sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 484)

Uma Trova de Ademar
Uma Trova Nacional

Deus com sua Onipotência
usou respingos de amor
para colocar essência
nas pétalas de cada flor!!
CARLOS AIRES/PE–

Uma Trova Potiguar

Deus é eterno, é vitalício...
Não é só questão de fé.
Quem existe, teve início
Deus não existe, Deus É!...
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Eu vi o rio chorando
quando te foste banhar,
por não poder te banhando,
dar-te um abraço, e ficar...
–ADELMAR TAVARES/PE–

Uma Trova Premiada

2005 - Taubaté/SP
Tema: ECOLÓGICO - Venc.

Ante o terror das queimadas
na floresta, com carinho,
as árvores abraçadas
tentam proteger os ninhos.
–RUTH FARAH/RJ–

Simplesmente Poesia

M O T E :
A gente leva da vida,
A vida que a gente leva...

G L O S A:
–CELSO DA SILVEIRA/RN–

Na estrada longa e comprida
para a viagem do além,
somente os atos do bem
A gente leva da vida,
Nessa hora decidida
em que o espírito se eleva,
fica a matéria na treva
porém deixa de sofrer,
porque ninguém vai saber
A vida que a gente leva...

Estrofe do Dia

Eu não quero viver igual ao nobre
num palácio dourado e majestoso,
e não quero viver todo andrajoso,
desse jeito que vive o homem pobre.
Esta roupa modesta que me cobre,
é aqui nesta casa que se faz;
eu plantei algodão tempos atrás
e o fio que eu colho eu mesmo teço,
eu só quero na vida o que mereço,
não aceito de menos nem de mais
–BRÁULIO TAVARES/PB–

Soneto do Dia

Imitação
–DIVENEI BOSELI/SP–

A frouxa luz do ocaso, em tintas fortes
estampa no poente, com magia,
a pompa com que faz morrer o dia
que, entanto, já morreu milhões de mortes;

reflete seu carmim fugaz, macia,
bordando minha fronha, nuns recortes,
que eu penso ver uns lábios de consortes,
buscando em mim o beijo que sacia…

Mas, desce a noite com seu crepe largo,
entra meu quarto a dentro sem embargo
e ensombra minha sombra em minha cama..

Nesse torpor de morte, em paz medonha,
eu beijo a boca que supus na fronha,
com a volúpia que só tem quem ama!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Marcelo Spalding (O Centenário de Contos Gauchescos)


Alguns livros marcam uma geração, outros uma nação. Os Lusíadas se confundem com a formação da nação lusa, A Divina Comédia forjou o idioma italiano, assim como as obras de Walter Scott e Shakespeare foram fundamentais para os ingleses. No Brasil, temos os romances de Alencar, que esforçou-se por representar a nação brasileira como um todo. Há outros livros, porém, que forjam não nações, mas culturas, em especial culturas regionais que não chegam a se configurar como nacionais. E este é o caso, decididamente, da cultura sul-rio-grandense.

No Rio Grande do Sul, lembramos de nossos heróis, fazemos feriado e comemorações no nosso dia, o 20 de setembro, e cantamos com entusiasmo o Hino Rio-Grandense. Mas esse gaúcho, hoje representado no Laçador, cantado em nossos CTGs e revivido no acampamento farroupilha, é acima de tudo uma figura criada pelos escritores, e poucos foram tão importantes como Simões Lopes Neto. Em Contos Gauchescos (1912) e Lendas do Sul (1913), esse pelotense forjou muito da personalidade mítica do gaúcho, sua valentia, sua honra, o amor pela terra e pelo cavalo.

Neste ano, comemora-se exatamente cem anos do lançamento de Contos Gauchescos, obra obrigatória nos bancos escolares e acadêmicos gaúchos, mas que poderia estar no cânone de qualquer seleção de literatura brasileira. A obra traz, além da apresentação em que Blau Nunes surge como narrador, 19 contos: "Trezentas onças", "Negro Bonifácio", "No manatial", "O mate do João Cardoso", "Deve um queijo!", "O boi velho", "Correr eguada", "Chasque do imperador", "Os cabelos da china", "Melancia — Coco verde", "O anjo da vitória", "Contrabandista", "Jogo do osso", "Duelo de Farrapos", "Penar de velhos", "Juca guerra", "Artigos de fé do gaúcho", "Batendo orelha" e "O 'menininho' do presépio".

Todos os contos são narrados por Blau Nunes, que em algumas histórias é protagonista, mas em tantas outros assiste como espectador interessado e atento. Outro aspecto fundamental do livro é a linguagem utilizada, que é representação da linguagem popular falada do gaúcho, mas retrabalhada de forma erudita a ponto de criar uma terceira linguagem rica e particular. O grande Guimarães Rosa, anos mais tarde, e confesadamente inspirado em Simões, utilizaria essa técnica em Grande Sertão: Veredas.

Trezentas Onças, o primeiro conto do livro, é um verdadeiro cartão de visitas da prosa e da linguagem de Simões, com seus gauchismos ("guaiaca, cusco"), espanholismos ("mui, cousa") e ditos populares ("brabo como uma manga de pedras"). A temática também começa a moldar os valores do gaúcho, estando a honra acima de tudo, mesmo quando grande quantia de dinheiro está em jogo.

Este trabalho peculiar com a linguagem exige um pouco do leitor contemporâneo, que talvez tropece em alguns trechos, especialmente nos mais descritivos, como este de "No Manatial": "Vancê acredita?... Nesta manhã, desde cedo, os pica-paus choraram muito nas tronqueiras do curral e nos palanques... e até furando no oitão da casa;... mais de um cachorro cavoucou o chão, embaixo das carretas;. e a Maria Altina achou no quarto, entre a parede e a cabeceira da cama, uma borboleta preta, das grandes, que ninguém tinha visto entrar..."

"No Manatial", aliás, é o mais belo — e talvez mais triste — conto do livro, revelando um pouquinho de como nascem as lendas e as assombrações. O que impressiona em Simões é que apesar do linguajar próprio, a narrativa flui com facilidade, tal qual um causo contado de mate na mão:

"E os dois, ¾ a que te pego! a que te largo! ¾ se despencaram por aquele lançante, em direitura ao manantial! E, ou por querer atalhar, ou porque perdesse a cabeça ou nem se lembrasse do perigo, a Maria Altina encostou o rebenque no matungo, que, do lance que trazia costa abaixo, se foi, feito, ao tremendal, onde se afundou até as orelhas e começou a patalear, num desespero!. A campeirinha varejada no arranco, sumiu-se logo na fervura preta do lodaçal remexido a patadas!... E como rastro, ficou em cima, boiando, a rosa do penteado."

O livro também pode ser muito interessante como um documento histórico, revelando um pouco do pensamento e da cultura gaúcha (e brasileira) de um século atrás. Em "O Negro Bonifácio", por exemplo, a representação feita da mulher e do negro causa estranheza e até revolta no leitor moderno, mas retrata os valores da época de publicação do texto:

"Os dentes [da Tudinha eram] brancos e lustrosos como dente de cachorro novo; e os lábios da morocha deviam ser macios como treval, doces como mirim, frescos como polpa de guabiju... (.) No barulho das saúdes e das caçoadas, quando todos se divertiam, foi que apareceu aquele negro excomungado, para aguar o pagode."

Este famoso conto, a propósito, retrata a disputa de quatro gaúchos pela Tudinha, "a chinoca mais candongueira que havia naqueles pagos". A disputa evolui para um duelo sangrento, do qual emerge ao final a revelação de uma história de amor secreta, ardente e improvável da bela morena com o Negro Bonifácio.

Talvez o sucesso dos contos seja que sua essência não está nas palavras, nas frases, na linguagem popular retrabalhada, e sim no subtexto, no não-dito, naquilo que só o leitor acostumado com os meandros do gênero conto poderá perceber, como a relação de Tudinha com o Negro.

Hoje, passados cem anos, pode-se dizer que Contos Gauchescos é um clássico em todas as acepções de clássico para Calvino, "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer", "uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe", "livros que, quando mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos". É, enfim, um livro além de seu tempo e de seu espaço, pois embora o espaço seja bem definido, o sul do sul, o pampa gaúcho, o pampa gaúcho de um tempo de guerras, facões, cavalos e heróis, as temáticas são universais: traição, ciúme, honra, mesquinhez, saudades.

Fonte:

Humberto Rodrigues Neto e Gui Oliva (Cochicho)


Humberto:
É gostoso, cara amiga,
de vez em quando um cochicho,
mesmo que dê alguma briga,
ou até um grave bochicho!

Gui Oliva:
Está difícil
até o fim
para dizer
não consigo.

Será mesmo
impossível???
deixa a rima pra lá.

O que faz falta mesmo
é a falta de siso
para versejar,

uma baita falta
de motivo
para cochichar

ao pé do ouvido,
aquele segredo
de meter medo

e provocar
ao final
aquele beijo!

Humberto:
Por ser exímia poetisa,
e esse dom não há quem negue,
tente, não fique indecisa,
que dizer você consegue.

Não faça disso um capricho
pois segredar não é crime;
diga logo esse cochicho
mesmo que o verso não rime!

Se é algo pecaminoso
o que anseia me contar,
conte, boba... É tão gostoso
dessas coisas cochichar.

Abra logo esses arquivos
secretos e fascinantes,
pois lhe darei bons motivos
a uns cochichos bem picantes!

Confie-me, pois, seus segredos
de algum desejo proibido;
conte-os sem pejos ou medos,
bem baixinho ao pé do ouvido!

Conhecerei seu desejo
e o seu sonho de mulher...
Que venha após nosso beijo
tudo mais que Deus quiser!

Todos estão convidados a participar dos Cochichos.
Vamos repassar e cochichar, sim,mandando seus
cochichos para a Gui F Oliva, no e-mail gui.oliva@globo.com.

Humberto.


Fonte:
Textos enviados por Humberto

Sérgio Sant’Anna (Conto (não conto))


Aqui, um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação. Mas o que é uma cobra quando não há nenhum homem por perto? Ela pode apenas cravar seus dentes numa folha, de onde escorre um líquido leitoso. Do alto desta folha, um inseto alça vôo, solta zumbidos, talvez de medo da cobra. Mas o que são os zumbidos se não há ninguém para escutá-los? São nada. Ou tudo. Talvez não se possa separá-los do silêncio ao seu redor. E o que é também o silêncio se não existem ouvidos? Perguntem, por exemplo, a esses arbustos. Mas arbustos não respondem. E como poderiam responder? Com o silêncio, lógico, ou num imperceptível bater de suas folhas. Mas onde, como, foi feita essa divisão entre som e silêncio, se não com os ouvidos?Mas suponhamos que existissem, um dia, esses ouvidos. Um homem que passasse, por exemplo, com uma carroça e um cavalo. Podemos imaginá-los. O cavalo que passa um dia e depois outro e depois outro, cumprindo sua missão de cavalo: passar puxando uma carroça. Até que um dia veio a cobra e zás: o sangue escorrendo da carne do cavalo. O cavalo propriamente dito – isto é, o cérebro do cavalo-sabe que algo já não vai tão bem quanto antes. Onde estariam certos ruídos, o eco de suas patas atrás de um morro, o correr do riacho muito longe, o cheiro de bosta, essas coisas que dão segurança a um cavalo? Onde está tudo isso, digam-me? O carroceiro olha tristemente para o cavalo: somos apenas nós dois aqui neste espaço, mas o cavalo morre. Relincha, geme, sem entender. Ou entendendo tudo, com seu cérebro de cavalo. Diga-me, cavalinho: o que sente um cavalo diante da morte?

Diga-me mais, cavalinho: o que é a dor de um homem quando não há ninguém por perto? Um homem, por exemplo, que caiu num buraco muito fundo e quebrou as duas pernas. Talvez essa dor devore a si mesma, como uma cobra se engolindo pelo rabo.

Mas tudo isso é nada. Não se param as coisas por causa de um cavalo. Não se param as coisas nem mesmo por causa de um homem. Esse homem que enterrou o cavalo, não sem antes cortar um pedaço de sua carne, para comer mais tarde. E agora o homem tinha que puxar ele mesmo a carroça. E logo afastou do pensamento a dor por causa de seu cavalinho querido. O homem agora tinha até raiva do cavalo, por ele ter morrido. O homem estava com vergonha de que o vissem – ele, um ser humano – puxando uma carroça. Mas por que seria indigno de um ser humano puxar uma carroça? Por que não seria indigno também de um cavalo? Ora, um cavalo não liga para essas coisas, vocês respondem. No que têm toda razão.

E afinal, não podemos saber se o viram ou não, o homem puxando sua carroça, pois nos ocupamos apenas do que se passa aqui, neste espaço, onde nada se passa. Mas de uma coisa temos certeza: esse homem também encontrou um dia sua hora. E talvez – porque não tinha mãe, nem pai, nem mulher, nem filhos nem amigos – ele haja se lembrado, na hora da morte, de seu cavalo. O homem pensou, talvez, que agora iria encontrar-se com o cavalo, do outro lado. Sim, do outro lado: de onde vêm os ecos e o vento e onde se encontram para sempre homens e cavalos.

Por esse outro lado há uma linha tênue, que às vezes se atravessa – uma fronteira. Essa linha, você atravessa, retorna; atravessa outra vez, retorna, recua de medo. Até que um dia vai e não volta mais.

Aquele homem, no tempo em que atravessava este espaço aqui, beirando a fronteira do outro lado, gritava para escutar o eco e sorria para o cavalo. O homem tinha certeza de que o cavalo sorria de volta, com seus enormes dentes amarelos. O homem era louco. Mas o que é a loucura num espaço onde só existem um homem e um cavalo? E talvez o cavalo sorrisse de verdade, sabendo que ali não poderiam acusá-lo de animal maluco e chicoteá-lo por causa isso.

Depois foram embora o homem e o cavalo. O cavalo, para debaixo da terra, alimentar os vermes que também ocupam este espaço, apesar de invisíveis. Principalmente porque não há olhos para vê-los. Já o homem foi morrer mais longe. E ficou de novo este território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Não sabemos por quanto tempo, porque não existe tempo quando não existem coisas, homens, movimentando-se no espaço.

Mas, subitamente, eis que este território é de novo invadido. Vieram outros homens e máquinas, e acenderam fogo, montaram barracas, coisas desse tipo, que os homens fazem. Tudo isso, imaginem, para estender fios em postes de madeira. (Fios telegráficos, explicamos, embora aqui se desconheçam tais nomes e engenhos.) Então o silêncio das noites e dias era quebrado por um tipo diferente de zumbidos. Mas para quem esses zumbidos, se aqui ninguém escuta, a não ser insetos? E de que valem novos zumbidos para insetos, que já os produzem tão bem? Sim, vocês estão certos: os zumbidos destinavam-se a pessoas mais distantes, talvez no lugar onde morreu o dono do cavalo. O que não nos interessa, pois só cuidamos daqui, deste espaço.

Mas, de qualquer modo. Todos eles (insetos, cobras, animaizinhos cujo nome não se conhece, sem nos esquecermos dos vermes, que haviam engordado com a carne do cavalo) sentiram-se melhor quando vieram outros homens – bandidos, com certeza – e roubaram os postes, fios e zumbidos. Agora tudo estava novamente como antes, tudo era normal: um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Uma pequena cobra, talvez, insinuando-se pelas pedras e pela pouca vegetação – e a cravar seus dentes numa folha.

Às vezes, porém, aqui é tão monótono que se imagina ver um vulto que se move por detrás dos arbustos. Alguém que passa, agachado? Um fantasma? Mas como, se há soluços? Por acaso soluçam, os fantasmas? Mas o fato é que, de repente, escutam-se (ou se acredita escutar) esses lamentos, uma angústia quase silenciosa.

Ah, já sei: um menino perdido, a chorar de medo. Ou talvez um macaquinho perdido, a chorar de medo. Ah, apenas um macaquinho, vocês respiram aliviados. Mas quem disse que a dor de um macaquinho é mais justa que a dor de um menino?

Mas o que estão a imaginar? Isso aqui é apenas um menino – ou um macaquinho – de papel e tinta. E, depois, se fosse verdade, o menino poderia morrer pela cobra. Ou então matar a cobra e tornar-se um homem. No caso do macaquinho, tornar-se um macacão. Um desses gorilas que batem no peito cabeludo, ameaçando a todos. Talvez porque se recordasse do medo que sentiu da cobra. Mas não se esqueçam, são todos de papel e tinta: o menino, o macaquinho, o macacão, seus urros e os socos que dá no próprio peito cabeludo. Cabelos de papel, naturalmente. E, portanto, não há motivos para sustos.

Pois aqui é somente um território vazio, espaços, um pouco mais que nada. Quase um deserto, onde até os pássaros voam muito alto. Porque depois, em certa ocasião, houve uma aridez tão terrível que os arbustos se queimaram e a cobra foi embora, desiludida. No princípio, os insetos se sentiram muito aliviados, mas logo perceberam como é vazia de emoções a vida dos insetos quando não existe uma cobra a perseguí-los. E também se mandaram, no que logo foram seguidos subterraneamente pelos vermes, que já estavam emagrecendo na ausência de cadáveres.

Então ficou aqui um território ainda mais vazio, espaços, um pouco mais que nada. Ou muito, não se sabe. Mas não há ninguém, é certo. Nem mesmo uma cobra a insinuar-se pelas pedras e pela vegetação. Pois não há vegetação e, muito menos, cobras.

Mas digam-me: se não há ninguém, como pode alguém contar essa história? Mas isto não é uma história, amigos. Não existe história onde nada acontece. E uma coisa que não é uma história talvez não precise de alguém para contá-la. Talvez ela se conte sozinha.

Mas contar o que, se não há o que contar? Então está certo: se não há o que contar, não se conta. Ou então se conta o que não há para se contar.

Fonte:
Italo_Moriconi. Cem melhores contos brasileiros do século

Sérgio Sant'Anna (A Senhorita Simpson)


A narrativa A Senhorita Simpson, de Sérgio Sant'Anna, foi publicada em 1989. A obra serviu de inspiração para o cineasta Bruno Barreto produzir "Bossa Nova", filme lançado em 2000.

O assunto deste conto envolve o choque de valores que se dá entre a puritana protagonista, que parece ter saído das páginas do romancista americano Henry James, e a burguesia carioca com quem convive nas aulas de inglês que ministra em Copacabana.

Em A Senhorita Simpson o ponto de partida é um cursinho de inglês, o Piccadilly, que serve como motivo principal para a narrativa. As inter-relações vitais para o enredo vão surgindo como decorrência dos encontros noturnos para as aulas, tendo como narrador-protagonista Pedro Paulo Silva, um dos alunos da turma, 29 anos, funcionário-público no Tribunal de Justiça, separado da mulher, um casal de filhos, habitando sozinho um pequeno apartamento na Prado Júnior e profundamente envolvido com uma dependência por Valium, como soporífero, e por mulheres, como carência de afeto. De certa forma sugerindo em tom de paródia o tipo romântico: a crise existêncial, uma espécie de obsessão pelo encontro intermeada por um ligeiro temor, a fuga das responsabilidades 'morais' e a fragilidade das relações não duradoura.

A narrativa sugere um pequeno espaço brasileiro, essencialmente urbano: a zona sul da cidade do Rio de Janeiro, Copacabana, a classe-média, o inglês como língua de mercado e da moda, a mulher no trabalho, a separação conjugal, o misticismo oriental e a utopia da trilha pela Bolívia e Peru rumo a Cuzco e Machu-Pichu (roteiro seguido por tantos jovens da época). Tudo isto trabalhado com muita ironia e consciência crítica sobre o ato de narrar, por parte de um autor que certamente esteve no contexto, olhando desconfiado para alguns modelos, apreciando o sabor e a possibilidade do encontro e parecendo ter nunca se submetido ao vício.

Assim, mantendo-se fora do interior da narrativa, Sérgio Sant'Anna distancia-se do mundo de seu protagonista, não se identifica enquanto narrador e através da alteridade transfere para a personagem a vivência da história (em seu duplo sentido: ficção e experiências do passado). A intertextualidade metaficcional enquanto reflexividade consciente do papel da ficção na contemporaneidade, é feita através do 'pastiche' em relação às histórias do gênero "meu tipo inesquecível", que aparecem na "Seleções do Reader's Digest", conforme apresentação feita na epígrafe da obra. E esse roteiro problematizador confunde-se com a própria narração enquanto técnica e modo de compor a narrativa. Como característica pós-modernista, no entanto, em tomo de uma superposição crítica e paródica, ficcional e historiográfica, Sérgio Sant'Anna procura reconstituir o estilo (gênero) ao invés da sensibilidade compositiva mais do que sob uma conceituação estética que privilegie o contexto puramente ideológico do discurso.

O gênero "meu tipo inesquecível" instala-se na figura de Miss Simpson, faixa etária dos 40, sobrevivente de Woodstock, professorinha de inglês no Picadilly e que por um instante se converte na mãe desejada no auxílio geral e no sexo. E aqui também, como em toda história do gênero, aparece um final de "agradeço por tê-lo(a) conhecido", em deferência à importância da personagem narrada para a vida de quem com ele(a), de algum modo, um dia conviveu. Para o protagonista Pedro Paulo Silva, trata-se de Miss Simpson, que "lhe restará sempre na memória" enquanto forma de encontro necessário e vital.

Assim, como técnica de narração, o tema e o enredo parecem juntar-se enquanto arranjo de linguagem e artificio cênico da mera banalidade do ato de viver: a linguagem é simples, objetivando uma aceitabilidade fácil e sugerindo o efeito comum de representação da vida enquanto dissolução do cânone maior. Ao mesmo tempo, no entanto, realçando o caráter da importância do fato para o narrador que tem na vivência do texto elaborado um motivo a mais para viver. Como pretexto de ter o que contar e lembrar. Não importa que quem narre seja deveras um escritor (no sentido de autor em alto grau), mas um narrador cônscio da sua própria fragilidade, um que se identifica (ou pelo menos pode fazê-lo) com tantos outros que pretendem também participar da ação de terem um dia narrado. Desta forma, vivência e ficção se confundem já que o gênero "meu tipo inesquecível" reproduz a verossimilhança com o vivido. E diante da extinção na contemporaneidade da experiência de narrar", quando o ser humano está diluído no meio da multidão e se torna presa fácil da tecnologia, as vivências históricas (não mais experiências propriamente)" tornam-se ocasionais, dissolvidas nos fragmentos colhidos pelos meios de comunicação de massa. Este é o lugar da narrativas do gênero "meu tipo inesquecível": um último refúgio que possibilite às gerações terem ainda o que e onde contar.

O ponto de vista do narrador não é onisciente. Ele não mergulha na vida das demais personagens, que só se formam enquanto incursão cotidiana de relacionamento. Personagens opacas, portanto, sem aprofundamento psicológico. Apresentadas não em si mesmas, mas em relação às demais. Delas só se conhecem as superficialidades que estão presentes no contexto da ação. O próprio Pedro Paulo Silva é construído a partir de migalhas: pequenos detalhes aqui e ali. Assim, através de uma sugestão cênica fragmentada em episódios, o leitor vai se apropriando aos poucos de todo o enredo, o qual também é desprovido de profundeza. E as inter-relações pessoais no contexto da obra se esgotam rápido e fácil. O Piccadilly é quase que o único local de encontro. Nele os alunos da turma de Miss Simpson (sete no total) se conhecem e se entretêm como se fossem jovens adolescentes, possivelmente como um pretexto para o rompimento com o estado diurno do trabalho. As aulas noturnas de inglês funcionam, assim, como um espaço lúdico: próprio para o relaxamento e a desrepressão. Brincadeiras acontecem, num constante passar de bilhetinhos em classe, além das gozações mútuas.

Evidente que a trama maior se dá em tomo do narrador e protagonista Pedro Paulo Silva: seu relacionamento remoto com a ex-esposa Antonieta; sua visita ocasional aos filhos quando lhes conta estórias inventadas; seu ligeiro contato com o pai e amigo advogado, alcoólatra e depois suicida, que vive com a quarta mulher, Maria de Fátima (nome artístico: Mara Regina), num apartamento em Laranjeiras; seu distanciamento da mãe agora casada "com um joalheiro careca e chatísismo"; seu encontro com o misterioso e suspeito Wan-Kim-Lau chinês, amigo de Antonieta, impregnado com a sabedoria oriental e professor de tai-chi-chuan numa academia; sua dependência por Valium antes de dormir e seu infatigável apetite sexual por mulheres movido por uma espécie de descontrole emocional baseado no desejo de livrar-se do tédio.

Em forma de flashes momentâneos, a ação e o cenário vão se compondo, quando a narrativa se propõe a realçar a similitude com as histórias do gênero "meu tipo inesquecível". Assim, o estilo é claro, sem maior ostentação retórica e técnica, a não ser pelo recurso utilizado na passagem em que Pedro Paulo Silva conta para o Gordo sua transa com Ana e o autor sobrepõe simultaneamente e de modo engenhoso três focos narrativos diversos. Também algumas frases de efeito aparecem: "A gente sempre morre antes da última dose" (deixada pelo pai suicida dentro de uma "garrafa quase vazia", antes de se matar); "meu reflexo de passageiro da vida no espelho" (em conotação com a contemporaneidade); "a fragrância de um perfume na memória" (parecendo Marcel Proust); "o alvorecer das utopias" (em analogia ao sonho hippie); "A história se repetia como comédia; esperava-se que não se repetisse como tragédia" (parodiando Karl Marx).

No interior da narrativa uma proposta intertextual aparece enquanto uso constante de um inglês básico, que aqui e ali postula do leitor um mínimo de domínio. E esse cruzamento interlinguístico deriva do Picadilly, onde, através de Miss Simpson, Pedro Paulo Silva e o resto da turma preenchem o vazio de suas próprias histórias com as aventuras vividas pelos Dickinsons, Harrisons e Jones, personagens de uma outra história; o livro didático utilizado.

Por outro lado, as questões sociais e políticas são abandonadas ou, no mais, deixadas à imaginação do leitor enquanto apelo irônico; como exemplo, o episódio da greve no Piccadilly, ironizando maio de 68 e o movimento político brasileiro pós-64. O Matoso, um dos alunos da turma, é pego fumando marijuana no banheiro da escola e um ruidoso Mr. Higgins, o diretor, pretende expulsá-lo pois, embora fosse uma droga leve e que "se disseminara por todas as escolas", conforme argumentara Miss Simpson assumindo a defesa dos alunos, em "- Escolas só de inglês, não -", receoso de que "se aquilo se tomasse um hábito", "o nome do Piccadilly (...) iria por água abaixo". Como se fosse um 'É proibido proibir' a greve então é proposta. No entanto não acontece; Miss Simpson convence o diretor.

Mas, tem-se a alusão a "um marco histórico no movimento estudantil", ao "dinheiro da CIA no negócio"; o eco das "palavras liberty and democracy" e a ovação para que o protagonista Pedro Paulo Silva seja elevado à categoria de "líder revolucionário". A ironia se faz presente, então, de forma completa: em seu caráter ideológico contraditório, já que estabelece um vínculo com a história ao mesmo tempo em que sugere o tema como um passado perdido. Assim, o que ocorrera em termos reais até em desprendimento (enquanto abnegação = sacrifício dos próprios interesses em beneficio de uma causa maior) torna-se agora fragmentos do passado, memória apenas de uma vivência de se 'ter ouvido falar'.

A partir dessa analogia intertextual entre o passado e o presente, entre a novela e as histórias do gênero "meu tipo inesquecível", percebe-se na composição cênica de A Senhorita Simpson a vida aparecendo como o grande intertexto. Já não mais em torno de um 'eu' utópico, indivisível e potente enquanto projeto "liberal humanista", mas de um 'eu' fragmentado e, de repente, se vê no vazio. Vale, então, a lembrança de 'roteiros', não mais como um enredo coeso em tomo de um princípio, um meio e um fim. Mas, enquanto possibilidade de apego a um presente de imagens meio-ambientais (natureza - indivíduo(s) - objetos) que se arranja ou se compõe como ajuntamento de estilhaços visuais: como "um tremendo pôr-do-sol sobre o mar de Copacabana", a "porta pantográfica" do elevador, ou os "reflexos luminosos que estampavam tonalidades fantasmagóricas na pele de Miss Simpson".

O arranjo cênico então sugere 'os olhos a se alimentarem de luz', fixos na possibilidade que o meio-ambiente oferece, uma vez que o passado virou migalhas e já não há mais experiências reais para se narrar: somente vivências ou lembranças momentâneas. Neste ponto, a intertextualidade entre ficção e historiografia propõe a reflexão de que todo o jogo político do passado foi apenas um modo de constructo ideológico enquanto jogo de poder. E a identidade histórica torna-se qualidade apenas narrativa, na arte da composição. Para Pedro Paulo Silva, esse recurso significa procurar a lembrança de seu 'tipo inesquecível' e, conforme sugere Walter Benjamin, "começar tudo de novo", "contentar-se com pouco", operando "a partir de uma tábula rase'. E ele assim faz: fura uma das orelhas para "colocar nela um brinco dourado" e ao completar 30 anos estará deixando para trás não a sua juventude, mas a sua velhice, rumo à Bolívia, Peru, Cuzco e Machu-Pichu.

A senhorita Simpson é o exemplo da terceira fase do autor, onde continua fazendo exercícios metalinguísticos, mas os subordina ironicamente à história que conta. A obra transgride as próprias "convenções" do autor: o diálogo é ágil, mais "realista", sem as massas verbais típicas da sua representação do mundo; há uma nitidez, uma luminosidade que atravessa a narrativa inteira; e, o mais significativo, no final da novela encontramos um dos raros momentos em que o narrador, com simplicidade, endossa o ponto de vista de seu personagem, entregando-se ao texto sem atravessá-lo de ironia: "Aos trinta anos, eu estaria deixando para trás não a minha juventude, mas a minha velhice".

Fonte:
Carlos Eduardo Vieira de Figueiredo, Mestre em Literatura Brasileira, UFSC. Passeiweb.

Sergio Sant’anna (1941)


Nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1941.

Muda-se para Belo Horizonte, em 1959, e ingressa na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, formando-se em 1966.

Cursa pós-graduação, entre 1967 e 1968, no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris.

À época, viaja também a Praga, República Tcheca, testemunhando os eventos deram fim à "Primavera de Praga", movimento que restituía liberdades democráticas em pleno regime soviético.

Reconhecido como um dos melhores contistas brasileiros, despontou como escritor promissor no primeiro livro, O sobrevivente (1969), que o credenciou para participar do “Writing Program”, da Universidade de Iowa (EUA), no período entre 1970 e 1971. Essa estada aprimorou o estilo do autor, conforme demonstrado no livro seguinte, Notas de Manfredo Rangel, repórter (1973).

Volta a viver no Rio de Janeiro em 1977, ano em que integra o corpo docente da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), permanecendo até 1990.

Foi criado no meio da literatura de vanguarda, experimental, com a ambição, segundo ele mesmo, “nada modesta de destruir as formas romanescas”. Essa intenção se evidencia nos primeiros romances Confissões de Ralfo (1973) e Simulacros (1977). Mas, em 1982, o autor deu uma virada em sua literatura iniciando com O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro e consolidando com Amazona (1986). Nunca foi best-seller, mas mantém um público de leitores fiéis.

A partir de então, passa a se dedicar exclusivamente à literatura, atuando ainda como colunista do jornal O Dia e colaborando para diversos veículos da imprensa, como a revista Cult e os cadernos literários dos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil.

Em 1989, lançou A senhora Simpsom, bem aceito pela crítica e pelo público, pois vendeu mais de seis mil exemplares.

Os lançamentos seguintes, Breve história do espírito (1991) e O monstro (1994), realçaram a sofisticação do autor, “quebrando regras, ampliando contornos, questionando os limites do conto, em busca de uma nova maneira de narrar”. Em 1997, lançou duas obras simultaneamente pela Cia. das Letras: Contos e Novelas reunidos e Um crime delicado.

Em 2008, depois de 40 anos, volta a Praga, para escrever O Livro de Praga: Narrativas de Amor e Arte, lançado em 2011, que integra o projeto Amores Expressos, criado pela editora Companhia das Letras.

Seus livros são estudados nas universidades, alguns traduzidos no exterior. Recebeu o Prêmio Jabuti três vezes: em 1982, 1986 e 1997.

Passou seis anos sem publicar, escrevendo a passo de tartaruga, e lançou O vôo da madrugada (2003), reunindo contos e uma novela. Vive num modesto apartamento no bairro Laranjeiras (Rio de Janeiro), no mesmo quarteirão onde vive a artista plástica Cristina Salgado. Mas não moram juntos, namoram. Lançamento mais recente: O livro de Praga (Cia. das Letras, 2011).

Fontes:
http://www.tirodeletra.com.br/biografia/SergioSantAnna.htm
Itau Cultural

Clevane Pessoa (Lançamento do Livro Emoção Repentina)


Aproveito mais uma oportunidade de falar bem da Editora Assis, que é séria, cumpre pazos e contratos e realiza vários projetos culturais na Cida de De Uberlândia-MG-Brasil.!

A poeta e prosadora Ivone de Assis, solicitou-me , para seletiva e publicação , meu poster sobre meu poema sobre medo, com foto de Marco Llobus, Esse fotografo-poeta sensível, criou vários posteres-poemas com meus versos , que expus, doei e tal .E foi ele quem criou os banneres com meus desenhos da série Graal Feminino Plural que lhes mandei. E editou dois livros, Erotíssima e O Sono das Fadas, com o selo da editora Catitu.

Bem , agora recebo o convite e comunicado , de João Davi e Ivone de Assis e compartilho com os amigos, confrades, confreiras, familiares, para o lançamento da antologia "Emoções Repentinas" tema Medo...É realmente uma satisfação , mais uma vez, estar com a Assis. Já participei de Veredas Literárias , com o Poema Prestidigitação, em homenagem a Iara Abreu, sendo ainda selecionada com meu pseudônimo "Pérolas de Suor", em concurso paralelo, depois, com outros poetas, fiz a transtextualidade de poema de Fernando Pessoa-que publiquei aqui e integro "Camarinhas de Poesia", um belíssimo livro que aborda o amor: quinze poetas pre-selecionados, participam com dez poemas cada (tudo que cito, exceto esse novo, aconteceu em 2011).

A capa é fantástica , as edições são mesmo bonitas e cuidadosas.

Abraços:

Clevane Pessoa de Araújo Lopes
Membro Representante da REBRA_Rede Brasileira de Escritoras em MG.
Representante do Movimento Cultural aBrace-Brasil;Uruguai
Vice Presidente do Instituto de Imersão Latina-IMEL.
Embaixadora Universal da Paz -Cercle de Ambassadeurs Univ.de la Paix-Genebra, Suiça,
Consultora de Cultura da Associação Mineira de Imprensa-AMI.
Membro da Rede Catitu de Cultura; do virArte, da ONE, da SPVA/RN, da CAPORI, da APPERJ,e do PEN Clube de Itapira.
Colaboradora da ONG Alô Vida. .
Membro Honorário de Mulheres Emergentes
Divulgadora e Pesquisadora do MUNAP_Museu Nacional da Poesia
Dama da Sereníssima Ordem da Lyra de Bronze
Acadêmica da AFEMIL-Academia Feminina de Letras; da ALB/Mariana;
Acadêmica Correspondente da ADL, ANELCARTES, ATRN, AIL, ALTO, da Academia Pre-andina de Artes, Cultura Y Heráldica;
Academia Menotti del Picchia,Aila(itapira)

Ialmar Pio Schneider (Soneto a uma Musa)


Tento ainda escrever mas, tristemente,
meu coração soluça e não esquece
a musa que enfatiza a minha prece
e sinto que estou mal, estou doente.

Por que será que foste a grande ausente
na vida do poeta que padece,
(oh! fada que percorres minha messe)
e me fazes sofrer inutilmente?!...

No entanto, minha velha companheira,
eu te levo comigo na desdita,
e há de ser a esperança derradeira

de seguir versejando amargas penas,
porque em sonhos te vejo tão bonita,
e pra mim tal conforto basta, apenas...


pág. 10 - “O TIMONEIRO” - 21.8.81 - CANOAS (RS)

Pedro Malasartes (Malasartes Vende uma Panela de Alumínio)


Em uma de suas andanças pelos mercados e feiras, Malasartes usando a sua grande astúcia e tino para os negócios, conseguiu trocar o que não valia nada por uma linda panelinha de alumínio, pensando:

– Hum... esta panela vai ser muito útil para cozinhar nas estradas.

Na primeira viagem que fez levou a panelinha e estava preparando o seu almoço, que já abria a fervura, quando ouviu o tropel de um comboio que carregava algodão.

Mais que depressa cavou um buraco, colocou todas as brasas e tições dentro, cobrindo o buraco com areia, e pôs a panela por cima, que continuou fervendo.

Os comboieiros que iam passando ficaram admirados de ver uma panela ferver sem haver fogo. Pararam, discutiram e perguntaram se Malasartes não queria vender a panelinha por um bom dinheiro.

Malasartes fez-se de muito rogado. Dizendo ter adquirido aquele precioso objeto em terras distantes. Mas os comboeiros aumentaram a oferta e Malasartes terminou vendendo a panelinha.

Eles, os novos proprietários da panela mágica seguiram a sua jornada, muito satisfeitos da compra que no outro dia verificaram ser mais um logro, uma diabrura, do conhecido PEDRO Malasartes.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Nilto Maciel (Dez Cuecas para a Eternidade)


Carlos sentou-se num banco de praça e abriu a sacola para conferir as cuecas compradas há pouco. Contou uma a uma. Ao largo, pessoas passavam apressadas. Nos demais bancos, homens sentados. Uns fumavam. Talvez filosofassem. Disseram-lhe ser o ato de fumar propício a filosofar. Não tanto os cigarros. O cachimbo se adequava mais aos filósofos. Nunca deixou de acreditar na existência de Deus e na imortalidade da alma. Crenças rasas, adquiridas ao longo da vida, desde menino, com a mãe, os padres, os professores. Casou-se na igreja com Gessilda do Espírito Santo. Nasceram-lhe três filhos. Não chegou a cursar faculdade, porém ingressou no serviço público e cedo passou a ganhar salário invejável. Adquiriu imóvel e nunca deixou de freqüentar a igreja e rezar diariamente. Sabia de cor diversas orações. Confessava-se regularmente, sempre contando ao padre os mesmos pecados: “desejei a mulher mais próxima, porém logo me arrependi; quase todas as atrizes do cinema e da televisão; pecado passageiro e idiota”.

Rapazes e meninos sujos andavam pela praça. Um deles aproximou-se de Carlos e logo se afastou. Sumiu na multidão. Carlos levantou-se do banco e se pôs a caminho do estacionamento. Numa das mãos conduzia a sacola com as cuecas. Um colega de trabalho dizia-se ateu e, vez por outra, tentava infundir-lhe suas idéias. Deus não existia. Para existir, deveria ser o único ente do Universo. Nada de homens, animais e vegetais. Porque uns devoram outros, uns necessitam de outros. Os da mesma espécie também se matam. Os homens, sobretudo. E nada, ninguém seria capaz de impor outra ordem. Se ninguém — Deus, por exemplo — pode ordenar o mundo, a vida, impedir o crime, o assassinato, a matança, então não há esse alguém.

Andando pela calçada, Carlos não percebeu a aproximação do rapaz que o havia mirado na praça. Chamava-se José, aparentava 18 anos de idade, vestia-se pobremente e vivia de pequenos roubos. Também acreditava na existência de Deus, porém quase nunca se lembrava dessa crença. Não freqüentava igreja, não sabia rezar e confessava seus pecados a Maria, sua companheira. Seria mãe em breve. Se fosse menino, o nome seria Fernando; menina, Fernanda. Nasceria negro ou negra, como os pais, porém não seria doméstica ou ladrão. Seria médica ou deputado.

Súbito José arrancou da mão de Carlos a sacola e voltou-se, para fugir. No entanto, chocou-se com o corpanzil de outro pedestre. Desequilibrado, caiu. Assustado, Carlos quis fugir também, porém decidiu recuperar as cuecas. E pôs-se a pisotear e dar socos em José. Logo outros homens cercaram José e passaram a linchá-lo. Já havia muito sangue na calçada e José não reagia mais. Vendo isso, Carlos, de posse das cuecas e arfando feito animal caçado, retirou-se do local. Mais adiante entrou num bar e pediu água. Como demonstrasse cansaço e nervosismo, o homem do bar ofereceu-lhe cerveja. Nunca havia bebido, não fumava, não praticava qualquer vício. Achava abjetos os bêbados, suicidas os fumantes e pecadores os viciados. Gostava de futebol, torcia por grandes times, porém sem nenhum fanatismo. Votava sempre nos candidatos do centro, abominava os esquerdistas. Apesar disso, conhecia um marxista. Não um comunista, apenas o criador do cachorro Marx. Daí dizer-se marxista: amava Marx, o cão. Puro deboche.

Diante de Espírito Santo, demorou a contar o ocorrido. “Você bebeu?” Brigaram. Ele contou tudo, ou quase tudo. “O ladrão morreu?” Devia ter morrido. No dia seguinte, os jornais noticiaram o fato: José havia falecido. Seus agressores o mataram a pontapés, socos e pauladas, e depois encharcaram seu corpo de gasolina e álcool e atearam fogo. Maria virou mendiga e deu ao filho o nome de José. Teve outros filhos, porém José morreu antes de dois anos de idade. Carlos passou a beber muito. Alguns anos depois morreu de enfarte. Espírito Santo reza todo dia por sua alma, que subiu aos céus, segundo o padre, os filhos e ela mesma.

As dez cuecas — nunca usadas — também desceram à sepultura.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Pescoço de Girafa na Poeira, contos. Brasília: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Trova 218 - Carolina Ramos (SP)

Lucia Constantino/PR (Poemas Escolhidos)


CHEGADA

Este dia que te chega
mais veloz que ontem,
quando havia um prato à mesa
e o teu nome.

Ah, escolha entre as rosas
a única que te cabe na alma,
a única que é canto e salmo
para que não tenhas mais medo
de caminhar.

De noite as estrelas te falam
do cantar dos galos
à chegada
dessa presença na alma,
quando até os deuses
vão acordar.

TENHO SAUDADES

Tenho saudades do meu amor que te amava
vestido de silêncios e conflitos tão sinceros.
Um amor que era sol - um amor tão belo
que até aos anjos a sonhar ele ensinava.

Tenho saudades do amor que eu sentia,
momentos manuscritos dentro do coração.
Tinha linhagem aquele sonho que eu vivia.
Era uma luz passando a limpo a escuridão.

E onde estás? Não te encontro mais
e nesses meus sonhos, o que buscais
ó anjos? - a esperança já vencida?

Não entendo mais essa linguagem.
Sei que a dor muda toda paisagem
do livro interior, onde se escreve a vida.

QUANDO AINDA ERA DIA...

(a minha mãe Hilda, in memoriam)

Quando ainda era dia
e as nuvens passeavam no céu,
eu ouvia tua palavra,
por mais cansada que estivesses.
Estavas ali com teu coração,
então minha angústia se calava
porque a tua palavra era prece.

Quando ainda era dia
mas a chuva desmanchava meus sonhos
sempre estavas ali
carregando em teu colo não os teus,
mas os meus abandonos.

Quando ainda era dia
e meu olhar parava nas distâncias
fitando o nada do horizonte
inocentemente me perguntavas
- O que estás vendo tão longe?

Depois a noite desceu
sobre os nossos jardins,
sobre os teus canteiros,
as tuas hortaliças.
O galo não mais cantou.
Os espinhos sorriram pra mim.
A alegria me perdeu de vista.

Aninhou-se no mais alto da árvore
um pássaro chorando na tarde.
E os anjos te envolveram no ocaso
de tua própria luz
como Verônica envolveu em seu braços
o lenço que roçou o rosto de Jesus.

IRÁS LONGE

Sete céus apascentam teus pés,
como as cores do arco-íris.
Irás longe carregando o manto de tua alma
para os querubins descalços
que contigo fizeram essa aliança de luz.
Na senda que percorres
tuas palavras hoje soam como fábulas.
Mas sob a chuva das quimeras humanas,
destilarás tua seiva para nutrir
as raízes dos desencontrados,
quando as noites transformam em pó
toda palavra que não foi pronunciada
dentro de nós.

TEU OLHAR

Talvez a estrela mais bonita
não seja essa que tu vês.
É a que brilha dentro dos teus olhos
em cada anoitecer.

Esse teu olhar faz as horas
caírem pelo ocaso desmaiadas.
O luar pensa que a aurora
já está pelos teus olhos humilhada.

Talvez um pirilampo já te tome
por outro pirilampo, seu amado.
Até o amor muda de nome
quando há dois céus, lado a lado.

... ME ENCONTRAR EM TI

Tenho de Ti me esquecido
ao longo do caminho.
Às vezes tranco todas as portas
e nem ao menos espio pelas janelas
para ver se estás ao portão.
Quando dormem as estrelas
e a chuva cai dentro de minha alma,
anseio pelo ninho que criaste um dia
para me receber.

Sei que Teu verso reconhece o meu
ainda tão inútil no Teu templo da Palavra.
Mas o acolhes mesmo assim,
porque sabes que a relva também poder ser boa
para Tua incognoscível seara.

E quero tanto me encontrar em Ti...
Mas,à noite, quando pauso o coração
para ouvir minha alma
tenho a impressão de nela Te ouvir
...soluçar.

Fonte:
http://www.luciaconstantino.prosaeverso.net

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 483)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Quanto mais cresce a ambição
sem cautela, em mãos de ateus,
mais vejo o mundo sem pão
e a humanidade sem Deus.
–ELEN DE NOVAIS/RJ–

Uma Trova Potiguar


Maria trabalha tanto,
quanta pena eu sinto dela,
mas não perde o seu encanto
mesmo lavando panela!...
–BONIFACIO SANTOS/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos ...
–LUIZ OTÁVIO/RJ–

Uma Trova Premiada

2010 - Ribeirão Preto/SP
Tema: VIAGEM - 2º Lugar


Já reservei a passagem
e aguardo sem reclamar...
que a data desta Viagem
é Deus quem vai carimbar!
–CAROLINA RAMOS/SP–

Simplesmente Poesia

Amor
–DELCY CANALLES/RS–


Dizem que para o amor
não há idade,
e quem ama, retorna
à adolescência!
Não é sofisma, o dito,
é a verdade,
seja qual for a gama
de experiência!

Estrofe do Dia

Como inspirar-me? Tem dias
que a musa aparece e voa
cansada das poesias
que eu ando fazendo, à-toa.
Deixa-me só, num deserto
sem nem uma luz por perto
que eu possa ver o meu sonho;
a mente fica confusa...
Quando foge a minha musa
Meu verso fica enfadonho.
–RAYMUNDO SALLES/BA–

Soneto do Dia

Soneto ao Grande Amigo
–LUIZ ANTONIO CARDOSO/SP–


Desde os primórdios desta triste vida,
privado de carinhos, de atenção,
minha alma, em via crucis dolorida,
entrega-se, sem luta, a depressão.

Tantas saudades tenho da acolhida,
entre beijos e abraços... tudo em vão!
Não passam de delírios, pois a lida,
se faz no lar da eterna solidão.

Mas Deus coloca sempre, neste mundo,
pequenas criaturas, que no fundo,
demonstram um amor descomunal.

E assim, ao adentrar no triste lar,
meu coração se alegra ao ver pular
meu cachorrinho em gesto fraternal.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (Notações Poéticas Sobre um Tema de Maio)


1- Não vamos fazer discriminações, mas reconheçamos que há no amor da mãe portuguesa certas características especiais, a força de um sentimento curtido em infinitas saudades. Povo de navegadores, de emigrantes, de pescadores, de gente que se atira para o mar, em diálogo com os horizontes, sempre longe de casa, como conseqüência de sua própria vocação para a aventura e o exílio, os portugueses, e suas mulheres, em particular, conhecem melhor o drama dos que ficam sós, dos que se alimentam de esperas infindáveis e angustiantes.

Daí o significado deste tema na poesia portuguesa, e na nossa, herdeiros que somos de sua saudade, abrasileirada e mais sofrida, com o componente negro de nossa etnia.

Aqui mesmo, noutra crônica, já transcrevemos alguns dos mais inspirados versos de Belmiro Braga, Constâncio Alves, Hermes Fontes, Mauro Mota e Mário de Andrade, cujo poema “Mãe” é uma das mais belas exaltações do amor materno que conheço. Mas infelizmente, não dispúnhamos, na oportunidade, de um soneto de Martins Fontes, o ensolarado poeta santista, de “Verão”, para que pudéssemos alinha-lo ao lado do poema de Mário de Andrade.

Aproveitamo-nos agora da publicação da excelente antologia “232 Poetas Paulistas”, de Pedro Worms, para que os leitores possam retê-lo conosco:

“Mãe”

Beijo-te a mão que sobre mim se espalma
para me abençoar e proteger,
teu puro amor o coração acalma,
provo a doçura do teu bem querer.

Porque a mão te beijei, a minha palma
olho, analiso, linha alinha, a ver
se em mim descubro um traço da tua alma,
se existe em mim a graça do teu ser.

E o M gravado sobre a mão aberta,
pela tua clareza, me desperta,
um grato enlevo que jamais senti:

quer dizer Mãe, este M tão perfeito,
e com certeza em minha mão foi feito
para, quando eu for bom, pensar em ti.
.
Como vêem, uma beleza. Tenho a impressão de que uma linda canção brasileira, de Ari Barroso, com letra de Luís Peixoto, foi inspirada neste soneto. Lembram-se de: “Maria/ o teu nome principia/ na palma da minha mão”?

2- Há um imperdoável esquecimento nos festejos do Dia das mães. Gostaria que nos lembrássemos, em nossas homenagens, de uma figura quase lendária, já integrada ao nosso folclore: a “mãe preta”. Ficou como um símbolo de abnegação, de carinho, de sacrifícios, de nossa antiga sociedade colonial. Foi a mãe da própria civilização brasileira, que embalou, amamentou e ajudou a criar. Um dos contos que mais se fixaram em meu espírito é aquele de Osvaldo Orico, “O Roubo”, em que relata a história de uma escrava negra, obrigada a amamentar o filho do senhor branco, enquanto o seu ficava a chorar, com fome, na senzala.

Nunca tive “mãe preta”. Mas poderia dizer que conheci uma espécie de “madrinha preta”. No meu tempo de menino, no casarão de meu avô Tinoco, em Botafogo, a mais importante personagem de minha infância foi a Maria cozinheira. Ainda vive, e hoje sua carapinha está algodoada pelo tempo. Na ampla cozinha, era ela que fazia as guloseimas que nos deliciavam; que preparava os siris que eu pescava nas pedras do morro da Viúva, mesmo resmungando pelo trabalho que dava.

Era ela que me escondia atrás da porta, quando corria de minha mãe, para escapar à surra que ameaçava. E foi pensando nela, ou pelo menos, dedicadas a ela, que escrevi estas quadrinhas no meu “Cantiga do Só”:

Mãe Preta... Em versos, cantando,
fiz teu perfil em dois traços:
- és a ternura embalando
o amor, criança, em seus braços.

Partilhando sem protesto
teu leito e teu coração,
unias num mesmo gesto:
o amor... e a abnegação.

Mãe Preta... Que bem nos faz
lembrar teu vulto ainda agora,
Mãe Preta dos nossos pais
mãe das mães brancas de outrora.

Simbolizas a beleza
do mais branco e puro amor...
- Ó Mãe Preta, és, com certeza,
Nossa Senhora de Côr!

Mãe Preta... Um anjo bendito,
velho anjo protetor...
-Irmã de São Benedito,
- Babá de Nosso Senhor.


3- Uma das mais lindas trovas da língua portuguesa, era tida como anônima. Atribuíam-na a autores brasileiros e portugueses, a Catulo da Paixão ou a Antônio Correia de Oliveira. Quem não a sabe de cor?

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria,
era uma Santa escutando
o que outra Santa dizia.


Quando a citei como tal, recebi de Curitiba uma carta de Barreto Coutinho, poeta pernambucano.

Confesso, entretanto, que a dúvida me corroia ainda, até que li o boletim da U.B.T. de fevereiro de 1968 (União Brasileira dos Trovadores). Lá está o clichê da primeira página do jornal ? “A Província” de Recife, de 28 de janeiro de 1912, exemplar pertencente à Biblioteca Nacional, e nele se encontra o poema em 8 quadras, “Mãe”, de Barreto Coutinho. A quinta quadrinha é a trova que se desgarrou, ganhando a popularidade e a glória. Com uma diferença: seu primeiro verso é “Uma vez vi-a rezando”, e não “Eu vi minha mãe rezando”, tal como o conhecemos. Mas compreende-se a pequena modificação feita pelo povo, pois isolando-se a quadrinha, houve a necessidade de que num verso figurasse a palavra “mãe”, para dar-lhe sentido, o que não se torna preciso quando integrada ao poema.

Esclarecido o mistério, pela paciente pesquisa de outro poeta de Pernambuco, Nelson Vaz, ganhou o trovismo brasileiro uma de suas mais preciosas jóias líricas.

4- E peço licença para encerrar esta página de simples notações poéticas sobre o tema do mês, com um soneto em que homenageio aquela que, entre tantas que por acaso passem por nossos caminhos, será sempre: “A Primeira”

Foste o nosso primeiro balbucio
a primeira palavra pronunciada;
o primeiro aconchego, se fez frio,
nosso primeiro passo, pela estrada.

O primeiro conselho ante o desvio
que pudesse levar a uma emboscada
a presença, mais que outras, desejada
nos momentos de dor, ou desvario.

Foste tudo de bom que aconteceu:
- o beijo puro, o gesto carinhoso,
a mão primeira que nos protegeu.

Tudo nos deste: o próprio ser e o nome,
e foi teu seio farto e generoso
que silenciou nossa primeira fome!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Franz Kreüther Pereira (Painel de Lendas & Mitos da Amazônia) Parte 2


Trabalho premiado (1º lugar) no Concurso "Folclore Amazônico 1993" da Academia Paraense de Letras

A IMAGINAÇÃO, O SONHO E O MITO

“Se tu podes crer; tudo ó possível ao que crer”'
(Marcos, 9:23)


O homem moderno, civilizado, culto, multas vezes se prende às sensações provocadas por um sonho mau que lhe deixa a desagradável Impressão de que "algo vai acontecer"; e carrega esta impressão por algum tempo, a despeito de sua ciência e cultura. Isso porque, afirmava Jung, os sonhos e devaneios são elementos dinâmicos em nossas vidas, mas, para o indígena primitivo - e mesmo para alguns contemporâneos - o sonho e a realidade muitas vezes se confundiam, de tal forma que o sonho era-lhe uma outra realidade. Mario Mercier [9], animista e profundo conhecedor da magia natural, dá-nos uma visão dos sonhos como um repositório de conhecimentos iniciáticos, distinta daquela transmitida pela psicanálise. Diz ele, por exemplo, que se"... um índio sonha que foi mordido por uma serpente [...] far-se-á tratar como se efetivamente tivesse sido mordido". E diz mais: "O sonho é para eles a origem das liturgias: é o sonho que dá nome às crianças, que designa o xamã, o feiticeiro, o curandeiro [...] cria tabus, ajuda ou condena. O sonho é a voz dos antepassados, dos Espíritos, dos Deuses...

Há um pequeno poema chinês que ao meu ver expressa e sintetiza maravilhosamente a importância dos sonhos:

"Na noite passada, sonhei que era uma borboleta, e agora não sei se sou um homem que sonhou que era uma borboleta, ou talvez uma borboleta que agora está sonhando que é homem."

Não vamos aqui nos preocupar com a fisiologia do sono e dos sonhos; contudo, estenderemo-nos um pouco mais sobre o assunto, para respondermos a questão: seriam os mitos produtos de sonhos e da imaginação?

"Estamos expostos - escreve Erich Fromm[10] - a mentiras racionalizadoras disfarçadas de verdades, absurdos fantasiados de bom senso ou de mais sabedoria do especialista, a conversas hipócritas, à preguiça intelectual ou desonestidade falando em nome da 'honra' ou de 'realismo', conforme o caso."

Isso tudo funciona como um "barulho" - para usarmos uma expressão do próprio Erich Fromm - capaz de embotar nossos sentidos e a própria intuição. Assim, a mente do homem, quando acordado, racionaliza seus julgamentos pelos parâmetros rígidos que seu meio, sua cultura e sua sociedade impõem. O contrário se dá quando ele está adormecido, pois é durante o sono que o homem está isolado desse "barulho" e em comunhão "consigo próprio, com suas próprias impressões e sentimentos".

É inquestionável a importância dos sonhos. Sabe-se que durante o sono as informações e impressões recebidas ao correr do dia são, depois de processadas e classificadas, sedimentadas no núcleo da memória. Experiências realizadas provaram que a pessoa desperta das todas as vezes que começavam a sonhar, ou quando estavam no estado chamado REM (sigla norte-americana para Movimento Rápido dos olhos), perdiam a capacidade de recordar coisas elementares, e até apresentaram distúrbios psicológicos, o que provocou a suspensão de tais experiências.

Sonhar é uma necessidade básica do ser humano, tal como a de criar símbolos. Os sonhos, da mesma forma que os mitos, possuem uma linguagem particular, própria, cuja chave para um claro entendimento já foi esquecida por quase todos. De forma prática, mas sem exageros, podemos afirmar que os mitos são "sonhos" de uma comunidade, de um povo ou de uma civilização.

Os sonhos ajudam a acomodar os conhecimentos absorvidos em vigília, mas também, ajudam a proteger e a preservar a personalidade individual, funcionando como válvulas de escape às repressões, às censuras e desejos irracionais que o indivíduo anela. Esta seria, para Freud, a própria essência dos sonhos. Os mitos, por seu turno, funcionariam de maneira semelhante, para a civilização ou comunidade que os criou. Eles ajudam a armazenar um conhecimento e facilitariam o seu output, como por exemplo, os mitos etiológicos, que tratam da origem e utilidade das diversas coisas.

A sociedade atual pressiona cada vez mais o homem contra as suas aspirações e desejos mais primitivos e irracionais (sexo, ambição, etc.), obrigando-o a encontrar formas de sublimação. Para Erich Fromm, "quanto mais a sociedade evolui e o obriga a reprimir esses impulsos, tanto mais aprende ele a criar formações reativas e sublimações". Tamanha pressão poderia forçar o surgimento de uma nova linguagem simbólica através da qual a sociedade pudesse revelar suas tendências intrínsecas, da mesma forma que os sonhos expressam de maneira cifrada as mensagens do inconsciente? Possivelmente! De fato temos um caldo nutriente favorável à criação de novos mitos, mas é mister que eles possuam a força dos antigos mitos - como o nosso Jurupari ou Curupira - se quisermos que funcionem como disciplinadores sociais ou reestruturadores do nosso caos interno e externo. Porém, o que podemos extrair desse bojo são mitos como os dos "Super-Heróis" Cyborgs (os biônicos) que são a expressão máxima da Cibernética; ou mitos como os dos paranormais dotados de poderes mentais quase ilimitados. Estes estão cada vez mais profusos na cienc fiction e mais próximos da realidade, mas há também mitos como o do Messias ou Enviado, presente em toda civilização ou cultura que se acha ameaçada ou deseja mudanças; ou ainda o dos "Protetores" que esperamos venham em nosso socorro quando uma situação se torna critica. Um exemplo de como uma sociedade oprimida cria mitos aconteceu durante a campanha das "Diretas' Já" e a "mi(s)tificação de Tancredo Neves"[11], mas isso já é outra história.

Retornando ao nosso tema principal, podemos concluir "a priori", que o mito é a resposta a um estimulo e uma necessidade pesíquica, enquanto a imaginação é o caldo nutriente, o meio de cultura onde a semente do mito germina e floresce. Creio que os mitos são, junto com os seus símbolos, a primeira manifestação de um aprendizado científico. Vemos assim que tanto o primitivo quanto o contemporâneo necessitam de ter seus mitos e crenças.

Carlos Suares, apud Martin Sagrera (1967: 83) escreve:

“Subyacente a toda civilización hay una equación mitica, es decir, una constelación de simbolos muy profundos agrupados de manera peculiar, que modelam el inconsciente colectivo.”

Engana-se, pois, quem pensa que o mito é arte da mente fantasiosa e irreal comum ao homem primitivo ou ao homem do mato; como se o homem citadino não fosse dotado de uma Imaginação tanto ou mais criativa. Mas, tanto o homem contemporâneo quanto seu ancestral, na busca ou tentativa de satisfazer suas inquietações interiores, de responder as indagações que os aflige, inventam suas soluções e seus meios para saciar a inquietude e pôr termo ao desassossego Intimo. Sim, inventa! Porém, não inventa o que não pode compreender ou entender. E as religiões podem ser tomadas como um exemplo disso, pois, estão pejadas de símbolos criados pelos primitivos, de imagens arquetipais elaboradas segundo as necessidades psíquicas de seus criadores. Jung bem o sabia quando elaborou sua teoria dos arquétipos, e com autoridade inconteste afirma:

“No le basta al primitivo com ver la salida y posta del Sol, sino que esta observación exterior debe ser al mismo tiempo un acontecer psíquico, esto es, que el curso del Sol debe representar el destino de un dios e de un heróe, el cual en realidad no vive sino en el alma del hombre."[12]

O MITO: CONCEITOS

“O mito é o nada que é tudo”
(Fernando Pessoa)


Como já vimos no início deste volume, o conceito de mito, malgrado nossos esforços, não ficou bem definido; confundindo-se com o de lenda. Neste capítulo vamos retomar essa discussão, com o auxílio de alguns autores, com os quais pretendemos encerrar a questão entre mito e lenda e a existência ou não de diferenças entre eles.

Luís da Câmara Cascudo acredita ter encontrado o elemento de distinção entre lenda e mito no fator tempo-espaço. No seu Dicionário de Folclore Brasileiro[13], o verbete lenda traz o seguinte:

LENDA - "Episódio heróico ou sentimental com elemento maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e conservado na tradição oral popular, localizável no espaço e no tempo [...]. Conserva as quatro características do conto popular: Antiguidade, Persistência, Anonimato, Oralidade [...]. Muito confundido com o mito, dele se distingue pela função e confronto. O mito pode ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um termo central com área geográfica mais ampla e sem exigência de fixação no tempo e no espaço."

Se para Câmara Cascudo mito e lenda "se distinguem pela função e confronto", para outros pesquisadores, no entanto, um confronto não esclarece a função. O fundamental no mito é a propriedade "não reflexiva" (André Lalande), isto é, não questiona, não é critico... Aceita-se ou não. Já Victor Jabouille dá-lhe uma definição muito próxima de folclore quando afirma que o mito "é tão vasto que nele se pode incluir praticamente toda a expressão cultural humana [...] é a materialização extremamente complexa do Imaginário humano" (1986:16). Na verdade, mito é um vocábulo de múltiplas aplicações.

O professor e folclorista paraense Ubiratan Rosário14 esclarece que, para Brandão, a lenda “é uma narrativa composta para ser lida: legenda. Distingue da parábola, que é um mito intencionalmente criado. Difere da fábula que é uma narrativa de caráter imaginário que objetiva transmitir uma lição moral, etc.”

Três parágrafos adiante ele acrescenta que “Malinowski disse que os mitos não são nem simples lendas interessantes, nem relatos supostamente históricos. Antes são ‘para o povo em questão a mais alta verdade de uma realidade primitiva’ que proporciona o padrão e o fundamento da vida contemporânea”

Vejamos mais alguns conceitos:

Victor Jabouille (1986: 32):

"Se o logos é a linguagem da demonstração, o mito é a linguagem da imaginação, mesmo a linguagem da criação."

* André Lalande (p. 38):

"Narrativa fabulosa, de origem popular e não reflexiva, na qual os agentes impessoais, na maior parte dos casos as forças da natureza são representadas sob a forma de seres personificados, cujas ações ou aventuras têm um significado simbólico."

* J. G. Frazer (p. 39):

"Compreendo por mito explicações erradas dos fenômenos, quer da vida humana quer da natureza exterior."

* R. Graves & R. Patai (p. 41):

"Os mitos são histórias dramáticas que constituem instrumentos sagrados, quer autorizando a continuação de Instituições, costumes, ritos e crenças antigas na área em que são comuns, quer aprovando alterações."

* M. Eliade (p. 98):

"Por outras palavras, o mito conta como, graças aos actos dos seres sobrenaturais, uma realidade teve existência, quer seja a realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma Instituição. É sempre uma narrativa de uma 'criação' : conta-se como qualquer coisa foi produzida, como começou a ser. O mito não fala senão daquilo que aconteceu realmente, naquilo que se manifestou completamente. As personagens dos mitos são seres sobrenaturais."

Erlch Fromm (1966:174):

"O mito como o sonho, apresenta uma estória desenrolando-se no tempo e no espaço, estória essa que exprime em linguagem simbólica, idéias religiosas e filosóficas, experiências da alma em que reside o verdadeiro significado do mito. Se a gente não logra apreender o significado real do mito, fica em face de uma imagem ingênua, pré-cientffica do mundo e da história e, na melhor das hipóteses, um produto de uma bela imaginação poética, ou então - esta é a atitude do crente ortodoxo - a estória manifesta do mito é verídica, e tem-se de acreditar nela como um relato correto de fatos deveras ocorridos na 'realidade'."
*Apud. JABOUILLE, Victor. Op.

Carlos F. da Costa [15] (p 16):

"Um mito é um conjunto de símbolos que procuram falar daquilo que não se pode falar, não por ser um ser um segredo misterioso e proibido aos não-iniciados, mas por estar situado radicalmente fora da linguagem. Mito (gr. myein silenciar)

Concluímos que lenda e mito não passam de símbolos distintos para identificar a mesma coisa; enfim, são sinônimos, só que o termo lenda possui uma conotação poética.

Mario Mercier (1980: 52), transcendendo do significado cultural do mito, adverte:

"É na tradição, nas antigas narrativas, nesses arquivos universais chamados erroneamente de lendas, é nos velhos contos que o homem poderá reencontrar sua verdadeira identidade, sua identidade mágica. Para isso, deverá sair de sua cristalização intelectual e ultrapassar a concepção do símbolo que, embora energético, não deixa de ser bastante abstrato."

O mito "lato sensu" pode ser entendido como alegorias empregadas pelos antigos para revelarem ou perpetuarem verdades e conhecimentos; expressar conceitos morais, filosóficos e religiosos; justificar princípios; servir de referência histórica e geográfica, etc. Os mitos são projeções dos fatos reais, verdadeiramente acontecidos, aos quais os primeiros cronistas buscaram registrar com suas limitadas expressões e que, com a tradição oral, foram ganhando novas cores, inflacionando-se pelo calor da narrativa e pela imaginação do narrador; até que restou apenas uma "imagem" da verdade, refletida num espelho embaciado.

"Não devemos esquecer - escrevem Yolanda, Helda e Nobue16 -que todas as palavras são logogramas, isto é, símbolos construídos partindo-se de símbolos básicos...", dai que escrever, falar, fazer um relato ou contar uma história, é tentar descrever símbolos utilizando-se de outros símbolos. Numa forma mais simples equivale a dizer que "quem conta um conto aumenta um ponto", principalmente quando o conto é sobre a Amazônia. Já em 1923, Alfredo Ladislau [17] concluía que:

"... de mistura com essa névoa subtilíssima das lendas, que anda fluctuando na penumbra das florestas virgens, o itinerante passageiro pressente um balbuciar de histórias fantásticas, que o amedrontam. E será esse próprio forasteiro que propagará mais tarde, fora da Amazônia, o abuso das superstições, cuja teia finíssima ele mesmo ajudou a tecer inconscientemente."

Para concluirmos esse capítulo, tomemos emprestado a E. von Dâniken [18], o modelo que ele criou para ilustrar a sua tese de que o homem, na tentativa de explicar o que não compreende, cria mitos:

"Na selva africana desce, pela primeira vez, um helicóptero. Nenhum indígena jamais viu tal máquina. Com enorme estrondo aterrisa o helicóptero numa clareira. Pilotos em uniformes de campanha, com capacetes e metralhadoras saltam dele. O selvagem, em sua tanga, estaca tonto e abobadado, ante essa coisa que desceu do céu, e ante os "deuses" seus desconhecidos. Depois de algum tempo, o helicóptero eleva-se de novo e desaparece na atmosfera."

Deixamos à imaginação do leitor o desenrolar dessa aventura e a consequente narrativa que, por certo, o nativo faria quando de regresso à sua tribo.
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Notas
9 MERCIER, Mario. O mundo mágico dos sonhos. s. 1.: Pensamento, 1980, p. 48.
10 FROMM, Erich. A Linguagem Esquecida: uma introdução ao entendimento dos sonhos, contos de fadas e mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1966.
11 ver MICELI, Paulo. O mito do her6i nacional. s. l.: Contexto, 1988.
12 JUNG, Kar G. Arquétipos e Inconsciente Colectivo. Buenos Aires: Paidos, 1970, p. 20.
13 CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Brasília: INL/MEC, 72.
14 ROSÁRIO, Ubiratan. Op. Cit. p.45.
15 COSTA, Carlos F. da. Manual Prático de numerologia através do taró. Sao Paulo:Traço Editora, 1990.
16 Yolanda, Helda e Nobue. Ritos dos índios brasileiros (Xinguano e Cadiwéu). (textos). São Paulo: EBRAESP, 1975, p. 25.
17 LADISLAU, Alfredo. Terra ímmatura. Belém: J. B. dos Santos e da., 1923.
(N. A.) Terra Imatura é uma denominação literária para igapós.
18 DANIKEN, Erich von. Eram os deuses astronautas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984, p.79.

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Continua

Ialmar Pio Schneider (Musa Consoladora)


Foge-me a inspiração levada pelo vento
e junto vais, oh musa ardente e sedutora,
deixando-me sozinho envolto em meu tormento
e a se desesperar minh’alma sofredora !

Foste minha ilusão e meu contentamento,
a luz que prende a alma e a torna sonhadora,
e se hoje tua ausência em vão choro e lamento,
é porque te perdi, fada consoladora !

Aguardo teu retorno, encantada revinda,
pra que volte a cantar e a bendizer o amor...
Na noite mais atroz te concebo mais linda

e necessito, enfim, de teu magno esplendor
que me faça entender, talvez um pouco ainda,
o sonho genial de ser poeta e cantor...

Publicado em O TIMONEIRO - Pág. 14 de 6.8.82 - CANOAS (RS)

Pedro Malasartes (O Urubu Adivinho)


Devido o espírito aventureiro, Malasartes não consegue passar um dia fechado dentro de uma casa, assim ele comprova que “Sua casa é o mundo, seu destino é a estrada”, e ainda acrescenta: “Eu sou Pedro Malasartes, o sabido sem estudo, eu nasci sem saber nada e vou morrer sabendo tudo.”

Em mais uma de suas andanças, numa certa manhã de verão e seca no sertão, ele encontra no meio do seu caminho um urubu com uma perna e uma asa quebradas, debatendo-se no meio da estrada. Agarrou o urubu, colocou dentro de um saco e seguiu o seu caminho.

Ao anoitecer estava diante de uma casa grande e bonita. Pela janela viu uma mulher guardando vários pratos de comidas saborosas e garrafas de vinho em um armário. Bateu na porta e pediu abrigo e comida. Mas a mulher recusou o seu pedido, dizendo que como o marido não estava em casa ficava feio, pra ela, receber um homem em sua casa. O que as vizinhas não vão falar. Terminou dizendo.

Malasartes foi pra debaixo de uma árvore e continuou a observar a casa. Com pouco tempo ele reparou que vinha chegando as escondidas um rapazinho ainda moço e que foi recebido com muitos agrados pela mulher dona da casa que o levou imediatamente para mesa e começou a servir vinho e um manjar de fazer inveja a qualquer rei.

Quando os dois iam começar a comer a beber, eis que aparece montado num cavalo alazão o dono da casa. O rapaz fugiu pelas portas do fundo e a mulher tratou de esconder os pratos de comidas e os litros de vinho dentro do armário.

Malasartes deu o tempo suficiente para o dono da casa tomar um banho e trocar de roupas e bateu novamente na porta da casa. O homem veio atende-lo, e ele pediu abrigo e comida. O dono da casa o mandou entrar, lavar as mãos e o convidou a sentar na mesa para o jantar.

A mulher começou a servir outra comida, bem pobre e mal feita. Malasartes, sempre com o urubu dentro do saco, deu com o pé, fazendo o roncar e começou a falar baixinho, como se estivesse discutindo com o urubu.

O dono da casa intrigado perguntou: – Com quem está falando?

Malasartes sem gaguejar respondeu. – Com esse urubu.

O dono da casa meio desconfiado retrucou: – Um urubu falando?

– Sim senhor, falando e adivinhando. Esse urubu é ensinado e adivinhador. – Disse com toda a esperteza Malasartes.

O patrão, imaginando que Malasartes era louco perguntou: – E o que é que ele está adivinhando agora?

Malasartes com a firmeza que lhe é peculiar respondeu:

– Ele está dizendo que naquele armário há um peru assado, arroz de forno, pernil de porco, bolho de milho, farofa de cebola e três litros de vinhos.

O Dono da casa só para comprovar ordenou a mulher: Procura aí, mulher, pra ver se é verdade. A mulher desconfiada ainda tentou dizer que aquilo era loucura, pois urubu não fala e nem tão pouco adivinha e Malasartes retrucou:

– Abra pra ver se é verdade ou não.

O Dono da casa ordenou: – Abra é uma ordem.

A mulher abriu o armário e fingindo surpresa anunciou tudo que o urubu tinha dito e todos comeram com muito apetite aquelas guloseimas.

Ao terminar o jantar o Dono da Casa perguntou por quanto ele queria vender o urubu e Malasartes fingindo indiferença disse que não vendia de forma alguma.

Pela manhã, após um grande e saboroso café, o dono da casa dobrou a oferta da noite passada e Malasartes fingindo contrariado aceitou o dinheiro, deixando na casa da mulher traidora e do homem besta enganado, um urubu, com a asa e as pernas quebradas, que nunca mais adivinhou coisa alguma.