sábado, 16 de fevereiro de 2013

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte IV

2.3 Romantismo críticoÉ justamente por essa postura consciente em relação ao cânone tradicional de seu tempo que se pode ligar Sousândrade a um romantismo crítico ou titânico. Segundo Vizzioli (1993, p. 154), o romantismo titânico foi marcado por uma profunda racionalização do ímpeto emotivo primário dos românticos, o que levou muitos autores a imprimirem ao sentimentalismo característico dessa escola um tom racional que, em alguns aspectos, vale-se de procedimentos clássicos, caracterizando um romantismo mais lúcido e racional. Tal postura, segundo o crítico, não implicou uma negação dos preceitos emotivos do Romantismo, antes, formulou-se como uma “das contradições intrínsecas da própria dinâmica do Romantismo”.

Conforme já mencionado, a vertente titânica pressupõe uma postura consciente em relação ao fazer poético, levando a uma modulação da emotividade através do trabalho racional com a linguagem. Em Sousândrade, essa racionalização do ímpeto emotivo é percebida quando o poeta apresenta o elemento natural contaminado pela figura do colonizador e não como a projeção equilibrada desse paradigma.

Outra forma de percebermos a racionalidade do discurso sousandradino é a manipulação da tradição literária dentro de sua obra, pois é comum observarmos no interior dO Guesa um constante diálogo intertextual com obras como A Odisséia de Homero, Eneida de Virgílio, Fausto de Goethe, Os Lusíadas de Camões, entre outras.

Oh, podeis, cortezãos, aperfeiçoando,
            O prémio de ter das ‘ilhas dos amores!’’
            E os lares de Penelope bordando,
            São sós os que honram aos navegadores.
– E onde existe Camões? E aonde Homero?
            Aquelle, em Portugal; e á humanidade
            Este eterno guiando, que primeiro
            As virtudes ensina da amizade,
 (O Guesa. Canto VI, p. 137)


Evidencia-se, nessa passagem, a adoração ao clássico como modelo estético a ser seguido, já que autores e obras consagrados são evocados como referência para a produção poética sousandradina. O aperfeiçoar em busca do prêmio dado aos portugueses, na “Ilha dos amores”, bem como a indicação de que Homero guia os passos do poeta mostram que Sousândrade tem uma certa predileção por esses autores e pela arte que eles representam, ou seja, o discurso clássico. Ao longo do poema as interferências clássicas se fazem presentes como pontos intertextuais. O eu-poético de O Guesa vislumbra um equilíbrio idílico nessas obras e, por isso, coloca-as como prolongamento da pacificação do sujeito. Nos versos que seguem, temos uma visão desse processo:

Vê do arrependimento o incanto adeante
E ouve do amor-primeiro esse murmúro
D’alvoradas de Anninhas; e a que o Dante
Sentia o grande amor, o amor venturo.

– Chega odysseu viajor: para ele correm
A mulher nobre, a muito amada filha,
Os contentes escravos, que não morrem
Já tendo protector. E ao da familia
Doce quadro, risonho qual um sonho,

Parado estava o jovem peregrino
E eu aos olhos de vós, sem arte o ponho,
Que vejais ser da terra o que é divino.

(O Guesa. Canto VI, p. 145)


O eu-poético projeta uma paz na indicação da chegada de Odisseu a sua pátria. O poeta associa a essa personagem, também em périplo, à situação de O Guesa, que vaga pela América em busca da paz.

Nessa medida, cria-se, por meio da consciência crítica, uma linguagem que relaciona a tradição poética à emotividade romântica. A linguagem passa por uma racionalização do traço emotivo. Prova disso é a rigidez formal observável no poema. Na maior parte de O Guesa temos uma métrica regular em quartetos decassílabos, o que remete a uma reminiscência épica no interior do poema. Mesmo nos momentos de irrupção inovadora, encontrados em Tatuturema e Inferno de Wall Street, contidos nos Cantos II e X, respectivamente, é perceptível uma estrutura regular, sendo as estrofes estruturadas de maneira a resguardar a homogeneidade do restante do texto.

Nessa tentativa de racionalizar o impulso emotivo, o poeta maranhense atinge a modernidade uma vez que se posiciona criticamente face à tradição para criar sua maneira romântica de trabalhar o discurso. É bom ressaltar que a modernidade concretiza-se na manipulação consciente da tradição para a instauração do novo, ou seja, o moderno pode ser entendido como um constante questionamento da tradição. Assim, o próprio Romantismo pode ser entendido como um ponto de partida rumo à modernidade.

Na busca dessa racionalidade, o poeta maranhense, muitas vezes, vai da ironia à sátira em uma velocidade vertiginosa e conturbada. Daí dizermos que a ironia sousandradina materializa-se na dilaceração do veio romântico “epigonal” e na exposição lúcida de uma sociedade corrompida pela cobiça. No fragmento que segue podemos observar um exemplo desse comportamento na inusitada poética sousandradina.

(Xèques surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-managers, Stockjobbers, Pimpbrokers, etc., etc., apregoando:)
– Hárlem! Erie! Central! Pennsylvania!
= Milhão! cem milhões!! mil milhões!!!
– Young é Grant! Jackson,
                            Atkinson!
Vanderbilts, Jay Goulds, anões!

(O Guesa, Canto X, p.231)


Neste excerto, a equiparação dos substantivos próprios por meio do uso do verbo ser – único verbo da estrofe – liga os termos e pressupõe uma gradação, expressa pelos dois versos iniciais. Essa gradação, fundamentada pela cobiça, faz com que as personagens citadas, resumidas ironicamente ao termo “anões”, prolonguem uma atitude depreciativa em relação à realidade, que aparece degradada. Cantada nessa estrofe, a contaminação da pureza pela negatividade estabelece a tensão entre os termos que passam a ser vistos negativamente.

Esse posicionamento crítico revela um olhar distinto face ao elemento natural. O Romantismo epigonal, como vimos, tende a ver positivamente a relação homem/natureza. O índio (elemento de brasilidade) e o branco são aproximados e, às vezes, identificados. Essa visão pode ser observada na obra de José de Alencar quando este coloca em pé de igualdade o branco colonizador e o índio Peri.

Em O Guesa o espaço natural, impregnado pelo elemento externo, degrada o equilíbrio e contamina a essência nacionalista tão valorizada pelo Romantismo. A ironia sousandradina advém da consciência da degradação, imposta ao elemento de brasilidade: “Tangendo o boi do arado. O povo infante/ O coração ao estupro abre ignorante” (Canto II, p.21). Desse modo, o natural serve ao poeta como instrumento de crítica, pois revela a contaminação dos valores inerentes à cultura brasileira, que incorpora os traços civilizados e, nesse processo, corrompe o veio genuinamente nacional.

A constatação dessa situação cria uma aversão ao colonizador, visto como responsável pela degradação:

 (MUXURANA histórica)

– Os primeiros fizeram
As escravas de nós;
Nossas filhas roubavam,
Logravam
E vendiam após.
(O Guesa, Canto II, p. 25)

Os “primeiros”, entendidos como os europeus, agem negativamente sobre o traço nacional, sendo caracterizados como ladrões e aproveitadores. O uso de “vendiam” traz à cena a exposição dos fins mercantilistas que moviam a ação do colonizador.

O olhar crítico em relação ao elemento natural revela uma espécie de inversão de papéis, observada no fragmento abaixo:

(Escravos açoitando ás milagrosas imagens:)

– Só já são senhôzinhos
Netos d’imperadô:
Tudo preto tá fôrro;
            Cachorro
Tudo branco ficou!
(O Guesa. Canto II, p. 28)


No excerto acima, a inversão pode ser verificada na rubrica “Escravos açoitando ás milagrosas imagens”. O verso “tudo preto tá fôrro” remete a uma possibilidade de liberdade; a ação de açoitar indica, no entanto, uma prisão cultural. Ao usar um instrumento de punição contra a própria cultura civilizada, iconizada pelas “milagrosas imagens”, o escravo incorpora a perspectiva do branco, perdendo suas particularidades culturais, tornando-se, assim, uma projeção degradada do homem civilizado.

Observa-se ainda em algumas passagens de O Guesa uma postura melancólica do enunciador-poético não apenas diante do passado, como também de uma conseqüente perda das “origens”:

Mas o egoismo, a indifferença, estendem
            As éras do gentio; e dos passados
            Perdendo á origem chara estes coitados,
            Restos de um mundo, os dias tristes rendem.

Quanta degradação! Razão tiveram
            Vendo, os filhos de Roma, todos barbaros
Os que na patria os olhos não ergueram,
Nem marcharam á sombra dos seus labaros.

O estrangeiro passa: que lhe importa
A magnolia murchar, se elle carece
Tão só d’algumas flores?... Anoitece
N’um somno afflicto a natureza morta!

[...]

Selvagens – mas tão bellos, que se sente
Um barbaro prazer n’essa memoria
Dos grandes tempos, recordando a história
Dos formosos guerreiros reluzentes:

[...]

Selvagens, sim; porém tendo uma crença;
De erros ou bôa, acreditando n’ella:
Hoje, se riem com fatal descrença
E a luz apagam de Tupana-estrella..
(O Guesa, Canto II, p. 21-2)


Nessa passagem, as “éras” do gentio figuram como ponto de constatação de uma descaracterização da pureza primitiva em contato com o traço europeu. Numa inversão de valores, os brancos, “os filhos de Roma”, os detentores da cultura (supostamente civilizados) são “bárbaros” que agridem e destroem o espaço natural. A expressão “anoitece”, associada à “morte da natureza”, parece remeter à participação dos nativos no processo de degradação. Estes, por sua vez, “não erguem os olhos”, negligenciando sua própria natureza primitiva, tornando-se, assim, agentes de sua destruição.

Nesse sentido, é a morte cultural que determina a melancolia do discurso que, por esse motivo, torna-se um grito pela efetiva distinção de nossa realidade frente ao externo. Sousândrade, diferentemente de sua geração, enquadra-se na visada nacionalista menos por cantar o espaço interno recheado de beleza e plenitude, do que por revelar conscientemente a situação degradada de nossa cultura face ao externo.

(Viola rindo:)

– D’este mundo do diabo
Dom Cabral se apossou,
E esta noite d’Arabia
            Astrolabia
Desde então se bailou.
(O Guesa, Canto II, p.30)


Daí termos, na poética do maranhense, um posicionamento distinto em relação ao “ufanismo” romântico. Sousândrade busca o desnudamento da artificialidade desse movimento e, por esse motivo, pode ser entendido como um romântico titânico. Esse desnudamento é perceptível quando o poeta introduz, em um tom de galhofa e ridicularização, no Canto II de O Guesa, poetas como Vitor Hugo, Byron, Lamartine, além de poetas de nosso Romantismo como Gonçalves Dias, Magalhães, entre outros:

(Beatos pasmadores)

–  Branca estatua de Byron
Faz cegueira de luz?
== Breu e brocha á criada!
            E borrada:
Ô, ô, ô, Ferraguz!             (Risadas)
            (Pasmadores impios)

Lamartine é sagrado?
== Se não tem maracás,
Ô, ô, ô,! – vibram arcos
Macacos,
Tatús-Tupinambás.
(O Guesa. Canto II, p.36)


A crítica ao discurso corriqueiro do Romantismo fica evidente pela incorporação do elemento “maracás” (instrumento musical utilizado em rituais indígenas) que, associado à interrogação e a uma “cegueira de luz”, remete diretamente à artificialidade do discurso romântico. A ridicularização de Byron e Lamartine, perceptível pela sonoridade em eco do fonema /o/ e pelas risadas aproximadas ao termo “macacos”, indica a dominação do traço nacional, metaforizado no elemento “Tatú-Tupinambá”.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia IV)

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

CONTA A LENDA QUE DORMIA

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada

A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
- Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

CONTEMPLO O LAGO MUDO

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos

Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO

Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

DA MINHA IDÉIA DO MUNDO

Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus ! Além-Deus!  Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...

DE ONDE É QUASE O HORIZONTE

De onde é quase o horizonte
Sobe uma névoa ligeira
E afaga o pequeno monte
Que pára na dianteira.

E com braços de farrapo
Quase invisíveis e frios,
Faz cair seu ser de trapo
Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito
A névoa só com a ver.
A vida? Não acredito.
A crença? Não sei viver.

DE QUEM É O OLHAR

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando ?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade

De eu ter passos comigo ?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim próprio mesmo
Em alma mal existo,

Toma um outro sentido
Em mim o Universo
- É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora
– Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua
-Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora!

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

DITOSOS A QUEM ACENA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida !
São felizes : têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

DIZEM QUE FINJO OU MINTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não. Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê !

DIZEM?

Dizem?
Esquecem.
Não dizem ?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por quê
Esperar ?
Tudo é
Sonhar.

DOBRE

Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.

DORME ENQUANTO EU VELO...

Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.

DORME, QUE A VIDA É NADA!

Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,
Dando o que nunca damos.

Dorme sobre o meu seio

Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O 'spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Antonio Facci (Sem Palavras II)

http://abibliapelabiblia.blogspot.com
Sem palavras para contar histórias, mesmo as mais simples, aquelas que povoam as mesas dos bares da periferia.

Sem palavras para relatar as historietas domésticas, relatando travessuras dos garotos, a gulodice de algum membro da família.

Sem palavras para descrever o cãozinho de estimação que abana o rabo e beija os pés do dono, mesmo depois de haver apanhado.

Sem palavras que possam descrever os olhares incrédulos dos que recebem notícias a eles não destinadas.

Sem palavras para descrever o brilho dos olhos do senhor de cabelos brancos ao falar de suas aventuraas amorosas, quase sempre imaginárias.

Sem palavras!

Fonte:
FACCI, Antonio. Sem Palavras. Maringá: Sthampa, 2003.

Trova 247 - Alcy Ribeiro Souto Maior (RJ)


Simone Pedersen (Embriagado de Versos)

VOZ DE GELO

 Quando você diz que me ama,
 Sua voz ecoa no meu vazio.
 É tão seco dentro de mim,
 Que o som rasga minhas entranhas.
 Não quero mais ouvir.
 Houve, sim, tempo em que queria...
 Sonhava com sua melodia.
 Vivia pela nossa harmonia.
 O tempo passou.
 Você passou.
 E como não deixou marcas,
 não faz diferença.

 O CICLONE

 O ciclone se aproximou
 Com imensa força e rapidez
 As nuvens densas
 Escondiam seu interior
 Extasiada com tanta volúpia
 Permiti que se aproximasse
 Dancei em seus ventos
 Rodopiando centro acima
 Subia e subia
 Cada vez mais imersa
 Nessa nova vida
 Distante da terra
 Meus pés flutuavam
 Nada mais existia
 Além do ciclone e eu.

 QUANDO PASSOU

 A calmaria chegou
 Assustada percebi
 Meus pés afundavam
 Em areia movediça
 Abaixo me puxava e puxava
 Até que morri
 Mil vezes seguidas
 Sem ar, sem espaço
 Sem visão, sem movimento
 Meu corpo na terra
 Lama na lama
 Lágrimas marrons
 Até que não mais era.

A BONECA

Pés descalços no chão
Corpo disforme, raquítico
Barriga grande
Dedo sujo na boca

Terra molhada,
Esgoto a céu aberto
Caixas de papelão
Lar dos subumanos

Urubus e capivaras
Animais de estimação
A boneca tão limpinha
Aninhada no coração

A menina cresceu
E cheirou cola
Depois vendeu seu corpo
Assaltou pedestres felizes
E se mudou para a prisão...

Mas a boneca, ah!
Aquela boneca
Sem cabelos
Lavada com lágrimas
Choradas pela dor de fome
A boneca, ah, a boneca!
A menina levou com ela.

ABANDONO
Mandela

 Você partiu sem despedidas nem explicações
 Eu busquei respostas no passado que preenchessem o vazio
 O porta-retrato no lixo eu recuperei
 Um pijama que não será lavado
 Mosaico da tua presença impregna os sentidos
 Lembranças de frases jogadas:
 “Controladora...”
 “Enruga as minhas asas...”
 “Vai: destranca a gaiola...”

 Era um ninho aberto
 Você não sabia?
 Enruguei minhas asas por que quis
 Subi grades imaginárias
 Em minha volta
 Agora
 Não beijarei flores perfumadas ,
 Caminharei por becos imundos, sozinha

 Sem você, não sou borboleta
 Sou lagarta, agarrada, desconfiada

 Do que tenho medo? Não é medo de cair.
 É medo de te ver voejar em outro jardim.

Fontes:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51.html
http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/2010/06/simone-pedersen-escritora-e-poeta.html

Simone Pedersen

Simone Alves Pedersen nasceu em São Caetano do Sul.

Formou-se em Direito.

Morou onze anos no exterior onde teve vivência multicultural e conheceu diferentes estilos linguísticos.

Desde essa época já escrevia crônicas para os amigos sobre a diversidade que vivenciava.

Reside em Vinhedo, no interior de São Paulo e, há dois anos, participa ativamente de concursos literários, tendo conquistado inúmeros prêmios no Brasil e no exterior.

Tem textos publicados em diversas antologias de contos, crônicas e poesias. É colunista de um periódico da região.

 Ministra oficinas literárias para crianças e adolescentes.

Membro da AEILI J – Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantojuvenil
Membro da Academia Literária AMLAC – SP,
Membro do CEV – Clube de Escritores de Vinhedo.
Membro-fundadora do Clube dos Escritores de Vinhedo,
da Academia Metropolitana de Letras, Artes e Ciências,
da Academia Literária da Grande São Paulo,
da Academia Poçoense de Letras,
membro-correspondente da Academia Caxiense de Letras.
Delegada da UBT em Vinhedo.

Livros Infantis

 Coleção Pápum
 Coleção Fuá
 Vila Felina
 Vila Encantada
 Sara e os óculos mágicos
 Conde Van Pirado

Livros  Adultos

 Fragmentos & Estilhaços: crônicas, contos e poemas
 Colcha de retalhos: poemas
 O Tango da Vida: contos (lançamento em janeiro de 2012)
 
Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51.html

Cacaso (Há Uma Gota de Sangue no Cartão Postal)

eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira
de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor

Heloisa Prieto (O Baú Secreto da Vovó)

Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.

Na noite em que descobri o baú de minha avó, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a gritar que odiava o mar. Foi quando minha avó me chamou.

— Minha neta, você sabia que eu tenho um baú cheio de segredos?

— Como assim? Onde?

— Lá no fundo da garagem.

Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vovó o abriu e retirou de dentro dele uma espécie de régua:

— Você sabe o que é isso?

— Uma régua esquisita — respondi.

— Não, isso é uma palmatória. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mão.

— Não acredito! E por que a senhora guardou esse treco?

— Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustiças. Olhe... meu dedal preferido. Foi com ele que eu costurei essa roupa — e ela me mostrou um vestidinho com uma espécie de short por baixo.

— Você jogava tênis, vovó?

— Não, isso é um maiô!

— Você nadava de vestido?

— Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu avô.

— Nadando de roupa?

— Eu vinha de uma família pobre. Seu avô, não. Ele lia, gostava de dançar.

— E de nadar também?

— Sim, e por isso fiz esse maiozinho. Corri até a praia de chapéu. Seu avô estava tomando sol. Fingi que tinha perdido o chapéu no mar. Ele era um cavalheiro e veio ajudar. O chapéu foi parar no fundo. Apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.

— Foi assim que vocês começaram a namorar?

— E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o maiô, porque um pouco de coragem não faz mal a ninguém. Olhe essa caixinha de música. Seu avô me deu quando você nasceu. Não é linda?

Vovó mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se não fosse o mar, que eu temia, não haveria o encontro de meus avós e que viver é saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e nunca vai conseguir controlar.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Elisa Barreto (Sonetos Escolhidos)

Fonte: Libreria Fogola Pisa
"VELHAS FOTOGRAFIAS"

Velhas fotografias, amarelas,
lembram vidas da vida que passou.
São guardiãs fiéis, são sentinelas,
que a arte no papel eternizou.

Guardam características singelas
de épocas que a evolução tragou.
Na estrutura da vida são janelas
que o palácio do tempo conservou.

Olham-me da parede, penduradas,
como a indagar-me, muito admiradas,
por que eu as fito tão frequentemente . . .

È que as fotografias tomam vida
e a alma de alguém, quando nos foi querida,
nelas palpita misteriosamente.

"OS TEUS OLHOS NEGROS"

Teus olhos de grafite são pequenos
mas nele cabe em plena intensidade
todo o matiz suave, os tons amenos
do colorido espelho da saudade.

São plácidos, tranquilos e serenos
e emitem tanta luminosidade
que me fazem pensar: são dois acenos
para a luz imortal da eternidade.

Bendigo nos teus olhos minha vida
por me dar a ventura indescritível
de sentir a beleza em toda a essência

e louvar, num soneto, comovida,
o êxtase que torna imperecível
a sublimada glória da existência.

"COLIBRI"

Por entre margaridas e agapantos
e hortênsias e junquilhos rosa-amor.
ligeiro, mas sereno e sem espantos,
voeja o colibri de flor em flor.

Nas asas tem feitiços, tem quebrantos;
em vários tons de azul esplende a cor
e vai, beijando dálias e rodantos,
sem mágoas, sem tristezas e sem dor.

Que ave delicada e pegureira!
Tão lépida a voar na claridade
do éter que se evola da Natura,

é a doce precursora, a mensageira
de tudo o que traduz felicidade
e indica o Paraíso à criatura!
–––––––

Elisa nasceu na cidade de Santos, Estado de São Paulo. Jornalista, poeta.
Homenagens:
"Concurso Internacional de Poesia",
Academia Teresopolitana de Letras;
Troféu "Colombina"
e Taça "Bernardo Pedroso", Casa do Poeta de São Paulo .

Livros:
Turbilhão de Emoções, 1961; Catedral de Lágrimas, 1964;
Pequena Antologia, 1965; Outros Poemas,1969 .


Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 7. Rufina

Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e
mocidade, se lhe guardara afeição apenas pelo fato de a ter socorrido. -Há no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as pálpebras semicerradas.

..................................... un long rayon d'étoile!

Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. -Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina?

Fonte:
Domínio Público

Soares de Passos (Desengano)

Vejo-a ainda! ressurge a meus olhos
Como em tempos ditosos surgia,
E, qual anjo de casta poesia,
Desce às vezes num sonho d'amor;
Vejo-a ainda nos céus e na terra,
Nos encantos e risos da aurora,
E, se o dia nas ondas descora,
Das estrelas no meigo fulgor.

Era a luz que brilhava em minha alma,
Era o astro que em sombras luzira,
Era o fogo sagrado que a lira
Às doçuras d'amor acordou...
Tudo c findo; debalde nas trevas
Busco ainda seu facho luzente:
Foi apenas um astro cadente,
Meteoro fugaz que passou.

Pobre seio que ardente pulsaste
Embalado por falsas venturas,
O fanal que na terra procuras
Sobre a terra jamais acharás.
Não há seio que entenda no mundo
Esse ardor de teus vagos anelos;
Não há luz que em seus raios mais belos
Não te esconda uma sombra falaz.

Que te resta? um futuro vazio
D'ilustres que nutriu a esperança,
E um passado de triste lembrança
Como é triste a verdade sem véu...
Olvidar! olvidar! que ao presente,
Ai! só cabe o repouso do olvido.
Olvidar! e que em gelo sumido
Seja o fogo que em chamas ardeu!

Sonho belo, que esta alma iludiste,
Chama ardente nos céus ateada,
Voa, voa à celeste morada!
Lá nasceste, do mundo não és.
E tu, lira de lânguidas cordas,
Que de amor suspiraste em desleixo,
Vai, oh, vai! em silêncio te deixo...
Vai, oh, vai para sempre talvez!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Teatro de Ontem e de Hoje (O Cão Siamês)

Peça de Antônio Bivar lançada em 1969, na esteira do sucesso aberto por Cordélia Brasil, traz uma marcante interpretação de Yolanda Cardoso, que divide a cena com Antonio Fagundes, sob a direção de Emílio Di Biasi. A encenação é materialmente modesta, mas iluminada pelos intérpretes. Espetáculo cult, faz breve temporada e tem pouco público.

A peça é centrada na figura de Alzira, uma explosiva outsider, crítica, bem informada, desbocada e irreverente, que atende a Ernesto, vendedor de enciclopédias que bate à sua porta. O rapaz, casado e com filhos pequenos, revela-se uma pessoa sem sonhos, conformado com sua vida modesta e sem perspectivas. O encontro entre figuras tão díspares produz um conflito: o anarquismo de Alzira triunfa, massacrando a racionalidade de Ernesto. Para Emílio Di Biasi, "Alzira é uma heroína marginal, já que ela faz a apologia de tudo o que vai contra os princípios do que se convencionou chamar sociedade. A sociedade absurda de Ernesto contra o absurdo mundo de Alzira. [...] Ela se recusa a qualquer tipo de sentimentalismo pessoal e leva seu subconsciente violento até as últimas conseqüências".1

Em 1970, o diretor Antônio Abujamra monta o texto no Rio de Janeiro, retrabalhado e aumentado por Bivar, com a mesma atriz e com Marcelo Picchi vivendo Ernesto. A encenação alcança grande sucesso e repercussão, rebatizada como Alzira Power, retorna posteriormente para São Paulo, onde faz longa carreira.

A encenação carioca desperta vivo entusiasmo na crítica especializada, como anota Henrique Oscar no seu comentário: "O espetáculo de Abujamra está todo apoiado numa hábil direção de atores. Neste sentido, o rendimento obtido com Yolanda Cardoso é muito grande. Ela assume o papel com uma garra impressionante. Outro que se sai muito bem é o ator paulista Marcelo Picchi, em seu segundo desempenho profissional. Num papel que pede muito menos do intérprete do que sua parceira, ele tem um trabalho perfeitamente realizado, inclusive nos momentos mais perigosos que o texto lhe exige".2

Antônio Bivar completa em seu livro detalhes peculiares sobre a montagem de Abujamra: "Tirando o Hair, onde todos ficavam nus, Alzira era novidade também por, além de ser uma peça que falava fundo às mulheres - como nenhuma peça brasileira até então (a personagem-título era uma libertária desvairada) - tinha, como sobremesa, a exibição demorada e ritualística de um rapaz pelado. Não estava no texto, era coisa da direção picárdica de Antonio Abujamra".3

Yolanda Cardoso recebe, com este desempenho, todos os prêmios como melhor atriz do ano, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Notas

1. ALZIRA POWER OU O CÃO SIAMÊS DE ALZIRA PÔ... LÔCA. Direção e texto Emílio Di Biasi. São Paulo, 1969. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Ruth Escobar em agosto de 1969.

2. OSCAR, Henrique. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, jul. 1970.

3. BIVAR, Antonio. Longe Daqui Aqui Mesmo. São Paulo, Best Seller, 1995, p. 17.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte III

2.2 Sousândrade: um romântico

 Inscrito cronologicamente dentro do movimento romântico, Sousândrade não escapou plenamente desse ideário. Na concepção de Williams (1976, p. 75), “Sousândrade foi um poeta romântico, modelado e desenvolvido pelo romantismo nacional e internacional”. Se pensarmos Sousândrade pelo prisma romântico, podemos perceber em sua obra a marca de sua época. A constante aproximação do cenário exótico da “pátria” ao jardim do Éden, ponto de pureza natural presente no livro do Gêneses, leva a uma idealização tipicamente romântica, pois o território nacional é comparado a um elemento de absoluta pureza. Tal postura implica um nacionalismo latente, pois o elemento natural, visto como ponto de afirmação da individualidade, passa a ser adorado enquanto índice de brasilidade.

O Eden alli vai n’aquella errante

Ilhinha verde – portos venturosos

            Cantando á tona d’água, os tão mimosos
            Simplices corações, o amado, o amante.
Incantados lá vão, ás grandes zonas
            D’ um outro mundo, a amar, a ouvir cantando:
            Oh, ninguem sabe o incanto do Amazonas
            Ao sol, ao luar, as aguas deslumbrando!

Esta é a região das bellas aves,
            Da borboleta azul, dos reluzentes
            Tavões de oiro, e das cantilenas suaves
            Das tardes de verão mornas e olentes;
A região formosa dos amores
            Da araçaranea flor, por quem doudeia,
            Fulge ao sol o rubi dos beija-flores,
            E ao luar perfumado a ema vagueia.

(O Guesa. Canto II, p. 21)[iii]

Neste fragmento, temos uma visão idílica do espaço natural. Os elementos naturais como “borboleta azul”, “araçaranea em flor”, “beija-flores”, “ema” são aproximados a tons amenos da natureza como o entardecer, tendo ao fundo uma “cantilena”. Essa postura indica a visão do espaço natural como pólo de paz para o eu-poético. A sinestesia “luar perfumado” poderia ser citada como confirmação dessa visão idílica auferida à natureza. As riquezas “oiro” e “rubi” são derivadas de elementos naturais como o raio e os beija-flores. Tal indicação remete a uma riqueza imanente ao traço natural. Podemos falar, então, em uma supervalorização do espaço natural que, via de regra, vem envolto em um olhar deslumbrado e, portanto, nacionalista e idealizador.

No entanto, a racionalização da tradição romântica deve ser reconhecida como ponto de distinção da obra sousandradina dentro das manifestações “corriqueiras” de nosso Romantismo. Sua linguagem transborda os limites conservadores do cânone romântico consagrado no Brasil e, por isso, não seria compreendida dentro desse movimento. O próprio Sousândrade (apud WILLIAMS, 1976, p. 14) afirma: “Ouvi dizer já por duas vezes que ‘O Guesa Errante’ será lido cinqüenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinqüenta anos antes”.

Essa singularidade não leva, como já salientamos, a uma ruptura com o ideário romântico, mas sim a uma nova perspectiva em relação à heterogeneidade do movimento. Fazendo uma distinção dentro do Romantismo, Paz (1984) salienta que esse movimento apresenta duas vertentes: uma que valoriza a emotividade como elemento máximo, levando a uma espécie de supervalorização do impulso primário, revelando, assim, uma profunda impulsividade e eloqüência; e uma segunda vertente, na qual a postura emotiva aparece permeada por uma certa racionalidade que busca condensar o veio impulsivo da primeira vertente.

Segundo o crítico, foi a primeira vertente que determinou a formulação canônica consagrada no movimento romântico brasileiro. Na segunda vertente, mais racional, figurariam nomes como Nerval, Nodier, Hölderlin, poetas que souberam redefinir o veio consagrado e, por esse motivo, ficaram longo tempo à margem da valorização literária. É a essa vertente racional que aproximamos o procedimento poético sousandradino. Haroldo de Campos (1976, p. 18) toca nessa questão ao afirmar que “nosso Romantismo poético – [...] é um Romantismo defasado e epigonal, extremamente dependente dos modelos europeus, [...] principalmente, dos paradigmas ‘extrínsecos’ (a oratória hugoana, o intimismo soluçante de Musset, a religiosidade lacrimatória de Lamartine)”.

Em oposição a essa corrente epigonal, o crítico salienta a existência de um Romantismo “crítico”, baseado na apropriação crítica dos valores emotivos predominantes no Romantismo canônico.

Diante do exposto, poderíamos dizer que a obra sousandradina não pode ser entendida completamente sem levar-se em conta que o poeta distanciou-se da linha predominante em nosso Romantismo. A interposição do “externo” ao “interno” revela a consciência da diferença entre a cultura do conquistador e a cultura indígena; em outras palavras, o poeta soube manipular a tradição para atingir uma toada distinta da de seus contemporâneos e, com isso, vislumbrar uma individualidade mais próxima do elemento nativo.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia III)

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA

Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)

CERCA DE GRANDES MUROS QUEM TE SONHAS

Conselho


Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...

CESSA O TEU CANTO!
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

CHOVE ? NENHUMA CHUVA CAI...

Chove ? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

COMEÇA A IR SER DIA

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente ?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.

COMO A NOITE É LONGA !

Como a noite é longa !
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p'r'ao pé de mim...

Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido !
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo ?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 6. O Homem que Fuma

Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito estúpido. Ver o homem viver é mais interessante doque ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. -Só divirjo dele em que não gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo, cada homem é sempre uma síntese original, um composto único, um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogação é que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realidade tangível, único depósito real de humanidade vivente e vibrante.

Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem, não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar de uma pessoa -o que não é difícil, a menos que tenha um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga polícia dos carros. -O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele, como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de paciência. – Há criaturas difíceis de decifrar. São enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas.

Fonte:
Domínio Público