segunda-feira, 10 de março de 2025

Hans Christian Andersen (O Isqueiro)

Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.

Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:

  - Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na imaginação.

- Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.

- Vês essa enorme árvore? Pois está toda oca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.

- E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.

- Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada, pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão e, sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre e se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.

- Tudo isso é muito bom- disse o soldado – mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.

- Não, não quero nem um vintém, só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.

- Pois bem: ata-me a corda à cintura.

- Pronto! E aqui está também o meu avental.

O soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.

Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!

- És um belo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa. 

Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
 
- Não me olhes assim, tão fixamente - disse ele. - Podes ficar vesgo!

E pôs o cão no avental, mas quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu. 

E... que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenhague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.

- Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.

Cumprimentava o cão, porque jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergueu-o e o depôs no avental e abriu a arca. 

Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenhague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro! 

O soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase  nem podia andar. Agora sim, que estava rico!

Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:

- Puxa a corda, velha feiticeira!

- Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.

- E esta! Tinha-se esquecido dele!

Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.

- Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.

- Isso agora não é da tua conta, já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.

- Escuta, velha feiticeira, se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!

- Pois não te digo!

E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida. Ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.

Era uma cidade muito bonita. Ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar, já que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.

O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas, mas é que ele não tivera tempo de comprar outras. 

No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro  elegante, e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.

- E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.

- Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o custo que a profecia se realize.

- Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.

Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.

Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia ao teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos, todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.

Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro e viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão. Tinha de limpar as botinas e até  remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.

Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. Quando bateu com o fuzil na pederneira, saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:

- Que ordena, meu senhor?

- Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!

Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:

- Traze-me dinheiro.

Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.

Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre, se dava duas, vinha o da arca de prata e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.

Pôde assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.

Mas um dia veio-lhe à memória o caso da princesa.

- Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?

Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.

- É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!

Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal, e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado - porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.

Saiu o cão levando a princesa, mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.

- É uma história linda - disse a rainha.

E naquela noite ficou uma dama de honra ao pé da cama da princesa para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.

O soldado tinha  um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honra se pôs no encalço do animal, e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se. 

Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade. Era um cão sagaz, pois assim a dama de honra não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz. 

De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honra e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.

- É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.

- Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.

- Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.

E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.

Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda, fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.

À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.

Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:

- Serás enforcado amanhã!

Não era nada alegre a notícia, e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.

De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores, via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:

– Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não  chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!

Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas, saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e... mas vamos ver o que aconteceu.

Tinham erguido uma forca alta; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado.  Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.

Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer, pois seria a última vez que fumava neste mundo.

Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães -  dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague.

– Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.

Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.

- Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.

Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.

Então os soldados e o povo, amedrontados, puseram-se a gritar:

- Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás com a bela princesa!

Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:

- Viva! Viva!

Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!

As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam. 
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HANS CHRISTIAN ANDERSEN foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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domingo, 9 de março de 2025

Adega de Versos 131: Erigutemberg Meneses

 
    

Eduardo Martínez (O Leitor)

Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas. 
       
Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"

As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.

A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras. 
    
Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada! 

Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.

Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.

Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz. 

O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (Desabafo)

PRÓLOGO

A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.

O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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DESABAFO

Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.

Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Yasmin, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Yasmin, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.

Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.

Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.

A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Yasmin e da filha Samara, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.

A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.

A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.

Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Samara, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.

Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.

A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.

A música também o conectava a memórias de Yasmin. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.

Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Samara. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.

A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.

Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.

Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Yasmin.

“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.

O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.

Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO

A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu cobertor.

Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.

Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.

Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.

A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.

Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.

E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega, 
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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sábado, 8 de março de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 24 *

 

Giuseppe Paolo Dell’ Orso (Memórias de um Vinhedo)

Na Itália dos anos 70, a luz do sol dançava sobre as colinas da Pieve di Soligo, cidade do no interior da Itália, criando um espetáculo que parecia pintado à mão. Giovanni, um jovem de espírito livre, acordava ao amanhecer, quando a neblina ainda abraçava a terra. O aroma da terra molhada e o canto dos pássaros eram a sinfonia que lhe dava bom dia. A vida nos vinhedos era dura, mas cheia de beleza e significado.

Giovanni cresceu entre as videiras, aprendendo com seu pai os segredos do cultivo. As mãos calejadas do velho eram um testemunho de anos de trabalho árduo, e cada uva colhida era um pedacinho de história que se entrelaçava com a tradição familiar. As tardes eram passadas entre risadas e cantos, enquanto a família se reunia para a colheita. A alegria do trabalho em conjunto era contagiante e, para Giovanni, não havia lugar mais encantador no mundo.

A conexão com a natureza era profunda. Giovanni entendia que a terra não era apenas um recurso; era um lar. Ele via cada estação como uma parte do ciclo da vida — a primavera trazia o renascimento, o verão a abundância, o outono a gratidão, e o inverno, a pausa necessária. Essa harmonia era um reflexo de sua própria existência, onde cada desafio e cada conquista se entrelaçavam como as raízes das videiras.

Com o passar dos anos, Giovanni encontrou o amor em Isabella, uma jovem com olhos que brilhavam como as estrelas. Juntos, sonharam em construir uma família e cultivar não apenas uvas, mas também memórias. A cerimônia de casamento foi celebrada sob as videiras floridas, com amigos e familiares ao redor, dançando e rindo, enquanto o vinho escorria como um rio de felicidade.

A vida seguiu seu curso, e logo vieram os filhos. Cada um deles crescia correndo pelos vinhedos, brincando entre as folhas e aprendendo a amar a terra. Giovanni os ensinava a respeitar a natureza, a entender o valor de cada planta e cada animal que cruzava seu caminho. Para ele, a preservação ambiental não era apenas uma ideia; era um legado que ele desejava deixar.

Mas os anos 70 também trouxeram mudanças. A modernização começou a ameaçar o modo de vida tradicional. Máquinas pesadas substituíam as mãos calejadas, e vinhedos exuberantes davam lugar a monoculturas. Giovanni observava preocupado enquanto as colinas que antes eram vibrantes se tornavam mais áridas. O que aconteceria com o futuro dos seus filhos se a natureza fosse esquecida?

Em um dia especialmente claro, Giovanni decidiu que precisava agir. Reuniu a família e compartilhou suas preocupações. “A natureza nos deu tudo”, disse ele, com a voz embargada pela emoção. “Precisamos protegê-la, não apenas para nós, mas para aqueles que virão depois de nós.” 

As crianças, com seus olhinhos curiosos, prometeram ajudar. Juntos, plantaram novas árvores, criaram um pequeno pomar e começaram a aprender sobre as práticas sustentáveis.

Os anos passaram, e a família de Giovanni se tornou um exemplo na comunidade. Outros vinhedos começaram a seguir seu caminho, buscando um equilíbrio entre tradição e inovação. A conexão com a natureza foi reestabelecida, e a beleza das colinas voltou a brilhar. A luta pela preservação não era apenas uma batalha, mas uma dança entre os seres humanos e a terra, onde cada passo importava.

Giovanni olhava para seus filhos, agora crescidos, e sentia um orgulho imenso. Havia algo mágico em ver a continuidade da vida, em saber que suas lições foram passadas adiante. As risadas que ecoavam pelo vinhedo eram um lembrete de que a natureza e a família estavam entrelaçadas, como as raízes das videiras.

Hoje, ao recordar aqueles dias, Giovanni entende que a verdadeira riqueza não está apenas na colheita abundante, mas na conexão que cultivamos com o mundo ao nosso redor. A preservação ambiental é um ato de amor, um compromisso com o futuro. E, enquanto a luz do sol se põe sobre as colinas da Pieve di Soligo, ele sabe que, assim como as videiras, a vida é um ciclo contínuo de crescimento, amor e respeito pela natureza. Que as futuras gerações possam sempre encontrar beleza e sabedoria nas lições da terra.
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GIUSEPPE PAOLO DELL’ORSO nasceu em 1927, em Pieve di Soligo, na Itália. Desde jovem, demonstrava um profundo amor pela literatura, influenciado por seu avô, um poeta local. Foi para Roma estudar Literatura Italiana na Universidade La Sapienza. Destacou-se como um aluno excepcional, recebendo diversos prêmios acadêmicos. Após obter seu diploma, se mudou para a Inglaterra, onde fez pós-graduação em Literatura Comparada na Universidade de Harvard, cuja pesquisa lhe rendeu um doutorado com honras e o prêmio Harvard Literary Fellowship, um reconhecimento pela contribuição significativa ao campo da literatura. Em 2001, foi convidado a lecionar Literatura Italiana em uma universidade no Brasil, no estado do Paraná. No Brasil, se envolveu profundamente com a comunidade literária, fazendo amizade com muitos escritores locais. Organizou encontros literários e oficinas de poesia, promovendo um intercâmbio cultural que unia vozes italianas e brasileiras. Defensor ativo de causas sociais, contribuiu para várias entidades filantrópicas tanto no Brasil, quanto na Itália, focando em projetos que promovem a educação e a inclusão social, ajudando a criar bibliotecas comunitárias e programas de alfabetização em áreas carentes.  Aposentado, perpetua a ideia de que a literatura é uma ponte que conecta pessoas, independentemente de fronteiras. Em 2005 criou uma conexão com o gestor cultural José Feldman. Conheceu o trabalho deste na Biblioteca de Parma onde há trovas e poemas da autoria de Feldman. Juntos, iniciaram diversos projetos que visavam fomentar a literatura e a troca cultural entre Brasil e Itália.
“A influência de Feldman na minha carreira literária é inegável. Através de suas iniciativas, não só ajudou a promover minhas obras, mas também contribuiu para a criação de uma comunidade literária vibrante, ao mesmo tempo que eu trazia uma nova perspectiva à cena literária, enriquecendo o diálogo cultural com nossas experiências e visões. A nossa amizade é um exemplo de como a literatura pode unir pessoas de diferentes culturas e origens. Juntos, promovemos a poesia e a literatura, mostrando que a arte é uma ponte que conecta corações e mentes, independentemente das fronteiras. A admiração mútua e a colaboração entre nós é um testemunho do poder transformador da amizade na literatura.” (GP Dell’Orso)
Autor de diversos livros, tanto em italiano quanto em português, com destaque para a poesia. Seus textos e poemas refletem a fusão entre a tradição literária italiana e as influências culturais brasileiras.

Fontes:
Giuseppe Paolo Dell’Orso. Cantos da Terra. Enviado pelo autor.
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Vereda da Poesia = 223


Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

MANHÃ

A manhã nasce das muitas janelas
deste sereno corpo fatigado,
sede  dos meus caminhos sem cancelas,
na luz de muitos astros albergados.

Casa em que me recolho das mazelas,
dos louros, derroteiros, lado a lado,
para de mim ouvir franca sequela:
Ecce Homo! Eis o triste camuflado.

Essa tristeza antiga em residência,
às vezes se constrói em face alegre,
máscara sem eu mesmo em aparência

num carnaval insólito em seu frege.
O que me salva a cor nessa vivência
é saber que a poesia é quem me rege.
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

CAMINHOS DO CORAÇÃO

Quando tudo acaba no coração da gente,
Ficamos em meio a um deserto,
Sem direção, tudo é vazio,
A alma treme exposta ao incerto.

Na ânsia louca de preencher o espaço,
A alma aflita pede socorro,
O corpo balança cai em qualquer braço,
Assim começa tudo de novo,

A falsa esperança mostrou o caminho,
Em seus braços findou-se o medo,
Enganou-se de novo com falsos carinhos.

Seguiu os passos para linda miragem,
Pisou as flores, morreu nos espinhos,
E o amor começa no mesmo caminho.

De novo o deserto,
De novo o incerto,
De novo os espinhos…
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

VEM TER COMIGO, À NOITE, À MINHA CAMA
(Glória Marreiros in "Colar de Pérolas", p. 21)

Vem ter comigo, à noite, à minha cama
Falar-me das saudades que sentiste
Que eu envolvo o teu corpo que despiste
Em lençóis com o nosso monograma.

No calor do aconchego é que se inflama
O excelso dom da vida que consiste
Em fazer singular tudo o que existe
E ao apagado círio dar a chama.

Vem afogar em mim os teus cansaços
Molda-te ao travesseiro dos meus braços
Que a cama é doce, quente e hospitaleira.

Dorme que o maior bem que pode haver
É o de numa só noite alguém viver
Os sonhos todos de uma vida inteira.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

LOUCURA VERDE

Nas longas noites em que eu me enveneno,
cigarro a espiralar sobre cigarro,
traz-me a saudade o teu perfil bizarro,
que eu não sei mais se é louro ou se é moreno.

Não é bem um perfil, mas um pequeno
alvoroço de névoas, um desgarro
de linhas onde, surpreendido, esbarro
com o teu olhar a me sorrir, sereno...

Depois teu vulto se dilui aos poucos,
mas teus olhos heris, como os dos loucos,
ficam parados, mortos, ante os meus.

— Verdes, curvos cristais, por onde eu vejo
monstros verdes passando num cortejo,
sob um sol verde como os olhos teus.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

CAMINHADA

A caminhada é longa, nós sabemos
que é difícil vencer este caminho,
mas a fé nos ajuda, assim nós cremos,
melhor lutar do que ceder ao espinho.

Não temer o perigo é o que queremos,
porque o mundo se torna tão mesquinho
que às vezes é preciso que busquemos
um punhado de amor e de carinho.

E enquanto a vida nos disser prossiga,
buscaremos obter na fé amiga
os pomos que a vitória nos conduz.

Almas gêmeas seremos pela vida,
unidas pelo amor – missão cumprida
para o destino que nos leva à luz!
= = = = = = = = =  

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

DESEJOS

Queria ser 
o seu “tudo” na vida...
o caminho a percorrer,
os perigos a enfrentar,
o amanhã por nascer,
o sorriso 
do seu olhar.

Queria 
ser o seu 
agora;
o seu melhor 
momento 
de felicidade
e encantamento...

Queria, 
ser também,
a sua, 
esperança.
A sua alegria,
a sua ilusão, 
e fantasia.

Queria, 
finalmente,
estar em seu coração...
ser seu momento
de reflexão
na calma tarde 
refletida lá fora.
= = = = = = 

Soneto de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

DESENCANTO
(Primeiro sonho de amor, 1944)

Personagens esparsos… pela vida
caminhamos, atrás de uma quimera.
Alguns se acham… o amor lhes dá guarida,
juntos mudam o inverno em primavera!

E sonhei que assim fosse… embevecida,
ao dar contigo, como se soubera
que à tua sombra, cálida e querida,
acharia a ventura à minha espera!

– Errei! Tinha as mãos de amores cheias…
E o jovem coração, já saturado,
no fogo das paixões, ainda incendeias,

pensando ser feliz, quem sabe, assim!
Nosso romance, apenas esboçado,
“ sem nunca ter começo, teve fim”. (*)
= = 
(*) Chave de Ouro de Guilherme de Almeida
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Cantiga Infantil de Roda
SAMBA LELÊ 

   Samba Lelê tá doente
Tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
É de uma boa lambada

Samba, samba, samba, ô Lelê
Samba, samba, samba, ô Lalá
Samba, samba, samba, ô Lelê
Pisa na barra da saia, ô Lalá
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Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Abrigo de todo o mundo,
tens, quarto, testemunhado
exaltação do feliz
e queixas do desgraçado.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

VENTO MENINO

Vento menino
Despenteia meus cabelos
Brinca de Destino
E espalha as reticências...
Vento Menino
Faz com que eu viaje em sonhos
E reencontre meu  Amor...
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Luciana Soares (O Mistério do Pastel Desaparecido)

Toda sexta-feira era sagrada, na casa do Espanhol e de sua esposa Lulu, um rodízio de pastéis! E quem comandava a fritura (pilotava o fogão), era Dona Luiza, a sogra, uma verdadeira autoridade em massas crocantes e recheios generosos.

Os sabores eram variados: queijo, palmito, carne, camarão etc., mas o queridinho da família era o pastel de banana. 

Aquela semana, resolveram inovar e ousaram investir na versão: banana com queijo. Espanhol, que torceu o nariz no início, foi o primeiro a se render. Lulu deu a ideia de fazer meia dúzia, já prevendo a disputa.

Quando os pastéis ficaram prontos, o cheiro dominou a casa. Dona Luíza organizou tudo na mesa e, entre goles de suco e mordidas crocantes, chegou a vez de degustarem o “sexteto”, nome que deram aos pastéis. Dos seis pastéis de banana com queijo, cinco foram devorados em tempo recorde. Mas, e o sexto?

Espanhol, com a boca cheia, jurou que só comeu um. Lulu levantou suspeitas, mas estava certa de ter pegado apenas dois. Luiza, indignada, alegou que só deu uma mordida no dela.

A tensão pairou no ar. Reviraram a travessa, olharam embaixo da mesa, até checaram o “dog” da vizinha que apareceu na porta. Nada do pastel.

A tradição das sextas-feiras se manteve, mas desde então, toda vez entre uma mordida e outra, a pergunta ressurge: "Cadê o pastel que sumiu?"

E até hoje ninguém assumiu.
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LUCIANA SOARES CHAGAS é do Rio de Janeiro/RJ. Doutoranda em Educação, Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Especialista em Gestão de Recursos Humanos. Formação em Pedagogia Empresarial. Especialização em Mídias e Tecnologia na Educação pela Universidade Veiga de Almeida e Licenciatura em Pedagogia. Docente há mais de 10 anos dos cursos de MBAs do Núcleo de Negócios e das Pós Graduação de Educação. Palestrante nas Jornadas presenciais para os alunos da EaD. Atuou como Instrutora comportamental em empresas como ABRADECONT, Marinha de Brasil-EMGEPRON, Miriam S.A., CIPA Administradora (BKR-Lopes e Machado), IBEF, Casa de Cultura (SevenStarmarketing). Diretora e sócia da Prassos Treinamento Empresarial. Autora de diversos E-books de disciplinas da área de Pedagogia na Universidade Veiga de Almeida e Organizadora do Livro E-Book da Coletânea de textos sobre inclusão escolar: Pedagogia.

Fontes:
Texto enviado pela autora.
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sexta-feira, 7 de março de 2025

Adega de Versos 130: Silmar Bohrer

 

Monsenhor Orivaldo Robles (O desperdício)

Faz anos, era véspera do aniversário de meu afilhado, criança dos seus quatro ou cinco anos. A comadre surpreende-o atirando ao lixo um monte de brinquedos. “Que é isso, filho?”. A resposta desconcerta-a: “Ah, mãe, amanhã é meu aniversário. Vai vir tudo novo”. A comadre não alisa. Faz desabar sobre o pequeno um sermão a respeito de crianças pobres, que se sentiriam felizes com um só daqueles brinquedos que ele estava jogando fora. O compadre reforça a bronca. Conta de sua infância na zona rural. Com os irmãos fabricava os próprios brinquedos utilizando carretéis de linha usados, sarrafos de madeira, vidros de remédio vazios e outras peças. “O pai e os tios, meu filho, nem sonhavam com um brinquedo desses que enchem o seu quarto. Um só já nos tornaria felizes. Mas a gente não tinha dinheiro”. Confrange-se o coraçãozinho do garoto. Ele cai num pranto sentido, que pai e mãe precisam consolar.

Dias depois, na pia da cozinha aparece aberto um potinho de iogurte quase cheio. A repreensão vem na hora: “Filho, se você não aguentava tomar um inteiro, por que abriu? Quantos pobrezinhos desejam um iogurte...” Rápido, ele corta o discurso: “Ih, pai, não vem de novo com esse papo dos pobres, que outro dia eu fui obrigado a chorar por causa deles”.

A cena acontece todos os dias numa infinidade de lares brasileiros. Infelizmente, nem todos os pais são educadores como o compadre e a comadre. Boa parte se preocupa com cortinas, camas, sofás e roupas. Cuidam que restos de comida ou bebida não os emporcalhem. Cuidado cosmético, beleza externa para os outros verem, só isso.

O desperdício é hábito generalizado, que importa combater desde cedo. A criança não tem ideia do uso correto das coisas. Não sabe se está gastando muito ou pouco. Precisa de orientação sobre o sentido exato de quantidades e valores. Senão, vai se acostumar com o esbanjamento. Se os pais não transmitem, também no consumo, noções de disciplina – pior, se eles mesmos dão exemplo de gastança irresponsável –, será difícil corrigir vícios arraigados no povo.

O opúsculo “Exigências evangélicas e éticas de superação da miséria e da fome”, publicado em abril de 2002 (Documentos da CNBB – 69), ensina, já no subtítulo: “Alimento, dom de Deus, direito de todos”. O acesso à comida de qualidade e em quantidade suficiente é direito de toda pessoa, de qualquer condição, em qualquer lugar do planeta. Como se tornar gente, na plenitude do termo, sem poder se alimentar?

A este absurdo chegamos: países cheios de pessoas doentes por comerem em excesso, enquanto em outros a população vem sendo exterminada pela fome. Dentro do Brasil convivemos com ambas as situações. Temos gente desperdiçando, ao lado de quem não possui o necessário para comer.

O problema vem de longe. Não será resolvido da noite para o dia. Mas é preciso que todos se sintam comprometidos. Não adianta ficar lançando a culpa nas costas dos outros. Para o faminto pouco importa quem provocou a fome. O que ele quer é comida.

Nas propostas concretas, sugerem-se medidas possíveis, algumas bem simples, como “educar para o melhor aproveitamento do alimento produzido, evitando todo o desperdício”.

É urgente começar dentro de casa, educando as novas gerações. Como, desde muito, fazem os compadres.
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MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.

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