quarta-feira, 3 de maio de 2023

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLI

A estrela tem seu momento
de mostrar todo o fulgor,
pode assim o firmamento
se revestir de esplendor.
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A água pura e cristalina
abrindo valos nos montes,
talvez a grande obra prima
se espalhando desde as fontes.
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Água para o chimarrão
não precisa ser fervente,
tendo a cuia e tudo à mão
basta que ela seja quente.
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A humanidade se afasta
do seu rumo à paz geral.
Só criar as leis não basta,
mas cumpri-las é vital.
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A neve cobre a paisagem
fazendo descer seu manto,
mesmo sendo maquilagem
veste-a de fulgor e encanto.
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Ante o drama do tropeço
não podemos fracassar,
se não for bom o começo
é a vez de recomeçar...
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Antes de cruzar os braços
vê o que resta pra alcançar,
talvez juntar os pedaços
dos que estão a balançar.
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Aos habitantes da terra
clama o céu paternalmente,
que deixem de lado a guerra
e vivam fraternalmente.
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Da inveja nasce o ciúme
e da vingança a traição,
o amor que os seres reúne
morre sem definição.
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Em nome do crescimento
hoje, perdeu-se a noção,
de haver desenvolvimento
junto com preservação.
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Existem alguns amigos
que não são muito leais,
quando surgem os perigos
somem pelas laterais.
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Jamais aja sem pensar,
pense sempre antes de agir
e depois de começar
não pare sem concluir.
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Muita gente pede esmola
sem entrar no educandário,
melhor se tornasse a escola
a luz para o itinerário.
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Muitas vezes já parei
chorando na solidão,
noutras também já chorei
parado na imensidão.
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Nenhum casal seja omisso,
nem se jogue pelo abismo,
pois antes do compromisso
deve haver companheirismo.
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No buquê da natureza
admiramos tantas flores,
umas com rara beleza,
outras de raros olores.
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No mundo nunca devemos
temer quaisquer desafios,
pois quanto mais os tememos,
mais nos tornamos vazios.
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Num sorriso imaculado
sem respingos de maldade,
faz um semblante calado
se encher de felicidade.
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O mundo com sutileza
nos mostra tudo o que tem,
cabe a nós, sem avareza,
escolher o que convém.
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Os propósitos divinos
são de preservar a vida,
mormente a dos pequeninos
muitas vezes esquecida.
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Quem seca o pranto do irmão
não tem tempo pra chorar,
nunca está na contramão
quem a paz deixa aflorar.
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Se quiseres alcançar
o sol, distante no além,
saiba que deves passar
pelas estrelas também.
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Toda estrela cintilante
teve um caminho a trilhar.
Se a sua não for brilhante
deixe a dos outros brilhar,
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Tristeza e melancolia
não podem servir de alento,
mesmo pequena, a alegria,
é maior que o sofrimento.
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Nilto Maciel (Circuito)

“Entramos nos quarenta anos com a inexprimível ideia de que o nosso simples e silencioso matrimônio de irmãos era o fim necessário da genealogia fundada pelos bisavós em nossa casa.”
Julio Cortázar, Casa tomada.

Cansados de vagar pelas ruas, famintos, Daniel e Irene pararam diante de um bar. Se não encontrassem comida, ao menos descansariam. Outra pousada talvez não houvesse por perto.

O garçom ofereceu-lhes vinho, cerveja, vodca, uísque. Aceitaram vinho com salame. Ela abaixou a cabeça, quase até a tábua da mesa. Ele olhava sutilmente para os outros bebedores. Um deles, exaltado, falava mal do governo. Outro cochilava diante do copo. Havia bigodes volumosos, barbas ralas, dentes luzidios, olhos faiscantes.

Daniel pediu mais vinho e salame. Irene queria chorar, sair dali, deitar-se, esquecer tudo. Tivesse calma. Precisavam ordenar as ideias. O vinho talvez os ajudasse. Ao redor dele o governo tombava. Bigodes se enchiam de dentes; barbas, de olhos. E a casa? Como estaria a casa deles àquela hora? Já teriam tomado conta da biblioteca, devorado os livros franceses? Ah! como guardava belas recordações de Balzac, Flaubert, Victor Hugo.

Por um instante Irene esqueceu de si mesma. Tivesse o irmão cuidado com aquele vinho. Não costumava beber e poderia se embriagar. E, então, como teriam boas ideias e sairiam dali? Ele se exaltou. Não precisava de ideias. A única ideia daquela noite deveria levá-los de volta à sua casa. Sim, a casa lhes pertencia. Não a deixariam para primos distantes e, muito menos, para intrusos, invasores estranhos. Ela se pôs a chorar baixinho. Nunca mais voltaria àquela casa. Como voltar, se estranhos a haviam tomado?

Um dos bigodes do recinto aproximou-se dos irmãos. Pediu licença para ajudá-los. Pôs seu copo junto ao de Daniel e puxou uma cadeira. Ouvira toda a conversa do casal. “Somos irmãos”. Os dentes do intruso brilharam, assim também os olhos. Se não podiam voltar para casa também não podiam passar a noite nos bares ou nas ruas. Daniel pediu mais vinho. Irene mirava o brilho dos dentes do outro.

Morava sozinho num casarão. Os pais mortos há muito. Os irmãos perdidos no mundo, cuidando de suas vidas. Casamento não quis nunca. Preferia a noite, os companheiros de bar. Mulheres surgiam e sumiam, feito fantasmas, sombras, inacessíveis. Em suma: muita solidão. Nem sequer um gato para miar-lhe o silêncio, um cão para ladrar-lhe a escuridão. Se ao menos ainda gostasse de livros! Atemorizava-se diante da amplitude de Balzac. Aborrecia-se com o infinito amargor dos personagens de Flaubert. Talvez devesse colecionar selos e revê-los aqui e ali. E, se fosse mulher, poderia tricotar e desfiar coletes, echarpes, cachenês.

O homem ora agarrava o braço de Daniel, ora apalpava o ombro de Irene. Os irmãos se entreolhavam. Ela mostrava uns olhos de medo e espanto. Ele simulava uns lábios de quietude e impassibilidade. “Precisamos ir embora, caminhar”. Sim e não. Pois como andar pelas ruas àquela hora? Já fechavam as portas do bar. Nenhum boêmio, nenhum bêbado mais. “Vamos à minha casa. Dormiremos e, quando for dia, tomaremos nossos rumos”. Irene amparou-se no irmão. Aquele sujeito talvez estivesse embriagado. “Iremos de carro”. Pior ainda. Não conseguiria dirigir. “Tenho motorista. Se não gostarem dele, chamarei o chauffer”.

O automóvel planava. As esquinas se sucediam. Vultos sonolentos andavam pelas calçadas. O condutor parecia um boneco. O dono do carro nada mais falava. Daniel olhava para um lado; Irene para outro.

Súbito o automóvel parou. E os irmãos, pasmados, se viram diante da casa que lhes fora tomada.

Fonte:
Livro enviado pelo autor.
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça III

Também não passei má vida e jamais passei pelo receio do pente de bichos, que foi traste que nunca lhe foi à cabeça. Mas vi-me ao princípio num perigo iminente. O pai da tal minha senhora contratava em pedras, e esmorecia pela filha, de forma que em ela lhe doendo um dedo, doía ao pobre homem o corpo todo. 

A rapariga entrou a queixar-se, uma vez dores de cabeça, outra vez do corpo moído, depois espinhela caída, constipação etc. Entraram a dizer que eram lombrigas, mas passados alguns tempos que a moléstia eram calos, e com efeito eram, que os pregou ao pai de maço e mona. Assentaram os peritos que eram necessários banhos. A menina, que estava com apetite na receita, quis logo ao outro dia tomá-los. O pai opôs-se, dizendo que era preciso preparar o corpo. Veio o mezinheiro e disse que o preparo do corpo para tomar os banhos era despir a camisa. A menina conveio nisso e, no outro dia, apresentou-se no mar. 

Depois de mil bichancros (gestos ridículos) e coisas ridículas do costume, como por exemplo: Está muito fria! Ai, que me mordeu um caranguejo! Meti uma ostra num pé! Não posso tomar o fôlego! Ai ...! Ai...! quem me acode! Perdi o fundo! etc., e outras coisas deste mesmo calibre, apresenta-me com a cabeça debaixo da água. 

Agora o verás: nunca me vi tão quente, apesar da água estar fria. O que me valeu foi uma coifa que a tal senhora levava, quando não, alguma barriga de linguado me esperava. Quando me vi fora da água não o podia crer. Mas, passado este primeiro susto, reconheci em mim mais agilidade, desembaraço de cabeça, apetite de chuchar e vim no conhecimento que muita gente melhora tomando os outros o remédio.

Enfim, botei o medo para trás das costas e continuei nos banhos e cheguei a estar tão gordo, que de gordo estava feio. Meus companheiros e amigos me desconheciam. Mas isto durou pouco tempo porque o pai entrou-se-lhe a meter na cabeça que os banhos da filha lhe haviam dar nele, proibindo-lhes, sendo o prelúdio desta proibição meia dúzia de bofetões bem puxados que a tal senhora recebeu com desgosto, apesar do pai lhes dar com a melhor vontade. Mas isto a mim não me importa, nem tem nada com a minha história.

Assim fui vivendo até que um dia meteu-lhe o diabo na cabeça o lavá-la com aguardente. Bagatela. Julguei que dava a casca. Fiquei tão atordoado que, quando tornei a mim, não sabia onde estava. Tremiam-me as pernas, andava-me a cabeça à roda, amargava-me a boca, não fazia senão espreguiçar-me e eu cuidei que tinha uma maligna às costas. Mas não foi nada. Melhorei e melhorei celebremente por uma casualidade. A moléstia, que me tinha ficado desta bebedeira, eram afrontamentos e uma espécie como de asma. Faltava-me o ar de forma que, estando na cama, julgava morrer de aflição. Mas pouco durou isto.

Um sujeito que tinha vindo de viajar agradou-se da menina. E, como o pai lhe fechava a janela logo à noite, ela tomou a mania de a abrir pela meia-noite e punha-se a falar até às duas e três horas com o tal suplicante. Isto foi o que me deu vida a mim, e a ela. Aquele fresco que tomava, inteiramente me restabeleceu. A fala, já se sabe, que era para bom fim. Ajustou-se o casamento. Concluiu-se e a noite do noivado jamais me esquecerá. Tive um trabalho incrível, em que lhes havia de dar a essas duas criaturinhas! Começa o marido, com o dedinho, a catar a cabeça da mulher. Eu que percebo isto, e o perigo em que estava, passo para a cabeça do marido. Passado um instante, larga o marido a catadela e salta a mulher a catá-lo. Torno para a cabeça da mulher e assim passaram toda a noite e eu aos saltos de cabeça em cabeça. Pela madrugada descansei alguma coisa, mas protestando de me safar apenas pudesse, o que concluí no dia imediato, deixando-me ficar na cabeça do marido que, indo fazer a barba, me passei para a cabeça do barbeiro e aí fiz a minha Carapuça IV.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Daniel Maurício (Poética) 51

 

Rita Mourão (Descompasso)

Outono. Gosto dessas noites cheias de um calor definido, misturado com o odor suave das folhas secas. As árvores estão se despindo das cores embaçadas para darem lugar à renovação.

Eu também estou me despindo da antiga roupagem verde musgo sem que haja promessa de renascimento. Minhas vestes de hoje são de um lilás conformado que procura se acomodar às mutações. Às vezes tenho algumas recaídas, no entanto, o tempo implacável se encarrega de reajustar a minha postura. Eu e o hoje nem sempre estamos afinados. Tudo se passou muito rápido. Rápido demais para quem chegou aos sessenta anos sem entender as metamorfoses da idade. Tenho pensado muito sobre isso e sinto uma dor aguda que atravessa minhas entranhas e se instala nas janelas dos meus olhos. Por isso meu olhar é triste, uma busca constante do ontem. Guardo lembranças e, com elas, um vestido vermelho que vestiu meus 18 anos para uma foto. Sempre gostei de vermelho, mas este vestido é especial. Fala-me de um tempo em que as pessoas olhavam-me com interesse e até certa inveja. Tempo de amor, sonhos, semeaduras. Guardo-o com cuidado, gosto de acariciá-lo. Ele é bonito e exala um perfume cansado. Cheiro de outro corpo, esguio e estreitinho. Agora as roupas não me caem bem. Um pouco mais gorda, tudo fica meio esquisito em contato com a minha nova imagem. Mesmo assim, tento valorizar o que sou, num esforço supremo para resgatar o que fui diante dos compromissos que me cercam.

Hoje vamos a um jantar. Eu e o meu marido. Abro o guarda-roupa e procuro algo que possa me fazer mais jovem. Opto por um vestido justo, tentando forçar uma silhueta esbelta. Olho-me no espelho e me acho meio ridícula. Meu marido também não aprova. Com delicadeza, sugere-me um vestido mais solto. Ainda assim insisto. Coloco um colar de pérolas, calço uma sandália de saltos bem altos, prendo o cabelo em forma de coque e dou um colorido no rosto. Quero imitar a outra, a da foto. Enfrento o espelho. Tudo inútil. O vestido não é vermelho, o corpo e o rosto já não têm 18 anos. A pele aveludada há muito se manchou e se agregou ao peso dos anos.

Na sala meu marido espera. Elegante, paciente, generoso. Troco de vestido. Não sinto o efeito desejado. Não são os vestidos, penso. São as sobras que se avultam em meu corpo, um insulto grave para uma pessoa vaidosa.

Desço os degraus dos anos e bebo o acre sabor do tempo presente.

O silêncio que transcorre é desesperador. Sinto passar por mim os finais de um outono sem acenos de outras primaveras. Com um sorriso acusador nos meus lábios, e num átimo de desespero arranco o vestido, descalço as sandálias e desfaço o coque. Volto ao quarto abro o guarda-roupa, escolho um terninho azul com gola de renda pura. Calço uns sapatos fechados e
prendo os meus cabelos com um prendedor antigo. Mais uma vez o espelho me denuncia e eu aceito.

Esta é a que restou da outra, digo a mim mesma, numa resignação assumida.

E o tempo e a realidade se cruzam diante da minha fragilidade. Mesmo que meu desejo seja evidente eu jamais conseguirei atar as duas pontas da vida. O fim está fragilizado demais para ser colado ao inicio.

Saio do quarto em direção à sala. Para trás, como se fosse um outro retrato, vou deixando a velha bagagem de um trem, que já partira.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Charles Baudelaire (Poesias Avulsas) 2

 A MUSA ENFERMA

Ó minha Musa, então! Que tens tu, meu amor?
Que descorada estás! No teu olhar sombrio
Passam fulgurações de loucura e terror;
Percorre-te a epiderme em fogo um suor frio.

Esverdeado gnomo, ou duende tentador,
Em teu corpo infiltrou, acaso, um amavio?
Foi algum sonho mau, visão cheia de horror,
Que assim te magoou o teu olhar macio?

Eu quisera que tu, saudável e contente,
Só nobres ideais abrigasses na mente,
E que o sangue cristão, ritmado, te pulsara

Como do silabário antigo os sons variados,
Onde reinam, a par, os deuses decantados:
Febo — pai das canções, e Pan —— senhor da seara!
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A MUSA VENAL

Musa do meu amor, ó principesca amante,
Quando o inverno chegar, com seus ventos irados,
Pelos longos serões, de frio tiritante,
Com que hás de acalentar os pezitos gelados?

Tencionas aquecer o colo deslumbrante
Com os raios de luz pelos vidros filtrados?
Tendo a casa vazia e a bolsa agonizante,
O ouro vais roubar aos céus iluminados?

Precisas, para obter o triste pão diário,
Fazer de sacristão e de turibulário,
Entoar um Te-Deum, sem crença nem fervor,

Ou, como um saltimbanco esfomeado, mostrar
As tuas perfeições, através d’um olhar
Onde ocultas, a rir, o natural pudor!
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CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se.

Há perfumes sutis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
— E outros, de corrução, ricos e triunfais,

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d’um clarim.
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ELEVAÇÃO

Por cima dos pauís, das montanhas agrestes,
Dos rudes alcantis, das nuvens e do mar,
Muito acima do sol, muito acima do ar,
Para além do confim dos paramos celestes,

Paira o espírito meu com toda a agilidade,
Como um bom nadador que na água sente gozo,
As penas a agitar, gazil*, voluptuoso,
Através das regiões da etérea imensidade.

Eleva o voo teu longe das montureiras**,
Vai-te purificar no éter superior,
E bebe, como um puro e sagrado licor,
A alvinitente luz das límpidas clareiras!

Neste bisonho val de mágoas horrorosas,
Em que o fastio e a dor perseguem o mortal,
Feliz de quem puder, numa ascensão ideal,
Atingir as mansões ridentes, luminosas!

De quem, pela manhã, andorinha veloz,
Aos domínios do céu o pensamento erguer,
— Que paire sobre a vida, e saiba compreender
A linguagem da flor e das coisas sem voz!
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* Gazil = elegante, airoso
** Montureiras = esterqueiras, estrumeiras.
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O ALBATROZ

Às vezes, no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num voo triunfal, numa carreira audaz.

Mas quando o albatroz se vê preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caídas para o lado!

Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo grotesco verme!...
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.

O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Charles Baudelaire, Flores do Mal. Publicado em 1857.
Traduzido por Delfim Guimarães (1924). Atualização do português e notas por J. Feldman.

Aparecido Raimundo de Souza (Fuga necessária)

FINAL DE SEMANA prolongado no meio do mato. Sítio. Silêncio absoluto, sem as interferências nocivas da grande cidade.  A mim, em particular, essa tergiversação (1) oportuna, fez um bem danado. Amei. Amei de paixão essa escapatória sem amarras, sem aviso prévio, sem bilhetes, recadinhos, mensagens e avisos, dando conta à terceiros. A gente acaba se tornando, sem perceber, a grosso modo, um “esparro” dos que nos cercam e apregoam, a todo instante, nos querer bem. Ledo engano!

Fazia tempo que vinha tentando me apartar dessas loucuras estafantes e desenfreadas do dia a dia. Mesmo norte, das corridas infindáveis, dos problemas, das pessoas chatas e pegajosas, dos telefonemas intermináveis e enervantes, das redes sociais. Por falar em redes sociais, isso me atinge diretamente o centro nevrálgico e, de certa forma, me torna um monstro, nos moldes do God Only Really Knows do Lago Ness (2). 

Não há nada mais nojento que as redes sociais. Por elas, e em nome de suas teias avassaladoras e escravizadoras, acabou de vez a privacidade e a intimidade das pessoas. O ser humano, como um todo, perdeu o carisma. Atirou no lixo a benevolência. Esqueceu, num canto, a sua compostura, o seu recato, o seu discernimento. Cada um, em particular, demoliu, de forma trágica, a sua identidade. Assolou, desmantelou para sempre o seu momento de paz e sossego. 

O “eu” geral de cada ser vivente virou um amontoado de imundícies, onde se armazenou numa torre maior que a de Babel, uma edificação enorme repleta de entulhos da pior espécie. Em nome do progresso, o ser pensante (pensante?!) se tornou escravo da sua imbecilidade. Escravo aqui entendido, como lacaio na pior maneira de expressão contida dentro dessa palavra. 

No bojo dessa atoleimação (3) infrene e delirante, a poesia que emanava do cérceo (4) da alma, se perdeu nas confusões dos “Facebooks”, dos “Twitters”, “Instagrans”, “Blogs”, e “WhatsApp”, etc., etc., sem mencionar outras frivolidades amalucadas e estúpidas que surgem a cada dia, minuto a minuto, segundo a segundo, brotadas dos bueiros e sumidouros dos esgotos que nós mesmos abrimos ao nosso redor. 

Daqui do meio do mato, metido até os entressachados (5) do pescoço, dentro do nada, que em nada, me lembra o “Tudo” da cidade assassina, com as suas correrias e barbaridades, longe da terra, do mundo, dos maçantes e tediosos das campainhas, dos semáforos, do sufocante “para-para”, dos ônibus e carros, das buzinas..., entre árvores, folhas, plantas, bananeiras, laranjais, cafezais e orquídeas, me sinto renovado.

Entrelaçado aos maracujás apanhados no pé, às mangas chupadas à sombra da própria árvore, vacas, bois, porcos, patos, marrecos e galinhas, me reconforto interiormente. Curo as feridas que aguilhoam e machucam. Trato as lesões que atormentam. Afasto o cansaço que não dá folga. Faço uma espécie de “Raio-X”, de cabo a rabo, do meu cotidiano. 

Consigo vislumbrar nitidamente através das chapas eletromagnéticas, o avesso, o antagônico, o divergente do meu recôndito cansado. Percebo a olhos claros, o coração em pedaços. O sangue correndo desesperado. Tudo em mim parece sem cor, desconexo, esfacelado, frio, gélido, compactuado com o irrecuperável. 

Porém, o pouco que caminhei sem eira nem beira, monopolizado às horas calmas da manhã, os pés sem meias e sapatos apertados, cobrindo o esqueleto uma bermuda velha encimada por uma camisa rasgada, aderida ao conforto da terra batida, ajudou um pouco. Um pouco não, muito a melhorar o quadro lúgubre das minhas tristezas internas. 

Igualmente, das frustrações estropiciosas (6) que se instalaram e criaram formas múltiplas, contudo vazias e sem nenhuma razão para existirem. Até antes de chegar aqui –, eu me sentia velho, cansado, malparido, desalinhado, torto, precário, sem energia, força e vitalidade. Assemelhava, bem sei, a uma lagartixa assustada deslizando parede acima, sem rumo certo. Meu corpo parecia irmanado na mesma sensação de indefinida desgraça –, dores aqui e ali, apoquentações e flagelos despejando sintomas inconsequentes na solidão ímpar que insistia em não dar tréguas. 

Contudo, o silêncio do lugar, a singeleza da morada simples, das portas e janelas sem chaves e cadeados, sem luz elétrica; a escuridão das noites sendo vencidas por lampiões à querosene; a fumaça forte do fogão movido à lenha; as panelas fumegando sobre ele, cercadas pelo cheiro do queimado me avivou o que parecia sem vida, desfalecido, morto e enterrado.

Em fluxo igual, engrinaldou incandescentemente com traços novos a esperança carcomida e desbotada. Fez nascer em socorro, um sorriso diferente num rosto embalsamado, enquanto as vistas sem a euforia do viço maléfico, se alegraram por não respirarem os hipotéticos da estagnação, não só da estagnação, usque (ainda que), igualmente, da vida repetida revisitada num vai e vem inconsequente e despropositado. 

Percebo, estarrecido e atônito, que me envolvi nas vísceras do lugar e me absolvi da leveza metafísica que encanta o espírito, tirando dele os morbos (7) e os camarços (8) do cansaço e soprando, para o divorciado aquém do mensurável as brumas negras dos descontentamentos e das infelicidades mais atrozes.

Pego-me, nesse instante, renovado. Avivado, leve; solto; a base-eixo que me sustenta aliviada dos estresses maçantes. Devo considerar que esse efúgio momentâneo e inexplicável, sem nexo, sem rumo, sem resguardo, à mercê do destino; servirá (ou melhor, serviu) para livrar meu “eu” doente de uma UTI às portas de se abrirem às carreiras, com todas as inconveniências que se atrelariam juntas; de roldão, mesmo pacote, um cabedal de aberrações as mais degradantes e ignominiosas. 

“Meus todos, carnes e ossos, “ossos e carnes”, se refizeram de certas dores alojadas. Algo indescritível, tipo assim, inesperado, vestiu a alma inteira de arranjos festivos e, como num acender e apagar de matizes, renasci de novo. Reacendi-me por inteiro, me solidifiquei para o amanhã que ainda dorme tranquilo no sono brando dos meus devaneios mais enternecidos e sensíveis.

Meio do mato.  Sítio. Silêncio absoluto. Receita perfeita do Doutor Natureza, sem a presença das tarjas pretas para as indisposições e padecimentos que estavam acabando comigo, pouco a pouco, numa consonância anêmica, desmedrada, adelgaçada, fúnebre, num vilipêndio como o de um cadáver sendo calcinado em câmera lenta para logo depois ser atirado aos vermes. 

Amanhã retorno para a selva de pedra. Volto esvaziado, desabitado, ocioso de aflições e tribulações hematológicas. Chego oco de agruras, custeado por fluidos benfazejos. Inebriado pelas delicadezas e branduras do mato virgem, da taciturnidade das noites estreladas. 

Aporto vivo, feliz, realizado. Achego-me otimista, dono de mim e do pedaço. Pronto para esmiuçar os afazeres circunspectos que se desacomodaram e partiram em busca de outros encostos. Estou refeito, reparado, regenerado, melhorado. Reformulado dos fios de cabelos à ponta dos dedos dos pés. Pronto para mais uma semana a sobreviver pelejando intensamente com as crueldades anômalas e lúgubres da vida.
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Notas:
1 – Tergiversação – A mesma coisa que fazer rodeios, se desviar de uma conversa. 
2 – God Only Really Knows do Lago Ness – Tradução de “Só Deus sabe realmente” com relação a ser verdadeira ou não a história do monstro do Lago Ness.
3 – Atoleimação – Variante de abobalhado ou boboca.
4 – Cérceo – O que foi cortado rente, ou pela raiz. 
5 – Entressachados – Intercalados, misturados ou mesclados. 
6 – Estropiosas –Estragadas ou transtornadas.
7 – Morbos – Doenças ou enfermidades.
8 – Camarços – Sentimentos de infelicidade ou adoecimentos.

Fonte:
Texto e notas enviados pelo autor.

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça II

Também não passei mal na cabeça do amigo cabeleireiro, pois que nele se verificava o ditado “Em casa de ferreiro, espeto de pau”. Jamais se penteava. A cabeça parecia um molho de carqueja e precisava de outro. Era verdadeiramente um mato bravo, cheio de muita bicharia. Já digo, não passei nada mal aqui. Só precisava o cuidado de quando ele metia o pente na cabeça, pois tudo fazia tão estouvadamente que, a encontrar-me algum dente, ficaria de espeto. Mas no mais não tenho de que me queixar, porque até passei uma vida alegre. Ele jamais penteava que não cantasse modinhas ou minuetes. E, se estava em pé, sempre andava aos saltos, de forma que, enquanto não me acostumei, tive alguns sustos. 

Os dias que eu passava melhor eram os Domingos e dias Santos, porque, a respeito de chuchadeira de cabeça, ele tinha muito pouco chorume, à exceção de porcaria. Pois é um engano dizer que esta alimenta os piolhos. Não senhor, é conforme eles são criados. Como ia dizendo, como aqueles dias eram destinados à contradança, coisa da sua última paixão, e em contradanças dobradas nenhuma forçureira (lésbica) o desbancava, fazia figuras que o mais destro escultor não lhe metia o dente. Uma vez, ao fazer de um jacé (melancia), fez-o tão perfeito que parecia um canudo. A Senhora que tinha a felicidade de ser seu par, jamais o rejeitava, de forma que chegou a ter tantos pares que ultimamente pôs uma loja de sapateiro. 

Mas vamos ao caso. Aos Domingos botava sobre aquela porcaria toda, pós, banha, sebo e etc. Então tinha eu o meu banquete, e os meus companheiros, apesar de que nunca me dei com piolho nenhum e, pelo sem-sabor com que passava, é que me retirei. Apenas havia ali um piolho ruço, pardo, que se chamava Adufe[1], na verdade piolho muito bem criado. Mas poucas vezes dormia na cabeça. Entrou a ter umas febres que pareciam sezões, de forma que, à noite, ao deitar, passava para o colchão que era de crina e mais fresco. Porém, teve a desgraça de se lhe meter uma ponta de crina pelo umbigo e, no mesmo instante, morreu. 

Eu dormia-lhe sempre no cachaço (parte posterior do pescoço) e aí tomei amores com uma pulga que sempre naquele lugar lhe saltava. Jamais nos sentiu. Dormíamos como pedra em poço e todo o tempo que ali assisti jamais tive o menor susto. Apresentei-lhe um dia uma trincadela atrás de uma orelha ao tempo que ele imaginava no método de fazer de estopa cabelo (o que teve quase concluído). Deu um irra e coçou-se no nariz cuidando que era aí que lhe doía. Se é de noite, eu passo-lhe para o nariz só para o ver coçar na orelha. Quase tudo fazia às avessas. 

Numa ocasião, penteando uma cabeleira, fez-lhe o chicote no topete e a marrafa [2] no rabicho. E ralhando o dono pelo engano, teimou e reteimou que estava bom, dando por desculpa: - Veja vossemecê os penteados que por aí se trazem. Conheça a moda. Não vê os chicotinos metidos debaixo da casaca, vendo-se só duas farripas e adiante caindo sobre os olhos? De forma que o homem não se quis botar a perder e pagou-lhe, e ele veio tão ufano que daqui por diante sempre teimou e fez tudo às avessas. Mas pagou-o bem porque um alfaiate fez-lhe uma casaca e pos-lhe os quartos de trás nos dianteiros. E depois apostou com ele, que assim é que devia ser dando a sua razão que, para a cabeleira que ele tinha feito, era preciso que fosse assim a casaca. E dizia, demais a mais, que, sendo de moda os quartos de trás o mais estreito que pudesse ser, ele assentara que os devia por de forma que, por mais que procurassem naquele sítio os não vissem, para assim apurar a moda e chegá-la ao auge da sua perfeição. 

Ultimamente, num Domingo, estando numa contradança, ao cruzar o par, encontrou-se com uma Senhora e deram tão grande cabeçada que eu, que tinha fugido para a raiz do cabelo da testa, para estar mais fresco, no choque que deram, caí para a cabeça da Senhora, a qual sentindo-se dorida e algum tanto desconfiada, por estarem todos a rir, não quis dançar mais e, sem valerem desculpas, foi pedir à Madrinha que tinha vindo com ela, que se queria retirar. Eu fiz minhas tentativas de saltar ao chão, para tornar à antiga cabeça, mas como estava tudo em desordem, receei ser pisado e fui na cabeça da Senhora, na qual se verá a Carapuça III
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Notas do Autor
Adufe =  O nome desse piolho era o de um instrumento asiático, que equivale aos nossos Adufes.

 Marrafa = Digo marrafa por ser a uma moda mais conhecida na língua em que escrevo na que traduzo.

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

domingo, 30 de abril de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 26

 

Policarpo da Silva (O Piolho Viajante) Carapuça I

INTRODUÇÃO

Tendo-me ocupado em algumas coisas sérias, nunca me renderam nada. Eu, que sempre fui muito inclinado a traduzir línguas alheias, ainda que, a falar verdade, não sei muito bem a minha, encontrando este manuscrito em poder de um Mouro, que esteve cativo em Argel, e achando os caracteres muito estranhos, porque alguns pareciam-me caranguejos, fui desenganado pelo dito Mouro, mas debaixo de muito segredo, (e o mesmo peço a todos, que este lerem) que era língua piolha, obra anti­quíssima, feita no tempo em que se inventaram as esteiras. E todos sabem que as esteiras é invenção dos Orientais, e que ainda hoje são as suas camas.

Esta obra foi achada numa terra que ainda se não descobriu, mas que brevemente se espera esteja descoberta.

Pode-se supor qual seria o meu trabalho a traduzir uma língua que nem por Microscópio se vê e que não tem Dicionário, ainda que no fim desta obra eu darei um à luz, parto de nove meses do meu engenho. Mas, enfim, consegui-o, e estou tão senhor dela, que será muito difícil ao Piolho mais esperto enganar-me. Eu os desafio a todos em campo raso, e sem cabelos.

De toda a obra, o que me deu mais trabalho foi a tradução dos versos que se acham espalhados pelo corpo dela, e que constam de uns amores que teve o Piolho com uma Lêndea, e a paixão que teve por uma rapariga indiana de quinze anos, em cuja cabeça viajou seis meses, e uma Elegia à morte do Piolho, Autor desta obra, feita por um Piolho seu amigo. E é pena que eu não pilhasse mais obras deste Autor, por­quanto lhe achei muita novidade, como lerão os meus Leitores, senão com aquela força que a língua Piolha tem, ao menos com toda aquela que lhe pude pôr. E eu não sou nenhum galego de pau e corda, antes sou bastante débil, por cuja causa peço esta desculpa.

A língua Piolha é toda a mesma, ainda que sejam diferentes as Na­ções, com a única exceção que os Piolhos das Amazonas fazem dos bre­ves, longos. Esta língua não tem nenhuma Ortografia; usa de pevide, como as Galinhas e foi providência isto, pois se falasse tudo o que entendesse, e quisesse, não haveria língua mais impertinente. Quando a ver­dade é guia, a linguagem é a da natureza: tal no Piolho, que escreveu esta História, pela clareza de modo de explicar-se e simplicidade de termos. Seguiu o gênio sem forçar e todos deveriam assim escrever. Creio que tenho dado a clareza que basta para conhecimento da minha tradução e trabalho; e a grande utilidade que tirará em a ler aquele que a ler andar aprendendo; pois como a obra é grande, e de todas as semanas, será muito rude se não ficar sabendo letra redonda, e sem escrúpulo se lhe poderá chamar um redondo...

A murmuração
É quente de Inverno,
Fresca de Verão

CARAPUÇA I (Nascimento, pátria, país e educação do piolho]

Eu nasci lá para a Ásia, de um ajuntamento de uma Piolha e um Elefante, ainda que houve quem dissesse que uma Tarântula macha foi quem me deu o dia. Mas fosse ou não fosse, isso é coisa insignificante; porque como os Piolhos não têm morgados que herdar, as Piolhas têm pouco escrúpulo de que seja este ou aquele o Pai de seus filhos, ainda que não deixe de haver muitas Piolhas escrupulosas e com muitos bons sentimentos. Seja ou não seja, meu Pai desconfiou muito de eu não ser seu filho, o que não deu poucos cuidados à minha mãe, e talvez fosse a origem da sua morte. Mas é certo que ele não teve razão nenhuma, pois minha mãe me certificou, depois dele morrer, que ela não tivera dares nem tomares com outro algum indivíduo.

Nasci fora de tempo e minha mãe esteve em perigo de vida a meu respeito, porquanto eu saí, ainda que Piolho, bastante grande e largo, que muitas vezes me tomaram por Percevejo. Saí todo à minha mãe, principalmente nos olhos, no andar e no acionado.

A minha cor é cinzento-escura. Educaram-me logo à chuchadeira da cabeça, que a do corpo é só para os veteranos. Não cheguei a mamar vinte minutos. Aos cinco dias de nascido fui atacado de moléstia de olhos; abriram-me uma fonte numa das pernas esquerdas e, com efeito, melhorei, que hoje vejo quanto me basta.

Minha mãe quis que eu aprendesse línguas. Mas meu pai, que era Piolho prudente, não consentiu, dizendo que, enquanto não soubesse perfeitamente a minha, os costumes da minha casta, a obediência que se lhe devia, não queria me embrulhar em mais coisas, para no fim ficar um toleirão, sem nada saber. Ele era áspero de gênio e eu não era muito seu apaixonado. Nunca lhe vi um ar de riso para mim. Jamais me tratou por tu, sempre era um Vossemecê para aqui, Vossemecê para acolá. De forma que eu não só tinha respeito, mas medo.

O Piolho que me ensinava a falar e a morder, não desgostava de minha mãe e ela também não lhe envesgava os olhos. Punha-lhes direitos. Eu pouco aprendia, porque o meu pai nunca queria assistir à lição, dizendo que, quando o Mestre estava com o Discípulo, nem o mesmo pai tinha poder no filho. O Mestre aproveitava-se do tempo e, em vez de me ensinar a mim, ensinava a minha mãe, que era só com quem falava. E havia lição que nem uma só palavra me dizia, do que pouco se me dava porque entretinha o tempo em me balouçar nos cabelos, divertimento de que sempre gostei muito. Meu pai foi percebendo que eu era uma besta e que não aprendia nada. Chamou-me a parte e pediu-me conta dos meus afazeres. Eu tinha pouca malícia e muito amor ao corpo. Contei-lhe do plano a quem o Mestre dava as lições. Ele disfarçou, pôs-me uma das mãos na cara, deu-me um beijo e foi esta a primeira e única vez que lhe vi e mereci um agrado. No outro dia chegou o Mestre, que morava ali perto (nós morávamos na cova-do-ladrão e ele atrás de uma orelha) e meu pai despediu-o com toda a cortesia. Mas ele, não contente, entrou às satisfações, dize-tu-direi-eu, e chegaram a braços. Neste tempo, o dono da cabeça em que nós morávamos, sentiu rumor mais do que costumado e, de um golpe, acertou com ambos, que estavam encangalhados e juntos morreram debaixo da unha, aonde, por costume, nós somos justiçados pelos nossos delitos. Se é que é delito o procurarmos simplesmente o nosso sustento. Pois que nós não tiramos o sangue a ninguém para andar em sege nem sustentar vícios.

Minha mãe, cheia de aflição, e vendo em mim a causa da sua desgraça, além de eu já estar bastante robusto e fazendo bem por viver, pôs-me à vida, dando-me alguns conselhos e um abraço, de que lhe fiquei muito obrigado, porque entre nós há Pais que nem isto dão. Ela assistia, ao tempo da minha retirada, na cabeça de um Procurador de Causas, a cuja cabeça eu fui alguns anos depois da sua morte. Esqueci-me de dizer que eu me chamo - X - apesar de não ser queijo Inglês; porquanto o nome de Piolho é o geral, assim como o de Homem, mas cada indivíduo tem o seu nome particular.

A primeira cabeça onde pus o pé e o dente, foi a de um Tinhoso, e contar o modo como fui ter a ela, seria enfadar os Leitores. Basta que fiquem sabendo que fui. Se os Piolhos tivessem Retórica, assim como têm Filosofia, com que elegância e finuras eu não pintaria a minha aflição, ao ver-me num sítio tão despovoado, sem Pai nem Mãe, nem aderente, nem cabelos, sem segurança alguma, em risco de ser apanhado e visto. Mas oxalá que eu nunca dali tivera saído. Não há trabalho sem refúgio. Este Tinhoso benfeitor tinha a maior bazófia em dizer que tinha piolhos, por isso mesmo que não tinha cabelos. Quantas e quantas vezes me pôs ele o dedo em cima e, deixando-me fugir, dizia: Escapou-me por um triz; é incrível os piolhos que tenho. Ao princípio assustava-me. Mas depois, conhecendo-lhe a balda, dormia e chuchava a sono solto.

Dividi a cabeça em diferentes passeios, mas atrás das orelhas e a cova-do-ladrão eram o meu forte. Também me divertia pelo colarinho da camisa, quando a tinha lavada, mas poucas vezes. Na cova-do-ladrão era onde lhe ferrava mais a miúdo, principalmente de noite, porque, como ele dormia de costas enquanto levantava a cabeça para se coçar, escapulia eu, porque receava que, com o sono, me não guardasse o respeito que me guardava acordado. Passados dias, entrou o Tinhoso na tentativa de criar cabelo, para o que untava a cabeça com um chorume que me sabia como gaitas e nunca me vi tão rechonchudo. Porém, as unturas tais dores lhe motivaram que largou o remédio e pôs cabeleira. E daqui se originou a desgraça de eu passar a outra cabeça, como adiante direi.

A ocupação do meu Tinhoso era fazer e vender mechas, no que lucrava no seu tanto muito suficientemente para ele e para uma Tinhosa que tinha em casa. Que eu, já se sabe do que vivia. Uma das coisas mais galantes é, quando eles se catavam mutuamente, safar-me eu para o colarinho a ver touros de palanque. E tive tanta cautela que nunca me pôs os olhos em cima. Porque à tal minha senhora não lhe escapava nada, nem a mesma vizinhança. Era tão viva que sabia quantos piolhos tinha cada cabeça, e, se algum dia acertasse comigo, seria sacrificado no altar das suas unhas que as tinha grandes por todos os modos. Ele era um bom homem, à exceção de se embebedar, botar pouco enxofre nas mechas, cortá-las delgadas, sacar três em cada molhinho, safar algumas bagatelas nas casas aonde o chamavam e outras coisas deste mesmo lote. Era tão bom homem que uma vez levou um amigo à casinha por amor de meio tostão que lhe devia. Fez-lhe, já se sabe, pagar a diligência e ficava amigo como dantes. O outro foi que não quis.

A mulher criava galinhas e era tão viva que, não tendo galo, botava os ovos e sempre tirava pintos. Fazia coisas por aí além; até sabia nadar. Num dia de S. Martinho entra a mulher a meter na cabeça ao marido que mandasse pentear a cabeleira. Como era dia em que havia muitas, resolveu-se a mandar a que tinha na cabeça e era a primeira vez que tal lhe sucedia. Na ocasião em que ele mesmo a levou a casa do cabe­leireiro, sucedeu eu dormir e estar agasalhado entre a coifa e o cabelo, lugar que eu tinha escolhido para o descanso desde que ele a usava. Quando acordei, senti-me sem calor, saí da toca e qual seria a minha admiração quando me vi na cabeça de pau? Fiquei aflitíssimo e até, para maior desgraça, esse dia e noite fiquei empaulado. Mas no outro, apenas o cabeleireiro lhe pôs o pente, deixei-me cair na manga da casaca e, em duas palhetadas, me pus na cabeça do dito, da qual contarei o sucedido na Carapuça II.
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António Manuel Policarpo da Silva (Lisboa/Portugal, 1790 – 1819). Pouco se tem sobre ele, era homem liberal e de convicções constitucionalistas, como se pode ajuizar de outro manuscrito que propôs à Censura, o Manifesto dos Espanhóis aos Povos da Andaluzia. Foi livreiro e editor com loja permanente, e por muitos anos, desde o início do século XIX, no Terreiro do Paço, debaixo da arcada da Câmara Municipal, que então ocupava um dos edifícios onde hoje estão instalados alguns Ministérios. Melhor pois não o poderia ter para captar todo o pitoresco da cidade e para conhecer as tricas da cabala literária. Em 1819, quando anos já levava a edição de O Piolho, publicou outra obra, sempre sob o disfarce de tradução de um anónimo, as Leituras Úteis e Divertidas Traduzidas em Vulgar, em 4 volumes ilustrados. Muito menos audaz do que O Piolho Viajante e de menor sucesso público, revela, porém, os mesmos dotes satíricos e a agudeza de espirito que deixara nas 72 carapuças por onde fez viajar o piolho. Editou ainda uma publicação periódica, as Variedades, de que foi único redator D. António da Visitação Freire de Carvalho. 

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Policarpo da Silva. O piolho viajante. Portugal, publicado em livro em 1821.

Gonçalves Dias (Novos Cantos) 1


ESPERA!

Quem há no mundo que aflições não passe,
Que dores não suporte?
Mais ou menos d’angustias cabe a todos,
A todos cabe a morte.

A vida é um fio negro d’amarguras
E de longo sofrer;
Semelha a noite; mas fagueiros sonhos
Podem de noite haver.

Por que então maldiremos este mundo
E a vida que vivemos,
Se nos tornamos do Senhor mais dignos,
Quanto mais dor sofremos?

Quantos cabelos temos, ele o sabe;
Ele pode contar
As folhas que há no bosque, os grãos d’areia
Que sustentam o mar.

Como pois não será ele conosco
No dia da aflição?
Como não há de computar as dores
Do nosso coração?

Como há de ver-nos, sem piedade, o rosto
Coberto d’amargura;
Ele, senhor e pai, conforto e guia
Da humana criatura?

Se o vento sopra, se se move a terra,
Se iroso o mar flutua;
Se o sol rutila, se as estrelas brilham,
Se gira a branca lua;

Deus o quis, Deus que mede a intensidade
Da dor e da alegria,
Que cada ser comporta — n’um momento
D’arroubo ou d’agonia!

Embora pois a nossa vida corra
Alheia da ventura!
Além da terra há céus, e Deus protege
A toda criatura!

Viajor perdido na floresta à noite,
Assim vago na vida;
Mas sinto a voz que me dirige os passos
E a luz que me convida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas d’um regato
A flor dizia em vão
A corrente, onde bela se mirava....
«Ai, não me deixes, não!»

«Comigo fica ou leva-me contigo
«Dos mares à amplidão,
«Límpido ou turvo, te amarei constante;
«Mas não me deixes, não!»

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte;
«Ai, não me deixes, não!»

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor e sempre embalde:
«Ai, não me deixes, não!»

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
«Não me deixaste, não!»
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

ZULMIRA

Sonhara-te eu na veiga de Granada,
Tapetada de flores e verdura,
Onde o Darro e Xenil no lento giro
Volvem a linfa pura.

Ali te vejo em leda comitiva
Dos gentis cavaleiros do oriente,
Quando, deposta a malha do combate,
Vestem da paz a seda reluzente.

Ali te vejo n’um balcão sentada,
Grande preço da maura arquitetura,
Pejando as asas das noturnas brisas
D’um canto de ternura.

Ali te vejo, sim; mas mais me agrada
O que se m’afigura n’outro instante,
Ver-te em vistosa tenda d’ouro e sedas,
Levantada no dorso do elefante.

E em roda, ao largo, o séquito pomposo
D’eunucos a teu gesto vacilantes
Em cujas frontes negras se destacam
Alvíssimos turbantes.

E pergunto quem és? — Então me dizem
Ciosos de guardar o seu tesouro,
Nome tão doce aos lábios, que parece
Escrever-se em cetim com letras d’ouro.

Fonte:
Disponível em Domínio Público 
Gonçalves Dias. Cantos. Publicada originalmente em 1857.