segunda-feira, 25 de maio de 2020

Paulo Leminski (Versos Diversos) 1


quem é vivo
aparece sempre
no momento errado
para dizer presente
onde não foi chamado
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tem quem se proteja
por trás
de uma barragem
de bons dias
boas tardes
boas noites
assim não tendo
que ver o que está passando
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Achar
a porta que esqueceram de fechar.
O beco com saída.
A porta sem chave.
A vida.
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O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda
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um dia desses quero ser
um grande poeta inglês
do século passado
dizer
ó céu ó mar ó clã ó destino
lutar na índia em 1866
e sumir num naufrágio clandestino
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contranarciso

em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas

o outro
que há em mim
é você
você
e você

assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
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sobre a mesa vazia
abro a toalha limpa
a mente tranquila
palavra mais linda

aqui se acaba
a noite mais braba
a que não queria
virar puro dia

somos um outro
um deus, enfim,
está conosco
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cesta feira

oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
as roupas brancas da cesta

oxalá teu dia de festa
cesta cheia
feito uma lua
toda feita de lua cheia

no branco
lindo
teu amor
teu ódio
tremeluzindo
se manifesta

tua pompa
tanta festa
tanta roupa
na cesta
cheia
de sexta

oxalá estejam limpas
as roupas brancas de sexta
oxalá teu dia de festa

Fonte:
Paulo Leminski. Toda Poesia.

Aparecido Raimundo de Souza (Bico de Adagas)




O APARTAMENTO DEFRONTE AO QUE BANANÔNCIO MORA possui duas campainhas distintas. Uma delas tem uma tampinha cinza e o buraco redondo com duas pernas de fios soltas. Quando chega alguém querendo falar com o morador, que, diga-se de passagem, nunca ninguém viu nem mais gordo, nem mais magro, existe, abaixo do olho mágico da porta uma caixinha dessas modernas, ou melhor, a campainha de verdade para que seja comprimida e, uma vez acionada, alerte o residente de que há gente do lado de fora. Sempre que pinta uma viva alma no pedaço, Bananôncio fica sabendo, não porque bisbilhote o tempo todo, longe disso. Simplesmente o alarme sonoro do subir e descer do elevador dispara um “plim” igual ao da Globo, e corroborando a atitude desse mecanismo, as dobradiças enferrujadas da velha engenhoca rangem desesperadamente.

Nessas ocasiões, o rapaz aproveita para explorar, claro, pelo visor da sua própria entrada e ver quem é a visita que anda à cata do vizinho misterioso. Curiosidade de quem não tem o que fazer, a não ser esperar passar os dias lendo um romance, vendo televisão e aguardando o INSS, todo final de mês, depositar na sua conta bancária a aposentadoria conseguida em decorrência de um acidente acontecido há um ano, quando um pesado cachorro que vivia na cobertura de seu prédio (e até hoje, não ficou bem esclarecido) despencou doze andares e veio com tudo, para baixo, caindo exatamente sobre seus costados. Fora essa lembrança amarga, espreitar quem bate no vizinho passou a ser um bom exercício para ajudar a passar o tempo e fugir da rotina. Bananôncio se depara, nessas ocasiões, com as situações mais engraçadas e inusitadas possíveis. Dias atrás uma moça loira, bem vestida, procurava pelo botãozinho da campainha. Ela não viu diante de si a caixinha, abaixo do olho mágico e, por essa razão, começou a futucar, na esperança de enfiar um dos dedos no buraco da tampinha cinza e juntar os fios. Os dedos não ajudaram em nada.

Talvez fossem os anéis que atrapalhassem. Quem sabe a cor dos cabelos. Em seguida ela introduziu o polegar e o indicador com o objetivo de a qualquer custo fazer funcionar a geringonça. Puro fiasco. Saiu furiosa, cuspindo marimbondos.

Não foi diferente com um cidadão baixinho, aparentando uns quarenta anos, de chapéu na cabeça e uma bolsa dessas 007. O infeliz chegou ao cúmulo de, a certa altura das frustradas tentativas, meter a cara no olho mágico com a finalidade de ver se pastorava alguma coisa dentro da peça. Também teve problemas com os cordéis. Pelo visto, e pelo ar desagradável que fechou em seu rosto, deve ter tomado um tremendo de um choque. Desistiu, pois, da empreitada. Resmungando cobras e lagartos, deu meia volta e desapareceu.

Bananôncio chegou à conclusão que as pessoas, de um modo geral são levadas ao grotesco, e expostas ao ridículo por pura comodidade. Ninguém para, por alguns instantes, com a intenção de analisar o que está posto e visível diante do nariz. E pensar numa solução simples, que culmine num resultado rápido e prático. Às vezes, um problema insignificante, de finalização gritante e à vista, está logo ali, atropelando, esmagando, instigando, como se fosse uma cobra prestes a dar o bote. Todavia, a pressa, aliada à azáfama e à afobação, juntas, de mãos dadas, com a velha burrice derramam tudo a perder.

O incrível e cômico na história: quem quer que chegue logo se vê às voltas com os atalhos da campainha. Talvez, no fundo, seja essa a verdadeira intenção do dono do apartamento. Dar choque nos chatos que não desistem de vir até ali perturbar o seu sossego. O engraçado morador deve rir muito e se divertir um bocado. De qualquer forma, esse vizinho de Bananôncio não quer, decididamente, ser incomodado por ninguém. Ora, se não quer ser molestado, por que então fornece o endereço de seu domicílio?

Desse, por exemplo, o de uma tia, ou o de um amigo, ou da pizzaria logo ali na esquina, a menos de duzentos metros e preservasse a sua privacidade com unhas e dentes, não com fios desencapados. Mas os trocinhos do nariz sonoro daquela campainha, soltos, de certa forma instigam a atenção dos que acampam, de repente, diante da entrada do elemento, seja com pressa, suando em bicas, ou porque tenham outros afazeres a serem cumpridos, além daquele de estar ali. Pelo sim, pelo não, todos os que zanzaram até agora pelo corredor imenso, se olvidaram de atentar para os mínimos detalhes e de apertar o botãozinho correto, logo abaixo do olho de visão.

Bananôncio percebeu, e não só percebeu, aprendeu e muito com suas olhadelas clandestinas. Concluiu que cada pessoa reage de uma maneira diferente. Uns destratam, afrontam, espinafram, xingam. Outros fazem caretas, olham para todos os lados, desconfiados. Teve um visitante que, inconformado, se deu ao trabalho de urinar no pé da porta, e depois, seguir seu caminho. As mulheres, em meio a essa confusão são as mais interessantes de ser reparadas. Elas se ajeitam antes. Penteiam os cabelos, retocam a maquiagem, renovam o batom dos lábios num cunho estritamente ligado a favor da boa elegância. Os homens são menos exigentes com a aparência. Só corrigem o nó da gravata, os óculos, ou dão uma batida discreta, com uma das mãos no paletó para afastar algum pozinho ou cisco que, por ventura, tenha grudado. No geral, pensam em tudo, esses ilustres turistas, todavia se esquecem do mais comum e corriqueiro: apertar o botãozinho da segunda campainha, logo abaixo do olho mágico, ou por outra, de baterem suavemente com os nós dos dedos produzindo um leve e quase inaudível toc, toc na porta sisuda, carrancuda e silenciosa, parada, estática, sem vida, bem ali, diante de suas imperturbáveis imbecilidades.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. Rio de Janeiro: Editora AMC Guedes, 2013

domingo, 24 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 276


Contos e Lendas do Brasil (Os Músicos Prosas)

Havia numa terra de Minas dois músicos, afamados clarinetistas. Ninguém podia com eles. Por isso mesmo, eram rivais e andavam sempre de rusgas. Pertenciam a bandas diferentes e seus admiradores constituíam-se em partidos.

Certa vez encontraram-se na rua e puseram-se a conversar. É que de mal, de mal mesmo, nunca chegaram a ficar. Sustentavam sempre boa política.

Um deles gabou-se:

— Há poucos dias, toquei numa festa do Senhor dos Passos em certa cidade e quando saiu a procissão a banda tocava um dobrado tão lindo que meti a clarineta na boca, seu compadre, com um gosto... Todo mundo me admirava e já nenhum outro instrumento sobressaía. Dali a pouco, viu-se o Senhor dos Passos mover-se no andor e como quis subir ao céu, embalado pelo sons que saiam da minha clarineta. Os padres, as irmandades, o povo, tudo estava voltado para mim e de boca aberta, diante daquele milagre. Foi preciso parar o dobrado para que a procissão continuasse a marcha e o Senhor dos Passos ficasse quieto no andor!

O outro músico ouviu com toda paciência a maranha do rival. Depois, pegando a palavra, saiu-se com esta:

— Isso é nada, compadre, em comparação com o que se deu comigo na mesma cidade de que você falou. Fui tocar no enterro de um graúdo. Gente que não acabava mais. Começamos uma marcha fúnebre. Minha clarineta estava mesmo manhosa; chorava que dava gosto. O povo ficou apatetado, olhando para mim, como se a minha música fosse coisa nunca ouvida, vinda lá do céu. Dali a pouco, não havia quem não chorasse, gabando a minha clarineta, dizendo que não havia coisa igual em toda a redondeza.    Eu continuei, modestamente e, quando ia no melhor da festa, o caixão começou a mover-se, a tampa abriu-se e, ao som do instrumento, o defunto foi-se levantando até que ficou de pé. E, voltando-se para mim, gritou entusiasmado:

- Vá tocar clarineta... nos quintos dos infernos!

Fonte:
Anísio Mello (org.). Estórias e Lendas de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. São Paulo. Ed. Iracema.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 14


O MAR E A NOITE...

MOTE:
O mar sentindo embaraços
na noite de lua cheia,
carrega a noite nos braços
para deitá-la na areia!...
Ademar Macedo
Santana do Matos/RN, 1951 – 2013, Natal/RN


GLOSA:
O MAR SENTINDO EMBARAÇOS
no sabor de uma paixão,
quer entregar os abraços
que nascem do coração!

O mar fica mais sensual
NA NOITE DE LUA CHEIA,
num prateado sem igual
fala de amor à mancheia!

Com carinho, em seus espaços
explodindo de desejos,
CARREGA A NOITE NOS BRAÇOS
e a enche de ternos beijos!

O mar sendo amante e amigo,
aproveita a maré-cheia
e leva a noite consigo,
PARA DEITÁ-LA NA AREIA!…
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SOLIDÃO CONTIGO!

MOTE:
Dei um basta à indiferença!...
– Nem tentes mais meu perdão,
pois foi na tua presença
que eu conheci solidão!...
Clenir Neves Ribeiro
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
DEI UM BASTA À INDIFERENÇA,
pois vou ser feliz, sozinha;
não fazes parte da crença,
da crença de amor que eu tinha!

Não tentes chegar a mim,
– NEM TENTES MAIS MEU PERDÃO,
meu amor chegou ao fim,
é o que diz meu coração!

Vou sentir a diferença
de agora, ser bem feliz,
POIS FOI NA TUA PRESENÇA
que eu sofri, fui infeliz!

Foi nessa vida vazia,
vivida sem emoção,
que eu perdi minha alegria
QUE EU CONHECI SOLIDÃO!…
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TRÊS POR QUATRO

MOTE:
BEIJO-TE A FOTO... E NA ESPREITA
DESTE AMOR QUE EU IDOLATRO,
MINHA SAUDADE SE AJEITA
NO RETRATO TRÊS POR QUATRO.
Edmar Japiassú Maia
Nova Friburgo/RJ


GLOSA:
BEIJO-TE A FOTO... E NA ESPREITA
a esperar-te, com emoção,
tu és, minha doce eleita,
dona do meu coração!

Vivo de sonho e lembranças,
DESTE AMOR QUE EU IDOLATRO,
desfilam as esperanças:
Personagens de um teatro!

Dessa angústia, nem suspeita
o meu eu apaixonado,
MINHA SAUDADE SE AJEITA,
vai se aninhando ao teu lado!

Essa peça não tem fim,
é da vida, o anfiteatro,
e eu mato a saudade, enfim,
NO RETRATO TRÊS POR QUATRO.
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PLANTANDO GUERRA

MOTE:
Quando há morte programada
pelos quadrantes da terra,
homens que não valem nada
sentem paz plantando guerra.
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

 

GLOSA:
QUANDO HÁ MORTE PROGRAMADA,
uma sombra de tristeza
é por tudo derramada
na pobre terra indefesa.

É como a voz do trovão
PELOS QUADRANTES DA TERRA,
voz sem nenhuma emoção
que dentro de si, encerra!

A justiça equivocada,
num triste engano, premia
HOMENS QUE NÃO VALEM NADA
que só plantam agonia.

Os governantes maldosos
(onde a bondade se ferra),
pensando ser poderosos,
SENTEM PAZ PLANTANDO GUERRA.

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. março de 2005.

Guimarães Rosa (O Riacho Sirimim)


Só a vocês eu vou contar o riachinho Sirimim. Ele é só ali, não é de mais ninguém. Em uma porção de grotinhas, ele vai nascendo. São muitos olhos-d’água, de toda espécie, um brota naquela pedreira, que tem atrás da casa do Pedro. Na grota onde tem uma pedra grande, cortada pelo meio, e aí as abelhas aproveitaram uma fresta e fizeram casa dentro. Ali é a nascente mais alta, e uma das grandes. Ele nasce junto com o mel das abelhas.

A pedra é de blocos quadrados, bonitos, ela é toda dura, toda reta, entre árvores — um pouquinho da mata, que ficou. Pedra mais alta que esta casa. Em cima, cheia de cactos; debaixo, forma-se uma lapinha, em que entrou o tatu que o Pedro caçou; no meio, a fenda horizontal, dentro dela se instalou o enxame de abelhas oropa, que fugiu da casa de alguém. Uma abelha picou o Maninho, que então meteu a foice ali, colheu. Inácia coou o mel. Ali não dá formiga. Ali é uma noruega: todo este grotão — a matinha, a pedra; até a casa do Pedro. As abelhas estão lá. O mel também mereja*, daquela pedra, junto do lugar que nasce a água. A água vem descendo da pedra, pela face da pedra. Ele nasce ali, é mais um molhado na pedra. Só uns fiapos d’água, que correm pela pedra.

Simples, sem-par, águas fadadas — e inavegável a um meio-amendoim. De amor um mississipinho, tão sem fim. Ele já é o Sirimim.

E faz um pocinho e uma biquinha, ali onde o Pedro pegou o tatu. E o Pedro teve a especialidade de plantar inhames perto, para as folhas servirem de copos. Ali ainda é noruega, a água em inverno e verão está sempre fresquinha. O Pedro bebe nas folhas de taioba, mas diz: “É pena eu não ter um copo de vidro, pra se poder ver embaciar...”

Outro poço, entre as goiabeiras, o da Eva lavar as panelas. E, depois da biquinha de bambu, em que bebe gente, tem o pocinho para os bichos: as galinhas, as cabritinhas; lá bebia a Bolinha, de quem o Pedro gostava tanto, que caçava tanto, e que “era tão amiga, que, quando zangou, foi zangar pra longe...”

Daí, a primeira disciplinada que dão nele: a virada de um reguinho, que fizeram, desviando-o de não ir no pé da mangueira grande, que não gosta de água. Sonso, o leito dele, todo, é um berço — é sempre assim — o Sirimim.

Solto, dali passa no arrozal do Pedro, que é uma várzea pequenininha, fresca, entre a mangueira grande e o escarpado do morro; de arroz mais bruto, que se facilita, por não precisar de tanto trato. Porque o Pedro é ainda meio tolhido, da que teve, como lá ele mesmo diz: uma “doença de brejo”. Sirimim se faz uns quatro regos, e nele nadam já os peixes barrigudinhos. Sirimim vai se engrossando. Terreno todo ali mina água. Sirimim, água-das-águas, é menos de meio quilômetro, ele inteiro. Só isto, e a fada-flor — uma saudade caudalosa: Sirimim-acima Sirimim-abaixo — alma para qualquer secura.

Sobrevindo outro riachinho, de lá de um pé de embaúba, nova, já no caminho da casa do Joaquim, onde rebenta seu olhinho-d’água: no lugar, quando o Joaquim planta o milho, deixa uma moita de capim, para “favorecer” o miriquilho. Essezinho também nasce alto, ele vem descendo assim. A confluência dos dois é bem debaixo da pinguela, que mais bem é uma estiva, a ponte de paus.

Sirimim, mais, se revira, e entra na várzea grande, mais baixa, que o terreno vem sempre descambando. Aí a várzea cortada de canais, abertos para os muitos minadouros* e que querem-se todos ao Sirimim: um que vem do curral velho, uns que nascem debaixo das tajubas — árvores boas para fazer mourão. São esses os de volume maior, os que tantos se surgem do fundo da várzea grande; mas o mais cheio e alto é mesmo o da casa do Pedro, por isso deu-se tradição de ser nascente principal: o próprio, primitivo Sirimim, batizado num jardim.

Só daí ele vem ao arrozal do Joaquim. Sarapintam-no, onde, as traíras, tigrinas, hieninas. Sereno nosso riacho e seu caminho manso, por entre o chão chato, terras-águas de arroz — as lezírias* de verdes reflexos.

Seja que, desde depois, se vê, em uma sua margem, a única arte que ele faz, só esta maldade do Sirimim: o “chupão”, lugar em que a terra é encharcada e as pessoas podem se afundar. O genro do Joaquim uma vez afundou, tiveram de estender a ele um pau, e se ajuntaram, todos, para o tirar. Joaquim tenteou o chupão com um bambu, o bambu se some lá para dentro. Joaquim fincou uns bambus em volta, para avisar de que ali é lugar que podia dar desgraça. Sob mato: verde: uma moita que fica mais verde.

Súbito, então, os bambus. Sirimim passa-os, por baixo. Sirimim penetra um grande lugar, a horta, a partezinha de horta dele nilegíptico — com alfaces, libélulas, rãs e náiades. Serve-a em três canais principais, que Joaquim fez, às tortas, aproveitando os tortos troncos velhos de ipê, madeira dura, que estavam caídos ou enterrados, quando ele limpou o brejo. Num deles, surte-se a biquinha da Irene lavar roupa. Tem um pé de rosa: rosinha cor-de-rosa, que se desfolha à toa; mas, de longe, você já sente o cheiro. Tudo que é casa tem essa roseira — de rosinhas pequenas, em cachos — roseira própria para chamar abelhas. Joaquim tirou também um retalhado de reguinhos, e tapagem de pequenas represas, para proibir as formigas e reservar água de rega para a tarde da seca. Mas as solertes* enguias pretas, que são os muçuns, socavam o fundo dos açudinhos, furando túneis que dão fuga à água; e uma praguinha verde prospera recobrindo tudo, plantinhas ervas que parecem repolhinhos — as formigas aproveitam para passar por cima. Joaquim xinga: — “Não é que dá praga até na água?!” Joaquim também plantou umas laranjeiras, condenadas à umidade — elas estão sentidas, umas já morreram — mas ali é o único recanto em que formiga não ataca. Joaquim só diz: — “Antes delas morrerem, sempre dão alguma alegria à gente...”

Sirimim, sua margem sul: uma carreira de bananeiras. Sirimim segrega sob a ponte — por onde passa a estradinha da casa. Sirimim — e há agora o bambu, que tem o ninho do sabiá; o que foi cortado, mas brotou — só aquele breve tufo, com uns poucos penachos, bonitos: num deles, vê-se, o ninho do sabiá; Sirimim o deixa para trás. Seguinte — só os cinco metros — é a biquinha antiga, abandonadinha, aquela coisinha de bambu, que colhe água. Sirimim veio até aqui quieto, que dele não se ouve; mas, a biquinha antiga, saturada, aí a água cai tanta, que já faz som, aí ele começa a falar: ...se bem, bem, bem bom... — e lá se vai, marulho abaixo.

Sirimim traspassa agosto, setembro a abril, chovido fevereiro, dezembro e tudo, flui, flui.

Sirimim e a estrada se separam, ele vem um trecho quase reto, se sorrateia lá no fundozinho de seu vale, em meio a um espaço verde, sem lavoura, porque ali ficava para pastar a bezerrinha do pé quebrado.

Sirimim atravessa uma noite e um luar, muito claros, os vagalumes vindos, os curiangos* cantando, perto e longe, por cima do mundo inteiro.

Sirimim se curva — aonde vai ser o açude — à carícia destes lugares. Ali, bulha entre outros bambus, grandes; após, o lugar onde se planta o amendoim — que vem quase à margem, fim. Separa-se para outra horta, a da dona do encanto. Sirimim...

Ah, e no bambual de bambus muito grandes, ele sai-se, deixa-se — para entrar sumido no rio. A enseada do Sirimim, coisa tão gostosa, você sabe. Assim toda de branca areia no fundo, aonde o Sirimim solve-se em sucinto, tranquilo. Aí, quando é época de pouco, ele nem chega a ajuntar-se com o rio: só se espalha na areia, e embebe-se, liquidado.

Se o rio toma de se enchendo, porém, ele represa o Sirimim, que se larga, que invade e ocupa a várzea toda, coberto de espumas e folhas de bambu. Siriminzinho, então, possui-se, cheio de peixes grandes. Sirimim ronca e barulha: em vez de correr para baixo, sobe ao arrepio, faz ondas, empurra-se para trás com a tanta água do rio, supera o chão e o tempo e confirma: toda a vida, todas as vidas, sim.
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Vocabulário
Curiango – ave de plumagem muito macia e voo silencioso.
Lezíria – leito maior ou planície de inundação, junto a certos rios, onde há depressões que são invadidas pelas cheias.
Mereja – mareja.
Minadouro – nascente de riacho ou ribeirão, ou olho-d'água dentro de grota.
Solertes – espertas, diligentes.
Tajuba – é o nome popular de uma árvore, o mesmo que taiúva.

Fonte:
Guimarães Rosa. Ave, palavra. Publicado em 1970 (póstumo)

sábado, 23 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 275


Léo Buscaglia (História de uma Folha)


Era uma vez uma folha, que crescera muito. A parte intermediária era larga e forte, as cinco pontas eram firmes e afiladas. Surgira na primavera, como um pequeno broto num galho grande, perto do topo de uma árvore alta.

A Folha estava cercada por centenas de outras folhas, iguais a ela. Ou pelo menos assim parecia.

Mas não demorou muito para que descobrisse que não havia duas folhas iguais, apesar de estarem na mesma árvore.

Alfredo era a folha mais próxima. Mário era a folha à sua direita. Clara era a linda folha por cima. - Todos haviam crescido juntos. Aprenderam a dançar à brisa da primavera, esquentar indolentemente ao sol do verão, a se lavar na chuva fresca. Mas Daniel era seu melhor amigo.

Era a folha maior no galho e parecia que estava lá antes de qualquer outra. A Folha achava que Daniel era também o mais sábio. Foi Daniel quem lhe contou que eram parte de uma árvore.

Foi Daniel quem explicou que estavam crescendo num parque público. Foi Daniel quem revelou que a árvore tinha raízes fortes, escondidas na terra lá embaixo. Foi Daniel quem falou dos passarinhos que vinham pousar no galho e cantar pela manhã. Foi Daniel quem contou sobre o sol, a lua, as estrelas e as estações.

A primavera passou. E o verão também. Fred adorava ser uma folha. Amava o seu galho, os amigos, o seu lugar bem alto no céu, o vento que o sacudia, os raios do sol que o esquentavam, a lua que o cobria de sombras suaves.

O verão fora excepcionalmente ameno. Os dias quentes e compridos eram agradáveis, as noites suaves eram serenas e povoadas por sonhos. Muitas pessoas foram ao parque naquele verão. E sentavam sob as árvores. Daniel contou à Folha que proporcionar sombra era um dos propósitos das árvores.

— O que é um propósito? - perguntou a Folha.

— Uma razão para existir - respondeu Daniel.

— Tornar as coisas mais agradáveis para os outros é uma razão para existir. Proporcionar sombra aos velhinhos que procuram escapar do calor de suas casas é uma razão para existir.

A Folha tinha um encanto todo especial pelos velhinhos. Sentavam em silêncio na relva fresca, mal se mexiam. E quando conversavam eram aos sussurros, sobre os tempos passados. As crianças também eram divertidas, embora às vezes abrissem buracos na casa da árvore ou esculpissem seus nomes. Mesmo assim, era divertido observar as crianças. Mas o verão da Folha não demorou a passar. E chegou ao fim numa noite de inverno.

A Folha nunca sentira tanto frio. Todas as outras folhas estremeceram com o frio. Ficaram todas cobertas por uma camada fina de branco, que num instante se derreteu e deixou-as encharcadas de orvalho, faiscando ao sol. Mais uma vez, foi Daniel quem explicou que haviam experimentado a primeira geada, o sinal que era o inverno que estava chegando.

— Por que ficamos com cores diferentes, se estamos na mesma árvore? - perguntou a Folha.

— Cada um de nós é diferente. Tivemos experiências diferentes. Recebemos o sol de maneira diferente. Projetamos a sombra de maneira diferente. Por que não teríamos cores diferentes? Foi Daniel, como sempre, quem falou. E Daniel contou ainda que aquela estação maravilhosa se chamava inverno. E um dia aconteceu uma coisa estranha.

A mesma brisa que, no passado, os fazia dançar começou a empurrar e puxar suas hastes, quase como se estivesse zangada. Isso fez com que algumas folhas fossem arrancadas de seus galhos e levadas pela brisa, reviradas pelo ar, antes de caírem suavemente ao solo. Todas as folhas ficaram assustadas.

— O que está acontecendo? - perguntaram umas às outras, aos sussurros.

— É isso que acontece no inverno - explicou Daniel - É o momento em que as folhas mudam de casa. Algumas pessoas chamam isso de morrer.

— E todos nós vamos morrer?- perguntou Folha

— Vamos sim - respondeu Daniel - tudo morre. Grande ou pequeno, fraco ou forte, tudo morre. Primeiro cumprimos a nossa missão. Experimentamos o sol e a lua, o vento e a chuva. Aprendemos a dançar e a rir. E, depois morremos.

— Eu não vou morrer! - exclamou Folha, com determinação - Você vai, Daniel?

— Vou sim... Quando chegar meu momento.

— E quando será isso?

— Ninguém sabe com certeza. - respondeu Daniel

A Folha notou que as outras folhas continuavam a cair. E pensou: "Deve ser o momento delas". Ela viu que algumas folhas reagiam ao vento, outras simplesmente se entregavam e caíam suavemente Não demorou muito para que a árvore estivesse quase despida.

— Tenho medo de morrer. - disse Folha a Daniel - Não sei o que tem lá embaixo.

— Todos temos medo do que não conhecemos. Isso é natural. - disse Daniel para animá-la - Mas você não teve medo quando a primavera se transformou em verão. E também não teve medo quando o verão se transformou em outono. Eram mudanças naturais. Por que deveria estar com medo da estação do inverno?

— A árvore também morre? - perguntou - Para onde vamos quando morrermos?

— Ninguém sabe com certeza... É o grande mistério.

— Voltaremos na primavera?

— Talvez não, mas a Vida voltará.

— Então qual é a razão para tudo isso? - insistiu a Folha - Por que viemos pra cá, se no fim teríamos de cair e morrer?

Daniel respondeu no seu jeito calmo de sempre:

— Pelo sol e pela lua. Pelos tempos felizes que passamos juntos. Pela sombra, pelos velhinhos, pelas crianças. Pelas cores do outono, pelas estações. Não é razão suficiente?

Ao final daquela tarde, na claridade dourada do crepúsculo, Daniel se foi. E caiu a flutuar. Parecia sorrir enquanto caía.

— Adeus por enquanto. disse ele à Folha.

E depois, a Folha ficou sozinha, a única folha que restava no galho. A primeira neve caiu na manhã seguinte. Era macia, branca e suave. Mas era muito fria. Quase não houve sol naquele dia... E foi um dia muito curto. A Folha se descobriu a perder a cor, a ficar cada vez mais frágil. Havia sempre frio e a neve passava sobre ela. E quando amanheceu veio vento que arrancou a Folha de seu galho.

Não doeu. Ela sentiu que flutuava no ar, muito serena. E, enquanto caía, ela viu a árvore inteira pela primeira vez. Como era forte e firme! Teve a certeza de que a árvore viveria por muito tempo, compreendeu que fora parte de sua vida. E isso deixou-a orgulhosa. A Folha pousou num monte de neve. Estava macio, até mesmo aconchegante. Naquela nova posição, a Folha estava mais confortável do que jamais se sentira.

Ela fechou os olhos e adormeceu. Não sabia que a primavera se seguiria ao inverno, que a neve se derreteria e viraria água. Não sabia que a folha que fora, seca e aparentemente inútil, se juntaria com a água e serviria para tornar a árvore mais forte. E, principalmente, não sabia que ali, na árvore e no solo, já havia planos para novas folhas de primavera.

Fonte:
Leo Buscaglia. A história de uma folha: uma fábula para todas idades. Publicado em 1982.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 10


PARÁBOLA DAS PITANGAS E DOS CAJÚS

  Se pudéssemos se na vida o que nascemos,
e as pitangueiras não tivessem que dar cajús,
e os cajueiros pitangas,
se os cajus e as pitangas não nascessem sempre nos quintais vizinhos
para lábios estranhos...

Se as pitangas dessem pitangas, e os cajueiros cajús,
e nós todos pudéssemos comer os cajús e as pitangas
que plantássemos,
porque teríamos o nosso quintal e as nossas sementes...
os homens viveriam contentes…
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PENSAMENTO

Tudo porque,
(terão dito ignorados oráculos)
- no caminho dos homens que trouxeram o destino
imenso
de ser caminhos
Há homens que não trouxeram sequer, o destino inglório
de ser obstáculos…
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PERGUNTAS
  
  Que fizeram estes homens para que vivam à beira das calçadas
como as águas estagnadas?

E estas mulheres que dormem no vão das portas das igrejas
com mais filhos ao redor que pelo corpo inchado
as brotoejas?

e estas crianças de olhares doentes e narizes escorrendo,
que eu sempre, - por mais que feche os olhos, estou vendo?...
... estou vendo?…
****************************************

POEMA À GRANDE PONTE
(A Walter Nogueira da Silva)

Estende-me tua mão sobre oceanos e terras
que eu quero apertá-la, irmão...

Estende-me tua mão, muito alto, pelos céus...
São desumanas as guerras  
e infames, os seus troféus...
      
Formemos com as nossas mãos tão fortemente unidas  
ligando um horizonte a outro horizonte
num gesto sem igual,
- sobre um mundo a morrer em lutas fratricidas:
o "arco-íris" triunfal da indestrutível ponte
da fraternidade universal!

(Que o arco desta ponte livre e sem senhores,
lançada pelo amor mais belo e mais profundo,
terão todas as cores, - tal como o "arco-íris" -
e abraçarão o mundo!)
........................

Estende-me tua mão sobre oceanos e terras,
ó, meu irmão!

E lancemos também sobre as ruínas das guerras
nosso arco fraternal para a reconstrução!
****************************************

POEMA AO JORNALISTA
(A Mário Martins)

Ninguém te vê. Nem o homem sério de óculos que se sentou
de pijama na cadeira de palhinha
na calçada de um subúrbio qualquer,
nem a mulher gorda que tira os óculos e chora por causa do
assassinato hediondo,
- o homem que matou seis filhos e bebeu veneno, -
ou pelos dez órfãos da mãe desesperada,
a mulher que se jogou na linha do trem e o trem repartiu na terra -.

Ninguém te vê. Nem o garoto que fuma escondido num lugar
mal cheiroso do colégio,
nem e menina de tranças que gosta de se sentar na ponta do
banco do bonde
e esquece a rua com as últimas histórias do impossível;
ninguém te vê, nem o rapaz que discute política na mesa do café,
nem a moça que procura o seu nome na crônica social,
onde a caridade fica muito mais bonita
e onde ela se sente muito mais humana...

Ninguém te vê.
Estás sentado na tua mesa, entre papéis dispersos, telegramas
de última hora,
a voz do secretário, o relâmpago do magnésio, a campainha do diretor,
a importância do homem que vai dar uma entrevista;
estás sentado na tua mesa, e escreves com a música dos linotipos
o ruído das máquinas datilográficas,
o vozerio dos companheiros que vão e vêm
a bandeja de café, a fumaça do cigarro, o cheiro de óleo,
- e na tua cabeça há uma prodigiosa procissão de coisas diversas
que se atropelam como os homens na rua
na mudança dos sinais. 
(Verde-vermelho-verde-vermelho-
-verde-vermelho.)

Há presidente e chefes em Washington depois que o ladrão
assaltou o apartamento de Copacabana,
dois tiros, um aniversário, Marieta que cortou o pulso pela décima vez,
dez mil aviões desovando bombas, o jantar elegante no "grill" do cassino,
um fascista graúdo que tomou chumbo na cara, a mulher que teve quatro gêmeos,
a crônica sobre o vestido de Madame X, o político que promete um mundo melhor,
0 operário que caiu do 5 ° andar, o quilo de feijão a 3 cruzeiros,
Clark Gable que voltou da guerra, o último gol do América,
- tudo isto está na tua cabeça, que a tua cabeça é o mundo
debruçado sobre um bloco de papel...

Ninguém te vê. Mas tu vês o mundo, tu sentes o mundo, cada dia, cada noite,
captas o mundo, cada noite, cada dia,
e daqui a pouco, e amanhã bem cedo, terás milhões de olhos,
terás milhões de consciências,
porque te difundirás na multidão e andarás na multidão como os pés
no corpo    ...

És tu que mudas todos os dias a alma das multidões,
dá-lhes novo alimento, nova água, novas preocupações, novas alegrias,
ou novos tormentos,
depois do sol, é a tua manchete que brilha mais, e que clareia a rua,   
e depois da noite, é a tua manchete que enluta o mundo e encobre os homens

Ninguém te vê. E existes e estás presente em toda parte como Deus,
nas ruas, nas batalhas, no avião que ronca no céu, no navio que não chegará,
na hora do fuzilamento, no recado para a família, nas barricadas.
nos subterrâneos inconquistáveis onde a liberdade se recolheu,
na festa do ministro, no banquete do político, na cadeia,
na praça onde a bomba estourou,
na escadaria onde falava o orador, no salão de baile,
no microfone não localizado,
na "première" da grande fita,
- tens mil olhos, mil ouvidos, mil almas, mil mãos,
estás em toda parte e ninguém te vê
até o momento em que explodes na rua como uma granada
e a tua voz é o hino de mil letras dos homens heterogêneos e dispersos...

Alma nova do mundo a cada novo dia. Música das ruas todos os instantes.
História efêmera que passa e a memória esquecerá
se os livros não lembrarem;
sem ti reduziríamos o mundo ao alcance dos nossos olhos,
e ficaríamos surdos e mudos, e de tal forma haveria silêncio
e deserto ao redor,
que nos julgaríamos de repente saídos de uma bomba-foguete
sobre a face da lua...

Sem ti o mundo de hoje seria como mastro sem bandeira
como bandeira sem vento, como rádio sem antena,
como cérebro sem pensamento, como bússola sem norte,
como morte sem vida
como vida sem morte...

Sem ti, o mundo seria mundos
muitos mundos, o meu, o teu, o dele, mundinhos de cada um,
nunca um mundo só, nosso mundo, imenso mundo, mandão,
que sai da tua cabeça
e escorre da tua mão!

Fonte:
J.G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Paulo Mendes Campos (O Carioca e a Roupa)


Entre meus conterrâneos, os econômicos mineiros, é um motivo  de orgulho, de ampla e sorridente satisfação, confessar que uma gravata custou muito mais barato do que parece. No Rio é exatamente o contrário, o sentimento de exaltação interior nasce quando se pode dar para a gravata um preço alto que surpreenda o interlocutor.

Não conheço outra cidade em que a roupa tenha tanta  importância como aqui no Rio. O  carioca é duma ironia corrosiva, terrivelmente desmoralizadora para homens, instituições e ideias graves, uma  ironia também especialmente inimiga de qualquer pose ou afetação. Excetua-se a roupa; a roupa é sagrada. Um Charles Chaplin, uma Eleanor Roosevelt, um Mikoyan, um Oppenheimer, um Salk, um Alexander, um Schweitzer, um Picasso, um Casperson, um T. S. Eliot, um outro nome qualquer  entre  os expoentes contemporâneos em seus ramos de arte, ciência ou ofício, nenhum deles conseguiria manter por muito tempo aqui no Rio a aura de respeito que os cerca onde estejam. Sobretudo se  cuidassem  pouco  de sua encadernação, de sua roupa.

Muito possivelmente, ganhariam  um  apelido, veriam os seus cacoetes imitados nas ruas e nos palcos mambembes, e passariam a ser conhecidos do povo através de um defeito mesquinho, e não pela soma de suas qualidades. Qualquer estrangeiro famoso, caso venha morar nesta  cidade, pode agradecer aos céus se não for rotulado de chato. O carioca decidiu-se por uma grande simplificação da natureza humana, classificando a humanidade em chatos e bons sujeitos; com a nuança única de admitir que certos tipos, embora  chatos, são no fundo uns bons sujeitos.

Sob este aspecto, São Paulo, com a sua  compostura, com o seu culto a toda pessoa que emerge do anonimato, é o antídoto do Rio. Para o estrangeiro, a Capital paulista é um respiradouro: depois da passagem pelo Rio, onde não o levaram muito a sério, o chamado ilustre  visitante vai contemplar, refletida no olhar respeitoso do paulistano, a verdadeira dimensão de sua glória.

E assim sempre foi, assim  continua  sendo,  assim  vai  ser:  o carioca tem o gosto e o dom de igualar os homens, de  refugar  as sofisticações, de considerar apenas  em  cada  pessoa,  independente  de qualquer outro valor, a sua capacidade de convívio.  O  resto  o  povo destrói facilmente com duas ou três maldades de espírito.

Menos a roupa. A roupa, o problema de vestir-se, o preço e a aparência das peças de seu vestuário, transformam o sorriso zombeteiro do carioca numa expressão soturna e sofredora. É o seu ponto fraco, uma zona que resiste à sua ironia e pode torná-lo infeliz.

Diante dum carioca típico, alegre, divertido, com respostas humorísticas para tudo, experimentem, no momento exato de sua  rigolade, colocar em dúvida a qualidade de sua roupa ou de sua elegância. Atingido por uma dolorosa pedrada, ele perderá instantaneamente o rebolado.

Sempre me chamou atenção no Rio a simplicidade com que as pessoas falam de suas dificuldades financeiras, de seus sacrifícios de orçamento, de suas turras, por falta  de  pagamento, com os fornecedores. Esta admirável franqueza desaparece por completo quando se trata de roupa. Neste capítulo, o carioca mente, exagera o preço de seus ternos e de suas camisas, mesmo porque as brigas com os fornecedores e os sacrifícios orçamentários são em grande parte devidos às verbas que se desviam para alfaiates e camisarias.

O proletário francês veste-se mal e come bem; o proletário alemão prefere vestir-se burguesmente e comer mal. É com este que se parece o proletário carioca. E as outras classes o acolhem mais complacentemente se ele passa fome mas se apresenta bem vestido. A roupa vem assim compensar uma fome que não é de pão. Estamos  diante  de  um preconceito complexo, inextirpável do meio social do Rio, terra que inventou e venera a lista dos dez mais, que realiza quase semanalmente um concurso de elegância, terra lucrativa para os comerciantes de tecidos e de roupa feita. Deu-se comigo outro dia  uma  experiência engraçada: fui ao centro da cidade de blusa, coisa que me aconteceu várias vezes, mas só então acrescida de um pormenor que introduziu um caráter inédito à situação: levava debaixo do braço uma pasta de papéis, feita de nylon.

Sim, pela primeira vez fui à cidade de blusa e pasta. Qualquer um desses fatores quase nada significa isoladamente; reunidos, alteraram radicalmente o tratamento que me deram todas as pessoas desconhecidas.

Quando tomei um táxi, vi que o motorista torceu a cara, mas  não percebi o que se passava, pois experimentei  Semelhante  má  vontade  em outras circunstâncias. Reparei  também certa estranheza do motorista quando lhe dei de gorjeta o troco, mas permaneci opaco ao fenômeno social que se realizava. Em um restaurante comum, sentei-me para almoçar. O garçom, que até então eu não vira mais gordo, tratou-me com uma intimidade surpreendente e, em vez de elogiar os pratos pelos quais eu indagava, entrou a diminuí-los: "aqui a gororoba é uma Coisa só; serve para encher o bandulho".

Não sou de raciocínio rápido mas, em  súbita  iluminação, percebi, com todo o prazer da novidade, que eu estava vestido de mensageiro: pasta e blusa. Ao longo da tarde, fui compreendendo que, até hoje, não  tinha  a menor ideia do que é ser um mensageiro. Pois eu lhes conto. Um mensageiro é, antes de tudo, um triste. Tratado com familiaridade agressiva pelos epítetos de amigo, chapa e garotão, o que há de  afetivo nestes nomes é apenas um disfarce, pois atrás deles o tom de voz é de comando. "Quer deixar o papai trabalhar, garotão", disse-me o  faxineiro de um Banco, cutucando-me os pés com a ponta da vassoura.

Entendi muitas outras coisas humildes: o mensageiro não tem direito a réplica; é barrado em elevadores de lotação ainda não atingida; posto a esperar sem oferecimento de cadeira; atendido com um máximo de lentidão; olhado de cima para baixo; batem-lhe com  vigor no ombro para pedir passagem; ninguém lhe diz "obrigado ou por favor"; prestam-lhe informações com relutância; as mulheres bonitas sentem-se ofendidas com o olhar de homenagem do mensageiro; os vendedores lhe dizem "não tem" com um deleite sádico.

Foi uma incursão involuntária à natureza de uma sociedade dividida em castas. Preso à minha classe e a algumas roupas, dizia o poeta, vou de branco pela rua cinzenta. No fim da tarde, eu já  procedia como um mensageiro, só me aproximando dos outros com precaução e humildade, recolhendo de meu rosto qualquer veleidade de um sorriso inútil, jamais correspondido. Dentro de mim uma vontade  de  sofrer.  Por todos os mensageiros do mundo, meus irmãos. Por todos os meus irmãos para os quais a humilhação de cada dia é certa como a própria morte. Porque o pior de tudo é que as pessoas não sorriam. O pior é que ninguém sorri para os mensageiros.

Fonte:
Paulo Mendes Campos. O Cego de Ipanema. RJ: Ed. do Autor, 1961.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 274


Contos e Lendas do Mundo (A Sabedoria do Vira-latas)

(autor desconhecido)

Uma velha senhora foi para um safári na África e levou seu velho vira-lata com ela.

Um dia, caçando borboletas, o velho cão, de repente, deu-se conta de que estava perdido.

Vagando a esmo, procurando o caminho de volta, o velho cão percebe que um jovem leopardo o viu e caminha em sua direção, com intenção de conseguir um bom almoço ..

O cachorro velho pensa:

— Oh, oh! Estou mesmo enrascado! Olhou à volta e viu ossos espalhados no chão por perto. Em vez de apavorar-se mais ainda, o velho cão ajeita-se junto ao osso mais próximo, e começa a roê-lo, dando as costas ao predador ...

Quando o leopardo estava a ponto de dar o bote, o velho cachorro exclama bem alto:

— Cara, este leopardo estava delicioso! Será que há outros por aí?

Ouvindo isso, o jovem leopardo, com um arrepio de terror, suspende seu ataque, já quase começado, e se esgueira na direção das árvores.

— Caramba! pensa o leopardo, essa foi por pouco! O velho vira-lata quase me pega!

Um macaco, numa árvore ali perto, viu toda a cena e logo imaginou como fazer bom uso do que vira: em troca de proteção para si, informaria ao predador que o vira-lata não havia comido leopardo algum.. .

E assim foi, rápido, em direção ao leopardo. Mas o velho cachorro o vê correndo na direção do predador em grande velocidade, e pensa:

— Aí tem coisa!

O macaco logo alcança o felino, cochicha-lhe o que interessa e faz um acordo com o leopardo. O jovem leopardo fica furioso por ter sido feito de bobo, e diz:

— Aí, macaco! Suba nas minhas costas para você ver o que acontece com aquele cachorro abusado!

Agora, o velho cachorro vê um leopardo furioso, vindo em sua direção, com um macaco nas costas, e pensa:

— E agora, o que é que eu posso fazer?

Mas, em vez de correr (sabe que suas pernas doloridas não o levariam longe...) o cachorro senta, mais uma vez dando costas aos agressores, e fazendo de conta que ainda não os viu, e quando estavam perto o bastante para ouvi-lo, o velho cão diz:

— Cadê aquele desgraçado do macaco? Tô morrendo de fome! Ele disse que ia trazer outro leopardo para mim e não chega nunca!

Moral da história: Não mexa com cachorro velho... idade e habilidade se sobrepõem à juventude e intriga. Sabedoria só vem com idade e experiência.

Fonte:
Fábula de autor desconhecido enviado por Ialmar Pio Schneider

Professor Garcia (Trovas que sonhei cantar) 7


A abelha sugando a flor,
tem por fiel compromisso,
por mais delícia de amor
na doçura do cortiço!
- - - - - -
A cor rubra, enfraquecida,
que ao por do sol transparece,
tem a dor da despedida
e a ternura de uma prece!
- - - - - -
A dor da ausência, em verdade,
é uma rica companheira...
Quem beija e abraça a saudade,
tem fortuna a vida inteira!
- - - - - -
A mãe e o bebê sofrendo,
eu vi com desconfiança...
Uma esperança morrendo
nos braços de outra esperança!
- - - - - -
A vela triste, enxugando
do velho nauta, os seus ais...
É uma saudade chorando
sem saber se volta ao cais!
- - - - - -
Carrilhão - por que chorais?
vosso gemer, diz quem sois!
E. essa dor de vossos ais
é a mesma dor de nós dois!
- - - - - -
Criança de vida dura,
pobre, faminta e sem lar...
Quantas lições de ternura
na luz tosca deste olhar!!!
- - - - - -
Das bravuras do meu chão,
herdei por tudo que fiz…
Esse velho corpo são
coberto de cicatriz!
- - - - - -
Desafio do meu sonho
desde do tempo de criança,
é não ver num lar tristonho
faltar o pão da esperança!
- - - - - -
Em tudo que a gente faz,
há uma pitada de amor;
desse amor que a gente traz
no coração trovador!
- - - - - -
Fiz quase tudo na vida,
só lamento o que não fiz.
Deus vendo a missão cumprida
me fez muito mais feliz!
- - - - - -
Lágrima, orvalho que cai
dos olhos, da noite calma,
que aos poucos, regando vai,
a solidão de minha alma!
- - - - - -
Mãe!... É o mais lindo estribilho
da canção que Deus modela,
e o que ela faz pelo filho,
filho nenhum faz por ela!
- - - - - -
Não sei se faltou decoro
na voz do meu acalanto...
Só quis consolar teu choro,
mas fiz foi dobrar teu pranto!
- - - - - –
No entardecer já sem vida,
Deus deixa no entardecer,
um verso de despedida
antes do sol se esconder!
- - - - - -
No outono triste da idade,
o velho andarilho chora
e anda abraçado á saudade
do filho que foi embora!
- - - - - –
Nós somos dois passarinhos,
sem agasalhos, sem teto,
mas o chão de nossos ninhos
é atapetado de afeto!
- - - - - -
O mar gemendo se alteia,
e aos poucos, por entre as brumas...
derrama espumas na areia
e adormece entre as espumas!
- - - - - –
Penso que a gota de orvalho
é uma lágrima de amor,
dos olhos de cada galho
que vê brotar uma flor!
- - - - - –
Perdoar, deixar de lado,
é tudo que me convém;
que o perdão, lava o pecado
de alma que perdoa alguém!
- - - - - -
São tantas as consequências
ante o amor que se desfaz...
Que há medos temendo ausências
e há gritos pedindo paz!
- - - - - –
Se alguém, ingrato e cruel,
me der amargo licor,
eu lhe dou favos de mel
cristalizados de amor!
- - - - - -
Se Deus fez um diadema
do sol, e essa luz nos deu...
Da lua, fez o poema
mais lindo que Ele escreveu!
- - - - - -
Se o amor tem sabor de mel,
prove da ausência o sabor,
que a ausência transforma em fel
os cristais doces do amor!
- - - - - -
Sou tão pequeno, meu Deus,
mas cresço um pouco, ó Senhor...
ante o amor dos olhos teus
e os teus exemplos de amor!
- - - - - -
Um lenço, entre os lenços seus,
no cais, me acena tristonho!...
Lembra um sonho dando adeus
ao silêncio de outro sonho!
- - - - - –
Um vento brando, mansinho,
toda tarde, ao fim do dia,
discreto, oscula o meu ninho,
com beijos de nostalgia!
- - - - - -
Vai-se o sol! E a tarde, é aquela,
instante em que mais medito,
tentando pintar a tela
da solidão do infinito!


Fonte:
Professor Garcia. Trovas que sonhei cantar. vol.2. Caicó: Ed. do Autor, 2018. 
Livro gentilmente enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Boneca Triste)


Galeria Stvdivs, em Laranjeiras. Hora quase sem movimento. Entra um senhor de cabelos grisalhos e percorre lentamente a exposição de bonecas do século XIX. Para mais tempo diante da peça no 14, examinando-a com atenção. Fala sozinho:

— Deve ser essa.

Faz um gesto de carinho no ar, como se tivesse a boneca no colo, e repete:

— Tenho quase certeza de que é essa.

Passeia os olhos em redor, à procura de alguém. Aproxima-se uma jovem, que pergunta:

— O senhor deseja alguma coisa?

— Desejo sim. Pode me informar se essa boneca anda?

— Pois não. Embora não tenha pernas articuladas, ela anda. E tem choro.

— Choro? Tem certeza de que ela chora, em vez de rir?

— Olhe, cavalheiro, nunca vi boneca dando risada. E esta não é a única chorona da coleção, veja bem. A de no 7, do fabricante alemão Handwerk, também tem choro, se o senhor puxar o fio.

— A vida é dura também para as bonecas, eu sei. Pois olhe, estava quase jurando que esta ria. Não estrondosamente, é claro, mas ria. É tão parecida, se não for a mesma.

— Parecida com qual?

— Com outra do mesmo tipo, mesmos cabelos, que comprei há muitos anos numa loja de antiguidades da rua Chile. A loja do Marques dos Santos, lembra-se?

— Acho que não sou desse tempo… O professor Marques dos Santos, é?

— Ele mesmo. Uma boneca francesa como essa aí, com assinatura incompleta.

— Essa também tem assinatura incompleta: Paris 501.

— Então é a mesma!

— Perdão, esta pertence a d. Sylvie Renault, e veio diretamente da Europa.

— A senhorita garante que veio diretamente?

— É o que está na ficha. Não há razão para duvidar.

— Não estou duvidando. Estou procurando me esclarecer.

— Desculpe, mas que interesse tem o senhor nisso?

— A senhorita vai zombar de mim se eu lhe disser.

— Absolutamente. Pode falar à vontade.

— A senhorita acredita… na alma das bonecas?

— Hem?

— Eu não disse que ia zombar? Estou vendo pelo seu sorriso.

— Bem, achei a pergunta engraçada, mas não tive intenção de zombaria.

— Todos acham a pergunta engraçada. Por isso mesmo eu não a faço mais a ninguém. Agora, no meio de tantas bonecas, e vendo o seu interesse em me ser útil, eu me animei… Desculpe, estamos conversados.

— Não. Continue. Fale na alma.

— Das bonecas? Aquela a que me refiro tinha alma, uma alma especial, própria de boneca, isso tinha.

— O senhor a comprou para sua filha, ou era colecionador?

— Nunca tive filha e nunca fui colecionador de nada.

— E então?

— Então, comprei a boneca exatamente porque não tinha filha nem filho. E também porque ela me pediu que a levasse.

— A boneca? Pediu de que maneira?

— Senti que ela me pedia, menos pelos olhos, que se moviam docemente, sem parecer mecânicos, do que pelo ar, entende? Ar muito especial, de esperança, de desejo triste. Acha que estou mentindo?

— Eu não disse nada.

— Não disse, mas está achando. É natural. Todos acham. Mas senti que a boneca precisava de mim, como eu, de repente, comecei a precisar dela. Levei-a para casa, minha mulher achou ridículo, fez uma cena.

— Por tão pouco.

— A partir daí, não nos entendemos mais, eu e minha mulher. Tentei convencê-la de que a boneca devia nos aproximar, em vez de nos dividir. Que era uma espécie de filha, representando a que não tivemos. E como filha a tratei sempre, o que mais irritava minha mulher, incapaz de nos compreender, a mim e à boneca.

— Estou imaginando as consequências.

— Bem, acabou em separação e desquite.

— O senhor ficou com a boneca.

— Eu tinha que ficar com ela, não havia outra solução. Passou a ser para mim um resumo da filha que não nasceu, da mulher que foi embora, das mulheres em geral. Sentia amor e respeito, amor e devoção. E a pobrezinha chorava.

— Mas isso não é comum nas bonecas?

— Nela era diferente. Era choro humano, e chorava por mim. O choro me impressionava, me doía. Eu não a fizera feliz. Comecei a reeducá-la. Levei-a a passeio, viajei, viajamos. Queria ensiná-la a sorrir. Custou, mas consegui. Esse dia foi uma festa, pulei e cantei de felicidade. Daí por diante, ela parecia outra. Sorria, ria, não estou mentindo não, que interesse tenho em mentir? Vivemos felizes algumas semanas, as mais belas de minha vida. Até que um dia…

— Um dia…?

— Ela também foi embora. Com seus próprios pés, com suas pernas desarticuladas.

— Furtada, talvez.

— Não houve furto. Nenhum sinal de ladrão. O apartamento, rigorosamente fechado. Fugiu. Tenho certeza que fugiu, talvez porque só ficara alegre para me contentar, e era uma boneca que não fora feita, melhor, que não nascera para ser alegre.

Fez uma pausa. Olhou uma última vez para a boneca no 14:

— Procurei-a por toda parte. Como ia achar uma boneca fugida no Rio de Janeiro? Hoje, lendo a notícia desta exposição, vim aqui espiar, reparar. Pensei que fosse aquela. Não é. Muito obrigado, senhorita. Nunca se encontra uma boneca fugida, cuja natureza tentamos modificar.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

V Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul/RS (Prazo: 31 de Agosto)


REGULAMENTO

1– O V Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul, promovido e realizado pela União Brasileira de Trovadores, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a seguinte regulamentação:

2 – Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a  composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

3 – TEMA ÚNICO: MÁRIO QUINTANA 

Trovas líricas e/ou filosóficas (não há necessidade de a palavra-tema aparecer na trova). Para autores residentes no Brasil e no exterior, assim como no Estado do Rio Grande do Sul e também para NOVOS TROVADORES.

4 – Formas de remessa;

A) Via Correio; as trovas deverão ser remetidas pelo sistema de envelopes para o seguinte endereço:

Rua Araújo de POA, 1204 - B - Santa Helena
Cachoeira do Sul – RS. CEP: 96 503 – 460 e

B) Via e-mail:

Fiel Depositária: Jaqueline Machado

tudoepossivelw7@gmail.com


As trovas deverão ser remetidas preferencialmente por e-mail para Jaqueline Machado.

5 – Abaixo da trova o autor deverá colocar sempre a CATEGORIA a que concorre: Nacional\Internacional, Estadual, Novos Trovadores Estadual e Novos trovadores Nacional. 

6 – Prazo para remessa: 31.08.20

7 – Cada autor poderá concorrer somente com UMA (1) trova.

8 – Os vitoriosos receberão diplomas virtuais com as trovas classificadas.

9 – O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiados em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

10 – Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

Cachoeira do Sul. Maio de 2020.
JAQUELINE MACHADO
Presidente da UBT Seção de Cachoeira do Sul

Fonte:
Regulamento enviado por Jaqueline Machado

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 273


Scyla Bertoja (Meias Trocadas)


Não quero ser a primeira. Finjo dormir. Nos últimos cinco anos já aprendi alguns truques. Aquelas vozes rasgadas, agudas, incultas, Invadem o quarto, circundam as camas. Moldura sonora dos nossos pesadelos noturnos, a gritaria precede o abrir de cortinas e persianas, derramando claridade em nossos olhos ainda colados. Em seguida braços fortes e mãos geladas, quase sempre úmidas, nos agarram e nos levam meio arrastadas, para o banheiro. Às vezes, para adiantar serviço, duas de nós ao mesmo tempo. Fraldas molhadas ou até pior, cheiramos mal e o sentimento é de vergonha, constrangimento. Por isso, e não por preguiça, como querem alguns, seguimos reclamando  pelo corredor, o que não chega a comover as pessoas que nos amparam. Depois, à medida que somos lavadas, enxugadas e vestidas com roupas limpas e secas, vamos reconquistando a sensação de sermos, outra vez, humanas. Penso que aquelas que já perderam a consciência são mais felizes, pois não demonstram alguma repulsa em relação a seus corpos e parecem desconhecer a desagradável sensação ao acordar, indiferentes à humilhação e ao ridículo. Raramente opõem resistência aos modos bruscos de alguma atendente mais grosseira. Mas há sempre uma ou duas que não querem sair. Silenciam tão logo são colocadas embaixo do chuveiro, esboçando até, por vezes, um arremedo de sorriso idiotizado, senil. Braço rígido, mão em garra, aquele andar de cãozinho atropelado, o medo e a insegurança das cegas, são coisas normais na casa. Ninguém mais usa óculos. De nada serviria. Acho que a visão de algumas delas se compara à "Aurora no Castelo Norham", tela pintada por Turner, de concepção quase abstrata, que tem como tema uma mansão sobre o rio Tweed. Conheci uma reprodução da obra no consultório do médico que me operou pela primeira vez. Lindíssima. Mas não permite individualizar absolutamente nada.

O desfile matinal não é exatamente um espetáculo de grande elegância. Portadoras de todo tipo de deficiências, elas vão sendo acomodadas à mesa do café, com respeito e até carinho, pelas funcionárias, com direito a cafuné, afago nas costas, no rosto ou nas mãozinhas enrugadas e manchadas pelo tempo. As cabeças vão do grisalho ao branco amarelado. Apesar do ambiente em que vivo, meu conhecimento sobre doenças é parco. Mas da idade eu sei. Fico atenta ao modo como emagrecem rapidamente, mesmo alimentando-se com frequência e em abundância. Ficam enrijecidas e movimentam-se com dificuldade. Ao falar, confundem os sons e produzem discursos ininteligíveis. No entanto, parecem saber o que estão tentando dizer. Em seguida esquecem tudo. Algumas delas demonstram uma espécie de dualidade. Dão respostas claras e lúcidas, emitem sua vontade, mas, ao relatar algum episódio de suas vidas, agregam histórias que não aconteceram na realidade - fabulação. Segundo ouvi dizer, é somente para preencher, no cérebro, os espaços que não podem ficar vazios.

Minhas companheiras, com raras exceções, foram esposas, mães, trabalhadoras, artistas, durante o período mais produtivo de suas vidas. No entanto, a doença e a idade a todos nivelam. Os processos degenerativos não respeitam diplomas, títulos honoríficos, contas bancárias. Tampouco histórias de dedicação e capacidade de trabalho.

Chega a minha vez. A humilhação de depender dos outros para exercer os mais simples atos da vida já seria suficiente para desesperar, mas não fica por aí. Sirvo também de galhofa para as jovens que me garantem esse mínimo de dignidade que é andar limpa, razoavelmente vestida e alimentada. Riem do meu corpo mal feito e dão apelidos chulos às minhas partes pudendas.    Poderiam evitar mencioná-las em seu linguajar rasteiro. Mas se comprazem ao ver-me irritada. Aquém me devo queixar? Serei bem tratada após receberem as reprimendas de seus patrões? Ou serei alvo de uma perseguição corporativa?

Tenho tentado parecer indiferente - sem grande sucesso - ou argumentar diretamente com meus anjos da guarda. Elas são profissionalmente qualificadas, mas nem todas trazem de suas famílias a educação e a sensibilidade necessárias ao entendimento da nossa situação. Um dia ouvi um comentário assim: "Minha bisavó também teve esses problemas e ficou em nossa casa até morrer, e nunca incomodou ninguém". Fiquei pensando e cheguei à conclusão de que há coisas que não podem ser compradas.

Morando neste lugar, às vezes lembro do canil onde costumava deixar Tolstói quando viajava por alguns dias. O veterinário estava lá diariamente. As instalações eram muito limpas e tudo era adequado ao gosto e à necessidade dos cães para evitar o estresse. Meu poodle branco adorava ficar lá. Somente o meu retorno era melhor do que aquele ambiente.

Na sala de música, enquanto espero para colocar os fones e deliciar-me com a Quinta Sinfonia de Beethoven, uma colega, inconformada, conta que, às vezes, observando os próprios pés, não reconhece as meias. Tem certeza de que não são suas.

Sou invadida por sentimentos de revolta e impotência, coloco os fones e levanto o volume para conseguir abafar o grito que me habita o peito há muitos anos. A falta de tato da companheira me parece pior que o meu preconceito. A ignorância dela me atingiu profundamente. Como pode queixar-se das meias para alguém que não possui as pernas?

Fonte:
Rozelia Scheifler Rasia, Alba Pires Ferreira, Ilda Maria Costa Brasil (org.). Coletânea Enigmas. Porto Alegre/RS: Alternativa, 2012.

Aparecido Raimundo de Souza (Provocado)


ANJOLINO ENTROU NA LOJA DE DEPARTAMENTOS...

... pisando forte, como quem penetra autoritário, na própria casa, carregando, com ambas as mãos, uma caixa enorme contendo um aparelho de som que havia comprado no dia anterior. Procurou pela jovem simpática que o atendeu, mas não a viu em parte alguma. Uma vendedora se aproximou solícita, sorriso aberto de canto a canto no rosto.

– Pois não, senhor? Posso ajudá-lo?

– Procuro pela vendedora Solimar.

– Que pena! A senhorita Solimar está em horário de almoço. Posso lhe ser útil?

– De repente... É o seguinte: Como é seu nome?

– Bonifácia...

–... Pois, então, Bonifácia. Comprei aqui, ontem, este aparelho de som e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Acontece que na hora de ligar, nada.

– O senhor ligou corretamente?

– Corretamente.

– Chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Que defeito ele apresentou?

– O Manual?

– Não, senhor. O aparelho.

– Simplesmente não quis funcionar.

– O senhor usou alguma tomada suspeita?

– Se você me explicar o que é uma tomada suspeita...

– Chamamos de tomada suspeita aquela não conectada aos padrões normais. Fios soltos, gatos, ou terminais que suportam acúmulos de aparelhos ligados ao mesmo tempo, como geladeira, fogão, forno de micro-ondas, ventilador, carregador de celular, computador...

– Já entendi. A tomada está dentro das especificações corretas.

– Faça o favor de aguardar um segundo. Vou ver com meu gerente.

Bonifácia voltou trinta minutos depois (o equivalente a um segundo no relógio dela) com um rapaz mediano de estatura, cara escanhoada e redonda, cabelo partido ao meio. Parecia um filho de cruz credo desmamado.

– Pois não, senhor?

– Qual sua graça?

– Gervásio Patuá, as suas ordens. Sou o gerente.

– Perfeito, seu Gervásio. Como falei com a Bonifácia, comprei aqui, ontem, este aparelho e fui direto para casa. Era aniversário de minha filha e queria fazer surpresa. Na hora de ligar, nada.

– Entendo! O senhor ligou corretamente?

– Acabei de explicar tudo a sua funcionária.

– Ok. Sua rede é 110 ou 220?

– 110.

– O senhor chegou a ler o manual?

– De cabo a rabo.

– Qual a vendedora que o atendeu?

– Uma tal de Solimar.

– Sei. É uma de nossas melhores vendedoras. Está em horário de almoço. Me diga uma coisa, por favor: na hora em que o aparelho foi testado aqui na loja, ou seja, na hora que o senhor foi ao estoque para receber o aparelho, notou alguma coisa errada?

– Nada, tudo normal. Sem problemas.

– O senhor se recorda se na hora do teste o rapaz fez alguma observação?

– Nenhuma que eu me lembre.

– Ao chegar em casa o senhor atentou para a voltagem atrás do aparelho?

– Amigo, o rapaz que testou já deixou no jeito.

– Bem, nesse caso, sua tomada deve estar com defeito.

– Não está, não. São todas novas. Mudei para o apartamento não tem dez dias. Peguei as chaves e a primeira coisa que fiz antes de levar a família, cachorro, periquito, papagaio, foi verificar se a parte elétrica estava nos conformes. Aliás, sou o primeiro morador.

– Vou pedir que o senhor tenha um pouquinho mais de paciência. Solicitarei ao rapaz encarregado da entrega dos produtos que são vendidos aqui para que faça um novo teste. Se me permite, levarei o aparelho comigo. Cinco minutos, não mais...

Esse “não mais” durou exatamente uma hora e meia. Retorna o gerente, com o aparelho e a moça que o atendera.

– E, então...?

–... O senhor tem toda razão. Realmente o aparelho não funciona...

– Tudo bem, seu Gervásio. Então, troque por outro e fim de papo.

– Infelizmente não podemos. O senhor terá que levá-lo na autorizada.

– Amigo esse aparelho saiu daqui apresentando esse defeito que o senhor mesmo mandou seu funcionário testar. Não sou o responsável por ele, nem lhe dei causa. Exijo que troque por outro igual e fim de papo.

– Cavalheiro, seu caso, agora, não é mais com a gente.

– A Solimar me falou que se houvesse algum imprevisto era só vir aqui e procurar por ela.

– Compreendo. O senhor está coberto de razão. Contudo, a Solimar também não poderá fazer nada. É norma da matriz. Temos que acatar. No seu caso, só a autorizada. A propósito: o senhor fez a garantia estendida?

– Não. O que vem a ser isso?

– Quando o senhor adquire um aparelho deve fazer imediatamente a garantia estendida. Acontecendo qualquer coisa de errado, como de fato aconteceu... A garantia estendida...

–... Meu prezado Gerásio, me ajude a juntar alguns pontos soltos...

– Gervásio, senhor. Que pontos soltos?

– Vocês fazem propaganda enganosa na televisão, ludibriam a boa fé dos clientes, sacaneiam os compradores como bem querem, e, agora, simplesmente vem aqui me dizer, quase duas horas de espera, que não podem trocar um aparelho, por outro, porque é norma da matriz? E ainda, para completar, tem a cara de pau de acrescentar essa balela de garantia estendida?

– Cavalheiro, não fazemos propaganda enganosa, não ludibriamos ninguém, tampouco a boa fé das pessoas, menos ainda sacaneamos. Nossa empresa é séria e está no mercado há mais de vinte anos. No seu caso, voltando a ele, nada podemos fazer porque o senhor não optou pela garantia estendida.

– E se na hora que esse seu funcionário estivesse testando a porcaria, essa droga não ligasse, que atitude vocês tomariam?

– Substituiríamos imediatamente o aparelho por outro...

–... Então... Substitua...

–... O senhor já saiu da loja.

– Fui direto para minha casa. O aparelho, como vocês estão vendo, voltou do mesmo jeito que saiu daqui.

– Concordo com o cavalheiro. Só há um problema o troço não está funcionando. Quando o senhor saiu com ele daqui, ontem, estava em perfeitas condições de uso.

– Tudo bem, tudo bem. Mas, meu amigo Germásio, eu cheguei em casa e ele deu pau. O que fiz foi embalar tudo de novo, do jeitinho que estava e voltar para trás.

– Cavalheiro, por favor, meu nome é Gervásio. Gervásio. Olhe meu crachá. Gervásio. Pois é como eu já lhe passei e volto a repetir. O senhor está coberto de razões, tem direito de reclamar, de brigar, de perder as estribeiras, mas nesse caso, sinto muito, só a autorizada.

– Meu amigo, entenda. Não estou lhe pedindo nenhum favor. Apenas exigindo o que está no Código de Defesa do Consumidor. É meu direito. Comprei essa droga em quinze vezes, sem entrada. O que acontece se eu resolver não pagar?

– Seu nome, senhor, será incluído no SPC.

– Vocês ainda têm o direito de sujar o único bem que prezo acima de qualquer coisa?

– Quando o senhor concretizou a compra, com a nossa vendedora Solimar, assinou um contrato. São as normas estabelecidas nele que nos apresenta várias opções, uma delas, enviar seu nome aos órgãos dos fichas sujas. Desta forma, se o senhor não honrar o que acordou...

–... Eu honro, e vocês? Custa trocar essa porra?

O gerente Gervásio fez um longo gesto de condescendência tentando acalmar os ânimos de Anjolino. Bonifácia sugeriu um café para serenar os vapores de uma possível combustão que, de espontânea, prenunciava acabar numa balbúrdia iminente.

– É complicado. Embaraçoso, admito, mas a loja nada pode fazer pelo senhor.

– Nada?

– Nada. Só a autorizada. Repetindo, se o senhor tivesse concordado com a garantia estendida...

–... Já percebeu que neste país a corda rebenta sempre para o lado dos mais fracos? No caso eu sou essa parte fraca. Venho aqui nesta espelunca, adquiro um aparelho com vocês, pago, por ele, o olho da cara... Me atiro de cabeça, num juro do caramba, a peça comprada apresenta um defeito, volto aqui menos de doze horas de efetivada a transação e vocês não podem fazer nada?

Começou a juntar gente. Pessoas que estavam no interior, em outras seções, se aproximaram para bisbilhotar e mexericar.

– Trouxe o carnê, a nota fiscal, tudo como manda o figurino e a loja simplesmente me diz que não pode fazer nada?

– Gostaríamos de poder estar resolvendo sua situação, mas repito, diante dessas circunstâncias, a empresa não arca com nenhuma responsabilidade, mau uso, ligações mal feitas...

Anjolino, em vista disso, perdeu de vez as estribeiras, a compostura, o bom senso. A sua brutalidade adormecida, em questão de segundos aflorou. E foi com essa altaneria à flor da pele, que partiu para o tudo ou nada. Levantou bem os braços para que todos pudessem vê-lo e ouvi-lo bem. Gritou alto, forte, imponente, cabeça ereta:

– Vocês não arcam com nenhuma responsabilidade? Me chamam de mentiroso, alegando que fiz uso indevido, tentam me convencer que liguei essa geringonça errada e terminam dizendo que se eu não pagar meu nome irá parar o rol dos caloteiros? Pois vou mostrar, seu gerentezinho filho da mãe, o que é que eu faço com essa droga.

Passou a mão no aparelho e, inopinadamente, num repelão, o arremessou contra uma dezena de televisores em exposição. Houve pequenas explosões em cadeia, o que colocou a galera em debandada. Não contente Anjolino chutou prateleiras e derrubou uma série de objetos que serviam de mostruário para promoção. A loja inteira, com esse ataque, ficou em estado desesperador. Nada restou inteiro para contar a história. Virou um caos. De um momento a outro, num abrir e piscar de olhos, tudo se transformou uma praça de guerra, um verdadeiro Deus-nos-acuda. A segurança do shopping foi acionada, a polícia requisitada, uma ambulância, uma guarnição do Corpo de Bombeiros e até soldados do batalhão de choque.

De Anjolino, entretanto, nem rastro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. As mentiras que as mulheres gostam de ouvir. RJ: Ed. AMC Guedes, 2013.
Livro enviado pelo autor.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Varal de Trovas n. 272


Benevides Garcia (Felicidade, onde moras?)

Fonte: Facebook

A. A. de Assis (O Tesouro de Maringá)


O tesouro maior de uma cidade são as famílias que nela se formaram. Gosto dessa frase, não sei se minha ou se ouvida alhures. Gosto e assino embaixo.

Ele paulista, ela mineira. Chegaram aqui ainda meninos, no início da década de 1940. Conheceram-se num baile do Aero Clube. Namoraram, casaram, multiplicaram. Nasceram-lhes seis rapazes e quatro moças, logo vieram seis noras e quatro genros. Depois os netos, bisnetos. Na festa das bodas de diamante do casal pioneiro (60 anos de amor e solidariedade), o clã já reunia mais de cem pessoas.

Que família é essa? Tantas, parecidas todas. Basta pegar uma lista de telefones. Qualquer um daqueles sobrenomes daria uma bela história dentro da bonita história de Maringá.

O velho casal está entre nós ainda, recordando momentos marcantes. A inauguração da cidade no dia 10 de maio de 1947. A eleição do primeiro prefeito. A posse da primeira Câmara de Vereadores. As primeiras escolas. A chegada do primeiro avião, do primeiro ônibus, do primeiro trem. Os primeiros cinemas. Os primeiros desfiles cívicos. Os primeiros comícios. Os primeiros clubes. As primeiras grandes lojas. Os primeiros padres e pastores. Os primeiros doutores: médicos, dentistas, engenheiros, advogados, agrônomos. Os primeiros professores. O primeiro juiz. O primeiro promotor. Os primeiros bancos. Os primeiros jornais. As primeiras emissoras de rádio. A primeira emissora de televisão. A chegada do primeiro bispo. O primeiro Festival de Cinema. A inauguração da Catedral. A primeira faculdade, a universidade.

No início era pouco mais que uma aldeia, uma pequena comunidade em que todos se conheciam. As casinhas de madeira. As noites mal iluminadas. Ruas esburacadas. Homens calçados de botas, mulheres calçadas de galochas, para enfrentar o barro nos dias de chuva. Janelas fechadas nos dias de sol para abrandar a invasão da poeira. O passa-passa de jipes com as rodas acorrentadas, caminhões carregados de toras ou de sacas de café. A banda de música. O jipe 28. O Clube do Caçula. As matinês dançantes no Grande Hotel. Os piqueniques no horto florestal. O sorvete na Oriental. O aperitivo no Bar Colúmbia.

Aos poucos a cidade foi crescendo para o alto e para todos os lados, transformando-se num enorme aglomerado em que ninguém mais sabe quem é quem. Mais de 400 mil, quase 500 mil maringaenses, fora os vizinhos que diariamente aqui circulam.

Mas nas reuniões de família os elos permanecem. Cada clã é uma rosa, cada parente uma pétala. O maior tesouro de Maringá. Bonito isso.

Não faz muito tempo estive no jantar de aniversário de um amigo pioneiro. Quando o conheci, em 1955, eram só ele e os irmãos menores. Agora a seu redor está um grupão unido e lindo, desde os de cabelos brancos até a meninada de colo.

Poeta chora à toa. Chorei.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 07-5-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Daniel Maurício (Devaneios Poéticos) 3


Ah, este meu anjo!
Tendo asas
Até que poderia pra bem longe voar
Mas preferiu ficar e sofrer comigo.
É...eu vi
Uma lágrima de anjo.
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Ao nos encontrar
Nossos olhos fizeram um brinde
Tomei um gole de você
E a taça da saudade ficou menor.
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Depois de vírgulas e reticências
Na minha história de amor,
Você
Foi o meu ponto final.
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Dos matizes dos teus olhos
Empresto as cores
Para os meus versos.
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Em minhas mãos
Uma lágrima pingou
Regando a pétala do malmequer.
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Meus olhos choviam.
Mas a poesia,
Me ofereceu seu guarda chuva.
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Minhas alegrias ganharam pernas
E com as tuas
Bailaram no espaço.
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Na xícara de chá
A saudade ganhou sabor.
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Na delicadeza dos teus traços
Pinto no imaginário
Com as cores que eu te quero.
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Na pressa de te encontrar,
Outonalmente,
Vou despindo meus retalhos
Pelo caminho.
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Santas são as mãos de mãe.
Onde há sempre um remedinho
Que com muito carinho
Cura as feridas
E da alma tira a dor.
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Seu beijo
É a chave
Que abre meu apetite
Por você.
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Teus lábios:
Altar
Onde oferto os meus beijos.
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Um vírgula nos separa.
À tua margem,
Só meus olhos
Em ti mergulham.
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Você
Era tão presente na minha saudade
Que o mofo não tinha vez.
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Voo...
Nos olhos azuis de Helena
"O pássaro da poesia"
Extensão do céu fazia.

Fonte:
Facebook