sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Mensagem na Garrafa – 50 -


Oswaldo Montenegro
(Oswaldo Viveiros Montenegro)
Rio de Janeiro/RJ (1956)

METADE

Que a força do medo que tenho 
não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo que acredito 
não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, 
mas a outra metade é silêncio.

Que a música que eu ouço ao longe 
seja linda, ainda que triste.
Que a mulher que eu amo seja sempre amada, 
mesmo que distante.
Porque metade de mim é partida 
e a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo 
Não sejam ouvidas como prece 
nem repetidas com fervor,
Apenas respeitadas como a única coisa que resta 
A um homem  inundado de sentimento.
Porque metade de mim é o que eu ouço, 
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora 
Se transforme  na calma e na paz que eu mereço,
Que essa tensão que me corroe por dentro 
seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso 
e a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste, 
que o convívio comigo mesmo 
Se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita em meu rosto 
o doce sorriso  que eu me lembro de ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui, 
a outra metade eu não sei…

Que não seja preciso mais do que uma simples alegria 
para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, 
mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta, 
mesmo que ela não saiba,
e que ninguém a tente complicar 
porque é preciso simplicidade para fazê-la florescer.
Porque metade de mim é a plateia 
e a outra metade, a canção.

E que minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor 
e a outra metade… também.

A. A. de Assis (Lágrimas aqui, alegria lá)

Mas como será o relacionamento em dimensão espiritual? Difícil de imaginar.

Inspirado no poema “Por quem os sinos dobram”, do imortal John Doone (posteriormente popularizado em romance por Ernest Hemingway), escrevi recentemente sobre a tristeza que nos envolve quando um de nós se despede desta vida. A propósito do texto, a escritora Majô Baptistoni, minha brilhante colega na Academia de Letras de Maringá, comentou: “É bem assim que me sinto cada vez que recebo a notícia da partida de alguém. Mas ao mesmo tempo me ponho a pensar nos que foram antes, e que devem estar felizes por receber essa pessoa. É nisso que me apego”.  

Pois é, Majô, pensando bem, deve ser mesmo bem assim. Lágrimas aqui, alegria lá. Enquanto parentes e amigos choram no velório, no plano celestial outros parentes e amigos da mesma pessoa estão a seu modo celebrando o reencontro. A mãe que fazia tempo se distanciara do filho. O marido que partira na frente e agora voltava a ter ao lado a esposa. Enfim o tão esperado recomeço da convivência entre irmãos, primos, compadres, vizinhos; colegas de escola, de trabalho, de clube; companheiros de atividades religiosas; parceiros de viagens, bate-papos, truco, pescaria, esportes diversos.

Aqui as lágrimas do adeus; lá em cima, no hall do céu, aquele alvoroço festivo na chegada de mais um dos que aqui por mais algum tempo tiveram que permanecer.

Mas como será o relacionamento em dimensão espiritual? Difícil de imaginar. Aqui nos identificamos pelo tamanho do corpo, pelo formato do rosto, pelo som da voz. Lá em cima, fora do invólucro físico, seremos invisíveis, tais quais os anjos. E então?… 

Penso que nos entenderemos telepaticamente, todos num mesmo idioma – a linguagem do puro amor. Porém de que falaremos? E poderemos conversar diretamente com Jesus, Nossa Senhora, Santa Rita, São Francisco de Assis? Teremos encontros de famílias? Reuniões de grupos? Formaremos equipes, congregações, coros, jograis? Como será cantar no céu?

Ninguém lá precisa estudar, nem trabalhar, nem cozinhar, nem mesmo dormir. Como então são preenchidas as horas? Há algum tipo de ocupação? Algum tipo de brincadeira?    

Todavia, os que na eterna urbe já se encontram decerto rezam bastante. Junto com os anjos e os santos, por algum meio acompanham os que continuamos peregrinando neste agitado planeta e fazem por nós poderosas orações. É uma forma de nos ajudarem. 

A bem-aventurança, pelo que a fé nos leva a crer, é uma condição de vida incalculavelmente superior a tudo o que possamos imaginar, porém certamente não foi projetada apenas para uns poucos privilegiados. Chegará um momento em que toda a humanidade passará a viver em permanente estado de felicidade.

Daí a compreensível convicção de que os que nos antecederam celebram com enorme alegria a chegada de cada um de nós que a eles se une para a partilha da infinita paz. 
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(Crônica publicada na edição do Jornal do Povo em 02.11.2023)

Fonte: Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/11/02/lagrimas-aqui-alegria-la/

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) 4

Ah, Tempo, adia o futuro,
modera o passo, demora!
E eu te prometo — até juro —
pagar-te juros de mora.
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Carente do teu abraço,
se a lembrança estreita o cerco,
aceito a queda de braço
com tua ausência... mas perco!
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Estas rugas em meu rosto,
mais que vestígios da idade,
são trilhas do meu desgosto
onde passeia a saudade.
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Feito folha solta ao vento,
horizontes eu transponho
e me alteio ao firmamento
porque vivo ao léu do sonho...
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Foi tanta recordação
num encontro inesperado
que, num "flashback" de emoção,
reprisamos o passado.
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Horas batem feito açoite,
quando a espera me angustia...
No talvez da quase noite,
não vieste... e é quase dia...
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Já vislumbro meu poente,
mas não receio a partida,
porque a morte é tão somente
o alvorecer de outra vida.
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Mãe, tuas simples sentenças,
em minha infância enraizadas,
ainda norteiam crenças
e escolhas de encruzilhadas.
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Mar agitado e bravio
foi teu amor sem ternura,
só me deixando o vazio
e as salinas da amargura.
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Meu coração é sem dono
— tapera à beira da estrada —
por onde, em seu abandono,
só passa o Tempo... mais nada!
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Mil vezes causou-me dor,
mas pelo amor sou movida,
porque renúncia ao amor
é renúncia à própria vida!
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Nas peças que a vida monta,
há milênios em cartaz,
que o tema "Guerra" — sem conta —
de lugar ao tema "Paz"!
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No adeus disfarçamos, sábios,
risos e lágrimas: jeito
de mascarar com os lábios
o pranto dentro do peito.
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Pelas veredas que trilho,
buscando teu coração,
meu coração andarilho
deixa rastros de paixão...
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Pode o "sim" gerar bonança,
e o "não" matá-la de vez.
Que seria da esperança
se não houvesse o "talvez"?
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Pode ser uma utopia,
mas persigo a identidade,
que espero alcançar um dia,
entre o sonho e a realidade.
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Quando o teatro frequento,
meus dias são mais risonhos:
a ribalta é encantamento,
caleidoscópio de sonhos...
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Recuse ao ócio guarida
que o labor Deus abençoa.
Paga um preço o boa-vida:
tem vazia a vida "boa"...
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Se nas trovas eu consigo
juntar meus sonhos dispersos,
o nosso amor, que bendigo,
não contenho em quatro versos...
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Sertanejo, quantas falhas,
na vida, a te flagelar!
De sol a sol tu trabalhas,
mas ao sol não tens lugar!
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Solidário com meu pranto,
sem ti, nosso lar vazio
tornou-se, por desencanto,
morada do desvario.
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Tanto foi teu desamor,
após nossa desavença,
que mascarei minha dor
com o véu da indiferença!
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Trouxe o amor tal claridade
a meu mundo antes tristonho
que hoje minha realidade
é a realidade de um sonho!
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Zeloso dos filhos Seus,
legou-lhes um bem fecundo:
Poesia, requinte de Deus,
para adornar nosso mundo.

Fonte: Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013. Enviado pela trovadora.

Arthur de Azevedo (Na exposição)

O Raimundo saiu do Maranhão aos vinte anos, muito disposto a nunca mais lá voltar, para não tornar a ver Filomena - e desde que aqui chegou (já lá se vão tantos anos!) fugiu de todas as coisas e de todas as pessoas que lhe pudessem recordar a sua terra natal.

Não lhe falassem no bacuri, nem no mucuri, nem no assaí, nem no arroz de cuchá, nem no tabaco do Codó, nem nas cuias da Maiobá, nem nos requeijões de São Bento, nem nos camarões de Alcântara; não pronunciassem na sua presença os nomes de Gonçalves Dias, João Lisboa, Sotero dos Reis, Joaquim Serra e outros maranhenses ilustres; não se referissem, de modo que ele pudesse ouvir, às novenas dos Remédios, aos passeios do Anil, aos banhos do Cutim e às serenatas ao luar no Pau da Bandeira ou no campo do Ourique; tudo isso lhe trazia à memória Filomena, aquela ingrata, que, depois de ter feito mil juramentos de que só dele seria, esqueceu-o para lançar-se nos braços do Cardoso, um negociante apatacado, com quem se casou.

Depois deste golpe, que esteve quase a matá-lo, Raimundo incompatibilizou-se com o Maranhão e tornou-se o mais carioca dos cariocas; entretanto, conservou no coração a lembrança dolorosa daquele amor infeliz, e, fiel ao seu próprio infortúnio, não procurou mulher que o fizesse esquecer Filomena. Ficou solteiro.

Durante muitos anos os seus sentimentos não se modificaram; ultimamente, porém, a idade começou a exercer no seu espírito uma ação benéfica, e ele refletiu, pela primeira vez, que a sua terra não tinha culpa da ingratidão de Filomena.

- Preciso reconciliar-me com o Maranhão, pensou Raimundo, e foi com esta ideia sensata que ele procurou a seção maranhense no Palácio da Exposição.

Mas percorrendo as salas onde se acham expostos os produtos do seu Estado, o pobre-diabo começou a ver Filomena em tudo; Filomena aparecia-lhe nos móveis, nos artefatos, nas fibras, nos tecidos, nas rendas, nas favas, no arroz - Filomena surgia de toda a parte!

As salas estavam quase desertas; além do Raimundo, estavam ali apenas três visitantes e uma família - marido, mulher, cinco filhos e uma criada, que examinavam tudo com atenção.

De repente, no meio daquele silêncio, a voz do marido repercutiu:

- Filomena!

- Que é, Cardoso?

- Vem ver como é bem feita esta rede!

O Raimundo ficou frio e como que grudado ao chão. Filomena! Cardoso! Era ela! Era ele! Eram eles!

Passados alguns momentos, ele voltou ao seu natural, e, disfarçado, aproximou-se... Que transformação!... que ruína!...

Mas que transformação também a dele, porque ela não o reconheceu...

O caso é que essa visita à Exposição completou a cura, que já começara. O Raimundo voltou a ser um bom maranhense, e agora está disposto a matar saudades da sua terra. Filomena já não existe.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos fora da moda. Publicado originalmente em 1955. Disponível em Domínio Público

Estante de Livros (“A casa assombrada e outros contos”, de Virgínia Woolf)

 Além dos romances, Virginia Woolf (1882 – 1941) foi um exímia escritora de contos, que estão presentes em várias coletâneas organizadas por ela mesma, quando viva; e outras organizadas por editoras do mundo inteiro mesmo após a sua morte. Portanto, Casa Assombrada sempre faz parte dessas tantas coletâneas.

Aqui no Brasil há uma coletânea com todos os contos da extinta Cosac Naify, lançada em 2005, que leva o título de “Contos Completos”; outra, menos volumosa chama-se “A marca na parede e outros contos”, que a editora lançou em 2015.

Há outra, ainda mas antiga, lançada em 1984, chamada “A Casa Assombrada e outros contos“, lançada pela primeira vez em 1944 pela editora Hogarth Press, do casal Leornad e Virginia Woolf.

O conto que dá título a essa coletânea pode ser considerado um dos mais curtos da autora. São apenas 692 palavras que relatam a vida de dois fantasmas. Assim, é um conto breve, mas que conduz o leitor para um espaço muito rico porque o cenário é desenhado na mente com facilidade a cada palavra que Virginia Woolf coloca em seu texto.

Se por um lado o leitor pode achar que uma história de fantasmas pode ser assustadora, o lado que Virginia Woolf nos mostra é muito diferente e mais interessante que isso.

Os fantasmas, conectados de um jeito sutil com a natureza, estão ali buscando a mesma coisa, caso estivessem vivos – um tesouro no sótão, no entanto, algo mais sublime.

É essa a primeira impressão, seguida da gentileza estética que a autora promove, ao fornecer para nós belas frases, recheadas de figuras de linguagem inusitadas.

Fachos fortes de luar cruzam pelo chão e a parede e, ao se encontrarem, mancham as faces que se dobram; as faces que ponderam; as faces que revistam os dormentes e buscam sua oculta alegria.

Virginia Woolf entre 1912 e 1919 realmente morou em uma casa que ela considerava assombrada.

A casa ficava no interior da Inglaterra, chamava-se Asheham House e foi a primeira moradia quando casou-se com Leonardo Woolf, que também compactuava da ideia de fantasmas morarem na residência, o que divertia os dois.

Nesta compilação de alguns dos seus contos navegamos pela mente sombria da autora e estas histórias, curtas, mas complexas, falam de um variadíssimo leque de assuntos, guiando-se pelas divagações do narrador, sendo fragmentos de várias vidas numa só. Nesta obra temos sete contos de Woolf, todos eles muito diferentes ainda que com um tom muito semelhante. Este tom é relativo ao ambiente sombrio e às palavras melancólicas que podem refletir a vida – e a morte da escritora.

Os contos em si têm uma escrita muito semelhante na medida em que todos são escritos a partir do pensamento dos personagens. Assim sendo, para mim, um aspecto positivo, pode, no entanto, ser o que torna alguns destes contos um pouco confusos. Ainda assim, uma análise rápida permite-nos perceber o porquê desta confusão – o pensamento humano não é linear: ora estamos a pensar numa coisa, ora estamos a pensar noutra e assim constantemente. Woolf utiliza várias metáforas e faz muitas reflexões filosóficas acerca de temas da sua contemporaneidade.

Para além disso, alguns destes contos são como divagações, uma vez que o narrador se deixa levar pelo seu próprio pensamento, ou seja, não há propriamente um fio condutor, mas antes uma linha com várias ramificações. Neste sentido, a experiência da leitura e de absorção são elevadas a um patamar diferente de muitos contos clássicos.

O conto mais marcante seria talvez “Lappin e Lapinova”, que nos fala de Rosalind e Ernest, jovens recém-casados que criam um mundo só deles a partir de duas alcunhas, Ernest é Lappin e Rosalind Lapinova. Este “segredo” entre os dois foi criado com a intenção de escapar um pouco do mundo de ilusões e de falsas aparências regido pela família rica de Ernest. Com o passar dos anos, Ernest vai saindo lentamente da pele de Lappin e vai-se tornando igual aos membros da sua família, deixando Rosalind destroçada.

Esta história é incrivelmente simples em termos de leitura (talvez das menos confusas) e, por isso, torna-se muito fácil perceber como o amor entre os dois se foi esmorecendo e sendo esquecido. É uma realidade muito vivida ainda nos dias de hoje, pois, ao início, todas as relações têm aquele ar maravilhoso de novidade, no entanto, se não houver um cuidado mútuo, o amor acaba por morrer.

A escrita de Virginia Woolf não é propriamente de leitura fácil e os seus romances são, sem dúvida, mais conhecidos que os seus contos. Apesar disso, esta compilação reflete muito bem o seu universo sombrio e talvez a esperança que ainda residia na sua alma, no amor que esta transportava. Aquando da sua morte, carregada de dor e de pedras nos bolsos, deixou uma carta ao seu marido na qual lhe dizia: “Se alguém pudesse salvar-me serias tu (…) Não creio que dois seres pudessem ser mais felizes do que nós fomos“. Esta última frase é uma referência ao seu primeiro romance.

Fontes:
– Excerto de texto de Francine Ramos para Livro & Café. 01.2017.
– Excerto do Texto de Lorena Moreira, para O Barrete. 17.03.2021.

Aparecido Raimundo de Souza (Ovos quase mexidos)

O ENTREVISTADOR chega para uma pequena multidão à espera do ônibus num ponto em frente à praça central e escolhe uma moça ao acaso:

 — Bom dia, minha amiga. Como é seu nome? 

— Érica...

— Nome completo.

— Érica da Conceição.  

— Érica, muito prazer. Sou Heitor Conrado. Você está ao vivo no programa “A sorte vai até você”, do Carlos de Assis, da Rede de Televisão Vida Plena. Gostaria de lhe fazer algumas perguntas, todas com uma única palavra. Quero que você responda também, por favor, às minhas indagações, com uma palavra. O que vier na cabeça. Exemplo: Casa?... você deverá dizer... lar... pai?... esteio... fogo?... chama. E assim por diante. Não poderá pensar. Preparada? Se errar uma resposta, estará fora da competição e eu escolherei outro participante. Se acertar ganhará, ou seja, levará cinco mil reais em dinheiro. Ali está o cheque nas mãos das minhas auxiliadoras, as esfuziantes bailarinas Flavia e Angélica. Num oferecimento das Lojas Semvam, onde você poderá ir de fusca, taxi, ou Uber... olhando para aquela câmera. Gravando...  
— OK.

— Posso começar?

— Sim.

— Preparada?

— Sempre.

— No final da contagem... três... dois... um... valendo... Érica, Comida?
— Massas.
— Morte?
— Desespero.
— Vida?
— Tudo.
— Esperança?
— Felicidade. 
— Amor?
— Incondicional.

— Alegria?
— Saúde.
— Política?
— Desgraça.
— Separação?
— Consequência.
— Religião?
— Ópio.
— Jesus?
— Salvação.
— Necessidade?
— Fé.
— Feio?
— Racismo.
— Escritor?
— Camões. 

Os presentes aplaudem e incentivam.

 — Silencio?
— Meditação.
— Criança?
— Futuro.
— Inferno?
— Aqui.
— Sol?
— Luz.
— Noite?
— Descanso.
— Saudade?
— Vazio...
— Trauma?
— Dor.
— Mulher?
— Mãe.

— Lágrima?
— Alívio. 
—Cadeia?
— Submundo.
— Drogas?
— Jamais.
— Viagem? 
— Roma. 
— Sonho?
— Paz!
— Flor?
— Rosa.
— Você?
— Universo.
— Mesa?
— Farta.
— Inesquecível?
— Deus.

O entrevistador abre os braços ao tempo em que coloca no rosto um sorriso alegre e contagiante. Olha para seu cinegrafista e para a multidão que se aglomerara ao lado deles e anuncia, em altos brados, a mais nova sortuda a levar um prêmio de cinco mil reais em dinheiro vivo. 

— Produção, produção, Érica da Conceição é a vitoriosa.  Ganhouuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu!... Carlinhos, daqui a pouco estaremos chegando aí nos estúdios. Viva o programa “A Sorte vai até você.” Parabéns à Érica e as lojas Semvam, nossa patrocinadora oficial. Uma salva de palmas para a mais nova felizarda!...

A galera se tumultua em polvorosa, com gritos extasiados. A alegria do prêmio propaga geral. Na empolgação do momento, um “passante” engraçadinho se achega à Erica, se ajoelha a seus pés, segura a sua mão direita, e, na maior cara de pau, a pede em matrimônio:

— Amor, casa comigo? Quero ajudá-la a gastar esta pequena fortuna...   

A contemplada, obviamente, recusa a proposta. O teimoso insiste. Num dado momento, se levanta e enlaça a graciosa pela cintura. Se não fosse um dos muitos que assistiam ter pulado na frente de uma viatura da polícia militar que passava justo naquele instante, o sujeitinho teria sido linchado.

Fonte: Texto enviado pelo autor  

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Varal de Trovas n. 591

 

Mensagem na Garrafa – 49 -


Emílio de Meneses
(Emílio Nunes Correia de Meneses)
Curitiba/PR (1816- 1918)

RETORNO

Olha! volto de novo, - Olha! de novo à crença.
Eu volto. É o mesmo templo. - O teu olhar traspassa
Rasga, ilumina em fogo, a abóbada suspensa
De onde pende do incenso a mesma nuvem baça.

Sinos rebadalando o glorioso repique…
Toda a massa dos fiéis pelos degraus do altar…
Deixa que suba a prece e que a esperança fique
À flor dos corações como algas sobre o mar.

É o mesmo ainda o canto invisível e crente,
O turíbulo de ouro o mesmo fumo evola,
E do órgão gemebundo o queixume plangente
É o mesmo que noss'alma embriaga e consola.

Aquece-me de novo o mesmo fogo interno,
Chora-me dentro d'alma o mesmo cantochão
Que no ouvido me entrou pelo lábio materno
Como um vinho de Cos num cérebro pagão.

Mas uma timidez de neófito me invade,
A alma se me conturba, a vista emarelece…
Sinto-me tropeçar a cada claridade
E a cada treva sinto um corpo em que tropece…

Por que em ti hão achar o desejado guia
Que o vacilante passo, estradas através,
Conduza onde não haja além da luz do dia
Outra luz que não seja a que vejo a teus pés?

Vem! que por tua voz de madrigais suaves,
Fanático, a pisar, enfebrecido e louco,
Eu descubra o caminho através estas naves
E me tires a venda aos olhos, pouco a pouco.

Aceita no agasalho ardente do teu beijo,
A alma cheia de medo e cheia de terror,
E nesta indecisão do primeiro desejo
Mata o dragão do ciúme e dá vida ao amor.

Faze do teu olhar o meu único teto,
A única inspiração me venha do teu riso,
Que eu não sei se haverá n'outrem maior afeto,
Se igual dedicação neste mundo diviso.

Queira a fúria de mar que em teus olhos se mira,
Queira a calma de luar que o teu olhar contém,
Naufragar o temor que esta paixão me inspira
E a esperança banhar da alegria que vem!

Fabiane Braga Lima (Quem ama cuida, pois o tempo urge!)

Sofri anos sem motivos e por um sentimento vulgar que chega a ser atroz, indecifrável, não existe uma tradução específica, é como ser alguém masoquista adaptado para sentir dores. Foram anos trágicos, onde a indolência havia me tomado em grande proporção, me levando numa demência coerente, onde na verdade tudo era incoerente.

Hoje, vejo uma outra pessoa, totalmente e completamente diferente, não há reminiscências de um passado árduo, minha alma e o meu coração se tornaram astutos, não mais os entrego para quem não merece. E pouco a pouco, eu pude construir argumentos sólidos de defesas e como a razão eu me tornei uma pessoa centrada! Quando me distraí, tudo que eu tinha, volta ao normal. 

Somos reais, somos feitos de carne, e a carne perece, mas a alma não é imortal. Nossa alma deve ser guardada e intacta, pois é o que temos de melhor. O tempo urge, não somos personagens, temos filhos, famílias, amigos e uma gama de relações. E quem ama cuida, nos instrui quando for necessário. Temos a necessidade de sermos reais e amar os nossos semelhantes. 

Nem sempre, somos personagens de um teatro surreal, pois a vida é tão fugaz que passa tão depressa. Cuidemos das nossas almas! Chega de fecharmos os nossos olhos, devemos enxergar a realidade como ela é. Então pense, quem ama cuida, pois o tempo urge e a carne perece, mas o amor, nunca será extinto! Ele vive....!

Fonte: Enviado por Samuel da Costa.

Samuel da Costa (O ninho da serpente)

Para João Carlos Pereira 

Parece que a teoria da relatividade foi feita especialmente para aquele lugar, onde o tempo parece ter vontade própria. Anda de forma rápida quando quer andar. E, às vezes, parece que paira no ar, de forma mágica. 

Quando Ademar caíra naquele local o tempo andava de forma bem lenta. E ele não via a hora de ver seus entes queridos novamente. Uma simples visita no cárcere onde sua irmã e amigas vieram visitá-lo. 

Era para ser apenas mais uma simples visita, não fosse Marcelo de Sousa Andrade, ou melhor, Marcelinho Serra-fita como era popularmente conhecido dentro e fora de prisão, ao vê-las partirem, ele foi categórico ao dar a ordem para Ademar: — Chama elas de volta! Chama agora! Marcelinho tinha o olhar vil de uma cobra. 

A figura do guarda, fortemente armado, postado na guarita de observação, que vigiava os encarcerados, parecia uma figura folclórica, uma mera figura decorativa. Como também o carcereiro que assistia aquela cena, sem nada fazer ou dizer alguma coisa.            

Para Ademar, o tempo que pairava no ar, agora o sufocava, porque Marcelinho Serra-fita, quem realmente mandava naquele lugar de angústias e muitas dores. Resolveu, após algumas visitas íntimas, oficializar o seu casamento com a irmã de Ademar. Uma união que Ademar não sabia se comemorava ou maldizia.

Fonte: Texto enviado pelo autor

Solange Colombara (Ramalhete de Versos) 6: Spinas

AMANHECE...

Imagem da vida 
é fonte divina,
uma doce magia.

Desenhada no céu, exala poesia 
de um tesouro perdido, exaurido
no crepúsculo, aplaudindo o dia.
Profetizando, o sino repica, doa
no amanhecer uma doce alegria. 
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DEPOIS DA CHUVA 

Gorjeios no arco-íris 
encantam aos olhos,
fluem no entardecer,

aquietando todo o meu ser.
Em um relance de nuances 
carmins, a vida é benquerer.
As marcas da chuva secam
sem pressa, até o alvorecer.
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INTUIÇÃO 

Enquanto meu eco
levita com sutileza
sobre os corrimões,

ouço sons, talvez meras ilusões 
que emaranhados entre os vãos, 
tentam livrar-se de seus grilhões.
Fitando um soalho bem cuidado,
sinto vida em outras dimensões.
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O SOM DO SILÊNCIO 

Ouvindo meu silêncio,
liberto este momento
disfarçado em dilema,

em um aroma de alfazema. 
A vida devolve em sorrisos
a esperança, abre a algema
do meu silêncio, que enreda
linhas de um singelo poema.
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PRIMAVERA 

Invernos chuvosos saem
levando apenas saudade, 
deixando ilusões serenas.

São brisas amenas que valsam
no jardim intenso da primavera,
um beijo nas pétalas pequenas.
Os vestígios carmins das rosas
serão versos das futuras cenas.
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REENCONTRO

Exalas cada manhã 
tuas cores, pairando 
nas esquinas frias 

ilusões, ou serão velhas poesias?
Um badalar do sino, timidamente, 
anuncia em vozerios, tuas magias
ou será um poeta (re)descobrindo 
este renascimento todos os dias?
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SEMENTE

Renasço cada manhã,
ecoando em silêncios
esta intensa sensação

de sentir-se viva, uma ilusão
em que fragmentos da alma
unem-se aos ecos no chão,
germinando de novo a vida...
abraçando a voz do coração.
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Observação sobre o Spina: é um poema de duas estrofes. A primeira de três versos com três palavras, obrigatoriamente, iniciada por uma acepção trissílaba. Ex: valente.

A última palavra desta estrofe rimará sempre com a última do terceiro e quinto versos, não havendo obrigatoriedade de rimar com a primeira. 

– Palavras compostas com e sem hífen são censuradas no início do poema. Da mesma forma que a ênclise e a mesóclise
– O último verso da primeira estrofe rimará sempre com o terceiro e quinto verso da segunda estrofe
– O título e a métrica são opcionais. Ao optar pela métrica regular, não se deve, jamais, alterar a quantidade de palavras dos versos com o intuito de alcançar a métrica desejada.
– As conjunções: mas, e, porém, no entanto, entretanto, pois, todavia, contudo, são todas proibidas.
– As palavras compostas por hífen são contadas como uma única acepção. As compostas sem hífen são contadas individualmente.
– Somente se utilizam palavras iguais nas rimas quando os seus significados forem diferentes; não são permitidas rimas imperfeitas nas sequências obrigatórias.

Fonte: Enviados pela poetisa.

Batista de Lima (O Velho)

Gerôncio escapou da morte. Ficou vítima da vida. Não morreu. Chegou aos cem anos e foi festejado pela idade. Todos lhe prestaram honras. Mas depois a morte não veio e as pessoas não gostaram muito disso, nem o próprio Gerôncio. É tanto que ele se recolheu como um eremita num socavão de serra para esperar a morte na placidez da velhice. Mas a morte não veio.

Pensou em suicidar-se, mas a religião que ganhara se seus pais dizia que só Deus que dá, pode tirar a vida, ninguém mais. E ali estava ele abandonado por Deus. Como seria feliz se tivesse morrido mais aos vinte e cinco anos. Mas não, perdera a quantia dos anos e como castigo estava ali, verdadeira sucata que até o tempo corrosivo acabara por esquecer. Não tinha mais com quem conversar, todos morreram. Até seus netos se foram. Seus bisnetos estavam velhinhos e não o reconheciam mais como gente e sim como um dejeto do diabo, uma excrescência divina. Naquele pé de serra, os pássaros eram outros. Rolinhas, canários, azulões, todos desapareceram. Agora só havia pardais nas árvores, num barulho infernal, e em vez de urubus, carcarás e gaviões, os céus estavam cheios de aviões, verdadeiros demônios ensurdecedores sobre sua cabeça e perturbadores do seu sono naquele fim de mundo. Mas fim para ele, era coisa que não existia. Era um esquecido de Deus. Se ia pescar no açude, não havia mais traíras, nem piaus, nem corrós, tudo era tilápia, o diabo de um peixe feio que não era de seu tempo.

Se ia tirar mel para saciar sua fome, não havia mais jati, mandassaia, jandaíra, cupira, capuxu, cafimfim, tudo era abelha italiana, com seus ferrões dourados.

Era um mundo novo e ele ali, velho, ficando para semente. Mas o que mais doía era não ter com quem conversar. As pessoas não falavam mais. Apenas ouviam rádios, televisões, aparelhos de nomes estrangeiros. E ele só, resto imortal, pronto para morrer e a morte se escondendo dele de forma tão absurda.

Até as jararacas e os cascavéis corriam com medo dele quando deveriam picá-lo para ver a queda. Isso era sofrimento demais. Ter que aturar a vida todas as manhãs. Levantar-se e sentir-se um esquecido da natureza, um postergado do cão, uma peça de museu para Deus e seus anjos. De tanto durar, resolveu arranjar novos amigos ali mesmo entre as pedras, as árvores mais velhas e uma ponta de serra escravada. Descobriu que podia conversar com aqueles entes mudos e repartir com eles a sua angústia.

Foi conversando com esses seus companheiros que constatou serem todos marcados pelo sofrimento. Todos esquecidos e condenados em sobreviver, todos com dramas iguais aos seus. Aí Gerôncio foi muito feliz. De tanto ouvir histórias e principalmente de contar histórias foi emagrecendo até não precisar mais comer e ficar se alimentando só das histórias que contava e das que ouvia. Tanto emagreceu que ficou transparente, que ficou só sua voz impressa nas pedras e suas histórias soltas pelo mundo afora.

(Batista de Lima, Janeiro É Um Mês Que Não Sossega)

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado por Nilto Maciel.
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Batista de Lima (1949)

José Batista de Lima, nascido em Lavras da Mangabeira/CE (1949), embora pertença ao “grupo” da revista O Saco, pois seu primeiro livro, de poemas, é de 1977, passou a divulgar seus contos mais recentemente: O Pescador da Tabocal saiu em 1997 e Janeiro é Um Mês Que Não Sossega, em 2002. Seminarista no Crato, formou-se em Letras e Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Especializou-se em Teoria da Linguagem na Universidade de Fortaleza, onde exerceu a chefia do Departamento de Letras e a diretoria do Centro de Ciências Humanas. Cursou o mestrado em Literatura na Universidade Federal do Ceará. Iniciou-se como professor de Português em colégios de Fortaleza.  

Na vida literária deu os primeiros passos no Clube dos Poetas Cearenses. Mais tarde participou ativamente dos grupos Siriará, Arsenal, Catolé e Plural. Pertence à Academia Cearense de Letras, à Academia Cearense da Língua Portuguesa e à Academia Lavrense de Letras. Desde 2009, é conselheiro do Conselho Estadual de Educação. Publicou Poemas: Miranças (1977); Os Viventes da Serra Negra (1981); Engenho (1984); Janeiro da Encarnação (1995); O sol de cada coisa (2008); Tiborna (2014); Concerto para espantos (2015). Contos: O pescador de Tabocal (1997); Janeiro é um mês que não sossega (2002); Assim falou Sipaúbas (2019). Ensaio: Os vazios repletos (1993); Moreira Campos, a escritura da ordem e da desordem (1993); O fio e a meada (2000); Uma casa toda mãe (2022).

Sua fortuna crítica está reunida no livro Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima (Fortaleza, Unifor, 2006), organizado por Nilto Maciel.

A presença do poeta é visível em muitas histórias. O ensaísta talvez se mostre quando a narrativa se aproxima da crônica social e política.

Batista de Lima apresenta os contos quase sempre em diversas ações, isto é, em diversos tempos e lugares. Em “Os Cavaleiros da Lua”, que oferece características de lenda, vemos: “Deu-se que Adamastor parou de respirar, porque morrer mesmo ela já havia morrido desde que voltara do seringal.” A linguagem, porém, é sempre poética e muito particular.

Ora em Tabocal, ora em Sipaúbas, é nesses lugarejos do sertão cearense que as personagens se movimentam, nascem, vivem e morrem. O sertão é pintado sem exageros de descrição. Há somente referências a objetos, situações, seres, como parte do cenário ou das vidas dos personagens: tapiocas, esterco de vaca, cuia de leite mungido, pé de muçambê, palhoça à beira do açude, vagens de feijão, queijo de cabras, coité. Nada de descrições inúteis ou excessivas.

Os personagens de Batista são homens e mulheres do sertão ou das cidades pequenas, até mesmo aqueles já desaparecidos, já tornados mitos, como Lampião. Alguns desses personagens, sempre secundários, se repetem em diversas histórias: padre Inácio é “habilidoso” em “A Festa de Janeiro”, aparece “já velho e ocupado com o rebanho em Cristo, de Tabocal”, em “O Pícaro”; Coronel Nicodemos, ou Demo, é o mandão do lugar, Tabocal; Dona Bilinha, mulher do coronel; major Apolônio; padre Otávio, Cabo Zezinho; e outros. Isto dá aos livros de Batista certa unidade, embora os dramas não se misturem, não se confundam.

Muitos dos personagens Batistianos têm características próprias - são caracteres. Como Maria Raimunda, a vendedora de abelhas (“As abelhas”). Ou como os padres, coronéis, doutores, fabricantes de cachaça, valentões, afinadores de violões, coveiros e até animais. A presença de cobras, cachorros e gatos é frequente na obra de Batista de Lima: em “O Lobisomem de Tabocal” o bicho “veio dos lados do cemitério, já trazendo uma porção de cachorros latindo desesperados.” Dona Margarida, na história de título homônimo, herda do terceiro marido alguns cachorros. Em “Bonifácio bom de fala” vê-se “um amontoado de cachorros”. Em “A botija” há também a presença desses animais. Há até um conto de gatos, que passam a dominar a casa de Macário (“Os gatos”).

O universo de Batista de Lima é habitado por criaturas às vezes picarescas, mas sempre muito reais. O narrador-escritor ou o narrador-onisciente atua como um memorialista muito cioso da verdade dos fatos ou um repórter astuto. Em vista disso, aqui e ali o leitor perceberá na narrativa o tom da crônica, como em “O Hospital Fantasma” e “O saque a Sipaúbas”. Neste a problemática da seca é o drama central: “Os sipaubenses comiam calango, miolo de mandacaru, carne de urubu, mas resistiam.” Na mesma linha está “Os sobreviventes”.

Alguns dos personagens de Batista são caricaturas, como Manilton, cheio de manias. Outros, como Macário, têm desenhado o comportamento ou o caráter e não tanto a fisionomia ou a aparência. Em vista disso, muitas histórias são de personagem. Malaquias, de “O póstumo”, por exemplo, “era morto de preguiça.” O conto de personagem é o mais frequente na obra de Batista. Muitos têm por título o nome ou o apelido do protagonista (“Carmina”, “Banana”); outros, a condição física, social (“O velho”, “O delegado”, “O insepulto”).

O tempo em Batista de Lima é dilatado. As ações de um mesmo drama são narradas de forma sucinta, ligadas uma a outra, porém entre uma e outra o tempo é de dias, meses, anos. Em “O Pícaro” no primeiro parágrafo Dona Bilinha “estava sentindo as primeiras dores do primeiro parto”. No segundo parágrafo o rebento, Caetano, “foi dado para criar ao Pe. Inácio”. No outro, o menino já crescido, bebia o vinho, comia as hóstias e roubava o dinheiro da coleta da igreja. Mais adiante, aos doze anos, virou lavador de pratos e limpador de banheiro em um bar. Mais adiante, tornou-se guia de cego. Termina sargento e provável candidato a prefeito. Em “O Afinador de Violões” a vida do protagonista daria um romance, como diz o povo. A história tem começo como muitas narrativas populares: “Naquele tempo”. A seguir o afinador de violões “tornou-se cassaco”. As referências ao passar do tempo são frequentes na narrativa: “Dias depois”, “O afinador começou a afinar-se de carnes”, “voltou para a companhia da mãe”, “Os anos se passaram”, “Foram anos e anos de afinação”, “Certa feita”, “Uma noite de agosto”. Essa variedade de ações/tempos está presente em muitos outros contos, como um recurso de linguagem utilizado com insistência.

Batista não se atém ao instante, ao flash, ao momento de tensão da trama. Importa a ele o ritmo do calendário, o passar do tempo. Em “Julho é um mês que não tem fim” o próprio título é significativo. Todo o passado do lugarejo é “revivido” como num sonho. Os mortos revivem suas façanhas. (…) “a noite continuou por dias e anos transfigurados. Muitas moagens e histórias se repetiram no pequeno espaço de horas.” Em “Dona Margarida” o mesmo processo: “em outros tempos”, “uns foram embora”, “de tempos em tempos”, “já enterrara dois maridos”, “chegou a festa do padroeiro”, “depois de alguns anos”.

Há dois tipos de contos nos dois livros de Batista de Lima: as histórias do sertão e as narrativas poéticas, quase poemas em prosa, como “Vertigem” e “A pedra”. Nestes a ausência de trama e de personagens chama a atenção do leitor. Às vezes há personagens, como em “O eremita”. São personagens-símbolo: Deus e Canlima, o eremita. Em “O capote” a protagonista Marta é uma menina. E tudo gira em torno de sua amizade com um capote, isto é, galinha d’angola. A narrativa se desenrola com suavidade e poesia até o desfecho, quando Marta se sente adolescente, “o capote já velho”: “Certa feita, depois de algum tempo,” o capote “amanheceu morto.” A menina “não derramou sequer uma lágrima. Andava muito entretida em se arrumar, ultimamente.” Vê-se também o fantástico ou o fantasioso em algumas narrativas, como “O encontro” e “Projeção”. Esses contos geralmente não se localizam no campo, no sertão, constituindo, pois, uma minoria no conjunto das histórias.

O conto sem enredo, de personagens sem nome, também compõe a obra de Batista, como “O cordeiro”. Algumas dessas peças podem ser denominadas parábolas, como “A Carta”. E o que dizer de uma história cujo personagem principal é a morte? Em “Lindolhar” o protagonista se vê “perseguido” ou “olhado” pela morte: (…) “ela estava no último galho da árvore”, como se fosse uma coruja. “Ela estava lá, antiga como a noite, afinando as garras para o bote”, como uma cobra.

E como o contista arranja os desenlaces de suas narrativas? Muitas vezes o desfecho é a morte do protagonista, como em “Luizão”, “O Lobisomem de Tabocal”, “O Afinador de Violões”. Em outros contos, no entanto, nada de tragédia no desenlace. Em “Os Enganos das Aparências” o suposto machão soldado Viriato, “só músculos”, o “gigante”, é flagrado em banho com negro Terto no banheiro de Dona Maroca. “Naquela mesma noite” “desapareceu pelos fundos da pensão”, “levando nas costas a mala de roupas e de surpreendentes mistérios.” Esse tipo de humor contido está presente em diversas narrativas, como “O Herói que não Retorna”, “Manilton”, “Os Azares do Aspirante”. Desfecho com humor se vê também em “O falso crime do Padre Arnaldo”. Talvez não tanto com humor é o desenlace de “Os gatos”.

Batista utiliza sempre a narração como forma básica de contar as suas histórias. Não há diálogos explícitos, diretos. E isto se dá tanto do ponto de vista onisciente como da primeira pessoa. As narrativas são constituídas basicamente de narrações, com raríssimas descrições e falas em discurso indireto.

Batista de Lima também cultiva o miniconto, embora os outros não sejam longos. Uns poucos alcançam mais de três páginas de livro, como “Janeiro é um mês que não termina”. Quanto mais reduzido, mais o conto tende a se afastar da forma tradicional. O miniconto às vezes se aproxima do poema. É o que se vê em Batista. É o poeta dando a mão ao narrador ou ao prosador. E ambos caminhando de cabeça erguida, certos de estarem cumprindo suas missões no vasto mundo das letras.

Fontes: - MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008. Enviado pelo autor.
– Soares Feitosa e Nilto Maciel. Jornal do Conto; 
– Academia Cearense de Letras.