quarta-feira, 22 de maio de 2024

Renato Frata (Pobreza)

Ele se pôs na fila, ao lado da minha. Calçava apenas um sapato. No outro pé, uma atadura suja e, na hora do hino, não cantou, mexeu a boca sem voz, enganando a professora que vigiava de régua nas mãos acompanhando as partituras.

– Meu guarda-pó tinha quatro botões do lado. Fora de meu irmão que trabalhava em farmácia e, como crescera. Fui seu herdeiro de roupas velhas por muito tempo.

Ele vendia remédios e aplicava injeções. Atendia um mundaréu de gente que procurava, porque tinha mãos leves que faziam das doloridas injeções uma picadinha de nada. E o fazia até nas prostitutas durante o dia, porque à noite, como era menor, não podia. Mas ele ia depois das seis, às escondidas, e ficava lá, nós quartos delas, depois das injeções, tomando guaraná! E só voltava para casa bem tarde, quando já estávamos dormindo. As vezes me trazia doce, às  vezes só contava o que acontecera. Até das nádegas delas, tudo tintim por tintim, da cor das calcinhas, era legal. Animava-me nos sonhos de puberdade.

O menino do pé com pano sentou-se comigo na carteira dupla. Dividiríamos o tinteiro de tinta azul, e ali fizemos amizade. Perguntei-lhe sobre a atadura.

- Cortei numa lata — ele disse

- E dói?

- Não.

- Se não dói, por que não calça o outro sapato?

Ele não respondeu. Levantou-se com a bolsa nas mãos e foi se sentar sozinho no fundo da sala, emburrado. Baixou a cabeça, debruçou-se nela e ficou.

Não compreendi, mas pensei: "Que se..." (para não repetir nome feio que falava aos montes). Aí lembrei do meu irmão farmacêutico e fui ter com o novo colega. A raiva dele havia passado e ele sorriu quando me viu chegar, me dando beira no assento da sua carteira.

Bem baixinho lhe contei do meu irmão dizendo que se o corte no pé estivesse doendo ele poderia colocar remédio. Até daria um desconto, por ele ser meu amigo.

Meio acanhando, ele me puxou pelo braço, pôs a boca no meu ouvido e me fez jurar que não contaria o que eu iria escutar. Nem se eu precisasse morrer pelo silêncio. Arregalei os olhos e, preocupado, fiz sim com a cabeça.

O coração bombeou rápido seus tucs-tucs, me fazendo compreender que um segredo, quando segregado, acelera o coração. Tem dentro de si uma coisa que batuca, fazendo a cara corar. E escorrer suor também. Sem falar no frio das mãos.

Então ele confidenciou: não tinha machucado algum no pé... só disfarçava...

- Por que então usa esse curativo?

A resposta foi a nunca imaginada: seu irmão gêmeo estudava em outra escola, no mesmo horário. E nenhuma aceitava aluno sem sapato.

Mas, com ao menos um, sim.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. 
Enviado pelo autor

Como Escrever uma História Curta e Engraçada – 1

A criação de um conto de humor é uma experiência agradável que combina a comédia e a escrita criativa com um formato literário interessante e envolvente. O humor pode aliviar a tensão de situações difíceis e unir as pessoas através do riso, um subterfúgio muito útil se a trama em questão for tensa ou perturbadora. Não importa se você está escrevendo uma dissertação para a escola ou se simplesmente deseja contar uma história insana e engraçada através de um projeto literário, a combinação da comédia com a escrita poderá ajudá-lo a expressar criatividade e senso de humor.

PLANEJANDO O CONTO

1. Escolha um cenário.

Alguns escritores preferem planejar a trama antes de escolher um ambiente, mas, na literatura cômica, o humor costuma se basear em situações. Antes de começar a criar o enredo do conto, considere onde a história se passaria e como você poderia extrair humor de tal cenário.

Tente ser original na hora de escolher um ambiente. Os leitores podem se desinteressar pela obra se estiverem muito familiarizados com o cenário, já que sentirão que história foi reciclada.

Nos contos, o ideal é manter o menor número de cenários possível. Tente trabalhar dentro de apenas um ambiente e, se não for possível, não use mais de dois.

2. Invente uma trama.

O enredo é o componente mais importante da história e abrange o que acontece no conto, quem está envolvido e como a série de eventos se desenvolve.

A maioria das histórias cativantes tem começo, meio e fim, e através dessa linha de tempo uma tensão cresce gradualmente, seguida do clímax (o momento auge da tensão) e do desdobramento que conduz ao final do conto.

Pense em qual elemento seria a fonte de drama ou tensão do enredo e tente trabalhar esses fatores no cenário escolhido para a história.

Considere como a fonte de tensão poderá funcionar no cenário escolhido. Por exemplo, talvez o ambiente aumente a tensão ou propicie uma situação cômica que contraste com o local onde os eventos se desenvolvem.

3. Planeje as personagens.

Toda história precisa de personagens interessantes e realistas. 

Um conto engraçado deverá apresentar personagens com qualidades cômicas ou que se encontrem em situações divertidas.

A forma como as personagens são retratadas dependerá das personalidades e circunstâncias únicas de cada uma delas, dentro da história.

Por exemplo, você poderia criar uma personagem "idiota" e estabanada que se depara com situações engraçadas, ou uma personagem sarcástica que acredite saber de tudo mas acabe percebendo que não sabe nada sobre as próprias circunstâncias de sua vida.

As personagens devem ser realistas e plausíveis. Elas devem ter sentimentos e opiniões e reagir de forma realista às diferentes situações do conto.

Considere quais tipos de personagens poderiam tornar o cenário divertido ou vice-versa.

Todos os elementos do conto (ambiente, enredo e personagens) devem trabalhar em conjunto, combinando bem um com outro ou criando contrastes engraçados e inesperados.

continua… Incorporando o humor

Fonte> wikihow 

Recordando Velhas Canções (Nos Bailes da Vida)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Só quem toma um sonho
Como sua forma de viver
Pode desvendar o segredo
De ser feliz

Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão
Que muita gente boa pôs o pé na profissão
De tocar um instrumento e de cantar
Não importando se quem pagou quis ouvir
Foi assim

Cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe, tudo tão bom
Até a estrada de terra na boleia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será
Cantando me desfaço e não me canso
De viver nem de cantar

Cantar era buscar o caminho que vai dar no Sol
Tenho comigo as lembranças do que eu era
Para cantar nada era longe, tudo tão bom
Até a estrada de terra na boleia de caminhão
Era assim

Com a roupa encharcada, a alma repleta de chão
Todo artista tem de ir aonde o povo está
Se foi assim, assim será (assim será)
Cantando me desfaço e não me canso
De viver nem de cantar
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A Jornada do Artista em 'Nos Bailes da Vida'
A música 'Nos Bailes da Vida', interpretada por Milton Nascimento em parceria com o grupo Roupa Nova, é uma homenagem à trajetória dos artistas, especialmente músicos, que percorrem caminhos muitas vezes árduos em busca de realização e reconhecimento. A letra fala sobre a persistência e a paixão pela arte, independentemente das dificuldades encontradas no caminho.

O refrão 'Foi nos bailes da vida ou num bar em troca de pão' evoca a imagem de músicos que começam suas carreiras tocando em locais pequenos e muitas vezes precários, mas que são movidos pelo sonho de viver de sua arte. A expressão 'em troca de pão' sugere que muitas vezes esses artistas tocam não apenas por amor à música, mas também como meio de subsistência. A música destaca a importância de se aproximar do público, de 'ir aonde o povo está', reforçando a ideia de que a arte deve ser acessível e estar em contato direto com as pessoas.

A canção também aborda a resiliência e a dedicação dos artistas, que 'não se cansam de viver nem de cantar', mesmo diante de adversidades. A 'roupa encharcada e a alma repleta de chão' simbolizam as experiências vividas e as marcas deixadas pela jornada. 'Nos Bailes da Vida' é um tributo àqueles que encontram no ato de cantar e tocar um caminho de luz e felicidade, apesar dos obstáculos enfrentados.

Aparecido Raimundo de Souza (Um dia, o amor)

SEM MEDO DE ERRAR, aquele se fazia um coração que batia descompassado, como se dançasse tresloucado ao som de uma música envolvente, porém, que só ele conseguia ouvir. Esse coração pertencia a Lafaiete que amava profundamente, mas cujo amor, por algum motivo desconhecido, não se fazia retribuído. Assemelhava, sem tirar nem pôr, a um amor unilateral, tipo essas paixões doidivanas que ardem como fogo em um dos lados e permanecem frios e gélidos no outro.

Lafaiete por conta desse vazio terrificante, vivia batendo cabeça entre as estrelas e a melancolia. Entre o sonho não vivenciado e uma realidade não palpável. Nas noites mais escuras, olhava demoradamente para o céu e imaginava que cada estrela representava uma quimera não decantada, um desejo não correspondido, um tempo incerto e não vivenciado. Cada brilho distante se adumbrava como uma lembrança dolorosa; um eco daquilo que poderia ter sido; mas nunca se fez palpável.

Por conta disso, “trocentas” vezes mergulhava em pensamentos ociosos, relembrando os momentos cavernosos e anoréxicos, em que a pessoa amada estava por perto, sem estar. Cada sorriso, cada olhar, cada toque, eram guardados como preciosidades raras em seu coração. Contudo, ao mesmo tempo, essas lembranças e regalos também se transformavam em punhais perfurando a sua alma com a certeza de que nunca seriam mais do que isso: lembranças.

O amor não correspondido, para ele, se assemelhava a uma ferida que não cicatrizava. Se fazia pesado numa dor que não se resolveria com remédios ou palavras de consolo. Tudo se agigantava numa sensação estranha e densa de estar desabrigado, de não ter um lar para o aconchego do coração. Lafaiete se perguntava: “como poderia algo belo e intenso, causar angústia tão degradante”?

Todas as noites, depois que chegava do trabalho, se trancava em seu quarto. Sentava na escrivaninha e escrevia cartas. Compunha missivas longas que nunca seriam enviadas. Poemas que jamais seriam declamados. Redigia para exorcizar a dor, para dar voz e forma aos sentimentos que o sufocavam interiormente. Assim, meio que abrupto, nasceu um poeta dentro dele. Cada verso, uma lágrima transformada em palavra, cada linha uma saudade eternizada na tinta de sua caneta esferográfica.

Mas o tempo passou, e Lafaiete aprendeu, a trancos e barrancos, que o amor não correspondido não mostrava o fim do mundo. Ele descobriu que a amargura poderia se transformar em algo mais suportável. Que as mágoas, em uma série de versos, os seus pensamentos dariam lugar à aceitação. Afinal, o amor não é apenas sobre ser amado ou ter alguma compensação em troca. É sobre sentir, assimilar, viver, usufruir, gozar, mesmo que num determinado ponto, alguma coisa descambe para a dor causticante e estupadorada na sua maior forma de expressão.

Assim, entre as estrelas e a melancolia, a consternação e a repugnância, Lafaiete se deparou com um novo caminho a ser seguido. Percebeu que o amor não correspondido não o mataria, ao contrário, o transformaria num novo ser. Um corpo de concepções vivificadas. Quem sabe; talvez um dia; encontrasse alguém de verdade. Uma criatura que olhasse para o mesmo céu e visse as mesmas estrelas. Alguém de olhos deslumbrantes que igualmente tivesse um coração descompassado, dançando ao som de uma música elegantemente invisível, contudo, maviosa e fruitivamente sonorosa.

Quem sabe, outro lado da mesma moeda, nesse encontro de almas solitárias, oxalá o amor finalmente se tornasse recíproco, mútuo e equivalente. Até lá, enquanto a esperança não bate definitivamente em sua porta, Lafaiete continuará a grafar as suas crônicas, suas poesias e cartas não enviadas. Afinal, o amor não correspondido ou não galardoado, também tem a sua beleza, a sua amenidade, a sua magia e a sua profundidade.  

Um dia (sempre há um dia), ele, Lafaiete, se torne o protagonista único de uma história de amor marcante, chique, saliente e infinita, tipo um conto perpétuo e, que não caiba apenas entre as estrelas... também se coadune nos braços de uma jovem elegante que o ame de volta, com a mesma intensidade e deleite. E cujo amor ardente e garboso será incondicionalmente palpável até o final de seus dias.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

terça-feira, 21 de maio de 2024

A. A. de Assis (E o homem veio)

No princípio era o verde. O verde a perder de verde, guardando o chão vermelho que aguardava o homem vir. E o homem veio, viril, varão, varonil. Veio enxertar a terra, que, no cio, vermelha, de viridência vestida, aguardava o homem vir. E o homem veio, viril. E a terra prenha pariu.

Ninguém sabe exatamente quem foi o primeiro a aqui chegar. Nem se estava sozinho ou se com ele havia mais alguém. Alguém chegou aqui primeiro. Decerto alguém de muita coragem, muito peito, ou quem sabe movido por um pouco de abençoada maluquice.

De onde veio? Não se tem a menor ideia. Veio em busca de um lugar novo onde fazer o pé-de-meia, ou veio simplesmente trazido pelo espírito de aventura? De qualquer modo, veio. Viril, varão, varonil, atraído pelo aroma da mata e pelo cheiro da terra. Alguém veio, pediu licença à floresta, abriu nela o primeiro espaço, construiu o primeiro rancho, plantou a primeira roça, colheu o primeiro grão.

Depois chegou o primeiro vizinho, mais outro, mais outro. Fizeram-se amigos, os primeiros amigos, as primeiras famílias. Ergueram a primeira igreja, a primeira escola. Alguém abriu a primeira vendinha que vendia de um tudo – de melhoral a carne-seca, de sal e açúcar a querosene.  

Criaram o  Aero Clube e o Grêmio dos Comerciários para ter onde dançar e namorar. Criaram a Associação Comercial, a Santa Casa, a Maçonaria, o Rotary, o Lions, o Ginásio Maringá, o Colégio Santa Cruz, o Marista, o Santo Inácio, a primeira faculdade, a primeira universidade. Fundaram o Albergue, o Lar dos Velhinhos, o Lar Escola das Crianças. Construíram o Grande Hotel. Ergueram a Catedral. Formaram a Cocamar. Criaram o glorioso Grêmio Esportivo Maringá.   Fundaram o Maringá Clube, o Country, o Olímpico, o Clube Hípico, o Centro Português, a Acema, o Teuto.

E foi chegando gente e mais gente, de todas as origens. E foram abrindo lojas e mais lojas, bancos e mais bancos, indústrias e mais indústrias, hospitais e mais hospitais, restaurantes e mais restaurantes, shoppings e mais shoppings, supermercados e mais supermercados.  

Projetada pela companhia colonizadora para ser uma cidade de 100 mil habitantes, Maringá já abriga mais de 410 mil, sem contar os tantos mais que moram nas comunidades vizinhos, porém trabalham aqui, estudam aqui, fazem suas compras aqui – ao todo, mais de um milhão de pessoas que foram chegando após a vinda daquele primeiro arrojado mateiro que aqui armou seu primeiro rancho quando os ruídos mais frequentes eram ainda o miado das onças e o gorjeio dos sabiás.

Um lugar de bravos e bravas. Ah, as bravas mulheres primeiras. As pioneiras. Algumas delas, raras, estão ainda entre nós. Uma delas pode ter sido sua avó ou bisavó. Que vida difícil elas enfrentaram nos primeiros tempos desta cidade forte e linda. Quanto barro, quanta poeira.

Onde quer que agora estejam, Deus as abençoe.

Maringá está completando oficialmente 77 anos. Quase todos os que vieram primeiro já estão na eternidade. Lá no assento etéreo onde se encontram, estarão certamente felizes e faceiros, contemplando a bela obra que nos legaram. 

A cada um deles, o nosso muitíssimo obrigado.

Fonte: Portal do Rigon. 09.05.2024

Recordando Velhas Canções (Roda Viva)


Compositor: Chico Buarque

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração

Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
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A Inexorável Passagem do Tempo em 'Roda Viva'
A canção 'Roda Viva', composta por Chico Buarque, é uma reflexão poética sobre a passagem do tempo e a efemeridade da vida. A letra utiliza a metáfora da 'roda-viva' para representar o ciclo incessante de mudanças e a forma como o tempo arrasta consigo pessoas, sonhos e realizações, muitas vezes contra a nossa vontade.

No primeiro verso, o sentimento de estagnação contrasta com o crescimento do mundo, sugerindo uma desorientação diante da rapidez das transformações sociais e pessoais. A 'voz ativa' que o eu lírico deseja ter em seu destino é constantemente desafiada pela 'roda-viva', que simboliza o destino e a força do tempo que tudo leva. A repetição do refrão 'Roda mundo, roda-gigante, rodamoinho, roda pião' enfatiza a ideia de movimento contínuo e incontrolável.

A música também aborda a resistência e a luta contra as adversidades ('A gente vai contra a corrente'), mas reconhece a inevitabilidade de ceder em algum momento ('Na volta do barco é que sente'). A 'roda-viva' não poupa nem mesmo as tradições culturais, como a serenata e a roda de samba, que são levadas pelo tempo. A saudade se torna 'cativa' no peito, mas mesmo ela é carregada pela roda-viva. A canção, portanto, é um lamento pela perda e uma meditação sobre a impermanência da vida.

Figueiredo Pimentel (As aventuras do Zé Galinha)

José Joaquim de Souza e Silva veio da terra e foi para Jacarepaguá, onde se estabeleceu, protegido pelo Manoel da Venda, seu primo. Aí dedicou-se ao comércio de aves domésticas e ovos, que comprava em porção, enviando-os em seguida à Praça do Mercado e outros pontos da cidade. A sua lida com a criação, desde a manhã até a noite, durante anos, sempre na mesma casa, eternamente no mesmo lugar, valeu-lhe a alcunha de Zé Galinha, porque era conhecido, verdadeiramente popular em Jacarepaguá e terras adjacentes. Ninguém sabia quem era o Souza e Silva, nem José Joaquim. Perguntassem, porém, pelo Zé Galinha, que todo o mundo apontaria a sua casa.

E o Souza desesperava-se com aquilo: ralava-o a antonomásia (apelido) que lhe haviam posto, e daria bem um par de contos se conseguisse ser chamado de outra forma. 

Nos primeiros tempos, quando começara a vida, pouco se lhe dava que o chamassem assim ou assado: queria ganhar dinheiro, fazer fortuna e voltar à aldeia. Mas, depois de vinte anos, aclimado em Jacarepaguá, rico, já casado e com filhos, resolveu ficar. Abraçou outro ramo de negócio, abriu um grande armazém de secos e molhados, e acabou o negócio de galinhas, patos e perus.

A alcunha, porém, ficou. Ele era o Zé Galinha. Parecia até que aquilo era proposital. Quanto mais se enfurecia, e maiores esforços empregava para que a antonomásia fosse esquecida, toda a a gente se obstinava em chamá-lo assim.

Foi então que o Souza resolveu comendadorizar-se. Veio ao Rio, e conversou com o barão de S. Caetano, chefe da colônia, assinou dez contos para o Asilo dos Órfãos Lusitanos, recentemente fundado, e esperou a comenda.

Durante uma semana passou ele na cidade, divertindo-se à farta, para compensar um pouco a sua vida cheia de trabalhos.

Havia chegado no domingo, e o João Carne Seca, da rua das Violas, em cuja casa se hospedara, levou-o ao teatro, que ele não conhecia.

A princípio o Zé Galinha não queria ir, mas o outro incentivou-o tanto, animou-o de tal forma, que resolveu finalmente.

Enfiado numa sobrecasaca de pano comprada feita na rua do Hospício, encartolado, de calças brancas e botinas de verniz, o futuro comendador ficou disfarçado. Nem ele mesmo se reconheceu!

Ao entrar no Cascata, onde o João ia tomar café, a sua figura exótica refletiu-se em um dos espelhos. E como caminhasse em frente, vendo aquele cavalheiro que se dirigia para ele, em sentido oposto, recuou delicadamente para a direita, a fim de ceder o lugar. E vai o “outro”, justamente na mesma ocasião, recua. O Zé tomou a esquerda; o “outro” idem. O Zé parou; o outro imitou-o.

Vendo aquela contradança, o João, que já estava sentado, perguntou-lhe:

— Que diabo estás a fazer aí, ó Souza?

E o Souza, sorrindo-se, medonhamente encalistrado:

— Estou dando lugar para aquele cavalheiro passar.

O João rompeu numa gargalhada colossal:

— Ó rapaz! pois não estás vendo que aquilo é a tua imagem no espelho?

Saindo do café, dirigiram-se os dois para o teatro.

Deslumbrado, nunca tendo visto daquilo, o nosso homem quase não podia caminhar. Foi com dificuldade que o João o arrastou até as cadeiras, em uma das filas centrais.

Já havia começado o espetáculo, e o negociante permanecia de pé, não consentindo assim que os espectadores das filas atrás vissem o que se representava.

Então, algumas pessoas, aborrecidas com aquele estafermo, das torrinhas e da plateia, bradaram:

— Senta!... Senta!...

Zé Galinha, imperturbável, voltou-se para trás, e no meio do silêncio que se fizera, respondeu:

— Não se incomodem, meus senhores; estou bem de pé, muito obrigado.

Cessado o ligeiro incidente, depois de alguns segundos de prolongada hilaridade, tendo João obrigado o companheiro a sentar-se, o Souza e Silva, conhecido em Jacarepaguá por Zé Galinha, assistiu calmamente a representação.

O primeiro ato correu sem novidade, salvo uma ou outra asneira, que perguntava ao companheiro, em voz baixa, para não fazer novo fiasco.

Representava-se uma comédia Uma hospedaria na roça. Quando o ator entra em cena e procura pela mulher, que está escondida atrás da porta, volta-se para a plateia e interroga “Onde estará ela? Onde estará a Chiquinha? Onde estará?”. E leva alguns minutos a procurá-la com açodamento, examinando o aposento.

Nessa ocasião, o ilustre jacarepaguense não pode resistir, e, querendo mostrar a sua perspicácia, berrou:

— Está aí atrás da porta, escondida para que o senhor não a veja.

Durante a semana em que Zé Galinha passou no Rio de Janeiro, nem um só dia deixou de ir ao teatro. Ficara gostando imensamente, e andava maníaco.

De volta para Jacarepaguá, levava na mala uma enorme coleção de dramas, comédias, cenas cômicas e monólogos, comprados na Livraria Quaresma, que principiou a ler com animação.

Estava à espera da comenda que o barão de São Caetano lhe prometera, e que havia de desaparecer para sempre a sua terrível alcunha. Lembrou-se então de mandar edificar um teatrinho, onde tencionava representar, fundando também uma sociedade dramática.

Em menos de um mês estava tudo pronto, e inaugurava-se o Ginásio Dramático Beneficente Estrela de Ouro de Jacarepaguá, sob a presidência do comendador José Joaquim de Souza e Silva.

O ilustre comerciante queria realizar imponentes festas para comemorar dignamente a sua comenda. Seriam três dias de pândega, havendo em todas essas noites espetáculos e bailes.

A primeira peça escolhida para a estreia foi a tragédia em oito atos D. Nuno Álvares ou O poder do lusitano.

O comendador Souza e Silva fazia o papel de Conde de Tomar.

Ao aparecer na primeira cena, passeava lentamente, mudo, pensativo. A marcação da tragédia dizia: “O conde entra, mas não fala...”

E vai o Zé, avança pelo palco, e exclama com voz de trovão:

— E conde entra, mas não fala!

Como estava radiante o comendador José Joaquim de Souza e Silva! Durante aqueles três dias nem uma só vez ouvira pronunciar a terrível alcunha de Zé Galinha. Jacarepaguá em festas tinha esquecido e agora só o chamava comendador.

Havia chegado a terceira noite, e nova tragédia ia exibir-se: O punhal envenenado ou A nódoa de sangue.

Logo no primeiro ato, ao erguer-se o pano, o Souza aparecia disfarçado com longas barbas e longa cabeleira, de capa e espada. A cena, quase às escuras, fingia um bosque.

D. Rufo, o chefe dos salteadores, entrava, e dizia:

— Noite propícia; nem uma estrela brilhando no firmamento!

Fez-se profundo silêncio quando ele apareceu, e a frase foi bem lançada.

Mas de repente, no meio da quietação sepulcral, ouviu-se uma voz de criança exclamar:

— Ó mamãe! Aquele não é o seu Zé Galinha?

Escândalo nunca visto! Rebentou uma gargalhada uníssona, colossal.

Então, o Souza, vendo perdido o seu tempo, o trabalho que tivera, e o cobre com que comprara a comenda, ficou desnorteado; e arrancando com gesto brusco as barbas e a cabeleira, exclamou indignado:

— Zé Galinha é você, seu malcriado! O culpado fui eu, metendo-me com essa gentinha! Arreia o pano!

E assim acabou-se o Ginásio Dramático Beneficente Particular Estrela de Ouro de Jacarepaguá.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 29

 

Irmãos Grimm (Gente sabida)

Um dia, certo camponês tirou do lugar seu bastão e disse à mulher:

– Vou viajar e só volto daqui a três dias. Se nesse meio tempo vier o tropeiro e quiser comprar nossas três vacas, poderás vendê-las por duzentos moedas. Mas nem um tostão a menos, entendeste?

– Vai com Deus! - respondeu a mulher. - Farei tal e qual tu disseste.

- Sim, bem te conheço! - comentou o homem. - Quando criança, caíste de ponta-cabeça no chão e o resultado ainda está se vendo até hoje... Mas uma coisa te digo: se fizeres bobagens, eu te pinto o lombo de azul, e não com tinta e pincel, mas com este bastão aqui: e te garanto que essa pintura não desaparecerá antes de um ano.

Dito isto, o homem se pôs a caminho.

Na manhã seguinte, apresentou-se o tropeiro e a mulher não precisou falar muito. Depois de examinar as vacas e saber o preço, disse:

- Estou disposto a pagar o que pedes, que elas bem valem isso. Vou levar os animais agora mesmo.

Soltou-os da correia e os tirou do estábulo, mas quando ia saindo com eles pela porta da granja, a mulher, pegando-o pela manga do casaco, disse:

- Terás que me dar primeiro as duzentas moedas, do contrário não poderás levar as vacas.

- Tens toda razão, - respondeu o negociante.- Esqueci a minha bolsa em casa. Mas não te preocupes, que te darei uma boa garantia. levarei duas vacas e te deixarei a terceira em penhor; assim terás uma boa fiança.

A mulher achou ótima a proposta e deixou que o negociante partisse com duas vacas. Ficou pensando: " Que contente não irá ficar o João quando souber que agi com tanta inteligência!"

Três dias depois, o camponês regressou, como havia anunciado, e sua primeira pergunta foi a respeito da venda das vacas.

- Sim, meu marido, - disse a mulher - vendi-as  por duzentos moedas, como recomendaste. Mal valem isso, mas o homem as levou sem pechinchar.

- Onde está o dinheiro?

- O dinheiro ainda não recebi, porque o negociante havia se esquecido da bolsa; mas na certa vai trazê-lo sem demora, pois me deixou uma boa fiança.

- Que fiança?

- Uma das três vacas. Essa ele não levará antes de ter pago as outras duas. Fui inteligente e fiquei com a menorzinho, que é a que come menos.

O homem ficou furioso e, levantando o bastão, preparou-se para dar-lhe a surra prometida. Mas, de repente, parou e disse:

- És a criatura mais idiota que Deus pôs na terra, chegas até a me dar pena. Vou ficar esperando três dias na estrada para ver se encontro alguém ainda mais bobo do que tu. Se achar uma pessoa assim, ficarás livre da surra, caso contrário, receberás  a paga que te prometi sem o menor desconto.

Saiu e sentou-se numa pedra à espera do que desse e viesse. Nisto viu aproximar-se uma carreta, onde estava uma mulher de pé, em vez de ficar sentada no monte de palha ou ir ao lado dos bois, conduzindo-os. 

Pensou o homem: "Essa, pelo visto, é uma das que estou procurando." Levantou-se de um salto e se pôs a correr de um lado para outro, diante da carreta, como alguém que não fosse bem certo da cabeça.

- Que há, compadre? - indagou a mulher. - De onde vens que não te conheço?

- Caí do céu, - respondeu o homem - e não sei como voltar para lá. não poderias levar-me?

- Não, - retrucou a mulher - não sei o caminho. mas, se vens do céu, podes dar-me notícias do meu marido, que morreu há três anos. Com certeza o viste por lá.

- Claro que o vi, mas nem todos levam ali uma boa vida. teu marido cuida das ovelhas e os bons animaizinhos lhe dão muito trabalho, trepando nas montanhas e se perdendo pelas matas. É obrigado a correr atrás delas para juntá-las. Além disso, sua roupas estão em farrapos e, mais dia menos dia, lhe cairão do corpo. Não há alfaiates no céu. São Pedro, como bem sabes pelo que dizem, não deixa entrar nenhum.

- Quem imaginaria uma coisa dessas! - disse a mulher. - Sabes o que mais? Irei buscar seu traje de domingo, que ainda está guardado no armário e que ele lá poderá usar com muito orgulho. Podes fazer-me o favor de levá-lo?

- Impossível! - retrucou o camponês - É proibido levar trajes de domingo para o céu. Eles os tiram da pessoa antes de passar pela porta.

- Escuta! - disse a mulher - Ontem vendi meu trigo por uma boa quantia, que vou enviar a ele. Se meteres o dinheiro no bolso, ninguém notará.

- Se não há outro remédio, - respondeu o camponês, - estou disposto a fazer-te esse favor.

- Então fica aí sentado, - disse ela- que vou em casa buscar a bolsa e não demoro a voltar. Estou de pé na carroça, em vez de sentar-me na palha, para que os bois não tenham de levar tanto peso.

E pôs em marcha os animais, enquanto o camponês pensava: "Esta criatura é doida varrida e se, de fato, trouxer o dinheiro, minha mulher pode considerar-se muito feliz por se ter livrado da surra."

Não demorou muito a camponesa voltou, correndo , e meteu o dinheiro ela mesmo, no bolso do homem. Antes de se despedir, agradeceu-lhe muitas e muitas vezes por sua gentileza.

Quando a boba mulher chegou, enfim, à sua casa, encontrou o filho que acabava de regressar do campo. Contou-lhe as coisas espantosas que lhe haviam acontecido e acrescentou:

- Alegro-me tanto de haver encontrado uma oportunidade para enviar algo ao meu pobre marido! Quem havia de imaginar que, lá no céu, lhe faltasse alguma coisa?

O filho ficou pasmo.

- Meu Deus! - exclamou ele. - Isso de uma pessoa baixar do céu não acontece todos os dias. Sairei à procura desse homem. Gostaria de saber como andam de trabalho por lá.

Encilhou o cavalo e partiu a toda pressa. Encontrou o camponês, à sombra de um salgueiro, a contar as suas moedas.

- Não viste o homem que caiu do céu? - perguntou-lhe o rapaz.

- Sim, - respondeu o camponês, - mas já está de volta para lá, tomou a estradinha que sobe aquela montanha e que encurta um pouco o caminho. Mas, se fores a galope, ainda poderás alcançá-lo.

- Ah! - exclamou o rapaz.. - Estou cansado de trabalhar o dia todo e a cavalgada até aqui me deixou moído, mas tu conheces o homem, bem poderias montar o meu cavalo e ir atrás dele para convencê-lo de que volte aqui.

"Hum! aqui está outro que não regula bem - pensou o camponês. E, dirigindo-se ao jovem assim lhe  disse:

- É mesmo! Por que iria eu negar-te esse favor?

Montou e saiu a todo galope. o rapaz ficou esperando até de noite, mas o camponês não voltou. "De certo - pensou ele - o homem do céu estava com pressa e não quis dar volta, e o bom do camponês lhe deu o cavalo para ser entregue a meu pai."

Foi para casa e contou à mãe, muito satisfeito, que tinha enviado o cavalo ao pai, para que ele não precisasse andar a pé lá no céu.

- Fizeste muito bem! - respondeu a mãe. - Tens boas pernas e não é necessário que andes a cavalo.

Quando o camponês chegou em casa, pôs o animal na estrebaria junto com a vaca; depois foi para onde estrava a mulher e lhe disse:

- Catarina, tiveste sorte! Encontrei dois ainda mais bobos que tu. por esta vez te livraste da surra, que fica adiada para a próxima ocasião.

E, acendendo o cachimbo, sentou-se na cadeira de balanço. Depois prosseguiu:

- Foi um bom negócio. por duas vacas magras, obtive um cavalo bem gordo e uma bolsa cheia de dinheiro. Se a burrice fosse tão proveitosa, eu teria o máximo respeito pelos burro.

Assim pensou o camponês, mas eu estou certo e que vocês hão de preferir as pessoas inteligentes.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Trem das Onze)


Compositor: Adoniran Barbosa

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Saudade e o Trem das Onze: Uma Viagem pela Canção de Adoniran Barbosa
A música 'Trem Das Onze', composta e interpretada pelo icônico Adoniran Barbosa, é um clássico do samba paulista que retrata de maneira singela e bem-humorada as vicissitudes do cotidiano dos moradores dos subúrbios de São Paulo na década de 1960. A letra da canção revela a história de um homem que, por morar longe, precisa se despedir de seu amor para não perder o último trem para casa. A narrativa é simples, mas carregada de significados que vão além da preocupação com o horário do transporte.

O personagem central expressa um conflito entre o desejo de permanecer com a pessoa amada e as obrigações familiares e sociais. A menção à mãe que não dorme enquanto ele não chega e o fato de ser filho único e ter que 'olhar a casa' são elementos que demonstram o peso da responsabilidade familiar. Essa dualidade entre o amor e o dever é um tema recorrente na música popular brasileira e reflete a cultura de uma época em que os laços familiares exerciam grande influência sobre as decisões pessoais.

Adoniran Barbosa, conhecido por sua habilidade em capturar a essência da vida paulistana em suas letras, utiliza a metáfora do trem para falar sobre as despedidas, as escolhas e o tempo que não espera por ninguém. 'Trem Das Onze' não é apenas uma música sobre um trem específico de São Paulo, mas também sobre a universalidade das experiências humanas, a saudade e a necessidade de priorizar aspectos da vida que, muitas vezes, estão em conflito. A canção permanece atemporal e querida, ressoando com qualquer um que já tenha sentido o aperto no coração ao dizer adeus, mesmo que por uma noite.

Coelho Neto (O anjo)

A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas
(torcidas) e de águas precipitosas que se desenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chãs ainda o trânsito era fácil, sem o vareio da ventania que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhe a marcha; mas nas gargantas, entra alcantis, as lufadas, abocanhando à entrada, esfuziavam desabridas, uivando com a fúria de alcateias famintas em ronda ceva (farta), a faiscar redis (currais).

Todas as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumaréu de vigília em torre, a que surgira e brilhava sobre Belém.

Os passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.

Um ramo que bulisse, o lento defluir de um fio d’água por entre pedras levantavam ruídos temerosos.

Às vezes José detinha-se, hesitando na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilava fúlgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.

Como entrassem em sinuosa e augusta passagem murada de rochas anfractuosas (sinuosas), eriçada de agaves e ecoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo ruído como de esfolar de asas.

Uma águia, talvez, que acordara em alguma tensão e de pé, atenta, alargando as asas, ficara em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.

O patriarca, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.

Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.

Os corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das sombras do Scheol (região dos mortos), que erram, à noite, pelos descampados; nele era o temor por ela.

Não falavam, de olhos muito abertos, quietos, imóveis como os rochedos que os emparedavam.

De repente um clarão fulgurou. A passagem iluminou-se, as pedras cintilaram e as palmeiras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor da terra e clareando as rochas.

Aves despertando galreavam (papagaiavam) festivamente o canto da madrugada.

Levantando o olhar, viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores (cumes) quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.

A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de emoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as asas ruflavam docemente no silêncio.

A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudara com as palavras misteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissário que lhe aparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocência de Maria, em cujo seio, como em corola de flor, a Graça perpassava em gênese imareável, fecundando-o como o sol fecunda a leiva (campo lavrado), eternamente pura.

Fonte: Coelho Neto. Mistério do Natal. Publicado originalmente em 1911, 
Disponível em Domínio Público 

domingo, 19 de maio de 2024

José Feldman (Á Guisa de Explanação)

Eu sempre tive um problema (dádiva ou maldição?). Não me contento com pouco. No sentido de divulgar os literatos. Desde quando comecei o blog em 2007, quem vem acompanhando, percebe que ele tem aumentado de tamanho (hoje são mais de 19 mil publicações, com dezenas de milhares de trovas, poesias, contos, etc). É muita gente, e pior, ou será melhor? Muita gente de valor. Desde quando entrei no “campo” trovadoresco, lá pelos idos de 1991, mais especificamente, quando recebi meu certificado da Oficina A Hora da Trova, na Casa Mario de Andrade, em São Paulo, das mãos do seu coordenador, mais tarde um grande amigo e incentivador meu, o falecido Izo Goldman, deixei de ser um rosto perdido na multidão. 1991… são 33 anos transcorridos. A quantidade de amigos/as, amigos/as-irmãos/as que nunca sonhei em ter nos meus 37 anos vividos anteriores, multiplicou-se a uma progressão geométrica nos últimos 33 anos. É… a trova faz amigos, mais… faz-nos ver que não somos apenas um número a mais, e que cumprimos um papel importante neste mundo imenso. Também fazemos inimigos, mas quem não os têm? Mas vale a pena. São muitos nomes, entre poetas, trovadores e escritores. Este ano, em setembro completo 70 anos, estimando que se seguir os passos de minha mãe, já falecida, viva pelo menos mais 23, não vai dar para colocar todos, então espero me perdoe se seu nome não estiver em destaque, não será por má vontade, mas pela quantidade enorme de nomes deste imenso Brasil, de Portugal e outros países.