"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária – uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" – comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.
O nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" – do latim cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu significado. Esses nomes de quente semântica poderiam ter sido invenção do próprio Guimarães Rosa. Outro aspecto notável de sua obra foi sua preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, que o ajudaria a compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética rosiana.
A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas, quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas e ouvidas na roça.
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas."
Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.
Segundo seu tio Vicente Guimarães:
Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro, compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se movesse o pensamento.
A miopia – "vista curta" –, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca), médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira, exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de foco e recomendando que "por ora era preciso ler o menos possível para não agravar a moléstia". Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.
Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida, retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, desde logo, para não perder a oportunidade, tendo se dedicado ao estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.
Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela. O corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade. Estando Ismael de Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada desprezível de cem contos de réis. Chegou a confessar, depois, que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios. Seja como for, essa primeira experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos prefácios de Tutaméia:
"Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois."
Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres "FAC QUOD IN TE EST"; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do Dr. Tulp, datada de 1632).
O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua oração argumentando com uma "licção da natureza":
Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raízes, que somente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.
Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.
Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:
Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas, desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.
Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira:
E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.
Mais adiante, continua:
Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto.
Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’
Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens.
Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.
Também, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados.
De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ – Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’
Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?
Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.
Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.
Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou pretensa superioridade.
E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do seu tempo.
Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.
A causa? Parece-me simples.
É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’, arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!
Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!...
E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento, mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:
‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero, é que o socorro já vem perto!).
E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.
Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas. Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente.
Cassiano perguntou:
– Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?
– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...
Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto – Uai, eu?, de Tutaméia.
Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes idéias. Eu – a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa de estar prevenido?"
Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina.
Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma - que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas.
Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido. É ainda Vilma quem relata que sua mãe chegou a se esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico que chorava convulsivamente!
Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os "calões" na "língua disgramada que eles falam", como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles". Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas.
Do conto Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:
Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados, iam acudir àquela parte.
A boiada, do norte.
Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! – o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na cova.
Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.
Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre 'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.
Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de "Viator", concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.
Diga-se de passagem que em entrevista concedida a Günter Lorenz (veja a entrevista após a biografia), Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom confidencial:
Meu começo, foram poesias (...) escrevi um volume nada pequeno de poesias que foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo, conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo, mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.
Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.
Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial.
Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência." A concessão da homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do Holocausto.
Com efeito, Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa.
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas). Sobre a constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se expressa:
Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.
Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios. Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais, com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos, móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos, em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.
Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate), saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha, um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra:
Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi dos meus...
... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.
Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.
De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.
Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano. Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias...
Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim. Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias... A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês Peter Wilhelm Lund – "o pai da paleontologia brasileira" – e do extraordinário botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar de "seu Alquiste", ou "Olquiste", que aparece no conto O recado do morro, cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa. Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste – espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos."
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.
Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço?
Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.
CORPO DE BAILE, a partir da 3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo próprio Rosa, com um curioso recado: "dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra". Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.
"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?"
Dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas de Corpo de Baile – longos poemas em prosa, de feição barroca –, 13 em dois volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956, no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão: Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes. O fato é que ninguém lhe fica indiferente.
Enquanto alguns colocam o livro no pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das primeiras páginas, considerando-o "um matagal indevassável". Em matéria publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura, começou a lhe parecer "uma história de cangaço contada para lingüistas". Por sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou: "A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito." Passadas quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, "no calor da hora", sentindo o cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:
Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.
A partir de o Corpo de Baile, a obra de Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.
O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.
Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:
Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.
A partir de 1958, Guimarães Rosa começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.
É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria – "... the nothingness of matter and the allness of spirit" –, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.
Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.
Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.
Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962 justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o qual chamava, carinhosamente, de "o amarelinho", numa referência à cor da capa da edição da Livraria José Olympio Editora):
Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de 1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.
Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.
Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então, sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia o interlocutor a seus textos, à "conversa manuscrita". A entrevista foi publicada como parte de um livro de Lorenz – Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e Basiléia, 1970 –, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa altura, com um jacaré do Rio São Francisco... Na opinião de Willi Bolle (Guimarães Rosa – artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o ficcionista:
atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer esclarecimentos – o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer –, mas indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os críticos para solucionar enigmas.
Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.
No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atômica da literatura brasileira"; outros consideram que em suas páginas encontra-se a "chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação".
Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando da mini-saia, que considerava "uma gracinha", à bomba atômica. Diz-se torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma "adorar" música de carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição feminina, admite que não, afirmando que "antigamente havia um exagero, o homem era homem demais e a mulher era mulher demais".15 Indagado se já teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: "Acho que a verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai." Instado a emitir um conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos, destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: "Viver é obrigação sempre imediata". Elogia as gerações jovens, que considerava cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que "estamos entrando na era da sinceridade", referindo-se às gerações moças, termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo, esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e perdidos, sem saber o que estava acontecendo...
Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu."
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.
A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de novembro de 1967.
No início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por "Cordisburgo":
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado, gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.
Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.
Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que fala sobre a fé e a amizade:
João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé...’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.
Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.
E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas não morrem, ficam encantadas", que pronunciara pela primeira vez em 1926, diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado "a palmeira de Deus" –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente, apresentando-se a João Neves como "Cordisburgo", última palavra pública que pronunciou:
Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.
Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.
Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?
‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: João Neves da Fontoura.
Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.
Soprem-se as oitenta velinhas.
Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.
— Ministro, está aqui Cordisburgo.
Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se, claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: "MORRE O MAIOR ESCRITOR".
Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. (Guimarães Rosa)
Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18 de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica, destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado pela bexiga preta (capítulo 17) – uma travessia que, nas palavras de Riobaldo, durou "só um instantezinho enorme" –, vendo-se as fogueiras ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília, representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: "Então fico com o Pasolini, que preferia os não-atores..." Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."
João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo (MG) a 27 de junho de 1908 e teve como pia batismal uma peça singular talhada em milenar pedra calcária – uma estalagmite arrancada à Gruta do Maquiné. Era o primeiro dos seis filhos de D. Francisca (Chiquitinha) Guimarães Rosa e de Florduardo Pinto Rosa, mais conhecido por "seu Fulô" – comerciante, juiz-de-paz, caçador de onças e contador de estórias.
O nome do pai, de origem germânica – frod (prudente) e hard (forte) –, e o nome da cidade natal, o "burgo do coração" – do latim cordis, genitivo de cor, coração, mais o sufixo anglo-saxônico burgo –, por sua sonoridade, sua força sugestiva e sua origem podem desde cedo ter despertado a curiosidade do menino do interior, introvertido e calado, mas observador de tudo, estimulando-o a se preocupar com a formação das palavras e com seu significado. Esses nomes de quente semântica poderiam ter sido invenção do próprio Guimarães Rosa. Outro aspecto notável de sua obra foi sua preocupação com o ritmo do discurso, desde cedo manifestada, que o ajudaria a compor, mais tarde, juntamente com outros atributos, a magistral prosa-poética rosiana.
A venda do "seu Fulô" era freqüentada pela gente sertaneja, especialmente por vaqueiros que conduziam boiadas a Cordisburgo para embarque nos trens da Central do Brasil com destino a Belo Horizonte, Rio e São Paulo. A contragosto do pai, Joãozito ficava a escutar a um canto do estabelecimento as conversas e as estórias contadas pelos vaqueiros enquanto comiam, bebiam e descansavam. Mais tarde, porém, "seu Fulô" – homem de minguados estudos mas em compensação dotado de inteligência aguda e memória louvável – em muito contribuiria para a elaboração dos livros do primogênito, fornecendo-lhe rico material representado por estórias, casos, relatos de caçadas, cantigas, quadrinhas, informação sobre crimes e demandas e muitas outras coisas vistas e ouvidas na roça.
"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas."
Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.
Segundo seu tio Vicente Guimarães:
Sua posição predileta para leitura era sentado no chão, de pernas cruzadas, a modos de BUDA, com o livro aberto sobre as pernas, curvado até bem próximo deste e com dois pauzinhos nas mãos, batendo sobre as páginas, ora um, depois o outro, compassadamente, em ritmo variado, ligeiro ou mais lento, conforme na leitura se movesse o pensamento.
A miopia – "vista curta" –, que o obrigava a cerrar as pálpebras para melhor ver, somente foi descoberta por acaso pelo Dr. José Lourenço (Dr. Juca), médico do Curvelo, numa visita de amizade que fez à família de Joãozito. A alegria e o deslumbramento do menino usando os óculos do doutor, colega em miopia, foram mais tarde registrados pelo escritor em memorável cena do conto Campo Geral (do livro Manuelzão e Miguilim), quase toda verdadeira, exceção feita para alguns nomes. No real, o Dr. José Lourenço sugeriu aos pais que levassem a criança ao oculista, explicando que ela enxergava tudo fora de foco e recomendando que "por ora era preciso ler o menos possível para não agravar a moléstia". Desde então aumentaram as dificuldades de Joãozito, que precisava se esconder mais e mais para não ser surpreendido, principalmente pelo pai. Só em Belo Horizonte, aos 9 anos, passou a usar óculos.
Aos 7 anos incompletos, Joãozito começou a estudar francês, por conta própria. Em março de 1917, chegava a Cordisburgo, como coadjutor, Frei Canísio Zoetmulder, frade franciscano holandês, com o qual o menino fez amizade imediata. Em companhia do frade, iniciou-se no holandês e deu prosseguimento aos estudos de francês, que iniciara sozinho. Aos 9 anos incompletos, foi morar com os avós em Belo Horizonte, onde terminou o curso primário no Grupo Escolar Afonso Pena; até então fora aluno da Escola Mestre Candinho, em Cordisburgo. Iniciou o curso secundário no Colégio Santo Antônio, em São João del Rei, onde permaneceu por pouco tempo, em regime de internato, visto não ter conseguido adaptar-se – não suportava a comida, retornando a Belo Horizonte matriculou-se no Colégio Arnaldo, de padres alemães e, desde logo, para não perder a oportunidade, tendo se dedicado ao estudo da língua de Goethe, a qual aprendeu em pouco tempo. Sobre seus conhecimentos lingüísticos, assim se expressaria, mais tarde, numa entrevista concedida a uma prima, então estudante no Curvelo:
Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.
Em 1925, matricula-se na Faculdade de Medicina da U.M.G., com apenas 16 anos. Segundo depoimento do Dr. Ismael de Faria, colega de turma do escritor, recentemente falecido, quando cursavam o 2º ano, em 1926, ocorreu a morte de um estudante de Medicina, de nome Oseas, vitimado pela febre amarela. O corpo do estudante foi velado no anfiteatro da Faculdade. Estando Ismael de Faria junto ao ataúde do desventurado Oseas, em companhia de João Guimarães Rosa, teve o ensejo de ouvir deste a comovida exclamação: "As pessoas não morrem, ficam encantadas", que seria repetida 41 anos depois por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras.
Sua estréia nas letras se deu em 1929, ainda como estudante. Escreveu quatro contos: Caçador de camurças, Chronos Kai Anagke (título grego, significando Tempo e Destino), O mistério de Highmore Hall e Makiné para um concurso promovido pela revista O Cruzeiro. Todos os contos foram premiados e publicados com ilustrações em 1929-1930, alcançando o autor seu objetivo, que era o de ganhar a recompensa nada desprezível de cem contos de réis. Chegou a confessar, depois, que nessa época escrevia friamente, sem paixão, preso a modelos alheios. Seja como for, essa primeira experiência literária de Guimarães Rosa não poderia dar uma idéia, ainda que pálida, de sua produção futura, confirmando suas próprias palavras em um dos prefácios de Tutaméia:
"Tudo se finge, primeiro; germina autêntico é depois."
Em 27 de junho de 1930, ao completar 22 anos, casa-se com Lígia Cabral Penna, então com apenas 16 anos, que lhe dá duas filhas: Vilma e Agnes. Dura pouco seu primeiro casamento, desfazendo-se uns poucos anos depois. Ainda em 1930, forma-se em Medicina pela U.M.G., tendo sido o orador da turma, escolhido por aclamação pelos 35 colegas. O paraninfo foi o Prof. Samuel Libânio e os professores homenageados foram David Rabelo, Octaviano de Almeida, Octávio Magalhães, Otto Cirne, Rivadávia de Gusmão e Zoroastro Passos. O fac-símile do quadro de formatura encontra-se atualmente na Sala Guimarães Rosa do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, da Faculdade de Medicina da U.F.M.G. No referido quadro de formatura está estampada a clássica legenda, em latim, com os dizeres "FAC QUOD IN TE EST"; figura, também, a reprodução de uma tela do pintor holandês Rembrandt Van Rijn em que é mostrada uma aula de anatomia (A lição de anatomia do Dr. Tulp, datada de 1632).
O discurso do orador da turma, publicado no jornal Minas Geraes, de 22 e 23 de dezembro de 1930, já denunciava, entre outras coisas, o grande interesse lingüístico e a cultura literária clássica de Guimarães Rosa, que começa sua oração argumentando com uma "licção da natureza":
Quando o excesso de seiva levanta a planta jovem a escalar o espaço, só á custa de troncos alheios logra ella chegar á altura – faltando-lhe as raízes, que somente os annos soem improvisar, restar-lhe-á apenas o epiphytismo das orchideas.
Tal a licção da natureza que faz com que a nossa turma não vos traga pela minha bocca a discussão de um thema scientifico, nem ponha nesta despedida these alguma de medicina applicada, que oscillaria, aliás, inevitavelmente, entre a parolagem incolor dos semidoutos e o plagio ingenuo dos compiladores.
Em seguida, evoca a origem medieval das solenidades universitárias:
Venho tão unicamente pedir a palavra de senha ao nosso Paranympho, nesta hora plena de emoção para nós outros, quando o incenso das bellas cousas velhas, desabrochando em nossa alma a flor do tradicionalismo, nos evoca Iena, a douta, e Salamanca, a inesquecível, emquanto o anel symbolico faz-nos sonhar com uma leva de Cavalleiros da Ordem da Esmeralda, que recebessem a investidura ante magica frontaria gothica, fenestrada de ogivas e ventanas e toda colorida de vitraes.
Dando continuidade ao discurso refere-se ao interesse do Prof. Samuel Libânio pelos problemas da gente brasileira:
E a sua sabia eloquencia discursará então, utile dulci, sobre assumptos da maior importancia e mais patente opportunidade, tanto mais que elle, o verdadeiro proágoro de hoje, que levou o seu microscopio de hygienista a quasi todos os estados do Brasil, conhece, melhor que ninguem, as necessidades da nossa gente infectada e as condições do nosso meio infectante.
Mais adiante, continua:
Ninguem entre nós, para bem de todos, representa os exemplares do medico commercializado, taylorizado, standardizado, aperfeiçoadissima machina mercantil de diagnosticos, ‘un industriel, un exploiteur de la vie et de la mort’, no dizer de Alfred Fouillé, para quem nada significam as dôres alheias, tal qual Chill, o abutre kiplinguiano, satisfeito no jangal faminto, por certo de que depressa todos lhe virão a servir de pasto.
Esses justificam a velha frase de Montaigne, ‘Science sans conscience est la ruine de l’âme’, hoje aposentada no archivo dos logares comuns, mas que de verdadeira se faria sublime, si se lhe intercallasse: ‘...et sans amour...’
Porque, dêm-lhe os nomes mais diversos, philantropia tolstoica, altruismo contista, humanitarismo de Kolcsey Ferencz, solidariedade classica ou beneficencia moderna, bondade natural ou caridade theologal, (quanto a nós preferimos chamar-lhe mais simplesmente espirito christão), esse é o sentimento que deverá presidir os nossos actos e orientar as agitações do que seremos amanhã, na vitalidade maxima da expressão, homens no meio dos homens.
Demo-nos por satisfeitos com o facultar-nos a profissão escolhida as melhores opportunidades de praticar a lei fundamental do Christianismo e, já que o mesmo Christo, sabedor das profundezas do egoismo humano, estigmatizou-o no ‘... como a ti mesmo’ do mandamento, ampliemos fóra de medida esse eu comparativo, fazendo com que elle integre em si toda a fraternidade soffredora do universo.
Também, a bondade diligente, a ‘charité efficace’, de Mamoz, será sempre a melhor collaboradora dos clinicos avisados.
De distincto patricio contam que, achando-se moribundo, gostava que os companheiros o abanassem. E a um deles, que se offerecera trazer-lhe modernissimo ventilador electrico, capaz de renovar-lhe continuamente o ar do aposento, respondeu, admiravel no esoterismo profissional e sublime na intuição de curador: ‘ – Obrigado; o que me allivia e conforta, não é o melhor arejamento do quarto, mas sim a solicita solidariedade dos meus amigos...’
Não será a capacidade de esquecer-se um pouquinho de si mesmo em beneficio de outrem (digo um pouquinho porque exigir mais seria platonizar esterilmente) que aureola certas personalidades, creando o iatra verdadeiro, o medico de confiança, o medico da familia?
Ao lado dos sacerdotes e dos estrangeiros, os medicos sempre alcançaram o record indesejavel de principaes personagens do anecdotario mundial.
Satiras, comedias e bufonices não os pouparam.
Era fatal. As anecdotas representam a maneira mais commoda das massas apedrejarem, no escuro do anonymato, os tabus que as constrangem com sua real ou pretensa superioridade.
E Molière, hostilizando durante toda a vida medicos e medicina com tremenda guerra de epigramas, não passou de um speaker genial e corajoso da vox populi do seu tempo.
Contudo, a nossa classe já não ocupa lugar tão destacado no florilegio da truaneria.
A causa? Parece-me simples.
É que as chufas dos Nicoeles não fazem ninguem mais se rir daquelles que se infectaram mortalmente aspirando as mucosidades de creancinhas diphtericas; é que a mordacidade dos Brillons não attinge agora a pleiade dos metralhados nos hospitaes de sangue, quando soccorriam amigos e inimigos; é porque, aos quatro ridiculos medicastros do ‘Amour Médecin’, com longas vestes doutoraes, attitudes hieraticas e palavreado abracadabrante, a nossa imaginação contrapõe involuntariamente os vultos dos sabios abnegados, que experimentaram nos proprios corpos, ‘in anima nobilissima’, os effeitos dos virus que não perdoam; é porque a cerimonia de Argan recebendo o titulo ao som do ‘dignus est intrare’ perde toda a sua hilaridade quando confrontada com a scena real de Pinel, do ‘citoyen Pinel’, arrostando a desconfiança e a ferocidade do Comité de Salvação Pública, para dar aos loucos de Bicêtre o direito de serem tratados como seres humanos!
Senhor, enche a minha alma de amor pela arte e por todas as creaturas. Sustenta a força do meu coração, para que esteja sempre prompto a servir ao pobre e ao rico, ao amigo e ao inimigo, ao bondoso e ao malvado. E faz com que eu não veja sinão o humano, naquelle que soffre!...
E terminando:
Quero apenas repetir convosco, nesta ultima revista de aquem-Rubicão, um velho proverbio slovaco, em que clarinam sustenidos marciaes de encorajamento, mostrando a confiança do auxilio divino e nas forças da natureza:
‘Kdyz je nouze nejvissi, pomoc byva nejblissi!’ (Quando mais terrível é o desespero, é que o socorro já vem perto!).
E, quanto a vós, caro Padrinho, ao apresentar-vos os agradecimentos e as despedidas dos meus collegas, eu lamento não poderem falar-vos todos elles a um tempo, para que sentisseis, na prata das suas vozes, o oiro de seus corações.
Guimarães Rosa vai exercer a profissão em Itaguara, pequena cidade que pertencia ao município de Itaúna (MG), onde permanece cerca de dois anos. Relaciona-se com a comunidade, até mesmo com raizeiros e receitadores, reconhecendo sua importância no atendimento aos pobres e marginalizados, a ponto de se tornar grande amigo de um deles, de nome Manoel Rodrigues de Carvalho, mais conhecido por "seu Nequinha", que morava num grotão enfurnado entre morros, num lugar conhecido por Sarandi. Seu Nequinha era adepto do espiritismo e parece ter inspirado a extraordinária figura do Compadre meu Quelemém, espécie de oráculo sertanejo, personagem do Grande Sertão: Veredas. Ademais, consta que o Dr. Rosa cobrava as visitas que fazia, como médico, pelas distâncias que, a cavalo, tinha de percorrer. No conto Duelo, de Sagarana, o diálogo entre os personagens Cassiano Gomes e Timpim Vinte-e-Um testemunha esse critério – comum entre os médicos que exerciam seu ofício na zona rural – de condicionar o montante da remuneração a ser recebida à distância percorrida para visitar o doente.
Cassiano perguntou:
– Me diz uma coisa, Vinte-e-Um: nas Abóboras tem doutor?
– Tem sim, mas em-antes não tivesse, meu Deus!... Como é que eu, que não sou dono de nada nesta vida, hei de poder pagar seu doutor-médico a trinta mil réis a légua pr’a ele querer vir até cá?!... Já mandei buscar receita-de-informação, e, o resto do cobrinho que o senhor me deu, eu gastei tudo nas meizinhas de botica...
Semelhante critério aplicava-o, também, o Dr. Mimoso a seu ajudante-de-ordens Jimirulino, protagonista do conto – Uai, eu?, de Tutaméia.
Assim a gente vinha, e ia, a essas fazendas, por doentes e adoecidos. Me pagava mais, gratificado, por léguas daquelas, às-usadas. Ele, desarmado, a não ser as antes idéias. Eu – a prumo. Mais meu revólver e o fino punhal. De cotovelo e antebraço, um homem pode dispor. Sou da laia leal. Então, homem que vale por dois não precisa de estar prevenido?"
Segundo depoimento de sua filha Vilma, a extrema sensibilidade do pai, aliada ao sentimento de impotência diante dos males e das dores do mundo (tanto mais quanto os recursos de que dispunha um médico do interior há meio século eram por demais escassos), acabariam por afastá-lo da Medicina.
Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma - que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas.
Aliás, foi justamente em Itaguara, localidade desprovida até mesmo de luz elétrica, que o futuro escritor se viu obrigado a assistir o parto da própria esposa por ocasião do nascimento de Vilma. Isso porque o farmacêutico de Itaguara, Ary de Lima Coutinho, e seu irmão, médico em Itaúna, Antônio Augusto de Lima Coutinho, chamados com urgência pelo aflito Dr. Rosa, só chegaram quando tudo já estava resolvido. É ainda Vilma quem relata que sua mãe chegou a se esquecer das contrações para apenas se preocupar com o marido – um médico que chorava convulsivamente!
Outra ocorrência curiosa, contada por antigos moradores de Itaguara, diz respeito à atitude do Dr. Rosa quando da chegada de um grupo de ciganos àquela cidade. Valendo-se da ajuda de um amigo, que fazia as vezes de intermediário, o jovem médico procurou aproximar-se daquela gente estranha; uma vez conseguida a almejada aproximação, passava horas envolvido em conversa com os "calões" na "língua disgramada que eles falam", como diria, mais tarde, Manuel Fulô, protagonista do conto Corpo fechado, de Sagarana, que resolveu "viajar no meio da ciganada, por amor de aprender as mamparras lá deles". Também nos contos Faraó e a água do rio, O outro ou o outro e Zingaresca, todos do livro Tutaméia, Guimarães Rosa refere-se com especial carinho a essa gente errante, com seu peculiar modus vivendi, seu temperamento artístico, sua magia, suas artimanhas e negociatas.
Do conto Zingaresca, recolhe-se um fragmento exemplar, falando dos ciganos:
Sobrando por enquanto sossego no sítio do dono novo Zepaz, rumo a rumo com o Re-curral e a Água-boa, semelhantes diversas sortes de pessoas, de contrários lados, iam acudir àquela parte.
A boiada, do norte.
Antes, porém, os ciganos, de roupagem e de linguagem, tribo de gente e a tropa cavalar. Zepaz se irou, ranhou pigarro. Mas esses citavam licença, o ciganão Vai-e-Volta, primaz, sacou um escrito, do antigo sitiante. Tinham alugado ali uma árvore! – o que confirmou o preto Mozart, servo morador: dês que sepultado debaixo do oiti um deles, só para sinalarem onde, ou com figuração pagã, por crerem em espíritos e nas fadas; e pago o preto Mozart para, durado de semana, verter goles de vinho na cova.
Guimarães Rosa, durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalha como voluntário na Força Pública. Posteriormente, efetiva-se, por concurso. Em 1933, vai para Barbacena na qualidade de Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria. Segundo depoimento de Mário Palmério, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, o quartel pouco exigia de Guimarães Rosa – "quase que somente a revista médica rotineira, sem mais as dificultosas viagens a cavalo que eram o pão nosso da clínica em Itaguara, e solenidade ou outra, em dia cívico, quando o escolhiam para orador da corporação". Assim, sobrava-lhe tempo para dedicar-se com maior afinco ao estudo de idiomas estrangeiros; ademais, no convívio com velhos milicianos e nas demoradas pesquisas que fazia nos arquivos do quartel, o escritor teria obtido valiosas informações sobre o jaguncismo barranqueiro que até por volta de 1930 existiu na região do Rio São Francisco.
Um amigo do escritor, impressionado com sua cultura e erudição, e, particularmente, com seu notável conhecimento de línguas estrangeiras, lembrou-lhe a possibilidade de prestar concurso para o Itamarati, conseguindo entusiasmá-lo. O então Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, após alguns preparativos, seguiu para o Rio de Janeiro onde prestou concurso para o Ministério do Exterior, obtendo o segundo lugar. Por essa ocasião, aliás, já era por demais evidente sua falta de "vocação" para o exercício da Medicina, conforme ele próprio confidenciou a seu colega Dr. Pedro Moreira Barbosa, em carta datada de 20 de março de 1934:
Não nasci para isso, penso. Não é esta, digo como dizia Don Juan, sempre 'après avoir couché avec...’ Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol.
Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas Magma recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de "Viator", concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado Contos, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em Sagarana, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira.
Diga-se de passagem que em entrevista concedida a Günter Lorenz (veja a entrevista após a biografia), Guimarães Rosa lança alguma luz sobre o provável motivo de seu comportamento em relação ao livro em questão, ao lhe dizer em tom confidencial:
Meu começo, foram poesias (...) escrevi um volume nada pequeno de poesias que foram até elogiadas, e que me proporcionaram louvor. Mas aí, eu, quase diria felizmente, comecei a ser absorvido pela minha profissão: eu viajei no mundo, conheci muita coisa, aprendi línguas, acolhi tudo isso em mim, mas não pude mais escrever. Assim se passaram 10 anos até eu poder dedicar-me de novo à literatura. E quando eu revi, então, meus exercícios líricos, achei-os na verdade não ruins de todo, mas também não particularmente convincentes. Sobretudo descobri que a poesia profissional que a gente tem de lançar mão nos poemas pode ser a morte da verdadeira poesia. Por isso eu me voltei para a lenda heróica, o conto fabuloso, a estória simples. Por que isso são coisas que a vida escreve, não a legalidade das chamadas regras poéticas. Então, eu me sentei e comecei a escrever Sagarana.
Em 1938, Guimarães Rosa é nomeado Cônsul Adjunto em Hamburgo, e segue para a Europa; lá fica conhecendo Aracy Moebius de Carvalho (Ara), que viria a ser sua segunda mulher. Durante a guerra, por várias vezes escapou da morte; ao voltar para casa, uma noite, só encontrou escombros. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar.
Embora consciente dos perigos que enfrentava, protegeu e facilitou a fuga de judeus perseguidos pelo Nazismo; nessa empresa, contou com a ajuda da mulher, D. Aracy. Em reconhecimento a essa atitude, o diplomata e sua mulher foram homenageados em Israel, em abril de 1985, com a mais alta distinção que os judeus prestam a estrangeiros: o nome do casal foi dado a um bosque que fica ao longo das encostas que dão acesso a Jerusalém. Foi a forma encontrada pelo governo israelense para expressar sua gratidão àqueles que se arriscaram para salvar judeus perseguidos pelo Nazismo por ocasião da 2ª Guerra Mundial.
Segundo D. Aracy, que compareceu a Israel por ocasião da homenagem, seu marido sempre se absteve de comentar o assunto já que tinha muito pudor de falar de si mesmo. Apenas dizia: "Se eu não lhes der o visto, vão acabar morrendo; e aí vou ter um peso em minha consciência." A concessão da homenagem foi precedida por pesquisas rigorosas com tomada de depoimentos dos mais distantes cantos do mundo onde existem sobreviventes do Holocausto.
Com efeito, Guimarães Rosa, na qualidade de cônsul adjunto em Hamburgo, concedia vistos nos passaportes dos judeus, facilitando sua fuga para o Brasil. Os vistos eram proibidos pelo governo brasileiro e pelas autoridades nazistas, exceto quando o passaporte mencionava que o portador era católico. Sabendo disso, a mulher do escritor, D. Aracy, que preparava todos os papéis, conseguia que os passaportes fossem confeccionados sem mencionar a religião do portador e sem a estrela de Davi que os nazistas pregavam nos documentos para identificar os judeus. Nos arquivos do Museu do Holocausto, em Israel, existe um grosso volume de depoimentos de pessoas que afirmam dever a vida ao casal Guimarães Rosa.
Em 1942, quando o Brasil rompe com a Alemanha, Guimarães Rosa é internado em Baden-Baden, juntamente com outros compatriotas, entre os quais se encontrava o pintor pernambucano Cícero Dias, Ficam retidos durante 4 meses e são libertados em troca de diplomatas alemães. Retornando ao Brasil, após rápida passagem pelo Rio de Janeiro, o escritor segue para Bogotá, como Secretário da Embaixada, lá permanecendo até 1944. Sua estada na capital colombiana, fundada em 1538 e situada a uma altitude de 2.600 m, inspirou-lhe o conto Páramo, de cunho autobiográfico, que faz parte do livro póstumo Estas Estórias. O conto se refere à experiência de "morte parcial" vivida pelo protagonista (provavelmente o próprio autor), experiência essa induzida pela solidão, pela saudade dos seus, pelo frio, pela umidade e particularmente pela asfixia resultante da rarefação do ar (soroche – o mal das alturas). Sobre a constrangedora impressão que lhe causava a capital andina, o escritor assim se expressa:
Aconteceu que um homem, ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta, vai em muitos anos, se viu chegado ao degredo em cidade estrangeira. Era uma cidade velha, colonial, de vetusta época, e triste, talvez a mais triste de todas, sempre chuvosa e adversa, em hirtas alturas, numa altiplanície na cordilheira, próxima às nuvens, castigada pelo inverno, uma das capitais mais elevadas do mundo. Lá, no hostil espaço, o ar era extenuado e raro, os sinos marcavam as horas no abismático, como falsas paradas do tempo, para abrir lástimas, e os discordiosos rumores humanos apenas realçavam o grande silêncio, um silêncio também morto como se mesmo feito da matéria desmedida das montanhas.
Por lá, rodeados de difusa névoa sombria, altas cinzas, andava um povo de cimérios. Iam, por calhes e vielas, de casas baixas, de um só pavimento, de telhados desiguais, com beirais sombrios, casas em negro e ocre, ou grandes solares, edifícios claustreados, vivendas com varandal à frente, com adufas nas janelas, rexas, gradis de ferro, rótulas mouriscas, mirantes, balcões e altos muros com portinholas, além dos quais se vislumbravam os pátios empedrados, ou, por lúgubres postigos ou por alguma porta deixada aberta, entreviam-se corredores estreitos e escuros, crucifixos, móveis arcaicos. Toda uma pátina sombria. Passavam homens abaçanados e agudos, em roupas escuras, soturnas fisionomias, e velhas de mantilhas negras, ou mulheres índias, descalças, com sombreiros, embiocadas em xales escuros (pañolones), caindo em franjas. E os arredores se povoavam, à guisa de ciprestes, de filas negras de eucaliptos, absurdos, com sua graveolência, com cheiro de sarcófago.
Em dezembro de 1945 o escritor retornou à terra natal depois de longa ausência. Dirigiu-se, inicialmente, à Fazenda Três Barras, em Paraopeba, berço da família Guimarães, então pertencente a seu amigo Dr. Pedro Barbosa e, depois, a cavalo, rumou para Cordisburgo, onde se hospedou no tradicional Argentina Hotel, mais conhecido por Hotel da Nhatina. Nessa oportunidade esteve na casa do Cel. Geraldino Rocha, chefe político e comerciante em Cordisburgo, jogou uma partida de xadrez com o dono da casa (como a partida demorasse muito propôs, diplomaticamente, que fosse decretado o empate), saboreou um licor de jabuticaba e proseou longamente com Cristóvão Rocha, um dos filhos do Cel. Geraldino, que também manifestava pendores literários e que escrevera um belo poema intitulado Gruta de Maquiné. Na crônica-reminiscência intitulada Dois soldadinhos mineiros, contida no livro póstumo Ave, Palavra, o escritor se refere a sua estada na fazenda Três Barras, numa manhã chuvosa do mês de dezembro de 1945. E relembra:
Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi dos meus...
... a casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita fábrica. Para o convés – que é a varanda – sobem-se os degraus de pau de alta escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino; que tocavam para chamar os escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só havia os camaradas, que, à noitinha, se sentavam quietos, na varanda, nos longos bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira.
Em 1946, Guimarães Rosa é nomeado chefe-de-gabinete do ministro João Neves da Fontoura e vai a Paris como membro da delegação à Conferência de Paz.
Em 1948, o escritor está novamente em Bogotá como Secretário-Geral da delegação brasileira à IX Conferência Inter-Americana; durante a realização do evento ocorre o assassinato político do prestigioso líder popular Jorge Eliécer Gaitán, fundador do partido Unión Nacional Izquierdista Revolucionaria, de curta mas decisiva duração.
De 1948 a 1950, o escritor encontra-se de novo em Paris, respectivamente como 1º Secretário e Conselheiro da Embaixada. Em 1951, de volta ao Brasil, é novamente nomeado Chefe de Gabinete de João Neves da Fontoura. Em 1953 torna-se Chefe da Divisão de Orçamento e em 1958 é promovido a Ministro de Primeira Classe (cargo correspondente a Embaixador). Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.
Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 1951. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: Com o vaqueiro Mariano. Segundo depoimento do próprio Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias...
Em 1952, Guimarães Rosa retorna aos seus "gerais" e participa, juntamente com um grupo de vaqueiros, de uma longa viagem pelo sertão; o objetivo da viagem era levar uma boiada da Fazenda da Sirga (município de Três Marias), de propriedade de Chico Moreira, amigo do escritor, até a Fazenda São Francisco, em Araçaí, localidade vizinha de Cordisburgo, num percurso de 40 léguas. A viagem propriamente dita dura 10 dias, dela participando Manuel Narde, vulgo Manuelzão, falecido em 5 de maio de 1997, protagonista da novela Uma estória de amor, incluída no volume Manuelzão e Miguilim. Segundo depoimento do próprio Manuelzão, durante os dias que passou no sertão, Guimarães Rosa pedia notícia de tudo e tudo anotava – "ele perguntava mais que padre" –, tendo consumido "mais de 50 cadernos de espiral, daqueles grandes", com anotações sobre a flora, a fauna e a gente sertaneja – usos, costumes, crenças, linguagem, superstições, versos, anedotas, canções, casos, estórias... A curiosidade inesgotável demonstrada pelo escritor durante essa famosa viagem, aproxima-o dos naturalistas europeus que percorreram o Brasil no século passado e o redescobriram, como é o caso, p. ex., do dinamarquês Peter Wilhelm Lund – "o pai da paleontologia brasileira" – e do extraordinário botânico francês Auguste de Saint-Hilaire. A propósito, o próprio Guimarães Rosa prestou carinhosa homenagem a esses estudiosos ao criar a figura ímpar de "seu Alquiste", ou "Olquiste", que aparece no conto O recado do morro, cuja trama se desenrola, toda ela, em Cordisburgo e arredores:
Seguindo-o, a cavalo, três patrões, entrajados e de limpo aspecto, gente de pessoa. Um, de fora, a quem tratavam por seu Alquiste ou Olquiste – espigo, alemão-rana, com raro cabelim barba-de-milho e cara de barata descascada. O sol faiscava-lhe nos aros dos óculos, mas, tirados os óculos, de grossas lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul, inocente e terno, que até por si semblava rir, aos poucos se acostumando com a forte luz daqueles altos. Calçava botas cor de chocolate, de um novo feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-pó de linho, para verde; traspassava a tiracol as correias da codaque e do binóculo; na cabeça um chapéu-de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na roça. Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto enxergava dava um mesmo engraçado valor: fosse uma pedrinha, uma pedra, um cipó, uma terra de barranco, um passarinho a tôa, uma moita de carrapicho, um ninhol de vespos."
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo não se governava bem.Tomava nota, escrevia, na caderneta: a caso tirava retratos.
Colhia, com duas mãos, a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, João-da-costa, unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú. Uma hora, revirou a correr atrás, agachado, feito pegador de galinha, tropeçando no bamburral e espichando tombo, só por ter percebido de relance, inho e zinho, fugido no balango de entre as moitas, o orobó de um nhambu.
Saudou, em beira de capão, um tamanduá longo, saído em seu giro incerto; se não o segurassem, ia lá, aceitava o abraço?
Em ensaio crítico sobre Corpo de Baile, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada Campo Geral, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.
CORPO DE BAILE, a partir da 3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo próprio Rosa, com um curioso recado: "dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra". Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros.
"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?"
Dez anos depois da publicação de Sagarana, Guimarães Rosa comparece novamente no cenário da literatura brasileira com as novelas de Corpo de Baile – longos poemas em prosa, de feição barroca –, 13 em dois volumes (824 páginas). A partir da 3ª edição o livro se desdobra em três volumes autônomos, figurando Corpo de Baile como subtítulo; os três volumes são, respectivamente, Manuelzão e Miguilim, no Urubùquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. Nesse mesmo ano é lançada a 4ª edição de Sagarana (em sua versão definitiva), com ilustrações de Poty. Para surpresa geral, ainda em 1956, no mês de maio, Guimarães Rosa apresenta o romance Grande Sertão: Veredas, causando enorme impacto; devido, sobretudo, às inovações formais, a crítica e os leitores se dividem entre louvações apaixonadas e ataques ferozes. O fato é que ninguém lhe fica indiferente.
Enquanto alguns colocam o livro no pináculo da criação literária nacional, outros não conseguem ir além das primeiras páginas, considerando-o "um matagal indevassável". Em matéria publicada na revista Leitura (outubro, 1958) e intitulada Escritores que não conseguem ler Grande Sertão: Veredas, o poeta Ferreira Gullar alegou que não conseguira ir além das 70 primeiras páginas do romance o qual, a essa altura, começou a lhe parecer "uma história de cangaço contada para lingüistas". Por sua vez o escritor baiano Adonias Filho, também ouvido na ocasião, afirmou: "A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui um equívoco literário que necessita ser imediatamente desfeito." Passadas quatro décadas da publicação do livro, a razão parecia estar mesmo com Afonso Arinos de Melo Franco que, já em 1957, "no calor da hora", sentindo o cheiro de obra-prima, advertia, mineiramente:
Cuidado com este livro, pois Grande Sertão: Veredas é como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos, não é luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas.
A partir de o Corpo de Baile, a obra de Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão: Veredas, lançado em maio de 56. O terceiro livro de Guimarães Rosa, uma narrativa épica que se estende por 600 páginas, focaliza numa nova dimensão, o ambiente e a gente rude do sertão mineiro. Grande Sertão: Veredas reflete um autor de extraordinária capacidade de transmissão do seu mundo, e foi resultado de um período de dois anos de gestação e parto. A história do amor proibido de Riobaldo, o narrador, por Diadorim é o centro da narrativa. Para Renard Perez, autor de um ensaio sobre Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, além da técnica e da linguagem surpreendentes, deve-se destacar o poder de criação do romancista, e sua aguda análise dos conflitos psicológicos presentes na história.
O lançamento de Grande Sertão: Veredas causa grande impacto no cenário literário brasileiro. O livro é traduzido para diversas línguas e seu sucesso deve-se, sobretudo, às inovações formais. Crítica e público dividem-se entre louvores apaixonados e ataques ferozes. Torna-se um sucesso comercial, além de receber três prêmios nacionais: o Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro; o Carmen Dolores Barbosa, de São Paulo; e o Paula Brito, do Rio de Janeiro. A publicação faz com que Guimarães Rosa seja considerado uma figura singular no panorama da literatura moderna, tornando-se um "caso" nacional. Ele encabeça a lista tríplice, composta ainda por Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, como os melhores romancistas da terceira geração modernista brasileira.
Em 1958, no começo de junho, Guimarães Rosa viaja para Brasília, e escreve para os pais:
Em começo de junho estive em Brasília, pela segunda vez lá passei uns dias. O clima da nova capital é simplesmente delicioso, tanto no inverno quanto no verão. E os trabalhos de construção se adiantam num ritmo e entusiasmo inacreditáveis: parece coisa de russos ou de norte-americanos"... "Mas eu acordava cada manhã para assistir ao nascer do sol e ver um enorme tucano colorido, belíssimo, que vinha, pelo relógio, às 6 hs 15’, comer frutinhas, durante 10’, na copa da alta árvore pegada à casa, uma ‘tucaneira’, como por lá dizem. As chegadas e saídas desse tucano foram uma das cenas mais bonitas e inesquecíveis de minha vida.
A partir de 1958, Guimarães Rosa começa a apresentar problemas de saúde e estes seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo, tanto mais quanto, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Era um tabagista contumaz e embora afirme ter abandonado o hábito, em carta dirigida ao amigo Paulo Dantas em dezembro de 1957, na foto tirada em 1966, quando recebia do governador Israel Pinheiro a Medalha da Inconfidência, aparece com um cigarro na mão esquerda. A propósito, na referida carta, o escritor chega mesmo a admitir, explicitamente, sua dependência da nicotina:
... também estive mesmo doente, com apertos de alergia nas vias respiratórias; daí, tive de deixar de fumar (coisa tenebrosa!) e, até hoje (cabo de 34 dias!), a falta de fumar me bota vazio, vago, incapaz de escrever cartas, só no inerte letargo árido dessas fases de desintoxicação. Oh coisa feroz. Enfim, hoje, por causa do Natal chegando e de mais mil-e-tantos motivos, aqui estou eu, heróico e pujante, desafiando a fome-e-sede tabágica das pobrezinhas das células cerebrais. Não repare.
É importante frisar também que, coincidindo com os distúrbios cardiovasculares que se evidenciaram a partir de 1958, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria – "... the nothingness of matter and the allness of spirit" –, negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte.
Ainda que não publicasse nada até 1962, o interesse e o respeito pela obra rosiana só aumentavam, em relação à crítica e ao público. Unanimidade, o escritor recebe, em 1961, o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Ele começa a obter reconhecimento no exterior.
Em janeiro de 1962, assume a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras, cargo que exerceria com especial empenho, tendo tomado parte ativa em momentosos casos como os do Pico da Neblina (1965) e das Sete Quedas (1966). Em 1969, em homenagem ao seu desempenho como diplomata, seu nome é dado ao pico culminante (2.150 m) da Cordilheira Curupira, situado na fronteira Brasil/Venezuela. O nome de Guimarães Rosa foi sugerido pelo Chanceler Mário Gibson Barbosa, como um reconhecimento do Itamarati àquele que, durante vários anos, foi o chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras da Chancelaria Brasileira.
Após outro longo período de silêncio, Guimarães Rosa reaparece em 1962 justamente com Primeiras Estórias, uma coletânea de 21 pequenos contos. É um livro sem a vastidão e o caráter sinfônico de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, embora estejam presentes, e talvez em grau até mais acentuado, aquelas surpreendentes pesquisas formais. Em carta dirigida ao tradutor J. J. Villard, assim se expressa o escritor a respeito do novo livro (o qual chamava, carinhosamente, de "o amarelinho", numa referência à cor da capa da edição da Livraria José Olympio Editora):
Só aparentemente e enganosamente é que ele se finge de simples e livrinho singelo. Muito mais que uma coleção de estórias místicas, Primeiras Estórias é, e pretende ser, um manual de metafísica, e uma série de poemas modernos. Quase cada palavra nele assume pluralidade de direções e sentidos. Tem de ser tomado de um ângulo poético, anti-racionalista e anti-realista.
Acredita-se que o autor tenha escolhido tanto o formato quanto a temática do novo livro após os distúrbios cardiovasculares de que foi vítima a partir de 1958 e a inevitável crise existencial que se seguiu. Assim, 1958 seria um marco, um divisor de águas; teria havido, a partir de então, uma mudança de perspectiva por parte do escritor que, vendo a saúde periclitar, não mais se permitiu elaborar projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas.
Em maio de 1963, Guimarães Rosa candidata-se pela segunda vez à Academia Brasileira de Letras (a primeira fora em 1957, quando obtivera apenas 10 votos), na vaga deixada por João Neves da Fontoura. A eleição dá-se a 8 de agosto e desta vez é eleito por unanimidade. Mas não é marcada a data da posse, adiada sine die, somente acontecendo quatro anos depois, no dia 16 de novembro de 1967.
Em janeiro de 1965, participa do Congresso de Escritores Latino-Americanos, em Gênova. Como resultado do congresso ficou constituída a Primeira Sociedade de Escritores Latino-Americanos, da qual o próprio Guimarães Rosa e o guatemalteco Miguel Angel Asturias (que em 1967 receberia o Prêmio Nobel de Literatura) foram eleitos vice-presidentes. Durante a realização do referido congresso, Guimarães Rosa, contrariando seus hábitos, concede uma longa entrevista ao alemão Günter Lorenz, durante a qual fala longamente sobre sua obra, sua relação com a língua, sua visão-de-mundo. Até então, sempre que era instado a prestar depoimentos ou conceder entrevistas, remetia o interlocutor a seus textos, à "conversa manuscrita". A entrevista foi publicada como parte de um livro de Lorenz – Dialog mit Lateinamerika, Tubingen e Basiléia, 1970 –, sendo posteriormente traduzida para o português e transcrita no Suplemento Literário do Minas Gerais de 23/3/1974. A linguagem da entrevista (ou melhor, da conversa, como queria Rosa) é rica em paradoxos e imagens e cheia de humor e ironia: o escritor se compara, por exemplo, a certa altura, com um jacaré do Rio São Francisco... Na opinião de Willi Bolle (Guimarães Rosa – artigo de exportação. Humboldt 30:93-99, 1974), o ficcionista:
atrai o interlocutor ao terreno das metáforas, dos paradoxos e das ambigüidades, que conhece como poucos e que lhe servem de camuflagem e proteção. Pode ser considerado então uma pessoa estranha, e alimenta tal imagem, na medida em que isso seja equivalente a ‘profundo’, ‘misterioso’, ‘insondável’. Não quer fornecer esclarecimentos – o que, de fato, é um trabalho que a crítica tem que fazer –, mas indica a perspectiva em que ela deve vê-lo: como feiticeiro da linguagem, como autor metafísico ou como a esfinge da literatura brasileira, diante da qual se reúnem os críticos para solucionar enigmas.
Em abril de 1967, Guimarães Rosa vai ao México na qualidade de representante do Brasil no I Congresso Latino-Americano de Escritores, no qual atua como vice-presidente. Na volta é convidado a fazer parte, juntamente com Jorge Amado e Antônio Olinto, do júri do II Concurso Nacional de Romance Walmap que, pelo valor material do prêmio, é o mais importante do país.
No meio do ano, publica seu último livro, também uma coletânea de contos, Tutaméia. Nova efervescência no meio literário, novo êxito de público. Tutaméia, obra aparentemente hermética, divide a crítica. Uns vêem o livro como "a bomba atômica da literatura brasileira"; outros consideram que em suas páginas encontra-se a "chave estilística da obra de Guimarães Rosa, um resumo didático de sua criação".
Logo após a publicação de Tutaméia, Guimarães Rosa concede uma entrevista a alunos do Colégio Pedro II do Rio de Janeiro, permitindo que a mesma seja gravada. Mostra-se descontraído e inteiramente à vontade, dá risadas e faz os jovens rirem muito mercê de seu inegável senso de humor. Durante a entrevista, tece comentários a respeito dos assuntos os mais diversos, variando da mini-saia, que considerava "uma gracinha", à bomba atômica. Diz-se torcedor do Fluminense F. C., no Rio de Janeiro, e afirma "adorar" música de carnaval, chegando mesmo a cantarolar um verso do samba Não tenho lágrimas, de autoria de Max Bulhões e Milton de Oliveira (gravação original de Patrício Teixeira), gravado para o carnaval de 1938; ademais, confidencia aos estudantes que cultivava o hábito de manter o rádio ligado enquanto escrevia e que o referido samba era muito tocado enquanto preparava a versão primeira de Sagarana. Perguntado a respeito do comportamento atual da mulher e se esse comportamento estaria em desacordo com a condição feminina, admite que não, afirmando que "antigamente havia um exagero, o homem era homem demais e a mulher era mulher demais".15 Indagado se já teria tido muitas desilusões, responde que não e completa: "Acho que a verdade é mais deslumbrante e feérica que qualquer ilusão. Cada porta que se fecha é outra melhor que se abre. É imediato. Sempre tive a capacidade de sentir o valor da pele nova debaixo da pele velha que cai." Instado a emitir um conceito sobre a vida, lembra que seus livros estão cheios desses conceitos, destacando uma frase do conto Lá, nas campinas, de Tutaméia, que diz: "Viver é obrigação sempre imediata". Elogia as gerações jovens, que considerava cada vez mais vivas e inteligentes, confessando que ficava particularmente feliz quando os jovens gostavam de seus livros. Depois de afirmar que "estamos entrando na era da sinceridade", referindo-se às gerações moças, termina a entrevista contando, a pedido dos estudantes, uma piada que julgou apropriada para a ocasião e que pode ser assim resumida: três grandes sábios discutiam os assuntos mais importantes sobre a vida, a realidade, a metafísica etc.; estavam todos dentro de um barril grande, o maior que acharam; de repente, aproximou-se um garoto rolando um arco de barril, veio correndo, esbarrou e virou o barril, e os sábios ficaram inteiramente atordoados e perdidos, sem saber o que estava acontecendo...
Três dias antes da morte o autor decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu."
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. O autor, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo.
A posse na Academia Brasileira de Letras ocorreu na noite de 16 de novembro de 1967.
No início de sua oração, o novo acadêmico refere-se com grande ternura à terra natal e ao fato de o amigo João Neves tratá-lo, na intimidade, por "Cordisburgo":
Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘Os pastos de Vista Alegre’. Santo, um ‘Padre-Mestre’, o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha sido talvez seu único gesto desengajado, gratuito. Tomada da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo, naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou ‘O Burgo do Coração’. Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supraordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.
Mas por Cordisburgo, igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, JOÃO NEVES DA FONTOURA. – ‘Vamos ver o que diz Cordisburgo...’ – com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, ‘no coração do Rio Grande do Sul’.
Já quase ao final do discurso, destaca-se um trecho de pungente beleza, em que fala sobre a fé e a amizade:
João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: – ‘A vida é inimiga da fé...’ – apenas; ei-lo, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que ‘a ação é um enfraquecimento da contemplação’; e assim Camus, que ‘viver é o contrário de amar’. Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.
Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: – ‘Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim...’ Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade – impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante e mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento.
E Guimarães Rosa termina, referindo-se à Morte e à morte do amigo que, se vivo, completaria 80 anos, naquela data; invocando o Bhagavad Gita (o canto do bem-aventurado), ele que já se confessara, em carta ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, "impregnado de hinduísmo"; repetindo a frase "as pessoas não morrem, ficam encantadas", que pronunciara pela primeira vez em 1926, diante do ataúde do desventurado estudante Oseas, vitimado pela febre amarela; referindo-se ao buriti (Mauritia vinifera), quase um personagem em sua obra, o majestoso habitante das veredas – cognominado "a palmeira de Deus" –, hoje em processo de extinção mercê do instinto predatório de inescrupulosos que visam o lucro a qualquer preço; e, finalmente, apresentando-se a João Neves como "Cordisburgo", última palavra pública que pronunciou:
Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.
Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.
Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?
‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: João Neves da Fontoura.
Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.
Soprem-se as oitenta velinhas.
Mas eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita. O mundo é mágico.
— Ministro, está aqui Cordisburgo.
Quando se ouve a gravação do discurso de Guimarães Rosa nota-se, claramente, ao final do mesmo, sua voz embargada pela emoção – era como se chorasse por dentro. É possível que o novo acadêmico tivesse plena consciência de que chegara sua HORA e sua VEZ. Com efeito, três dias após a posse, em 19-XI-1967, ele morreria subitamente em seu apartamento em Copacabana, sozinho (a esposa fora à missa), mal tendo tempo de chamar por socorro. Na segunda-feira, dia 20, o Jornal da Tarde, de São Paulo, estamparia em sua primeira página uma enorme manchete com os dizeres: "MORRE O MAIOR ESCRITOR".
Desconfio que sou um individualista feroz, mas disciplinadíssimo. Com aversão ao histórico, ao político, ao sociológico. Acho que a vida neste planeta é caos, queda, desordem essencial, irremediável aqui, tudo fora de foco. (Guimarães Rosa)
Em 1985, milhões de telespectadores, em todo o Brasil, tiveram acesso a um seriado baseado no livro, levado ao ar pela Rede Globo de Televisão entre 18 de novembro e 20 de dezembro, num total de 25 capítulos; a direção foi de Walter Avancini que, sem dúvida, deu uma demonstração de coragem e obstinação ao enfrentar tamanho desafio. O seriado foi considerado por muitos como o momento mais elevado da teledramaturgia brasileira. Outros limitaram-se a considerá-lo um marco, ainda que debatível. Numa análise dentro do possível desapaixonada conclui-se que o saldo do empreendimento foi positivo, com passagens de grande força dramática e de rara beleza cênica, destacando-se, à guisa de exemplo, a travessia do arraial do Sucruiú dizimado pela bexiga preta (capítulo 17) – uma travessia que, nas palavras de Riobaldo, durou "só um instantezinho enorme" –, vendo-se as fogueiras ardendo em frente às casas, os doentes desfigurados, os ratos, os jagunços a recitar contritos o Pai-Nosso para exorcizar o mal e, sobretudo, a mulher ensandecida a entoar rezas no meio da rua. Não obstante, o seriado mostrou pontos criticáveis a começar pelo vestuário de cangaceiro nordestino exibido pelos jagunços e pela pronúncia (por vezes ridícula, caricata) de boa parte dos personagens (incluídos muitos dos personagens principais e o próprio narrador) que tentaram mas não conseguiram falar ao modo dos homens e mulheres dos gerais. Pelo contrário, o que se ouviu foi, não raramente, uma fala de caipira paulista entrecortada, vez por outra (e o caso de Otacília, representada pela atriz Ana Helena Berenguer, é exemplar), por pitadas de fala carioca (palatalização da fricativa alveolar surda /s/ que adquire o som de /j/ ou de /x/). Talvez por isso mesmo, muitos dos momentos de maior autenticidade do seriado correram por conta dos coadjuvantes, representados por gente da terra; a propósito, ao saber que muitos deles não eram atores, o diretor de teatro Amir Haddad surpreendeu-se e afirmou: "Então fico com o Pasolini, que preferia os não-atores..." Acrescente-se, ainda, o grave equívoco da cena final quando, coincidindo com a derradeira menção do manuelzinho-da-crôa, surge a atriz Bruna Lombardi (que fez o papel de Diadorim) dando liberdade a um passarinho inteiramente diverso, da ordem Passeriformes.
Ora, o manuelzinho-da-crôa (Charadrius collaris), ave não-Passeriforme da família Charadriidae, vive sempre em casal e pode ser visto como um símbolo da fidelidade conjugal, donde sua importância no contexto do romance dada a forte relação afetiva existente entre Diadorim e Riobaldo, relação essa que pelas emoções que mobiliza tem muitas das características de uma verdadeira relação conjugal, a começar pela exigência de exclusividade por parte de Diadorim. É preciso não esquecer que, na obra rosiana, os menores detalhes são fortemente carregados de significação como, aliás, adverte o próprio Riobaldo-Rosa no Grande Sertão: Veredas: "Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa."
BIBLIOGRAFIA:
- Magma (1936), poemas. Não chegou a publicá-los.
- Sagarana (1946), contos e novelas regionalistas. Livro de estréia.
- Com o vaqueiro Mariano (1947)
- Corpo de Baile (1956), novelas. (Atualmente publicado em três partes:
- Manuelzão e Miguilim, - No Urubuquaquá, no Pinhém e - Noites do sertão.)
- Grande Sertão: Veredas (1956), romance.
- Primeiras estórias (1962), contos.
- Tutaméia:Terceiras estórias (1967), contos.
- Estas estórias (1969), contos. Obra póstuma.
- Ave, palavra (1970) diversos. Obra póstuma.
Bibliografia sobre o Autor:
Bosi, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
Faraco, C.E. & Moura, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
Holzemayr, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996. (Roteiro de Leitura).
Macedo, Tânia. Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
Perez, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
Rosa, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Santo, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996.
Sperber, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1996. (Ensaio).
Zilberman, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.
Acervo:
- Os arquivos do autor, abrangendo o período de 1908 a 1971, com aproximadamente 12.000 documentos, foram adquiridos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Homenagem ao Autor:
Museu Guimarães Rosa
Av. Padre João, 744
Cordisburgo - MG - Brasil
Fone: (0 XX 31) 3715-1378
Adaptações:
1969 - Publicação do livro "A João Guimarães Rosa" - (Gráficos Brunner), ensaio fotográfico de Maureen Bisilliat, com trechos de "Grande Sertão: Veredas". Curta de 09 minutos - Filmoteca da ECA/ USP, direção de Roberto Santos - São Paulo (SP).
1975 - Adaptação dos contos "Corpo Fechado" (do livro "Sagarana"), direção de Lima Duarte, e "Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha" (do livro "Primeiras Estórias"), direção de Kiko Jaess, para o programa Teatro 2, da TV Cultura - São Paulo (SP)
1975 - Adaptação do conto "Sarapalha" (do livro "Sagarana"), direção de Roberto Santos, para Caso Especial, da Rede Globo - Rio de Janeiro (RJ).
1984 - Adaptação de "Noites do Sertão", direção de Carlos Alberto Prates Corrêa - Rio de Janeiro (RJ).
1985 - Adaptação de "Grande Sertão: Veredas" para minissérie da Rede Globo, direção de Walter Avancini - Rio de Janeiro (RJ).
1994 - Rio de Janeiro RJ - Adaptação para o teatro de "Grande Sertão: Veredas", direção de Regina Bertola, no Centro Cultural Banco do Brasil
1994 - Filme "A Terceira Margem do Rio", direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, baseado em cinco contos do livro "Primeiras Estórias": "A Terceira Margem do Rio", "A Menina de Lá", "Os Irmãos Dagobé", "Seqüência" e "Fatalidade" - Rio de Janeiro (RJ).]
Fontes:
ROCHA, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa: sua hora e sua vez. Cadernos da Pró- Reitoria de Extensão da PUC-MG; v.3, n.Especial; p.45-68, set.1993. Disponível em http://www.medicina.ufmg.br/cememor/rosa.htm
http://www.releituras.com/guimarosa_bio_imp.asp
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm
http://www.vermelho.org.br/ (foto)
BIBLIOGRAFIA:
- Magma (1936), poemas. Não chegou a publicá-los.
- Sagarana (1946), contos e novelas regionalistas. Livro de estréia.
- Com o vaqueiro Mariano (1947)
- Corpo de Baile (1956), novelas. (Atualmente publicado em três partes:
- Manuelzão e Miguilim, - No Urubuquaquá, no Pinhém e - Noites do sertão.)
- Grande Sertão: Veredas (1956), romance.
- Primeiras estórias (1962), contos.
- Tutaméia:Terceiras estórias (1967), contos.
- Estas estórias (1969), contos. Obra póstuma.
- Ave, palavra (1970) diversos. Obra póstuma.
Bibliografia sobre o Autor:
Bosi, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1994.
Faraco, C.E. & Moura, F.M. Língua e literatura.. São Paulo: Ática, 1996. v.3.
Holzemayr, Rosenfield Kathrin. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Ática, 1996. (Roteiro de Leitura).
Macedo, Tânia. Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996. (Ponto por Ponto).
Perez, Renard. Em Memória de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
Rosa, Vilma Guimarães. Relembramentos, Guimarães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Santo, Wendel. A construção do romance em Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1996.
Sperber, Suzi Frankl. Guimarães Rosa: signo e sentimento. São Paulo: Ática, 1996. (Ensaio).
Zilberman, R. A Leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1989.
Acervo:
- Os arquivos do autor, abrangendo o período de 1908 a 1971, com aproximadamente 12.000 documentos, foram adquiridos pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Homenagem ao Autor:
Museu Guimarães Rosa
Av. Padre João, 744
Cordisburgo - MG - Brasil
Fone: (0 XX 31) 3715-1378
Adaptações:
1969 - Publicação do livro "A João Guimarães Rosa" - (Gráficos Brunner), ensaio fotográfico de Maureen Bisilliat, com trechos de "Grande Sertão: Veredas". Curta de 09 minutos - Filmoteca da ECA/ USP, direção de Roberto Santos - São Paulo (SP).
1975 - Adaptação dos contos "Corpo Fechado" (do livro "Sagarana"), direção de Lima Duarte, e "Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha" (do livro "Primeiras Estórias"), direção de Kiko Jaess, para o programa Teatro 2, da TV Cultura - São Paulo (SP)
1975 - Adaptação do conto "Sarapalha" (do livro "Sagarana"), direção de Roberto Santos, para Caso Especial, da Rede Globo - Rio de Janeiro (RJ).
1984 - Adaptação de "Noites do Sertão", direção de Carlos Alberto Prates Corrêa - Rio de Janeiro (RJ).
1985 - Adaptação de "Grande Sertão: Veredas" para minissérie da Rede Globo, direção de Walter Avancini - Rio de Janeiro (RJ).
1994 - Rio de Janeiro RJ - Adaptação para o teatro de "Grande Sertão: Veredas", direção de Regina Bertola, no Centro Cultural Banco do Brasil
1994 - Filme "A Terceira Margem do Rio", direção e roteiro de Nelson Pereira dos Santos, baseado em cinco contos do livro "Primeiras Estórias": "A Terceira Margem do Rio", "A Menina de Lá", "Os Irmãos Dagobé", "Seqüência" e "Fatalidade" - Rio de Janeiro (RJ).]
Fontes:
ROCHA, Luiz Otávio Savassi. João Guimarães Rosa: sua hora e sua vez. Cadernos da Pró- Reitoria de Extensão da PUC-MG; v.3, n.Especial; p.45-68, set.1993. Disponível em http://www.medicina.ufmg.br/cememor/rosa.htm
http://www.releituras.com/guimarosa_bio_imp.asp
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/index.htm
http://www.vermelho.org.br/ (foto)