sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Hans Christian Andersen (Há coisas que o coração não esquece)

Velho era o morgado, e lamacento o fosso que o cercava; e a ponte levadiça raras vezes era baixada, pois nem todas as visitas são gente de distinção. Lá estavam, abaixo das goteiras, os balestreiros, por onde se podia despejar água fervendo, e até chumbo derretido sobre o inimigo, caso se aproximasse demais.

   Lá dentro as salas eram muito altas, o que tinha sua utilidade, porque uma espessa fumaça se erguia da lareira, onde se consumia lentamente os grandes nós de madeira úmida. Das paredes pendiam os retratos de homens revestidos de armadura, e de mulheres soberbas, trajando ricos vestido. Mas a mais bela de todas andava por ali, em carne e osso; era a dona do morgado, e chamava-se Mete Mogens.

   À noite chegaram alguns salteadores; degolaram três dos homens do castelo, e mais o cão de guarda. Feito isso, prenderam a dona da casa no canil, amarrando-a com a corrente do cachorro, e foram pavonear-se pelas salas, tomando o vinho e a cerveja que acharam na adega.

    E enquanto isso a dama, acorrentada no canil, nem se quer podia ladrar!

   Mas nisso aproximou-se cautelosamente o escudeiro de um dos bandidos. Cautelosamente, sim: se fosse descoberto, seria trucidado, E disse à dona da casa.

   - Sra, Mete Mogens, lembra-se a senhora de meu pai? Lembra-se que foi obrigado a montar o cavalo de pau, ainda em vida de seu marido?  A senhora pediu por ele, mas não foi atendida. Queriam que ficasse assim montado, até que as pernas se despegassem do corpo. Foi então que a senhora desceu e foi, devagarinho, como eu fiz agora, e colocou-lhe uma pedra debaixo de cada pé, para que eles tivessem um apoio. Ninguém a viu; e, se alguém viu, fingiu não ver - porque a senhora era jovem dona da casa. Meu pai contou-me essa história, que guardei na memória; não a esqueci, não. E agora vou libertá- la, Sra. Mete Mogens.

   Tiraram os cavalos de estrebaria e saíram, arrostando a chuva e a tempestade, até encontrar amigos que lhes prestaram auxílio.

  - De modo que aquele pequeno serviço que prestei outrora ao velho, veio a ser-me amplamente retribuído - disse Mete Mogens.

   - Sim: há coisas que o coração nunca esquece - disse o rapaz.

  Os salteadores morreram na forca.
   
Há por aquelas bandas outro velho morgado. Não é o mesmo da Mete Mogens: pertence a outra família aristocrática.

    Este caso é dos dias que correm.

   O sol ilumina a flecha dourada da torre. Pousam na água, como ramalhetes, ilhotas cobertas de mato; e em volta delas nadam os cisnes. O jardim está cheio de roseiras floridas. Mas a dona da casa é na verdade a mais delicada pétala de rosa, radiante de alegria, da alegria que vem das boas ações. É um brilho que não esplende pelo mundo afora, mas que fica no mais íntimo do coração; e o que ali esta guardado não ficará esquecido.

  Neste momento ela sai do castelo e dirige-se à choupana de um camponês, no campo. Mora ali uma menina paralítica. A janela do quarto dá para o lado onde não penetra o sol. A menina só pode ver um pedacinho de campo, fechado por alta cerca. Mas hoje é um dia de sol: o quente sol, o sol maravilhoso de Deus Nosso Senhor entrou no quartinho. Entrou pela janela nova, rasgada onde outrora só se via a parede nua.

   A paralítica fica sentada. à luz quente do sol, olhando para o mato e para o lago. O mundo tornou-se tão grande, tão lindo...e tudo veio de uma única palavra da caridosa dona de morgado.

     - A palavra era tão fácil - disse ela, - e a ação tão pequenina...E a alegria que elas me proporcionaram é imensa, e cheia de bençãos.

   É porque ela pratica tantas ações meritórias, e pensa sempre naqueles que vivem nas casas pobres e nas moradas suntuosas - onde também há gente aflita.

   Tudo isso está oculto e guardado, Mas há coisas que o coração nunca esquece.

   Na grande cidade, de tráfego animado, havia uma casa muito velha, cheia de salas e quartos. Não entraremos nela: vamos ficar na cozinha, cheia de luz e calor, e onde tudo está asseado e alegre. As panelas de cobre reluzem. A mesa parece encerada, de tão lustrosa. A pia é tão polida como um espelho. E tudo isso é obra de uma única criada, que ainda achou tempo para se vestir e arranjar como se fosse para a igreja.

   Traz uma laçada na touca, uma laçada preta, que indica luto. Contudo não tem ninguém por quem usar luto: nem, pai, nem mãe, nem parentes, nem bem-amados. É uma mocinha pobre. Dantes teve um noivo. Contraíra casamento com um moço também pobre, e amavam-se muito. Mas um dia ele lhe disse:

  - Nós nada possuímos; e a rica viúva, dona daquela adega, disse-me palavras de amor. Ela me oferece a prosperidade. Contudo, és tu quem vive no meu coração. Que me aconselhas?

    - Que faças o que te parece que te dará a felicidade. Sê bondoso e carinhoso com ela; mas te previno: desde o momento em que nos separarmos, não devemos tornar a ver-nos.

  Passaram-se anos. Um dia ela encontrou na rua o antigo noivo. Pareceu-lhe tão doente, e envelhecido, que ela não pode deixar de lhe perguntar:

  - Como vais?

   - Sou rico, e tudo me vai bem, em todos os sentidos. Minha mulher é boa; mas tu continuas a viver no meu coração. Travei uma grande luta dentro de mim, mas está quase terminada agora. Só nos tornaremos a ver diante de Deus.

   Passou-se mais uma semana. Hoje de manhã ela leu  no jornal a notícia da sua morte. E é por isso que veste luto. Morreu ele, deixando a esposa e três enteados, diz o jornal.

   Essas palavra soam como uma pancada no metal fendido, e contudo, absolutamente puro.

  A laçada preta indica luto; o rosto da moça revela-o ainda mais claramente. Ele está guardando no seu coração, e jamais será esquecido.   

  Há coisas que o coração nunca esquece.

  Ora aí está! Contei três histórias, três folhas em uma só haste.

  Queres ainda mais folhas de trevo? No pequenino livro do coração existem muitas, muitas!

Fonte:
Disponível em domínio público
Contos de Andersen. Publicados originalmente em 1837.

Estante de Livros (A casa sem fim, de Fernando Vugman)

(resenha por Maria Marta Furlanetto*).


“... se você está esperando uma história ágil e repleta de emoções, aconselho a desistir por aqui mesmo.”

É assim que Vugman investe em seu leitor-modelo. Esse autor não se incomoda em contar histórias que não tenham final luminoso – ainda que ele seja o personagem, ou porque ele é o personagem.

Nos vinte contos de A casa sem fim, escritos de 1978 a 2009, há uma longa e desconcertante construção de vida, de lembranças e de morte. A construção e a desconstrução das casas – seu mote – figuram o perpétuo caminhar do andarilho, ora perdido, ora se encontrando, ora indo, ora retornando. Sempre haverá uma casa, familiar e estrangeira ao mesmo tempo, representando seus próprios passos no presente e tudo o mais que ficou para trás sem morrer. O fantasma que perambula solitário, acompanhando o personagem, são os fragmentos do passado sendo olhados pelo prisma do sonho. O personagem caminha sem rumo, perde-se na distância, assusta-se, mas reencontra sempre o vento, as areias macias de uma praia, as alturas de um céu incrivelmente luminoso e azul, e os fantasmas vívidos de almas agora distantes.

Não é de surpreender que os contos de Fernando sejam autobiográficos (há uns mais que outros, na literatura): dissimulando ou não, não há como fugir da linha de um ir e vir, mesmo que contemos a história do “outro”, ou dos objetos, dos símbolos, das lembranças. Aqui, o desdobramento do autor não precisa de rótulo. Ele aí põe a máscara do “eu”, do “ele”, do gavião, do poeta, do que estiver sentindo. E sempre encontra uma casa, sombria ou iluminada, solitária ou plena de vozes e sombras antigas. Há portas surpreendentes, com maçanetas concretas e simbólicas que ele sofregamente agarra, querendo encontrar algo. Pensa mesmo em fazer perguntas aos objetos, pistas para sua leitura do que tinha sido.

Apesar da atmosfera de sonho e de um silêncio triste, Vugman é surpreendente e poeticamente preciso em sua evocação de detalhes na paisagem e no corpo: aqui, “orquídeas bizarras pendiam dos troncos cobertos de musgo e fungos”; ali, o sol traz “um calor manso e luminoso”; acolá, jovens “levam consigo a manhã”. Aqui, “aquele débil serzinho verde gemia e seu gemido flutuava em nosso nada”; ali, “Das nuvens carregadas ecoaram os trovões como tambores de batalha.”; acolá, “elevações que mal tocavam o firmamento árido, aquelas montanhas escuras e escarpadas”.

“Ao mar” lembra um conto de Edgar Allan Poe: “Descida no Maelstrom”, em que um pescador descreve para um visitante os efeitos de uma tempestade sobre um barco apanhado por um redemoinho na distante Escandinávia, sendo ele mesmo participante daquele horror.

No longo passeio dentro de si mesmo, como passageiro e outro, agora visitante, Vugman desfila a solidão das casas, que são seu próprio reflexo: em seu abandono, elas trazem a poeira do tempo, do descaso, mas há algo mais, imponderável: as pistas que os olhos não veem, mas que a alma apanha delicadamente e põe de volta nos antigos lugares – para surpreender com gesto silencioso o sentido das coisas que se agarraram nas entranhas, e continuam lá. O retorno, a cada vez, é tanto mais impressivo quanto persiste a possibilidade de os objetos olharem, de seu abandono, o personagem que retorna, insistindo em sua permanência magoada, que traz familiaridade e susto.

É assim que, como leitores, passeamos por um diário que nos apresenta casas, objetos, portões, quintais, córregos, montanhas e espaços áridos, figuras delicadas quase sem nome que serpenteiam pelas histórias com pés macios e depois somem, na luz do sol ou nas sombras da noite.

Vugman fala da permanência da casa. E exatamente nesse conto (A permanência da casa) o personagem acorda e vê que em torno não há “nada”. Vê-se numa planície iluminada e põe-se a andar, oprimido pela “liberdade de amarras”. Caminha sempre retornando para o mesmo lugar, mas no contínuo jogo de luz e sombra acaba se dando conta de que se transformava, e nem pensava mais em voltar: queria seguir adiante, abrindo trilhas – até sentir-se “incomodado” e descobrir que retornava ao ponto de partida: a casa permanecia lá.

Este passeio pelas fiéis casas de Vugman me leva a um horizonte bem distante no tempo e no espaço: conta-se que o conquistador Gêngis Khan, ao tomar conhecimento das casas de pedra construídas nas cidades pelos chineses (dinastia Jin), ficou muito espantado, desejando saber como eles as carregavam de um lado para o outro. Apesar da mobilidade de suas tendas, também eles, como guerreiros, iam e vinham, e elas acumulavam lembranças da mesma forma.

Ao nos contar sua viagem, Vugman roça a fímbria do indizível – talvez por isso seja conciso –, de modo que nos cabe, como leitores, o esforço de esvaziar a mente para preenchê-la em seguida com cores e sabores, estranhos ou familiares, para usufruir desse acontecimento com as marcas do mais além... FIM – essa tática inútil de cercar o que nos escapa (como diria Vugman).
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* Maria Marta Furlanetto - Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem e do curso de Letras da Unisul; Dra. em Linguística Aplicada. Pesquisadora na linha “Texto e discurso”.

Fonte:
http://www.escritoresdosul/a_casa_sem_fim,_de_fernando_vugman.html.
Acesso em 17.10.2011.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Isabel Furini (Poema 49): Rosas


Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook. 

Monsenhor Orivaldo Robles (Nossas origens)

Em todas as edições o vestibular traz à nossa cidade um bando de jovens num colosso de ônibus de várias procedências. Alguns (ônibus, não estudantes) tornaram-se fregueses de nossas ruas e avenidas. A cada vestibular aparecem de novo. Sinto um prazer infantil em admirá-los. Sua elegante beleza é um convite a viajar para lugares desconhecidos. Lembram meu tempo de criança. Eu nem sonhava com outra forma de viajar que não de ônibus. Naquele tempo eles eram diferentes. No interior em que vivíamos, ônibus era uma gaiola comprida na qual se enfiavam quantos infelizes coubessem. Às vezes, até mais do que cabiam. Levados por centenas de quilômetros, o tempo parecia não ter fim. Conforto, nenhum. Espremidos no meio de sacos de mantimentos, de pacotes, quando não de frango ou de leitãozinho peado, os passageiros suavam como tampa de chaleira. Mães com nenê sofriam o que não sonhavam haver de sofrimento. O ambiente recendia a vestiário de futebol em tarde de dezembro. Só a necessidade fazia embarcar em tal carroção motorizado.

Agora, tudo é diferente. A vida mudou para melhor. Essa molecada que se diverte – com tablets, smartphones e mais quantas novas bugigangas eletrônicas o comércio lança, todo mês – não dá conta de calcular a moleza que é viajar nos dias de hoje. Mesmo de ônibus. Os atuais são ultramodernos, espaçosos, dotados de tantos itens de conforto que nem em casa conseguimos colocar. Conforme a ocasião, oferecem viagem mais agradável ou rápida que as modernas aeronaves que cortam os ares.

Alguns ônibus destinados ao vestibular de nossas universidades procedem do interior paulista. De cidades como Birigui, Penápolis, Votorantim… Imagino-os locados por cursinhos da região. De tê-los visto tantas vezes, já os tenho como amigos. Dois em especial me cativam a atenção acima dos demais. Descobri-os no ano passado. Voltaram para o vestibular desta semana. Sem receio de me enganar, garanto que são mais bonitos e mais novos que todos os outros. Nas laterais, em grandes e graciosas letras manuscritas, o nome da empresa, que é também o da cidade: Poloni Turismo. Ninguém faz ideia do que isso quer dizer. Mas para mim é importante. Eles são da minha cidade. Minha e de mais quatro maringaenses. Podem achar tolice, mas não sabem vocês o custo que é explicar meu local de nascimento, toda vez que me pedem a informação. Explico que se trata de uma pequena cidade da Araraquarense (5.500 habitantes), próxima de São José do Rio Preto. Que o nome foi dado pelo fundador, Cândido Poloni, de ascendência italiana, que, em 03 de maio de 1926, fundou uma vila no meio dos cafezais da região. Para os céticos os ônibus estão aí provando que ela existe.

A maior parte da infância, vivi no sítio. Morei só em duas cidades. Bem pequenas, e por pouquíssimo tempo. Ambas levam o nome do seu criador. A outra é Jales, iniciada por um engenheiro de nome Euphly Jales, em 1940. Conheci ambos os fundadores. Que, evidentemente, nem se deram conta de minha insignificante existência. Mais de meio século depois, divulgo as cidades que fundaram. Obscuros povoados, que me ajudaram a ser o adulto que hoje sou.

Alguns renegam sua origem modesta. Mas valor, se temos algum, nós o levamos dentro de nós. E ele começou a ser construído na cidadezinha humilde, que jamais deixa de ser nossa.

Fonte:
Portal do Rigon.
https://angelorigon.com.br/2012/07/14/nossas-origens/

Silviah Carvalho (Poesias avulsas)


ADEUS!

Agora que a noite já se foi e o dia certamente não chegará
Depois de haver depositado tanto sacrifício no altar da liberdade
vejo que, o amor só descansa morto, vivo é um 'ser" em conflito
venho me despedir de tudo isso aqui, entregar meu espírito

Aurora, amiga que, precede o sol, não permita que eu o veja
a luz traz a tona aquilo que divide meu querer, deixa-me aqui
que, o vento espalhe meu sentimento. E minhas lágrimas
sejam misturadas ao orvalho e assim aniquile  este sofrimento

Cada ramo molhado que tocar seus pés lembrara-se de mim
verás eles molhados de minhas lágrimas, enquanto prostrada
lutava e, dava minha vida por ti, não tenho braços que
me acolham ao pé desta montanha, ficarei aqui...

Até que seja dissipada esta luz que insiste em me manter viva
chamando-me de volta, dizendo que vale a pena sair do esconderijo
que este vento leve esta ilusão e, me ofereça um eterno abrigo

Minha voz calou-se, sou uma ave caída num canto qualquer
venho hoje, outra vez, absorver nestes últimos instantes
o cheiro do vento... Perdi a motivação e agora a fé

Não pergunte por mim, não me procures, deixe-me seguir,
Não sei para onde vou, não tenho você, nada mais importa
Quando leres saiba, esta é da sua despedida a minha resposta
Adeus!
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DEVANEIOS… MEUS!

Tecendo palavras, na presunção de meus devaneios
Numa estação onde folhas cobrem o chão, demonstrando
Solidão... Um jardim (?) silencioso, misterioso atraiu
Os olhos meus, no lado esquerdo uma árvore,
Mostrando seus galhos, pois, suas folhas
Caídas dão esperança de um renascer, ou uma nova vida.
No fim uma casa onde habita meus pensamentos...
Escondida, entrelaçadas pelas árvores...
Como é bendita sua harmonia com os rumores meus!
Divagando nesta madrugada, em suas palavras...
Pude ver e sentir o frescor do sorriso teu.
...Mas, é apenas um desejo meu…
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NEVOEIRO

Faz-me saber do teu querer, pois o meu
É estar com você é te cobrir de amor
Minha alma pede que te tenha com zelo que,
Te faça descansar em meus braços primeiro.

... Para só depois trazê-lo de novo ao meu
Corpo e deixar que seja puro; santo ou
Louco, que seja você, assim como és
Sempre querendo mais um pouco

E fazer com que tudo tenha seu cheiro
Para quando você sumir no nevoeiro
Eu te tenha na cama, nos lençóis
No travesseiro. Não morreria eu jamais
De tristeza se um dia pudesse tê-lo

O amor não é exaustivo ou desesperador
O amor traz conforto e não dor
É seguro de tudo que quer e faz
E nos seus braços eu também teria paz
O amor é o descanso de nossas almas
...  Nada mais
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SEU AMOR É TUDO

Antes que seja aprisionada pelo seu sorriso,
E sinta que a vida não fará mais sentido sem você
Antes que tenha certeza que você é tudo que preciso
Antes que eu perca a razão e no amor volte a crer

Antes que sua solidão misture com minha carência
E suas mãos toquem novamente as minhas
Antes que eu seja vencida por minha impaciência
E passe a crer que perto de você eu não esteja sozinha

Eu voarei rumo aos pinheiros, perto da tristeza
Onde as noites são frias, os dias são longos
Eu estarei a meditar na sua simplicidade e pureza

Na paz que emana de você, na sua doçura e nobreza
Eu irei pensar no silêncio da minha incompreensão
Não diga nada, talvez eu não resista à dor de um sincero não

Eu cheguei no tempo que é para ti a alto-reconstrução
Em que preferes a solidão latente no seu meigo olhar
Eu irei antes que, seja dominada pelo desejo de ficar

E quando este papel envelhecer,
Saiba que esta poetisa que hoje te escreve apesar
De nada ser, desejou ter tudo, e este tudo é você.  
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SOU ALGUÉM QUE TE AMA…

Sou alguém que te ama
Que não sabe mais viver sem você
Que te guarda num lugar especial
Na imensidão do amor
Que supre todo meu querer.

Sou alguém que te ama
E sabe que, minha liberdade
Estará em te esquecer
Te esquecer! Como se fosse possível
Eu faria qualquer coisa por você.

Eu sou alguém que te ama
Que sonha com você, com um toque,
Uma palavra de carinho,
Um alimento, um gesto
Que abrandasse este sofrer.

Sou alguém que te ama
Além do suportável
E de sua presença sou insaciável
Alguém que não te vê na vulgaridade
Alguém que te admira na simplicidade.

Eu sou alguém que te ama
E rouba do tempo às horas
Pra ficar assim, em silencio
Deixando que finde o tempo
E te leve da minha memória.

E esqueça eu que não vivi
Um minuto sequer
Desta nossa historia…
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Fonte:
Um coração que ama
https://umcoracaoqueama.blogspot.com/

Contos e Lendas da África (Os gaviões e os corvos)


(por George W. Bateman)

Koongoo′roo, sultão dos corvos, enviou certo dia uma carta a Mway′way, sultão dos gaviões, dizendo:

“Quero que seu povo seja meu exército.”

A resposta de Mway′way para essa breve mensagem foi também curta:

“Declinamos sua oferta.”

Para amedrontar o gavião, Koongoo′roo mandou então a seguinte ameaça:

“Caso se recuse, iniciaremos uma guerra.”

A réplica do sultão dos gaviões foi à altura:

“Ótimo. Vamos ao combate. Se você nos vencer, seremos seu exército. Mas se formos vitoriosos, vocês serão nossos escravos.”

Reuniram suas tropas e deram início a uma grande batalha. Em pouco tempo ficou claro que os corvos sofreriam uma derrota incontestável. Se algo não fosse feito rapidamente, os corvos seriam dizimados. Um deles, chamado Jeeoo′see, sugeriu então que todos voassem para longe. 

Dito e feito. Os corvos deixaram suas casas e se estabeleceram em uma cidade longe dali. Quando os gaviões finalmente invadiram sua aldeia, não encontraram ninguém e acabaram fixando residência na Cidade dos Corvos.

Um dia, quando os corvos estavam reunidos em conselho, Koongoo′roo disse:

— Meu povo, sigam minhas ordens e tudo ficará bem. Arranquem algumas de minhas penas e me joguem na cidade dos gaviões. Então voltem para cá e aguardem notícias minhas.

Os corvos obedeceram aos comandos de seu sultão sem questionar.

Pouco tempo após ser deixado na rua, alguns gaviões que passavam por ali viram o sultão e o interpelaram:

— O que faz em nossa cidade?

— Meus compatriotas me espancaram e me expulsaram da cidade, — gemeu Koongoo′roo — porque tentei convencê-los a seguir Mway′way, sultão dos gaviões.

Ao ouvir tal justificativa, pegaram-no e levaram-no até o sultão.

— Encontramos este sujeito jogado na rua. Segundo ele, sua presença involuntária em nossa cidade se deve a circunstâncias tão insólitas que achamos por bem trazê-lo para que se explique pessoalmente.

Koongoo′roo repetiu sua história, acrescentando que havia sofrido muito por defender sua opinião de que Mway′way era o sultão por direito.

Obviamente sua farsa causou uma ótima impressão, e o sultão dos gaviões disse:

— Você tem mais juízo do que todos da sua tribo. Acredito que possa ficar aqui e viver conosco.

Após expressar sua gratidão, Koongoo′roo resignou-se, ou assim fez parecer, a passar o resto de sua vida com os gaviões.

Certo dia seus vizinhos o convidaram para acompanhá-los à igreja. Ao retornarem, perguntaram-lhe:

— Quem tem a melhor religião, os gaviões ou os corvos?

— Ah, os gaviões, sem dúvida! — respondeu com entusiasmo o traiçoeiro
corvo.

A resposta agradou muito aos gaviões, e Koongoo′roo passou a ser visto como uma ave de notável discernimento.

Passada quase uma semana, o corvo conseguiu escapulir no meio da noite e voltou à sua cidade. Lá chegando, reuniu seus súditos.

— Amanhã é o grande feriado religioso dos gaviões. Todos irão à igreja de manhã. Vão, recolham lenha, façam fogo e esperem nos arredores da cidade. Quando eu der o sinal, invadam a igreja rapidamente e queimem tudo.

E então voou de volta à cidade de Mway′way.

Os corvos trabalharam muito durante a noite. Ao amanhecer, tinham já uma grande quantidade de lenha queimando, e estavam prontos para o ataque. Colocaram-se então em alerta, próximos à cidade de seus inimigos. Quando a manhã chegou, todos os corvos se dirigiram à igreja. Não ficou um só em casa, exceto o velhaco Koongoo′roo.

Seus vizinhos foram chamá-lo e encontraram-no deitado.

— Ora essa! — exclamaram, surpresos. — Então não vai à igreja hoje?

— Ah, como eu queria! — gemeu o corvo. — Mas estou com tanta dor de barriga que nem posso me mexer.

— Que pena. É melhor ficar na cama mesmo. — E deixaram-no sozinho.

Assim que todos saíram, Koongoo′roo voou rapidamente para onde estavam seus soldados e deu a ordem:

— Vamos! Estão todos na igreja!

Em pouco tempo, os corvos cercaram silenciosamente o templo. Alguns empilharam lenha junto à porta e outros atearam fogo.

A madeira começou a queimar quase instantaneamente e, antes que os gaviões se dessem conta do perigo, o fogo já ia alto. Quando a fumaça preencheu a igreja e as chamas começaram a invadir as frestas das paredes, os gaviões tentaram escapar pelas janelas. A maior parte morreu sufocada; outros, entre eles Mway′way, não conseguiram voar por conta das queimaduras em suas asas e foram carbonizados. E assim Koongoo′roo e seu exército retomaram a sua cidade.

Desde esse dia os gaviões fogem ao ver os corvos.

Fonte:
Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC.
Distribuição gratuita.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Tertúlia da Saudade 10: Bastos Tigre

 

Newton Sampaio (Bomba de Santo Antônio)

(contos do sertão paranaense)

O vilarejo sem história, apertado em todos os ângulos pelas sentinelas inflexíveis das serras, libertava-se pouco a pouco da serena dormida sob um céu enfeitado de estrelas. A alvorada, sem clarins nem tambores, ia espantando, bem pra lá dos grotões e dos picos as grandes sombras inúteis. Para que os telados das casas sem simetria começassem a fuzilar como as águas do rio. Do rio largo que vinha de muito longe caprichando arabescos nos vazios deselegantes das cordilheiras. Que vinha de longe e arrastava, não sei para que mistérios, as vibrações daquele povoado distante. Daquele povoado perdido no fundo do sertão paranaense.

Na última esquina um sírio gorducho abre a casa de armarinhos. O sírio varre o assoalho cuspinhado, diz um palavrão impossível por causa do vira-lata sem vergonha que queria se coçar nas portas do respeitável estabelecimento. Diz o palavrão no momento exato em que o vizinho da frente, sentando na beira do catre, amaldiçoa a botina ringideira. A mulher chega e ajuda. Benedito Olivério exibe, na risada de bem-aventurado, uma dúzia de maus dentes. E Nida volta à cozinha, onde as crianças esfregam os olhos ainda cheios de sono e de remela, e reclamam choramingando um naco de batata assada.

O Tonico, filho mais velho, parado na porta que dá para o quintal, espia o longínquo e azulado Pico Agudo. De repente diz:

— Mãe. Hoje eu queria comer pão.

— Cala a boca, feição de enorme. Já se viu esse luxo?

— Mas hoje é o meu dia...

Intervém Benedito Olivério:

— Patroa. Faça a vontade do menino. Pelo menos no dia de Santo Antônio.

Nida resmunga seu protesto de todas as horas. E fecha a cara quando o marido, ajeitando a cinta, procura um níquel de duzentos réis.

De tardinha, só o Tonico não comparece à novena. Fica no quintal da casa encasmurrado, longe dos busca-pés, das bombas de parede. Longe da garotada que aplaude o balão subindo, o balão inchado como fêmea pandorga.

Depois da novena, os irmãozinhos de mãos vazias, mas num assanhamento sem conta, vão peruar a festa das outras crianças.

O Tonico se chega ao pai.

— Eu queria rebentar uma bomba, hoje. Só uma.

Nida interrompe violentamente.

— Diabo de guri pedinchão! Pensa que a gente plantou dinheiro na horta?

— Não se amofine, mulher. É comigo que ele está falando. – E para o filho: “pega lá, rapaz.”

Nida não se conforma.

— É um esbanjamento nesta casa... Tomara que essa bomba rebente nas fuças de vocês.

Tonico sai em silêncio. Com vontade, com uma bruta vontade de comprar uma bomba do tamanho do mundo e jogá-la de encontro à lua, no crescente.

— Seu Indalécio. Qual é a maior bomba que o senhor tem aí?

— A maior é esta que veio como brinde. Mas esta eu não vendo.

— Venda seu Indalécio. Lhe dou quatrocentão por ela.

O velho sente uma força diferente no olhar do guri. E lhe dá de presente a maior bomba daquele comércio, recomendando:

— Cuidado menino. O estouro desse não é estouro de traque, não. 

Na esquina a gurizada se aglomera, inquieta. E o filho de Benedito Olivério grita:

— Pessoal. Espia só o estouro desta.

Aperta na mão direita o famoso embrulho. Precisa tomar impulso, arreda um passo, arreda dois, descreve meia curva com o braço distendido, projeta a bomba que volta intacta da parede da casa.

Sai da experiência ainda mais acabrunhado. Quisera, como nunca, uma pelota do tamanho do mundo para atirá-la de encontro à lua no crescente. Por isso caminha de cabeça baixa sozinho para o lado do Rio das Cinzas. Do rio que banhava aquele vilarejo distante. Do rio que vinha muito de longe, caprichando arabescos nos claros deselegantes das cordilheiras, fazendo redemoinhos em fundos grotões cheios de história…

Fonte:
Disponível em Domínio Público
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LIX


AMA! SÊ BOM!
 
MOTE:
 Ama, sê bom, e terás
horas tranquilas e calmas…
O amor é um sol que desfaz
a neblina que há nas almas!...
José Maria Machado de Araújo  
Vila Nova de Famalicão/Portugal, 1922 – 2004, Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
Ama, sê bom, e terás
o teu coração contente,
e assim, também, tu farás
mais feliz, muito mais  gente!
 
O amor traz ao coração
horas tranquilas e calmas...
E as mãos doces da emoção,
unem-se batendo palmas!
 
Na bondade sempre há paz,
é a morada da alegria!
O amor é um sol que desfaz
a tristeza que angustia!
 
Vem, aquece a humanidade,
pois com teu calor acalmas
e terminas de verdade
a neblina que há nas almas!…
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RELER MENTIRAS...
 
MOTE:
Não deixe as cartas que eu mando
sem resposta, por favor,
porque é bom de vez em quando
reler mentiras de amor.
Maria Nascimento Santos Carvalho
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA: 
Não deixe as cartas que eu mando
guardadas, sem  as abrir,
pois fico ansiosa esperando...
Quero de novo sorrir!
 
Não deixe nunca, eu lhe peço,
sem resposta, por favor,
minhas cartas, e eu confesso,
sem elas é grande a dor!
 
Eu fico feliz, sonhando,
em verdadeira utopia,
porque é bom de vez em quando
sentir em nós, a alegria!
 
No universo da ilusão
o meu mundo é encantador,
faz bem ao meu coração
reler mentiras de amor.
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A TROVA
 
MOTE:
A trova emite um conceito,
com tal engenho e primor,
que deixa o autor satisfeito,
e muito mais o leitor.
Miguel Russowsky  
Santa Maria/RS ,1923 – 2009, Joaçaba/SC

GLOSA:
A trova emite um conceito,
e uma mensagem bonita,
que cativa com seu jeito...
Nada no mundo a limita!
 
Com roupagem sempre nova,
com tal engenho e primor,
ao nascer mais uma trova,
nasce sempre um novo amor!
 
É um amor que estoura o peito
trazendo paz e alegria,
que deixa o autor satisfeito,
ao ver a sua poesia!
 
A trova é semente pura
agradando o seu feitor,
enobrecendo a cultura
e muito mais o leitor.
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PERTO DO MAR...
 
MOTE:
Na tarde suave e bonita,
sento-me perto do mar,
pela amplidão infinita
deixo minha alma vagar!
Reinaldo Aguiar
Natal/RN, 1921 – 2010

GLOSA:
Na tarde suave e bonita,
olhos fitos no horizonte,
a felicidade grita
e o eco forma uma ponte!
 
Feliz, cheia de alegria,
sento-me perto do mar
e vivo, em mim, a poesia
que terna vem me abraçar!
 
A onda mansa se agita
num carinho encantador...
pela amplidão infinita
eu viajo com ardor!
 
Na onda espumante e linda,
que vem os meus pés beijar,
sentindo ternura infinda
deixo minha alma vagar!
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NOSSAS MENSAGENS
 
MOTE:
As mensagens de esperança
que trocamos, tu e eu,
são hoje apenas lembrança
da esperança que morreu!
Silvina Antunes Leal
Santos/SP
 
GLOSA:
As mensagens de esperança
entre nós dois, eram lindas,
falavam da nossa andança
e de ternuras infindas!
 
Lembro, ainda, dos carinhos
que trocamos, tu e eu,
foi luz em nossos caminhos,
diminuindo o triste breu!
 
Mas a bem-aventurança
dessas  mensagens de amor,
são hoje apenas lembrança,
que nos causa angústia e dor!
 
E essa dor, em nós, tão triste,
e que nenhum esqueceu,
comprova que nada existe,
da esperança que morreu!…

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas X. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Agosto 2003.

Nilson Monteiro (Mão)


Pousou no balcão, ao meu lado. Grossa. Dava pra ver. De onde teria vindo aquela borboleta vincada, cansada talvez? Que terras eram aquelas que abrigavam seus vincos, quase cor de vinho, suas unhas, as erosões talhadas em sua carne?

A mão não me perguntava, nem me explicava nada. Pousou indiferente. Com calos aqui e ali, sugerindo vidas. Com riachos roxos em suas linhas. Simplesmente pousou. E ficou. Tamborilou os dedos, pra lá e pra cá no balcão, como a desfrutar do espaço livre para sua existência. Mas não avançou e nem recuou. Parou. Um cheiro geográfico, paranaense, quem sabe?

Parada, a borboleta de cinco pétalas, criava mais emoção, ficção. Instigava. Inspirava. Lavrar, colher, levar o milho para o paiol, derriçar o café, cuidar dos cavalos, afagar suas crinas, puxar água do poço, rachar madeira, quem sabe o labor daquela borboleta e seus dedos de unhas enlutadas? Ou quem pode adiantar os destinos que aquela mão ainda planeja? Talvez remexer o chão para dele brotar o verde? Talvez enterrar uma ex-vida? Nada dizia. Nem questionava. Parada.

Será que não seria a executora de belas sinfonias, tragando poesia no balcão antes de causar emoção por teatros e óperas? Não, não era uma mão fina, bem tratada, de unhas caprichadas nos melhores salões e encharcada de bálsamos. Mas, quem disse que só essas conseguem executar as obras dos imortais ou, melhor, compor novas delícias sonoras? Onde está o sábio que prova que a poesia só pode ser destilada de mão sem calos, cheirosas e intelectuais?

Sim ou não. Nada parecia ferir a paciência e a sensibilidade da personagem. Vez ou outra levantava breve voo, mas logo depois espalmava-se sobre o balcão, indiferente às minhas elucubrações: não poderia ser o instrumento de um preciso bisturi, operando as dores de homens, mulheres e crianças? Ou célere instrumento de um esportista, acostumado à fama? Ou até mesmo o funil de informações, passadas a limpo na neurose das teclas de uma máquina de Redação?

Havia pelos sobre ela, sim. Poderia ser de um tosquiador de ovelhas, nobre e triste operário que descobre aqui para cobrir ali. Ou mesmo de um gênio da argamassa, mestre nas quantidades de cimento e areia e tijolos e água para erguer casas, prédios, pontes etc. Sim, poderia, por que não?, ser de um preocupado bancário, às voltas o dia todo com milhões e milhões de cruzeiros e seus salários no final do mês...

Desta vez o gesto foi mais largo, demorado. Ela traçou parábolas no ar, abandonando a frieza do balcão. Subiu, desceu. Levantou, caiu, garça louca, esparramou-se no chão seco do balcão. Garça não, borboleta. Borboleta é mais infantil, agrada mais às crianças, é mais ágil, brinca com os olhos e lembra a existência das matas, dos matos, dos quintais, do barro grudento, dos rios...

Borboleta.

Assim como pousou, alçou voo. O balcão ficou de novo frio, gelado, impessoal.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capítulo 9: A amizade entre Amélia e Simão

Numa tarde de calor fora de época, Amélia, esposa de Juca, se refletiu bela em frente ao espelho do quarto.

Estava ela com um vestido florido, decotado, e perfumada, feito flor de primavera.

Bem ao seu estilo, saiu sem destino cantarolando, fazenda afora.

No meio do caminho encontrou Simão, o mais chegado amigo de sua casa.

- Por onde pensa que vai? - perguntou Simão, chamando a atenção da morena faceira.

- Estou aproveitando o meu dia de folga para perambular por aí. - disse ela se aproximando.

- Aceita me acompanhar num café em meio a esse arrozal, minha amiga?

- E por que não aceitaria?

- Longe do marido, formosa e perfumada assim, tome cuidado... – alerta o peão.

- O que é isso, homem, não sabe que sou uma santa? Gavião não se mete a besta comigo, não! -  respondeu, extrovertida.

Amélia sentou-se ao lado do amigo, e os dois ficaram um bom tempo proseando.

Juca não se encontrava na fazenda. Estava a trabalho para o patrão, na cidade. 

Os demais peões, cheios de maledicências, se entreolhavam, riam e cochichavam entre si ao vê-los conversando alegremente.

- Olha como conversam e riem. - disse Pedro, cutucando Juliano com o cotovelo.

- Sim. Veja só como ela mostra as pernas para ele. - disse o colega.

- É claro que são amantes. Tenho certeza disso. - disse Pedro.

Depois de horas de conversa, os amigos seguem juntos. E os peões continuaram espiando até que as silhuetas deles desapareceram do outro lado da plantação.  

O dia atípico de verão era prenúncio fatal de tempestade chegando. Ao anoitecer, os ventos surgiram encobrindo o céu de nuvens. Enquanto isso, Amélia, com satisfação, preparava o jantar do seu amor que logo chegaria encharcado pela chuva que estava vindo em grande volume.

Ao vê-lo chegando, correu feliz para abraçá-lo, pois de todas as alegrias da vida, abraçar o seu amor, era a sua alegria favorita.  

- Amor, estou encharcado.

- Não me importo, querido.

- Como foi o teu dia? Ficou cuidando da nossa casinha ou aproveitou o belo dia de sol para passear um pouco? - perguntou Juca, à mulher, enquanto ela terminava o jantar.

- Coloquei uma roupa fresca e saí para tomar um pouco de ar.

- Que bom. E aproveitou para conversar com alguém? Às vezes te sinto tão só nesse lugar.

- Conversei com Simão. Mas cedo eu já estava de volta. Ele veio comigo. Queria apanhar umas margaridas do nosso jardim para oferecer à namorada que vem hoje à noite lhe fazer uma visita.

- Simão está namorando? Quem?

- Não sei de quem se trata.

- Simão é um bom e velho companheiro.

-  Gosto de conversar com ele. Mas sei que a nossa amizade causa bochichos por aí... Sabe como é, mulher não pode ter amizades com homens.

- Bobagem. Confio em vocês. Principalmente em ti, minha única e amada mulher.

- Hum... Gostei de saber que sou a única. - disse ela, retribuindo a atenção do marido com envolventes carícias...
 
“Leis, padrões e regras, são invenções criadas pelo ser humano. E ninguém pode jurar sob a cruz sagrada o quanto essas regras estão certas ou erradas.

A amizade entre homens e mulheres, mesmo em tempos mais modernos, sempre foi razão para o despertar de fofocas e maledicências...

Será a amizade sincera entre um homem e uma mulher algo tão improvável assim?... Isso põem a prova a seriedade de uma mulher?  

A seriedade de uma mulher não é ocultada na sua alegria de viver. Ao contrário, a alegria só faz enaltecê-la.

A verdade é que as regras sustentadas em nossa sociedade são fajutas e nada provam. Porém, precisamos admitir que, quando um homem e uma mulher se encontram, tudo pode acontecer.

Afinal, amizades, “casos” e amores andam por aí, em busca de novas experiências...
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continua…

Fonte:
Texto enviado pela autora.

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 34: Tributo a Cruz e Souza

 

A. A. de Assis (Ouvido amigo)

Deu-se numa cidade de médio porte. O moço de vinte e poucos anos entrou na primeira igreja que encontrou. “Preciso falar com o padre”. A secretária percebeu o clima e o levou de pronto à sala do pároco. “Sente-se e diga em que lhe posso ser útil”. O rapaz foi direto ao ponto: “Quanto o senhor cobraria para conversar comigo por uma ou duas horas?

– Aqui não cobramos para conversar com ninguém. Mas se o que você procura é um ouvido amigo e se aceita bater um papinho de graça, podemos começar. Sinta-se à vontade.

– Me desculpe se o ofendi. É que o senhor deve ser muito ocupado e então eu não queria abusar. Preciso só desabafar com alguém experiente e botar os meus grilos pra fora. Não pense que eu esteja louco ou bêbado, ou que tenha algum problema de saúde física: não tenho vícios, me alimento bem, faço academia. Também não tenho preocupações financeiras: meu pai tem recursos e cobre todas as minhas despesas.

– Nesse caso, por que parece tão angustiado?

– Sou um rapaz triste. Muito triste. Pra começar, minha família é um desarranjo. Meu pai raramente fala com minha mãe e com os filhos, aliás minha mãe está sempre num canto chorando. Minha única irmã casou com um sujeito safado que explorava o dinheiro dela e com frequência a maltratava, daí que o casamento durou menos de um ano. Comecei a fazer o curso de medicina, mas abandonei no terceiro ano por falta de motivação. Pior: não tenho amigos, não consigo encontrar uma namorada a contento, acho que sou um chato inútil que ninguém suporta. É isso aí, padre. Vim aqui pedir um alento.

– Por acaso você tem uma religião?

– Sei que fui batizado católico, só que nunca frequentei igrejas. Mas também não creio que seja essa a questão no momento. Meu caso é mais pra psi do que pra teologia.

– Ah, sim, entendo. Lembro apenas que teologia, psicologia, filosofia geralmente se entrelaçam, e juntas ajudam a compreender melhor os mistérios da alma e da mente. Mas disso, se lhe interessar, poderemos falar em outra ocasião. Vamos por partes. Você disse que tem o corpo saudável, todavia sente a alma enferma – possível razão de sua tristeza crônica. Tem que então curar a alma, porém antes precisa desatordoar a cabeça e dar um sentido à vida. Topa tentar?… Por ser um moço inteligente e com noções de medicina, ficará mais fácil.

– Tá. Vou nessa. Que caminho o senhor sugere? 

– Temos aqui na paróquia uma Pastoral da Escuta. Vou encaminhá-lo à líder da equipe e pedir que ela o acolha. Só que você não vai como paciente, e sim como colaborador. Em vez de se preocupar tanto com os seus próprios problemas, ajudará a resolver problemas alheios. Com a sua experiência de sofrimento e os seus conhecimentos científicos, terá muito o que oferecer.  

Algumas semanas depois o moço estava de volta à universidade, agora matriculado num curso de psicologia. E mais: integralmente engajado na Pastoral da Escuta. 

(Crônica publicada no Jornal do Povo em 6 de julho de 2023)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/07/06/ouvido-amigo/