava serem casados. Eram atraídos como ímãs e perdiam a noção do espaço e do tempo, o que causava óbvios constrangimentos às senhoras. Na festa, até mesmo as melhores artistas de então, justamente por serem mulheres, ficavam incomodadas em perder a majestade da presença. Ora, o que valia a “Serenata”, de Schubert, até mesmo "Fantasie-Impromptu", de Chopin ou "Dance des Sylphes", de Berlioz tão bem executadas pelas artistas? Nada disso apagava o brilho de Magnólia (ou Jasmine).

Vale lembrar que a capital, com pouco mais de um ano, tinha uma população ainda muito escassa, aumentando sobremaneira a fama de Jasmine (ou Magnólia), e o ciúme das senhoras, filhas e artistas da cidade já estavam à flor da pele. Então concluíram: Era preciso que a moça se mudasse dali, ou qualquer outra coisa que lhe fizesse desaparecer. Porém, demitir a moça de seus serviços domésticos e festivos não diminuiria sua atração ao passear pelas ruas. Fazia-se necessária uma atitude mais drástica como o caso exigia. Calma lá! Nada de violência... Isso não fazia o feitio das senhoras, donzelas e moças casadoiras da sociedade que se iniciava na capital mineira. Mas uma coisa seria a vingança perfeita: ela que cegava os homens com a sua beleza incutindo-lhes desejos e, por isso mesmo, poderia ter o namorado, noivo e esposo que quisesse, ficaria impedida de amar quem quer que fosse. Mas como? 

Bem, como dito, a população era pequena e qualquer coisa que se fizesse ficaria logo à vista de todos. Era preciso uma ocasião propícia. E ela veio: O carnaval!

Nos primeiros anos do século passado, essa festa era uma das principais realizações de rua da cidade, em que um préstito com pomposos carros de tração animal, ricamente decorados, desfilavam pelas ruas centrais da cidade, para alegria das famílias que faziam verdadeiras batalhas de confetes e atiravam das janelas das casas flores e serpentinas. Era uma grande festa, ideal para o intento de um grupo de senhoras que necessitavam que todos, principalmente os maridos, estivessem entretidos com o alarido. Nesse dia, o cortejo partiu do barracão do Congresso. Essa casa legislativa situava-se entre a rua da Bahia e a rua Tupis e a avenida Afonso Pena. O barracão referido ficava nos fundos desse prédio, lugar perfeito para atrair a moça sem riscos de serem vistas tão logo a festa ia adiante. Uma das senhoras, com a desculpa de pedir Jasmine para ir ao barracão buscar mais serpentinas, providenciou que as outras já estivessem lá quando da chegada da moça. Foi a última vez que Jasmine ou Magnólia, seja como for, fora vista, para o lamento dos homens e felicidade das mulheres... 

A moça, mantida presa nesse barracão, fora transferida na quarta-feira de cinzas para um outro cárcere ao pé da Serra do Curral, de onde só saía a noite, sem mais ter o direito de ver a luz do dia. Inocente e obediente — e não se sabe por qual razão — voltava sempre antes dos primeiros raios da manhã, de forma que toda a sua formosura foi se misturando com o negrume da noite até que a morte veio selar seu destino: tornou-se aquela que, por falta de amar e sendo filha da solidão, descia em branco desespero as mediações do bairro dos Funcionários, pois fora ela uma funcionária obediente e infeliz, a recolher os amores nascidos na iminência de se separarem para nunca mais se encontrarem. Era mesmo, como disse Carlos Drummond de Andrade: "um vapor que dissolve quando o sol rompe na Serra".

É por isso que até hoje quem passa pelo bairro dos Funcionários em madrugadas sem neblina sente, vindo do sopé da Serra, o rastro frágil e hesitante da Moça Fantasma em um aroma característico de dama-da-noite, às vezes jasmim outras vezes magnólia, a perfumar os amores perdidos...
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Pois é... Arthur Azevedo, durante sua viagem a Minas Gerais, por volta de 1902, já dizia: “Ao lado do brilho, os detritos. As ruínas de uma dúzia de velhos bairros se amontoavam no chão. Para onde iria toda essa gente?” E assim, Belo Horizonte é conhecida como a capital dos fantasmas: o Avantesma da Lagoinha, a Loira do Bonfim, Maria Papuda e tantos outros; inclusive, a Moça Fantasma que trago aqui nessa história 

Com um tantinho assim de que quem conta um conto aumenta um ponto.... A propósito, você já viu ou conhece alguém que tenha visto algum deles? Eita... Diz aí!

Fonte: Árvore das Letras. Enviado por email pelo autor.