sábado, 11 de novembro de 2023

Contos e Lendas da África (Os pretendentes da Princesa Gorila)

Arte por JFeldman com Microsoft Bing
(por Robert Hamill Nassau)

Local: Nação Njambi 

Personagens
Rei Njina (gorila) e sua filha
Njâgu (elefante)
Nguwu (hipopótamo)
Bejaka (peixes, ejaka no singular)
Ngowa (porco do mato)
Njĕgâ (leopardo)
Telinga (mico, macaco)

Este conto claramente se inspira na época em que o rum chegou à África.

A “nova água” do Gorila significa rum.

A trapaça de Telinga não o fez ganhar a esposa, mas foi o motivo pelo qual os micos atualmente vivem em bandos numerosos nas árvores e não mais no chão, como antigamente. Todos são muito parecidos, o que impede que sejam distinguidos uns dos outros.

Os leões não vivem junto aos gorilas e é por isso que esses primatas também eram chamados de Rei dos Animais, em razão de seus braços fortes e longos.

No entanto, seria absurdo imaginar que um animal tão horroroso, uma caricatura de ser humano, teria uma linda filha!
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O Rei Gorila teve uma filha cuja beleza era enaltecida por todos. Quando a menina atingiu a idade de se casar, o rei mandou avisar a todas as tribos que não aceitaria dotes comuns para oferecê-la em casamento. Somente aquele capaz de cumprir a seguinte tarefa seria seu genro: havia um novo tipo de água, nunca antes vista, e quem fosse capaz de beber um barril inteiro dessa água seria merecedor do prêmio cobiçado por tantos.

Então todos os animais se reuniram na floresta do rei para competir pela jovem. Todos os caminhos que levavam à nação Njambi se encheram com os ansiosos pretendentes.

O primeiro candidato seria o Elefante, em razão de seu tamanho. O paquiderme caminhou até o barril com pesada solenidade, suas estrondosas patas ecoando a cada passo, tam dam, tam dam. Mesmo na presença do rei, mal conseguia esconder sua indignação, pois julgava aquele um teste ofensivo de tão fácil. O elefante pensava consigo mesmo, “Um barril de água? Que afronta! Quando eu, Njâgu, tomo meu banho diário, sugo o equivalente a vários barris de água com minha tromba e jogo tudo sobre mim. Além disso, bebo meio barril a cada refeição. E é esse o teste? Vou acabá-lo em dois goles!”.

Colocou sua tromba dentro do barril, determinado a sorver uma grande quantidade. Retraiu-se logo que tocou o líquido. A “nova água” ardeu em suas entranhas. O gigante ergueu sua tromba e bramiu um grito de fúria, dizendo que aquela era uma prova impossível.

Muitos dos presentes julgavam o grande elefante um adversário invencível e secretamente se alegraram ao ver seu fracasso. Agora teriam uma chance. 

O Hipopótamo então se apresentou, passando à frente de todos com passos atrapalhados. Estava afoito e certo de que seria o vencedor. Não era tão grande e pesado como o Elefante, mas era mais desajeitado. Mesmo assim, não hesitou em bradar o mais alto que pôde:

— Você, Njâgu, com todo esse tamanho teme um barril de água? Rá! Eu passo metade do meu tempo na água. Quando estou com sede, os peixes do rio têm medo de ficar sem casa.

E assim caminhou até o barril, aos gritos e bravatas para tentar impressionar a jovem princesa. Mal chegou a tocar a boca no líquido, apenas o cheiro já fez com que jogasse a cabeça para trás em um urro de aflição e nojo. Sem sequer curvar-se ao rei, correu até o rio para lavar a boca.

Em seguida veio o Porco-do-mato, dirigindo-se ao soberano:

— Rei Gorila, não vou me vangloriar antecipadamente, como fizeram meus adversários. Tampouco, se eu falhar, insultarei vossa majestade. No entanto, acredito que sairei vitorioso. Estou acostumado a enfiar o nariz nos piores lugares.

Aproximou-se devagar e com cuidado. Mesmo ele, habituado a todo tipo de sujeira e maus odores, afastou-se do barril enojado e foi embora grunhindo. 

O próximo a se apresentar foi o Leopardo, contando vantagens e dando saltos para que a jovem visse sua linda pelagem. Zombou dos três que o precederam dizendo:

— Ah, meus amigos! Vocês não teriam nenhuma chance mesmo se tivessem bebido a água. A princesa jamais se interessaria por sujeitos feios e atrapalhados como vocês! Vejam que lindos meu corpo e minha cauda! Como minhas patas são fortes e ágeis! Já lhes mostro como acabar com esse barril. Mesmo que nós, da tribo dos felinos, não gostemos de nos molhar, abrirei uma exceção para honrar a princesa. Sou o ser mais elegante da floresta e vencerei essa prova sem esforço.

Disse isso e saltou imediatamente para o barril, mas o cheiro o deixou enjoado. Fez uma única e vã tentativa. Foi embora com o rabo baixo, rastejando de vergonha.

Todos os animais da selva tentaram, um após outro. Todos falharam. Até que o pequeno Telinga deu um tímido passo à frente. Centenas de outros pequenos macacos da Tribo dos Micos o aguardavam ocultos no matagal. Os competidores derrotados murmuraram surpresos quando ele se dirigiu até o barril. Nem mesmo o Rei Gorila conseguiu conter seu espanto:

— O que você quer, meu pequeno amigo?

— Vossa majestade não mandou avisar que qualquer tribo poderia participar? — respondeu Telinga.

— Sim, todas as tribos podem tentar.

— Então eu, Telinga, mesmo pequeno como sou, gostaria de ter uma chance.

— Mantenho minha palavra real. Você pode fazer sua tentativa.

— Apenas uma dúvida, majestade. O competidor deve beber o barril todo de uma só vez? O senhor permitiria que eu descansasse rapidamente no matagal após cada gole?

— Claro, mas você deve beber tudo hoje. — respondeu o rei.

Telinga tomou um gole e saiu saltitando até o mato. Voltou imediatamente, ou assim pareceu, deu outro gole e retornou ao bosque. Reapareceu no instante seguinte — na verdade, cada vez que isso ocorria, saía do matagal um mico diferente, que bebia um pouco da água e retornava ao mesmo local para ser substituído — e assim foi até que o barril se esvaziasse rapidamente.

O Rei Gorila anunciou Telinga como o vencedor da prova.

Não se sabe o que a jovem princesa pensou ao ver que não se casaria com nenhum dos belos pretendentes, como o Antílope ou outros animais graciosos. Quando Telinga tentou se aproximar dela, o Leopardo e os outros avançaram sobre ele, gritando:

— Seu nanico miserável! Se não podemos nos casar com ela, você também não poderá! Você vai ver! Tome isso! E isso! — e o atacaram com socos, chutes e mordidas.

Aterrorizado, Telinga fugiu para o bosque, deixando sua noiva para trás. 

Desde então, ele e sua tribo vivem nas copas das árvores, pois têm medo de voltar ao chão.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Antonio Brás Constante (Sorrindo para comprar e chorando para pagar)

Como é bom comprar e ao mesmo tempo como é ruim gastar. O problema é que não se consegue comprar sem gastar. As duas coisas andam juntas, nos causando sensações contraditórias ligadas a nossa satisfação por passarmos a possuir algo que queríamos, e pela frustração de nos endividarmos nesse processo.

Há uma falsa ideia de que as mulheres gastam mais do que os homens, mas isto não é verdade. Claro que uma mulher em um shopping parece uma ilha cercada de sacolas por todos os lados. Elas passam horas e horas experimentando roupas, acessórios e sapatos de forma incansável. Quase fanática. Mas se pensarmos que, para cada peça de roupa que olham, elas também têm de cuidar de vários outros detalhes tais como:

Primeiro: se as roupas que escolheu não são iguais as de suas amigas.

Segundo: se o preço é possível de explicar ao marido e se cabe no cartão de crédito.

Terceiro: se aquela peça de roupa é similar ao modelo que ela viu em uma certa revista famosa de moda e que custava dez vezes aquele valor.

Quarto: se vai ficar bem com todos os seus doze vestidos, dez colares e quinze diferentes pares de sapato. Etc.

Tudo isto com apenas um olho, porque com o outro elas ficam cuidando se o safado do seu marido (namorado, ou assemelhado), não está se engraçando com alguma atendente, ou com uma das clientes, ou vendo algum pôster com propaganda de lingerie. Porque mulher sabe que homem é tudo igual.

Agora, se formos analisar os gastos masculinos, podemos começar calculando as cervejas bebidas com os amigos, as vaquinhas pagas pelas canchas de futebol, os lanches saboreados (geralmente o homem come bem mais do que a mulher durante o dia, pois são menos adeptos às dietas, é só olhar a quantidade de homens nos bares comendo pastéis nos finais de tarde), e finalmente, os gastos com ingressos para ver o seu time do coração. Sem esquecer de todos os apetrechos para pescaria que eles compram.

Para conseguir satisfazer a vontade de comprar, comprar e comprar, muitos acabam indo parar nos chamados “templos de consumo”, mais conhecidos como shoppings. Onde são seduzidos por ofertas irresistíveis e uma infinidade de itens expostos com parcelamentos incríveis (recheados de taxas imperceptíveis e horríveis), transformando as pessoas em uma espécie de escravos do vício das compras. Esse vício faz com que elas entrem nesses lugares com os bolsos cheios e as mãos vazias e saiam de lá com os bolsos vazios e as mãos cheias... De contas para pagar.

Em um mundo onde o apelo por consumir está em cada canto, em cada programa, em cada novidade (principalmente nesta época do ano). Talvez seja hora de começarmos a gastar mais o nosso tempo em vez de nosso dinheiro, investindo na amizade, passando a ouvir mais as pessoas que amamos, brincando mais com nossos filhos, visitando nossos pais, reencontrando o diálogo a dois em nossos lares. Assim, poderemos ganhar muito mais do que dinheiro, pois receberemos afeto e alegria, reforçando nossos laços de união. Pois, todo dinheiro do mundo não pode preencher a solidão de uma vida fútil que jaz vazia.

Fonte: https://www.recantodasletras.com.br/humor/771391. 09.dez..2007.

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – 3

ESTRUTURANDO O ENREDO

1 – Comece o enredo com uma cena de ação para captar a atenção do leitor. 

Essa ação pode ser dramática, como colocar o protagonista em uma situação de risco, ou uma prévia do que vem mais adiante no romance. Se preferir, você pode até usar algo simples para tirar o herói da rotina e lançá-lo em uma jornada cheia de altos e baixos.

Não se esqueça de incluir detalhes do cenário onde o enredo acontece aos poucos para o leitor saber onde os personagens estão.

Por exemplo: O código Da Vinci, de Dan Brown, começa com a morte dramática de um curador do Louvre e já capta a atenção do leitor.

2 – Apresente os suspeitos por meio de interações e diálogos. 

Você pode apresentar os suspeitos ao leitor por meio de interações com a vítima antes do crime — que o detetive presencie. Também é legal colocar uma testemunha ou outra pessoa que indique quem são esses possíveis suspeitos.

Por exemplo: o detetive pode presenciar uma discussão entre o suspeito e a vítima antes do crime.

O detetive também pode conversar com um vizinho da vítima e perguntar algo como "Você consegue imaginar alguém que tinha problemas com a vítima?". Talvez essa pessoa diga "Bom, vejamos. Eu vi um rapaz visitar fulana à noite algumas vezes, quando o esposo dela estava viajando. Pode ser que ele esteja envolvido".

3 – Inclua o crime nos três primeiros capítulos da história. 

Um suspense é ágil e ininterrupto. Sendo assim, você provavelmente vai afastar alguns leitores se não apresentar o assassinato até o terceiro capítulo.

4 – Crie uma cena do crime realista. 

Conforme escreve o seu romance, você decerto vai notar que não sabe tanto assim sobre cometer um assassinato. É normal, mas vale a pena fazer uma pesquisa aprofundada sobre o assunto para deixar o texto mais realista.

Por exemplo: esfaquear uma pessoa não é tão fácil quanto parece. É difícil enfiar uma faca em alguém, ainda mais alguém que resiste e consegue se defender.

A maioria dos assassinos "amadores" comete erros — já que essas pessoas não são treinadas para matar e não sabem muito bem como agir, o que acaba gerando falhas e facilitando o trabalho do investigador.

Pense também em formas de ocultar um cadáver. Carregar um corpo é difícil e é óbvio que levanta suspeitas. Além disso, é normal haver rastros de sangue e DNA no local do homicídio. Por fim, abrir uma cova também demora, enquanto o defunto pode acabar sendo encontrado se for desovado em um rio.
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continua…

Fonte: Wikihow. https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Mist%C3%A9rio-de-Assassinato

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Varal de Trovas n. 590

 

Mensagem na Garrafa – 30 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Ary Barroso
Ubá/MG, 1903 – 1964, Rio de Janeiro/RJ

Lamartine Babo
Rio de Janeiro/RJ, 1904 – 1966

NO RANCHO FUNDO

No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade

No rancho fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno canta as mágoas
Tendo os olhos rasos d'água

Pobre moreno que de noite no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo um cigarro por companheiro

Sem um aceno
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal
Desse moreno

No rancho fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria
Nem de noite, nem de dia

Os arvoredos já não contam
Mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira

Os passarinhos
Internaram-se nos ninhos
De tão triste esta tristeza
Enche de trevas a natureza

Tudo porque, só por causa do moreno
Que era grande, hoje é pequeno
Pra uma casa de sapê

Se Deus soubesse da tristeza lá serra
Mandaria lá pra cima
Todo o amor que há na terra

Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade

Ele que era
O cantor da primavera
E que fez do rancho fundo
O céu melhor que tem no mundo

Se uma flor desabrocha
E o sol queima
A montanha vai gelando
Lembra o cheiro da morena

Geraldo Pereira (Serpentinas Rasgadas)

Neste tempo de folia - perdoe-me o leitor - pra mim não há magia, pois onde fizeram morada o luto e a dor não há como ter alegria! Antes a nostalgia, lembranças de muitos anos, encantados agora no passado das coisas. De outros carnavais, de fantasias guardadas nos escaninhos já desgastados da memória dos dias de minha infância, de sonhos desfeitos, gestantes ainda no imaginário, sem que pudessem sequer experimentar a realidade do parir, na interface da vida, adolescência do ser, metamorfose do existir humano.

Lembranças do menino vestido a caráter em roupa de marinheiro bem encorpada, assumindo ali mesmo, na vesperal do Clube Português, ares de capitão da grande frota da ilusão, a navegar nos mares do devaneio. 

De serpentinas rasgadas e amores partidos, num arco-íris de confetes coloridos, escorridos todos dos céus de meus desejos. Cabelos longos e lisos alguns, pretos ou castanhos em maioria, mas louros também, nascidos assim, dourados. Do perfume da lança e do lança-perfume saudando paixões, fortuitas, exauridas depois, nas cinzas da quarta.

Saudades do corso serpenteando a cidade, dos carros enfeitados, estourando o escape, da água de cima pra baixo dos sobrados da Concórdia ou de baixo pra cima da malta se vingando e os remediados da sorte molhando. Dos beijos roubados – efêmeros ósculos –, de promessas e juras desprezadas todas, esquecidas quando a fantasia das coisas tombava e a realidade dos dias voltava. Dos presos olhando do alto das celas a liberdade passando, do adeus de mãos assim, encarceradas, distantes de um afagar carinhoso, meloso, de um manto piloso qualquer que fosse dando forma aos desejos. Pesadas grades aquelas, nítidos limites da violência incontida, na contenção violenta do ferro fundido!

Recordações de tantos momentos, tempos felizes do descompromisso assumido, do tambor dando ritmo à batucada de improviso na folia do corso. Do caminhão enfeitado com palha de coco, decoração tropical e simplória, na criação fértil do avô materno. Da gente miúda tamborilando e dos mais velhos incomodando, dando ordens e contra-ordens, exigindo do motorista, com nome de santo e santo também- João –, peripécias e piruetas mil. E os primos quatrocentões exercendo a perplexidade paulista, quando o micróbio do frevo tomava de assalto a indisposição sulista.

Gostosa folia aquela, que se esvaia ao primeiro sinal da ingratidão da quarta, ameaçadora, com ares de bacalhau à mesa e do vinho tomado com o sabor diluído da sangria bem cuidada. Acauteladora medida do pai comedido, contido com os prazeres do mundo. E o filho rebelde na gafieira dançando, ouvindo o fiscal de salão, defensor atento daquele recanto da fantasia e do recato. Pacato lugar de tantos amores, casais enlaçados à moda do tempo, frevando e sambando sem poder se tocar, mesclando no passo, no passo da gente, da tradição tupiniquim das coisas, as cores do corpo de morenas melosas, dengosas algumas, com o menino da casa de
suas ocupações profissionais e domésticas!

Bailes no Clube Atlântico, na Marim dos Caetés, vesperais animadas por esperanças mil. Balzaquianas perdidas, desgarradas, carentes, no meio das músicas soltas, trazidas por firmes acordes dos trombones à proximidade de corações em fogo. Inibições pueris e tímidas incursões, reinados de sonhos em cortes do imaginário. Marcadas frustrações!

Neste tempo de folia - perdoe-me o leitor -, pra mim não há magia, pois onde fez morada o luto e a dor, não há como ter alegria!

Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público 

José Fabiano (Trovas Brincantes) 2


A babá é geralmente
uma jovem que se acaba,
olhando o filho da gente
e por quem a gente baba…
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Ah, mulher, tu me cativas,
mas os teus modos são tais,
que as glândulas que me ativas
são somente as lacrimais...
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A mulher, que é uma graça,
ao marido, que é um bicho:
"Fica lá fora que passa
hoje o caminhão de lixo..."
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A nossa língua não tem
o feminino de "padre".
O de "marreco", porém,
em hospital, é "comadre".
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Ante alguém maior do que eu,
vem-me o pensamento mau:
pode ser algum pigmeu
usando perna-de-pau...
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Às quartas, sofro um bocado
nas mãos de linda criatura
Jesus foi crucificado,
mas não fez acupuntura.
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Bombeiro botafoguense
se cala, em dia de jogo,
pois, quando seu time vence,
como gritar: "Botafogo?"
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Depois da "idade do lobo",
ao ver tudo por que passo,
ocorre a "idade do bobo",
que finda "na do palhaço"...
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Devem-se, a certo "sargento",
que não gostava de "cabo",
a criação e o lançamento
da palavra "menoscabo"...
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Dizem que mulher não pensa!
Pensa, sim. E por que não?
Se a morte traz dor imensa,
pensa, pensa na pensão!
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Eu tenho me perguntado
qual, enfim, é meu formato;
uns dizem que sou "quadrado",
outros falam que sou "chato"...
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"Hálux", que nome pomposo!
Sabes por acaso o que é?
Além de algo luminoso,
é também dedão do pé...
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"Limpo este mundo", dizia
certo escritor neurastênico.
Do jornal, onde escrevia,
faziam papel higiênico...
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"Minha vida", diz Gracinha,
"lembra tragédia de teatro.
Vejam que família a minha:
sai um, porém voltam quatro..."
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Muito fácil perceber
o caminho do pecado.
Basta só reconhecer
qual o mais congestionado.
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Na Criação, se deduz
qual o plano que Deus leva:
Ele faz, no início, a Luz
e ao fim, a Treva, digo Eva.
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Na mocidade florida:
"Ah, quanta beleza e encanto!"
Mas chega o final da vida:
"Ah, quanta feiúra e... espanto!"
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Não traz a felicidade,
ter dinheiro de montão.
Mas igualmente é verdade
que não ter também traz não...
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Nem "my darling" nem "mon cher"
me deixam assim bocó,
como quando essa mulher
me chama de "meu xodó"...
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No dia das mães, o galo
lamentava-se na rinha:
"Como vou comemorá-lo,
se minha mãe é galinha.?"
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O esquecimento, em mim, lavra,
mas não sei por que razão
me esqueço de uma palavra
e jamais de um palavrão...
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O homem sente falta imensa
do ar e da mulher que ele ama.
Há só uma diferença:
o ar atende e não reclama...
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Por não conseguir limpar
este imenso mundo nosso,
não deixo de me lavar
todas as vezes que posso...
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Qual Jesus, eu vou morrendo,
mas com estas restrições:
não na cruz - suplício horrendo -
nem só entre dois ladrões...
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Queixava-me da velhice,
querendo ouvir um conselho.
O doutor, então, me disse:
"Olha-te menos no espelho..."
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"Sê bem-vindo!" Interessante
é ler em super-mercado
o que pensa um assaltante
de quem vai ser assaltado...
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Se de "Ana" o diminutivo
é "Aninha", estranho, então,
ao pensar que o aumentativo
deva ser menor: "Anão"...

Fonte: José Fabiano & A. A. de Assis. Trovas brincantes. 2007 (livreto). Enviado por Assis

A. A. de Assis (Orgulho do pai)

Naquela noite o guarda-livros Deodoro José, assíduo frequentador da roda de amigos que se reunia todo sábado na Toca d’Anta, chegou todo sorridente, trazendo com ele um moço que chamava a atenção por estar com a cabeça rapada. “Este garoto é o orgulho da minha vida – disse –; passou em primeiro lugar no vestibular de Direito”. Dona Liloca, gerente do botequim, festou lá do balcão: “Oba! A primeira rodada de chope vai ser então por conta da casa”.

O professor Polyclínio, aquele bom velhinho que vocês já conhecem, abraçou com força o venturoso pai. Em seguida convidou o jovem para sentar-se a seu lado: “Venha aqui, menino, você deve ter uma cabeça muito boa. Vamos conversar”.

O papo rolou sobre prazeres da juventude, preferências literárias, talento natural, vocação profissional etc. etc., até que de repente o querido sábio sacou do bolso a sua reluzente caneta Parker 51, pediu ao garçom uma folha de papel e fez nela três anotações. Na primeira, a raiz da palavra “justiça”: isos>ius>jus. Na segunda, o desenho de uma balança de dois pratos e, embaixo, a palavra “equilíbrio”. Na terceira, a frase “Não faça aos outros o que você não quer que lhe façam”.

Dobrou o papel e o entregou ao rapaz, recomendando: “Guarde isto dentro de um dos livros que você costuma abrir com mais frequência, e de vez em quando releia e reflita. São três lembretes fundamentais, especialmente para quem pretende seguir a nobre carreira jurídica”.

O jovem calouro fez um ar de surpresa. Polyclínio explicou:

1. Isos, que no grego significa “igual”, chegou ao latim como ius (ius, iuris), que depois evoluiu para jus, de onde temos a palavra “justiça”. Logo, justiça é o mesmo que “igualdade”.

2. A balança de dois pratos é um dos símbolos da justiça por indicar a ideia de “equilíbrio” (equi = igual + líbrio = peso). Logo, equilíbrio é o mesmo que “pesos iguais”).

3. “Não faça aos outros o que você não quer que lhe façam”. A célebre Regra de Ouro.

Com aquele seu jeitão de vovô dengoso, o professor pôs a mão no ombro do moço e continuou: “Justiça é o ponto de partida para a felicidade coletiva. Algo aparentemente tão simples, no entanto sine-qua-non para o exercício da arte de viver bem em sociedade”.

  E o senhor, com a sua experiência, acha que isso seja possível?

– Acho sim. Mais ainda quando tenho a alegria de conhecer meninos como você. Costumam fazer juízo negativo das novas gerações, mas vejo com otimismo o futuro. Alguns de vocês parecem estar de fato perdidos; a maioria, no entanto, leva bem a sério a vida.    

–  Bonito, porém difícil.

–  Difícil, porém possível.
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  (Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 09-11-2023)

Fonte:
Texto enviado pelo autor 

Lucy V. Hay (Como Escrever um Mistério de Assassinato) – 2

CRIANDO OS PERSONAGENS

1 – Crie uma ficha individual para cada personagem. 

Você pode criar uma ficha para cada personagem importante da narrativa — para nunca se esquecer da função deles. Inclua descrições físicas, um pouco da história de vida (até o que aconteceu antes do início do enredo), com o que eles trabalham, o que estudaram e como é a sua personalidade. 

Você pode incluir também as idiossincrasias e peculiaridades dos personagens.

Consulte essas fichas para nunca se confundir ou esquecer de detalhes dos personagens.

Crie personagens que não só sejam agradáveis, mas mereçam empatia. Personagens bonzinhos demais nunca ficam tão interessantes assim. Pense em sujeitos complexos, com qualidades e defeitos, mas que chamem a atenção do leitor.

Por exemplo: pode ser que o personagem viva chegando atrasado, não tenha uma boa relação com a mãe e odeie os colegas de trabalho. Inspire-se até em conhecidos seus!

Um personagem pode despertar empatia de diversas formas. Por exemplo: talvez ele esteja tendo problemas financeiros ou seja a vítima do crime; talvez seja uma pessoa altruísta, mesmo que tenha os seus momentos de egoísmo.

O personagem Sherlock Holmes, um dos mais famosos protagonistas de suspenses da literatura, não é necessariamente agradável. No entanto, ele é interessante e capta a atenção dos leitores por ser inteligente e bom no que faz.

2 – Inclua vários suspeitos. 

Geralmente, não adianta colocar só um suspeito na história. Qual é a graça disso? Pense em cinco ou seis personagens que possam ter cometido o crime.

A história fica muito mais interessante quando há diversos suspeitos, já que o leitor tem que tentar descobrir quem é o criminoso real.

3 – Pense nas motivações dos suspeitos. 

Cada pessoa enquadrada como suspeito deve ter uma motivação forte e plausível o bastante para ter matado a vítima. Caso contrário, o texto vai ficar chato de ler. Fuja do óbvio, como usar a herança que o morto deixaria como motivação para todos os suspeitos.

Veja alguns exemplos legais de motivações: se um suspeito queria guardar um segredo, outro queria ficar com milhões da vítima e um terceiro estava com inveja dela etc.

4 – Crie um assassino verossímil. 

A pessoa que de fato for culpada pelo homicídio deve ter plena capacidade de cometer o crime, seja física ou emocionalmente. Caso contrário, o leitor vai se sentir enganado. Por exemplo: um homem velho e mirrado provavelmente não conseguiria pegar um cadáver e jogá-lo ponte abaixo, mesmo que estivesse cheio de adrenalina.

5 – Entre na mente do detetive. 

Muitas vezes, um romance de suspense tem como protagonista o detetive que investiga o crime. Você pode contar a história do ponto de vista dele (algo bem intenso, mas profissional) ou optar pela terceira pessoa (onisciente), desde que conheça o personagem central de cor e salteado.

Pense nos seguintes termos: o detetive é uma pessoa completamente lógica? Ou ele se deixa levar pela intuição de vez em quando? Ele é analítico e observador ou dá mais atenção ao panorama geral do crime? Quais são as suas idiossincrasias? O que o ajuda a pensar? Ele tem algum vício? Problemas familiares?

São esses pequenos detalhes que tornam o personagem mais real. Por exemplo: Sherlock Holmes é um personagem lógico e nunca confia em palpites. Contudo, ele é tão lógico que tem dificuldade para manter boas relações sociais — afinal, não é muito emotivo. Dentre as suas peculiaridades estão: precisar sempre se sentir superior a alguém, tocar violino e fazer experimentos para descobrir mais sobre como resolver crimes.

6 – Pense na vítima (ou vítimas). 

Você pode começar o enredo com a vítima já morta e, depois, desvendar os detalhes da vida dela aos poucos. Se preferir, apresente-a viva no começo e só mostre o assassinato em seguida.

Pense em como a vítima pode contribuir com a história em vida. Por exemplo: se o personagem é simpático e agradável, o leitor vai ficar mais empenhado em ver o assassino atrás das grades. Por outro lado, se ele é a antipático e desprezível, o leitor pode até nem julgar as ações do criminoso.

Pense em uma história de fundo para a vítima. Fale dela aos poucos para o leitor se identificar (ou não) com esse personagem. 

Você pode até transformar um dos possíveis suspeitos como segunda vítima mais adiante.
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continua…

Fonte: Wikihow. https://pt.wikihow.com/Escrever-um-Mist%C3%A9rio-de-Assassinato

Aparecido Raimundo de Souza (E a casa ficou vazia...)

“Todos os dias quando acordo
não tenho mais o tempo que passou.”
(‘Tempo Perdido’, Renato Russo)

DE REPENTE, a turma inteira partiu. Foi embora. Cada qual para um canto diferente, longínquo. Como sempre, fiquei aqui na casa enorme e vazia. Solitário, a alma combalida, sem rumo, sem esperança, entregue à sorte do destino ingrato e espavorido. 

Sei perfeitamente que nunca mais conseguirei reunir, embaixo do mesmo teto, meu padrasto Jorge, minha mãe Ana, meus irmãos Cláudio, Rogério e André. Tampouco a gritaria algazariante dos que aqui viveram em doce harmonia. Jamais terei o doce e inebriante prazer de ouvir as suas vozes.
 
Eles por algum motivo inexplicável se afastaram. Foram sem dizer adeus. Viajaram sem regresso, sem deixar recordações. Suas figuras se diluíram no ar, como nuvens no firmamento, como o dia tragado pela noite escura. 

O espaço aqui deixado engrandeceu demais diante deles, centuplicou como o infinito aos olhos do astronauta, se agigantou como o mar à frente daquele que pela primeira vez o contempla, medroso, e encolhido, temeroso de ser tragado por suas ondas gigantes em procelosos movimentos. A solidão assoberbante e densa os envolveu a todos. Cingiu, para sempre, na voragem do nunca mais.

Eu fiquei!

Como sempre, sobrou para mim, permanecer aqui assim, desta forma, solitário, a casa vazia. Contemplo os aposentos sem os móveis de ontem. Meus passos ecoam na confusão de um cérebro com devaneios desordenados. Sem o vínculo da ternura, do aconchego dos meus pares, algo estranho bate na minha cabeça como uma espécie de látego martirizante. 

Sei que jamais terei a oportunidade de me sentar ao redor da mesa enorme da cozinha e ouvir, cada um dos familiares, comentar como foi o dia, as andanças, alegrias e desventuras. 

Da mesma forma, nunca mais ouvirei os gritos de mamãe, os berros do velho Jorge, as gracinhas do mano Cláudio, as impertinências do irmão Rogério e a fumaça enervante e insuportável dos cigarros do André. Nunca mais estas pequenas banalidades voltarão a se juntar num só espaço, como antes, como até bem poucos anos atrás.

Casa vazia – vazia casa, sem a esperança dos que aqui residiram. Alma vazia – vazia alma, prisioneira, agora e para sempre, desta morada grandiosa, oca, destituída do amor maior, da esperança plena, e das afeições que enlevavam e ajudavam a tornar tudo mais belo e colorido. 

Vou viver... viver?! Talvez não seja este o termo, a palavra certa. Estou mais para morrer. Morrer de modo lento, penoso, em câmera lenta, morrer de tédio, como a tristeza enfadonha e desgastante desta dinastia desfeita. 

Aliás, tenho a impressão de que vamos morrer. Morrer os dois, a casa e eu, eu e a casa, da mesma enfermidade que corrói nossos espíritos, nossas estruturas, desde a base até a mais alta das paredes. 

Na verdade, não há o que discutir. Vamos, realmente, morrer. A casa e eu, eu e a casa, juntos, unidos num abraço estranho, num desprazer exagerado e ingente, numa, enfim, insatisfação indescritível e, pior, na mais completa e enervante solidão. 

Senhoras e senhores há muito tempo, NÃO TENHO MAIS A MINHA FAMÍLIA. Se vocês ainda têm a de vocês, CONSERVEM. Lembrem destas palavras. Letra comum, todavia, de profundo sentimento em prol daqueles que muitas vezes esquecemos que vivem ao nosso lado e nada esperam, a não ser um pouquinho de atenção, carinho e afeto. 

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Adega de Versos 115: Agnelo Campos

 

Mensagem na Garrafa – 29 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Antero Jerónimo
Lisboa/Portugal

O dia acordou envergonhado.

Como se estivesse a despertar de um sonho que o tempo transformou em pesadelo.

Um tempo medido por uma bitola imensuravelmente desgovernada.

Os olhos cansados pestanejam vermelhos de incompreensão.

Nesse sonho a noite velava pelo descanso de dois corpos subnutridos pela correria incessante dos dias.

Velava também pelo sorriso angelical da criança no meio de ambos, habituada a ter o seu mundo num espaço muito exíguo, despido de qualquer ostentação.

São sonos acostumados a escutar sirenes rasgando o ar da noite com o seu lamento estridente. Corpos correndo para abrigos enquanto projetam sombras fantasmagóricas nas paredes, por entre gritos e imprecações.

Nesta noite, um silvo aterrador precedeu uma explosão de luz que projetou destroços em todas as direções.

Desta vez a sirene não quis acordar a noite.

E o sonho, esse transformou-se em sono eterno.

Contos do Paraná (“A teoria do iceberg”, por Roberto Muggiati)

Meu protetor de tela é um iceberg, passo o dia diante dele. Nenhuma paixão especial por icebergs. Os tons azul-cobalto da foto lembram o céu de Curitiba ao entardecer. Essa imagem do iceberg veio pela internet: uma namorada queria que eu não esquecesse a cor do céu que nos protegia. A namorada passou, a imagem continuou na tela em homenagem à Teoria do Iceberg, do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” O autor da imagem do iceberg também tinha sua teoria. Fez uma montagem de várias fotos para ilustrar o conceito de que “nem tudo o que se vê é necessariamente real.

O céu de Curitiba me leva a outro episódio — a outro céu noturno, e outra namorada, de um tempo bem mais distante. Éramos crianças, parentes remotos, estranhos um ao outro, e de repente nos descobrimos. Numa festa de família, na janela do vigésimo andar de um dos primeiros arranha-céus da cidade, espetado solitário na paisagem. Loucos para viver e falar, nos enlaçamos, ávidos por conhecer um ao outro. (O que conversam os amantes? Eles nunca sabem, eles nunca lembram.) E então, no descampado do aeroporto, vimos  as luzes de um avião que piscavam, cortando o horizonte como notas numa pauta musical. O avião, de destino insondável, tateava com suas lanternas vermelhas o grande mistério do futuro. Comungamos em silêncio a mesma emoção. A esperança de partir para o mundo, quem sabe juntos? Foi nossa epifania — perdoem o clichê. Um biólogo definiria todo aquele cataclismo entre nós como uma mera erupção de feromônios e testosterona. Não importa, a atração era real, como nunca havíamos sentido antes.

Meia-noite com ela e as estrelas — e então a noite acabou. A nossa história seria uma crônica de amantes malsinados, atravessando décadas. Uma estória entrecortada, desencontrada, que me arrastaria por tristes oceanos de lágrimas... Desculpem esse crime de lesa-TI. Sim, a Teoria do Iceberg merece uma sigla, pertence à ciência, é um teorema, a equação que fornece le mot juste (a palavra certa). A emoção tem de estar sempre ali, mas é a maior inimiga do bom texto.

Passamos um ano e meio longe um do outro. Fui morar em Paris, quando voltei ela estava casada. Mal casada, já quase descasada. Numa escapada furtiva à Livraria Ghignone, marcamos um encontro em Guaratuba. Cheguei lá, ela não. Sumiu, desapareceu do meu mapa. Para sempre? Aprendi que nada é para sempre. Em 1968 — o mundo em chamas — eu casado, em São Paulo, dou de cara com ela na Rua Augusta, numa manhã de inverno solar e vento cortante.

— Que coisa incrível! Você por aqui?

— Trabalho na Veja. E você, como vai sua vida?

— Não vai acreditar! Sou aviadora, com brevê e tudo! Vou buscar jatinhos nos Estados Unidos. Outra noite, em Nova York, ouvindo o Gato Barbieri, pensei muito em você...

(Ela conhecia minha paixão pelo jazz. Uma vez, nos tempos inocentes de Curitiba — ela de camisola eu de porre — eu fiz serenata para ela com o saxofone tenor.)

No vento frio da Augusta, minha mulher, ciumenta, cortou o clima. Nem pudemos trocar telefones. E fiquei outros vinte anos sem saber de — não, não vou dizer seu nome... Afinal, isso não se faz num conte à clef (conto de fadas). 

Aos poucos senti toda a extensão de sua doce vingança. Eu não soube defender aquela absurda epifania adolescente, que era tudo para nós. Ela, sim, foi à luta, aprendeu a pilotar, sequestrou o nosso avião e levantou voo com suas luzes vermelhas sumindo na cerração da velha noite curitibana. Eu a via cortando a imensidão dos espaços infinitos. Pensando em mim, quem sabe?

Um amigo me ensinou um dia: não se esforce muito para lembrar as coisas boas, elas podem se desgastar e se perder. Mas, naquele meu triste fim de casamento, eu não pensava em outra coisa — na minha doce e cômica Valentina. Como doía a sua ausência nas noites suicidas do inverno paulistano.

O coração é um músculo flexível. O casamento acabou, outro casamento começou, dois filhos, até cachorros. O matrimônio que nunca sonhei ter. Eterno enquanto durou. Uma noite, livre de novo, num shopping de Curitiba, lançando um livro, ela entra de novo na minha vida, na fila de autógrafos.

— Ainda se lembra de mim?

Desta vez trocamos telefones. Não pilotava mais, estava também livre, totalmente. Marcamos um encontro no Rio. Fui esperá-la no aeroporto do Galeão. Subimos a Serra para o meu chalé em Itaipava. Jantamos no velho Farfarello, era dia 29, pedimos Gnocchi della Fortuna, al cricco e al pesto, com direito a uma nota de un dollaro debaixo de cada prato. Loucos para viver e falar, bebemos duas garrafas de vinho. Em uma hora traçamos os planos de uma vida inteira. Não lembro como dirigi o carro até o chalé. Antes de desmaiarmos na cama, ela ainda perguntou:

— Agora vamos ser felizes?

Acordou-me no meio da madrugada. Queria porque queria descer a Serra ali na hora, fazer logo nossa mudança definitiva para Itaipava. Bêbado e cansado, não resisti. Foi nossa perdição. No meio da descida, despenquei pelo despenhadeiro. Dormi na direção e acordei no fundo do socavão, preso às ferragens. Sobrevivi, com pequenos arranhões. Ela pagou a fatura. Foi jogada para fora do carro e quebrou a coluna em vários pontos. Na queda, tive a impressão de ouvi-la gritar: “Estou voando!”

O acidente aconteceu logo depois do viaduto sobre o rio Rolador. Lembrei da Serra do Rola-Moça do Mário de Andrade, que descreve um casal em fuga. “Como eles riam! E os risos também casavam com as risadas dos cascalhos.” Subitamente, “dão noiva e cavalo um salto, precipitados no abismo.” Poesia numa hora dessas?

Por minha culpa, ela iria passar o resto da vida presa a uma cadeira de rodas. Não fomos finalmente felizes. Eu conseguia suportar a dor até o escurecer, depois a coisa ficava terrível por volta da meia-noite, e às três da manhã era o grande mergulho na noite escura da alma. Pensei em suicídio: lasanha com chumbinho, como aquela atriz da TV. Ou caipivodca de lichia com carrapaticida (uma variante mais sofisticada do antigo Guaraná com formicida.) Ou um salto espetacular de um vigésimo andar: no bilhete de suicida, inverteria a frase de Eliot: “This is the way the world ends — not with a whimper, but a bang...(É assim que o mundo acaba – não com um gemido, mas com um estrondo...) Mas todas as coisas devem passar e o mundo continua.

Você recupera a maior parte de sua vida, como bens salvados de um incêndio. Eu iria continuar por mais tempo, muito tempo talvez — até a hora de cinzelarem na minha lápide o epitáfio, a definição de vida que tomei emprestada de Cole Porter: “It was great fun, but it was just one of those things.”

Ainda fui vê-la uma última vez. Era como falar com uma estátua. Seu olhar parado não dizia nada. Saí para o dia ofuscante, os olhos cegados por uma cortina de lágrimas e sal. O sol, sem alternativa, brilhava sobre o nada novo. E a história acaba aqui. O mundo mata indistintamente os belos, os bons e os bravos. Ela morreu, você vai morrer e eu vou morrer. É tudo o que posso prometer.
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Roberto Muggiati (Curitiba, 1938) começou a carreira na redação da Gazeta do Povo — completou 60 anos de carreira em março de 2014. Estudou no Centre de Formation des Journalistes, em Paris, trabalhou na BBC de Londres, colaborou no SDJB e na revista Senhor, além de editor de Manchete, Veja e Fatos e Fotos. Há 45 anos escreve sobre música e política — e a relação entre as duas: de Mao e a China (1968) a Improvisando soluções (2008), passando por Rock/O grito e o mito (1973) e pelo romance A contorcionista mongol (2000) — e mais a caminho.

Fonte:
Luiz Rufatto (org.). Antologia de contos paranaenses. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Humberto de Campos (Número, faz favor?)

O Altino Praxedes andava já pelos trinta anos quando, casado, e com um filho, abandonou a sua fazenda das "Três Pedras", no Estado do Rio, para vir à capital da República submeter a esposa a uma operação. E como não tivesse parentes, nem amigos, nem conhecidos, foi hospedar-se, com a família, em uma pensão do Flamengo, onde lhe prometeram toda a comodidade.

Ocupado, ele mesmo, em arranjar médico e casa de Saúde, era-lhe um tormento aquela vida, acima e abaixo, numa terra desconhecida. De manhã, saía a tratar de negócio. Duas horas depois, porém, se achava outra vez em casa, a saber como estava passando a esposa. E tão inquieto andava longe da companheira, que a dona da pensão, penalizada, aconselhou:

- Sr. Praxedes, por quê o senhor, em vez de vir, não telefona para sua mulher? É mais rápido, e muito mais cômodo.

- É verdade, - concordou o hóspede, que nunca tinha falado, em sua vida, num telefone.

No dia seguinte, estava o provinciano no centro da cidade, quando se lembrou de telefonar para casa. O aparelho, e a utilidade de cada uma das peças, ele o conhecia, por ter visto outras pessoas falando. Nunca, porém, havia falado, ele próprio, de modo que foi trêmulo, quase vermelho, que pôs o fone no ouvido, pedindo:

- Ligue para minha mulher; sim?

- Número, faz favor?

Praxedes empalideceu:

- Qual número, qual nada, dona! Eu sou um homem sério. Eu só tenho uma mulher, e essa não tem numeração nenhuma!

E enganchando o fone, com estrondo:

- Trate sério; ouviu?

Fonte: Humberto de Campos. Grãos de mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público.