Só a vocês eu vou contar o riachinho Sirimim. Ele é só ali, não é de mais ninguém. Em uma porção de grotinhas, ele vai nascendo. São muitos olhos-d’água, de toda espécie, um brota naquela pedreira, que tem atrás da casa do Pedro. Na grota onde tem uma pedra grande, cortada pelo meio, e aí as abelhas aproveitaram uma fresta e fizeram casa dentro. Ali é a nascente mais alta, e uma das grandes. Ele nasce junto com o mel das abelhas.
A pedra é de blocos quadrados, bonitos, ela é toda dura, toda reta, entre árvores — um pouquinho da mata, que ficou. Pedra mais alta que esta casa. Em cima, cheia de cactos; debaixo, forma-se uma lapinha, em que entrou o tatu que o Pedro caçou; no meio, a fenda horizontal, dentro dela se instalou o enxame de abelhas oropa, que fugiu da casa de alguém. Uma abelha picou o Maninho, que então meteu a foice ali, colheu. Inácia coou o mel. Ali não dá formiga. Ali é uma noruega: todo este grotão — a matinha, a pedra; até a casa do Pedro. As abelhas estão lá. O mel também mereja*, daquela pedra, junto do lugar que nasce a água. A água vem descendo da pedra, pela face da pedra. Ele nasce ali, é mais um molhado na pedra. Só uns fiapos d’água, que correm pela pedra.
Simples, sem-par, águas fadadas — e inavegável a um meio-amendoim. De amor um mississipinho, tão sem fim. Ele já é o Sirimim.
E faz um pocinho e uma biquinha, ali onde o Pedro pegou o tatu. E o Pedro teve a especialidade de plantar inhames perto, para as folhas servirem de copos. Ali ainda é noruega, a água em inverno e verão está sempre fresquinha. O Pedro bebe nas folhas de taioba, mas diz: “É pena eu não ter um copo de vidro, pra se poder ver embaciar...”
Outro poço, entre as goiabeiras, o da Eva lavar as panelas. E, depois da biquinha de bambu, em que bebe gente, tem o pocinho para os bichos: as galinhas, as cabritinhas; lá bebia a Bolinha, de quem o Pedro gostava tanto, que caçava tanto, e que “era tão amiga, que, quando zangou, foi zangar pra longe...”
Daí, a primeira disciplinada que dão nele: a virada de um reguinho, que fizeram, desviando-o de não ir no pé da mangueira grande, que não gosta de água. Sonso, o leito dele, todo, é um berço — é sempre assim — o Sirimim.
Solto, dali passa no arrozal do Pedro, que é uma várzea pequenininha, fresca, entre a mangueira grande e o escarpado do morro; de arroz mais bruto, que se facilita, por não precisar de tanto trato. Porque o Pedro é ainda meio tolhido, da que teve, como lá ele mesmo diz: uma “doença de brejo”. Sirimim se faz uns quatro regos, e nele nadam já os peixes barrigudinhos. Sirimim vai se engrossando. Terreno todo ali mina água. Sirimim, água-das-águas, é menos de meio quilômetro, ele inteiro. Só isto, e a fada-flor — uma saudade caudalosa: Sirimim-acima Sirimim-abaixo — alma para qualquer secura.
Sobrevindo outro riachinho, de lá de um pé de embaúba, nova, já no caminho da casa do Joaquim, onde rebenta seu olhinho-d’água: no lugar, quando o Joaquim planta o milho, deixa uma moita de capim, para “favorecer” o miriquilho. Essezinho também nasce alto, ele vem descendo assim. A confluência dos dois é bem debaixo da pinguela, que mais bem é uma estiva, a ponte de paus.
Sirimim, mais, se revira, e entra na várzea grande, mais baixa, que o terreno vem sempre descambando. Aí a várzea cortada de canais, abertos para os muitos minadouros* e que querem-se todos ao Sirimim: um que vem do curral velho, uns que nascem debaixo das tajubas — árvores boas para fazer mourão. São esses os de volume maior, os que tantos se surgem do fundo da várzea grande; mas o mais cheio e alto é mesmo o da casa do Pedro, por isso deu-se tradição de ser nascente principal: o próprio, primitivo Sirimim, batizado num jardim.
Só daí ele vem ao arrozal do Joaquim. Sarapintam-no, onde, as traíras, tigrinas, hieninas. Sereno nosso riacho e seu caminho manso, por entre o chão chato, terras-águas de arroz — as lezírias* de verdes reflexos.
Seja que, desde depois, se vê, em uma sua margem, a única arte que ele faz, só esta maldade do Sirimim: o “chupão”, lugar em que a terra é encharcada e as pessoas podem se afundar. O genro do Joaquim uma vez afundou, tiveram de estender a ele um pau, e se ajuntaram, todos, para o tirar. Joaquim tenteou o chupão com um bambu, o bambu se some lá para dentro. Joaquim fincou uns bambus em volta, para avisar de que ali é lugar que podia dar desgraça. Sob mato: verde: uma moita que fica mais verde.
Súbito, então, os bambus. Sirimim passa-os, por baixo. Sirimim penetra um grande lugar, a horta, a partezinha de horta dele nilegíptico — com alfaces, libélulas, rãs e náiades. Serve-a em três canais principais, que Joaquim fez, às tortas, aproveitando os tortos troncos velhos de ipê, madeira dura, que estavam caídos ou enterrados, quando ele limpou o brejo. Num deles, surte-se a biquinha da Irene lavar roupa. Tem um pé de rosa: rosinha cor-de-rosa, que se desfolha à toa; mas, de longe, você já sente o cheiro. Tudo que é casa tem essa roseira — de rosinhas pequenas, em cachos — roseira própria para chamar abelhas. Joaquim tirou também um retalhado de reguinhos, e tapagem de pequenas represas, para proibir as formigas e reservar água de rega para a tarde da seca. Mas as solertes* enguias pretas, que são os muçuns, socavam o fundo dos açudinhos, furando túneis que dão fuga à água; e uma praguinha verde prospera recobrindo tudo, plantinhas ervas que parecem repolhinhos — as formigas aproveitam para passar por cima. Joaquim xinga: — “Não é que dá praga até na água?!” Joaquim também plantou umas laranjeiras, condenadas à umidade — elas estão sentidas, umas já morreram — mas ali é o único recanto em que formiga não ataca. Joaquim só diz: — “Antes delas morrerem, sempre dão alguma alegria à gente...”
Sirimim, sua margem sul: uma carreira de bananeiras. Sirimim segrega sob a ponte — por onde passa a estradinha da casa. Sirimim — e há agora o bambu, que tem o ninho do sabiá; o que foi cortado, mas brotou — só aquele breve tufo, com uns poucos penachos, bonitos: num deles, vê-se, o ninho do sabiá; Sirimim o deixa para trás. Seguinte — só os cinco metros — é a biquinha antiga, abandonadinha, aquela coisinha de bambu, que colhe água. Sirimim veio até aqui quieto, que dele não se ouve; mas, a biquinha antiga, saturada, aí a água cai tanta, que já faz som, aí ele começa a falar: ...se bem, bem, bem bom... — e lá se vai, marulho abaixo.
Sirimim traspassa agosto, setembro a abril, chovido fevereiro, dezembro e tudo, flui, flui.
Sirimim e a estrada se separam, ele vem um trecho quase reto, se sorrateia lá no fundozinho de seu vale, em meio a um espaço verde, sem lavoura, porque ali ficava para pastar a bezerrinha do pé quebrado.
Sirimim atravessa uma noite e um luar, muito claros, os vagalumes vindos, os curiangos* cantando, perto e longe, por cima do mundo inteiro.
Sirimim se curva — aonde vai ser o açude — à carícia destes lugares. Ali, bulha entre outros bambus, grandes; após, o lugar onde se planta o amendoim — que vem quase à margem, fim. Separa-se para outra horta, a da dona do encanto. Sirimim...
Ah, e no bambual de bambus muito grandes, ele sai-se, deixa-se — para entrar sumido no rio. A enseada do Sirimim, coisa tão gostosa, você sabe. Assim toda de branca areia no fundo, aonde o Sirimim solve-se em sucinto, tranquilo. Aí, quando é época de pouco, ele nem chega a ajuntar-se com o rio: só se espalha na areia, e embebe-se, liquidado.
Se o rio toma de se enchendo, porém, ele represa o Sirimim, que se larga, que invade e ocupa a várzea toda, coberto de espumas e folhas de bambu. Siriminzinho, então, possui-se, cheio de peixes grandes. Sirimim ronca e barulha: em vez de correr para baixo, sobe ao arrepio, faz ondas, empurra-se para trás com a tanta água do rio, supera o chão e o tempo e confirma: toda a vida, todas as vidas, sim.
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Vocabulário
Curiango – ave de plumagem muito macia e voo silencioso.
Lezíria – leito maior ou planície de inundação, junto a certos rios, onde há depressões que são invadidas pelas cheias.
Mereja – mareja.
Minadouro – nascente de riacho ou ribeirão, ou olho-d'água dentro de grota.
Solertes – espertas, diligentes.
Tajuba – é o nome popular de uma árvore, o mesmo que taiúva.
Fonte:
Guimarães Rosa. Ave, palavra. Publicado em 1970 (póstumo)