segunda-feira, 20 de maio de 2024

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 29

 

Irmãos Grimm (Gente sabida)

Um dia, certo camponês tirou do lugar seu bastão e disse à mulher:

– Vou viajar e só volto daqui a três dias. Se nesse meio tempo vier o tropeiro e quiser comprar nossas três vacas, poderás vendê-las por duzentos moedas. Mas nem um tostão a menos, entendeste?

– Vai com Deus! - respondeu a mulher. - Farei tal e qual tu disseste.

- Sim, bem te conheço! - comentou o homem. - Quando criança, caíste de ponta-cabeça no chão e o resultado ainda está se vendo até hoje... Mas uma coisa te digo: se fizeres bobagens, eu te pinto o lombo de azul, e não com tinta e pincel, mas com este bastão aqui: e te garanto que essa pintura não desaparecerá antes de um ano.

Dito isto, o homem se pôs a caminho.

Na manhã seguinte, apresentou-se o tropeiro e a mulher não precisou falar muito. Depois de examinar as vacas e saber o preço, disse:

- Estou disposto a pagar o que pedes, que elas bem valem isso. Vou levar os animais agora mesmo.

Soltou-os da correia e os tirou do estábulo, mas quando ia saindo com eles pela porta da granja, a mulher, pegando-o pela manga do casaco, disse:

- Terás que me dar primeiro as duzentas moedas, do contrário não poderás levar as vacas.

- Tens toda razão, - respondeu o negociante.- Esqueci a minha bolsa em casa. Mas não te preocupes, que te darei uma boa garantia. levarei duas vacas e te deixarei a terceira em penhor; assim terás uma boa fiança.

A mulher achou ótima a proposta e deixou que o negociante partisse com duas vacas. Ficou pensando: " Que contente não irá ficar o João quando souber que agi com tanta inteligência!"

Três dias depois, o camponês regressou, como havia anunciado, e sua primeira pergunta foi a respeito da venda das vacas.

- Sim, meu marido, - disse a mulher - vendi-as  por duzentos moedas, como recomendaste. Mal valem isso, mas o homem as levou sem pechinchar.

- Onde está o dinheiro?

- O dinheiro ainda não recebi, porque o negociante havia se esquecido da bolsa; mas na certa vai trazê-lo sem demora, pois me deixou uma boa fiança.

- Que fiança?

- Uma das três vacas. Essa ele não levará antes de ter pago as outras duas. Fui inteligente e fiquei com a menorzinho, que é a que come menos.

O homem ficou furioso e, levantando o bastão, preparou-se para dar-lhe a surra prometida. Mas, de repente, parou e disse:

- És a criatura mais idiota que Deus pôs na terra, chegas até a me dar pena. Vou ficar esperando três dias na estrada para ver se encontro alguém ainda mais bobo do que tu. Se achar uma pessoa assim, ficarás livre da surra, caso contrário, receberás  a paga que te prometi sem o menor desconto.

Saiu e sentou-se numa pedra à espera do que desse e viesse. Nisto viu aproximar-se uma carreta, onde estava uma mulher de pé, em vez de ficar sentada no monte de palha ou ir ao lado dos bois, conduzindo-os. 

Pensou o homem: "Essa, pelo visto, é uma das que estou procurando." Levantou-se de um salto e se pôs a correr de um lado para outro, diante da carreta, como alguém que não fosse bem certo da cabeça.

- Que há, compadre? - indagou a mulher. - De onde vens que não te conheço?

- Caí do céu, - respondeu o homem - e não sei como voltar para lá. não poderias levar-me?

- Não, - retrucou a mulher - não sei o caminho. mas, se vens do céu, podes dar-me notícias do meu marido, que morreu há três anos. Com certeza o viste por lá.

- Claro que o vi, mas nem todos levam ali uma boa vida. teu marido cuida das ovelhas e os bons animaizinhos lhe dão muito trabalho, trepando nas montanhas e se perdendo pelas matas. É obrigado a correr atrás delas para juntá-las. Além disso, sua roupas estão em farrapos e, mais dia menos dia, lhe cairão do corpo. Não há alfaiates no céu. São Pedro, como bem sabes pelo que dizem, não deixa entrar nenhum.

- Quem imaginaria uma coisa dessas! - disse a mulher. - Sabes o que mais? Irei buscar seu traje de domingo, que ainda está guardado no armário e que ele lá poderá usar com muito orgulho. Podes fazer-me o favor de levá-lo?

- Impossível! - retrucou o camponês - É proibido levar trajes de domingo para o céu. Eles os tiram da pessoa antes de passar pela porta.

- Escuta! - disse a mulher - Ontem vendi meu trigo por uma boa quantia, que vou enviar a ele. Se meteres o dinheiro no bolso, ninguém notará.

- Se não há outro remédio, - respondeu o camponês, - estou disposto a fazer-te esse favor.

- Então fica aí sentado, - disse ela- que vou em casa buscar a bolsa e não demoro a voltar. Estou de pé na carroça, em vez de sentar-me na palha, para que os bois não tenham de levar tanto peso.

E pôs em marcha os animais, enquanto o camponês pensava: "Esta criatura é doida varrida e se, de fato, trouxer o dinheiro, minha mulher pode considerar-se muito feliz por se ter livrado da surra."

Não demorou muito a camponesa voltou, correndo , e meteu o dinheiro ela mesmo, no bolso do homem. Antes de se despedir, agradeceu-lhe muitas e muitas vezes por sua gentileza.

Quando a boba mulher chegou, enfim, à sua casa, encontrou o filho que acabava de regressar do campo. Contou-lhe as coisas espantosas que lhe haviam acontecido e acrescentou:

- Alegro-me tanto de haver encontrado uma oportunidade para enviar algo ao meu pobre marido! Quem havia de imaginar que, lá no céu, lhe faltasse alguma coisa?

O filho ficou pasmo.

- Meu Deus! - exclamou ele. - Isso de uma pessoa baixar do céu não acontece todos os dias. Sairei à procura desse homem. Gostaria de saber como andam de trabalho por lá.

Encilhou o cavalo e partiu a toda pressa. Encontrou o camponês, à sombra de um salgueiro, a contar as suas moedas.

- Não viste o homem que caiu do céu? - perguntou-lhe o rapaz.

- Sim, - respondeu o camponês, - mas já está de volta para lá, tomou a estradinha que sobe aquela montanha e que encurta um pouco o caminho. Mas, se fores a galope, ainda poderás alcançá-lo.

- Ah! - exclamou o rapaz.. - Estou cansado de trabalhar o dia todo e a cavalgada até aqui me deixou moído, mas tu conheces o homem, bem poderias montar o meu cavalo e ir atrás dele para convencê-lo de que volte aqui.

"Hum! aqui está outro que não regula bem - pensou o camponês. E, dirigindo-se ao jovem assim lhe  disse:

- É mesmo! Por que iria eu negar-te esse favor?

Montou e saiu a todo galope. o rapaz ficou esperando até de noite, mas o camponês não voltou. "De certo - pensou ele - o homem do céu estava com pressa e não quis dar volta, e o bom do camponês lhe deu o cavalo para ser entregue a meu pai."

Foi para casa e contou à mãe, muito satisfeito, que tinha enviado o cavalo ao pai, para que ele não precisasse andar a pé lá no céu.

- Fizeste muito bem! - respondeu a mãe. - Tens boas pernas e não é necessário que andes a cavalo.

Quando o camponês chegou em casa, pôs o animal na estrebaria junto com a vaca; depois foi para onde estrava a mulher e lhe disse:

- Catarina, tiveste sorte! Encontrei dois ainda mais bobos que tu. por esta vez te livraste da surra, que fica adiada para a próxima ocasião.

E, acendendo o cachimbo, sentou-se na cadeira de balanço. Depois prosseguiu:

- Foi um bom negócio. por duas vacas magras, obtive um cavalo bem gordo e uma bolsa cheia de dinheiro. Se a burrice fosse tão proveitosa, eu teria o máximo respeito pelos burro.

Assim pensou o camponês, mas eu estou certo e que vocês hão de preferir as pessoas inteligentes.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 12 =


Trova de Pindamonhangaba/SP

João Paulo Ouverney

A vida é um trem nos levando
com destino à eternidade,
que segue, sacolejando,
pelos trilhos da saudade...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Maringá/PR

A. A. de Assis

POR UM BEIJO

Por um beijo eu lhe dou o que sou e o que tenho:
os bons sonhos que sonho, as plantinhas que planto,
a pureza, a alegria, as cantigas que eu canto,
e o meu verso se acaso houver nele arte e engenho.

Por um beijo eu lhe dou, se preciso, o meu pranto,
as angústias da luta em que há tanto me empenho,
as saudades que trago do chão de onde venho,
as promessas que eu faço, piedoso, ao meu santo.

Por um beijo eu lhe dou meus anseios de paz,
minha fé na ternura e no bem que ela faz,
meu apego à esperança, que insisto em manter.

Por um beijo, um só beijo, um momento de amor,
eu lhe dou meu sorriso, eu lhe dou minha dor,
o meu todo eu lhe dou, dou-lhe inteiro o meu ser!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Ode do Rio de Janeiro/RJ

Millor Fernandes
(Milton Viola Fernandes)
1923- 2012

ODE A UM QUASE CALVO

Ontem, hoje
e amanhã
o homem o cabelo parte
parte o cabelo com arte
até que o cabelo parte.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Canoas/RS

Mari Regina Rigo 

SINAIS

No mundo da poesia 
Todos nós somos iguais. 
Loucos de amor 
Mas só mostramos os sinais. 

Nos alimentamos de quimeras 
E assim vamos atravessando 
Várias eras. 

Nascer e viver, sonhar e amar 
Lutar para merecer 
Crer e sobreviver. 

Para dizer que a lua é tua 
É só passear pela rua 
De mãos dadas com seu amor. 

As palavras são apenas sinais 
De sentimentos iguais 
À todos os mortais. 
Homem, poeta e trovador.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Epigrama do Rio de Janeiro/RJ

Alberto Ramos
Pelotas/RS, 1871 – 1941, Rio de Janeiro/RJ

De tônico e tintura este vate usa e abusa.
Não há filtro capaz de redourar-lhe a musa.
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Poema do Rio de Janeiro/RJ

Amaury Nicolini

FOTOGRAFIAS

Olhando o álbum de fotografias
eu não vejo retratos, vejo dias
que já não voltam mais.
Insuspeitada máquina do tempo,
cada página de fotos é exemplo
de outros aniversários e Natais.
Vejo que algumas ficam desbotadas,
depois de muitas páginas viradas
que as fizeram perder-se na distância.
E aquilo que ontem foi tão importante,
e mereceu ficar gravado num flagrante,
hoje não tem sequer mais importância.
Este álbum é a janela que o passado
abre, para o olhar do pensamento,
nos sótãos e porões da eternidade.
E o que ficou nas fotos registrado
e vai viver outra vez nesse momento
será o que chamamos de saudade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Quadra Popular

Não penses que pela ausência
eu de ti me hei de esquecer;
quanto mais longe estiver,
mais firme te hei de ser.
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Soneto de Ilhavo/ Portugal

Domingos Freire Cardoso

SÓ SE CHORA POR QUEM PARTE
 
Choremos por quem parte sem voltar
A ser presença viva à nossa mesa
E desse imenso reino da tristeza
Desça à terra num raio de luar.

Ausente, para sempre, em nosso olhar
Terá em nosso peito a fortaleza
Que guarda a delicada vela acesa
Da memória que brilha em seu altar.

De saudade será a sua imagem
Que se esvai como um barco na viagem
No denso nevoeiro, rumo ao norte.

Só quando a sua face tão inteira
Não nos assomar, sem que a gente queira
Só então foi levada pela morte.
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Trova Humorística de São Paulo/SP

Izo Goldman
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Ficou rico o Zé Maria
na seca do Juazeiro,
vendendo "fotografia
de chuva"...por "dois cruzeiro"…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Glosa de Porto Alegre/RS

Gislaine Canales
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

NOSSA GUERRA DE AMOR...

MOTE:
Ah, o amor...O amor fascina,
quando na cama o combate
triunfalmente termina
num belo e gostoso empate!
A. A. de Assis
(Maringá/PR)

GLOSA:
Ah, o amor...O amor fascina!
Sempre tontos de emoção,
estouram, a adrenalina,
nossos beijos de paixão!

É quase uma guerra fria,
quando na cama o combate
usa as armas da euforia
e com elas se debate!

Com gemidos em surdina
a guerra do amor se faz...
Triunfalmente termina
na calmaria da paz!

Nessa luta incontrolada,
ninguém exige resgate,
e ela é sempre terminada,
num belo e gostoso empate!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Haicai de Pedro Leopoldo/MG

Wagner Marques Lopes

Passa o tempo frio.
É pé... Mais pé de aguapé
que acoberta o rio.
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Soneto de São Fidélis/RJ

Antonio Manoel Abreu Sardernberg

APOTEOSE

Na bruma densa de um mar revolto,
Em manhã fria de um inverno intenso,
Sinto um medo aprisionado e envolto
Na cena fria de um terror imenso.
 
As ondas fortes entram pela praia
Lambendo a areia fina e cristalina,
A espuma branca vem beijar a saia
Já desbotada da pobre menina.
 
Do céu pesado com nuvens escuras
Faíscam raios, vêm as trovoadas,
As gaivotas fogem em revoadas...
 
E os meus olhos saem à procura
Do Criador, o nosso Deus Supremo,
Na apoteose de um pavor extremo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Quadra de Portugal

Agostinho da Silva
(George Agostinho Baptista da Silva)
Porto, 1906 - 1994, Lisboa

Tudo o que faço na vida
é só linha de poema
que cada um ordenará
conforme for seu esquema.
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Poema de Curitiba/PR

Paulo Walbach Prestes
1945 – 2021

MEU ESPELHO

Vejo meu espelho, todo estilhaçado,
Que surpresa!... Como isso aconteceu?...
O meu rosto...  vejo tão transfigurado:
Foi o tempo, grande obreiro, quem teceu.

Traços profundos; um olhar apagado
Dum ser que passou pela vida e viveu...
Assim mesmo, valha Deus! Muito abençoado...
Que apesar dos estilhaços – cresceu!

Retornei  -  Ele não estava quebrado...
Que surpresa!... Como isso aconteceu?...
Não foi ele...  E o que deixou marcado?
Foi o tempo. Foi a vida. Ou fui eu...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia de Goiânia/GO

Eurípedes Rodrigues da Costa

amanhã
virá
minha
voz
ouvirão
agora
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Galope à Beira-Mar*, de Limoeiro do Norte/CE

Luciano Maia

Cantor das coivaras queimando o horizonte,
    das brancas raízes expostas à lua,
    da pedra alvejada, da laje tão nua
    guardando o silêncio da noite no monte.
    Cantor do lamento da água da fonte
    que desce ao açude e lá fica a teimar
    com o sol e com o vento, até se finar
    no último adejo da asa sedenta,
    que busca salvar-se da morte e inventa
    cantigas de adeuses na beira do mar.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

* Galope à beira-mar foi criado pelo repentista cearense José Pretinho. Conta-se que ele, após perder um duelo em martelo agalopado, foi retirar-se à beira-mar, e ali, vendo e ouvindo o marulho, imaginou o som de um galope. E fez os versos de onze sílabas (hendecassílabos), com a mesma estrutura de décima (estrofe de dez versos). Manteve o esquema rímico ABBAACCDDC usual no martelo agalopado. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Galope_%C3%A0_beira-mar)

Possui estrofes com dez versos de onze sílabas poéticas, com as tônicas na segunda, quinta oitava e décima primeira sílabas poéticas, obedecendo às mesmas regras de rima da décima, sendo que também é mais comum no repente e a última estrofe deve terminar com “mar”. (http://acorda.net.br/?page_id=1061)

Recordando Velhas Canções (Trem das Onze)


Compositor: Adoniran Barbosa

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar

Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora, às onze horas
Só amanhã de manhã

Além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar
Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar
Não posso ficar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Saudade e o Trem das Onze: Uma Viagem pela Canção de Adoniran Barbosa
A música 'Trem Das Onze', composta e interpretada pelo icônico Adoniran Barbosa, é um clássico do samba paulista que retrata de maneira singela e bem-humorada as vicissitudes do cotidiano dos moradores dos subúrbios de São Paulo na década de 1960. A letra da canção revela a história de um homem que, por morar longe, precisa se despedir de seu amor para não perder o último trem para casa. A narrativa é simples, mas carregada de significados que vão além da preocupação com o horário do transporte.

O personagem central expressa um conflito entre o desejo de permanecer com a pessoa amada e as obrigações familiares e sociais. A menção à mãe que não dorme enquanto ele não chega e o fato de ser filho único e ter que 'olhar a casa' são elementos que demonstram o peso da responsabilidade familiar. Essa dualidade entre o amor e o dever é um tema recorrente na música popular brasileira e reflete a cultura de uma época em que os laços familiares exerciam grande influência sobre as decisões pessoais.

Adoniran Barbosa, conhecido por sua habilidade em capturar a essência da vida paulistana em suas letras, utiliza a metáfora do trem para falar sobre as despedidas, as escolhas e o tempo que não espera por ninguém. 'Trem Das Onze' não é apenas uma música sobre um trem específico de São Paulo, mas também sobre a universalidade das experiências humanas, a saudade e a necessidade de priorizar aspectos da vida que, muitas vezes, estão em conflito. A canção permanece atemporal e querida, ressoando com qualquer um que já tenha sentido o aperto no coração ao dizer adeus, mesmo que por uma noite.

Coelho Neto (O anjo)

A noite, profundamente escura e fria, atravessada de vento, atroava o fragor de ramagens estortegadas
(torcidas) e de águas precipitosas que se desenhavam, aos jorros, pelos algares. Nas chãs ainda o trânsito era fácil, sem o vareio da ventania que repulsava os caminhantes, como a impedir-lhe a marcha; mas nas gargantas, entra alcantis, as lufadas, abocanhando à entrada, esfuziavam desabridas, uivando com a fúria de alcateias famintas em ronda ceva (farta), a faiscar redis (currais).

Todas as estrelas haviam-se apagado, apenas rutilava, enorme, como lumaréu de vigília em torre, a que surgira e brilhava sobre Belém.

Os passos estrepitavam nos seixos, estalavam nas folhas e no ramalho seco.

Um ramo que bulisse, o lento defluir de um fio d’água por entre pedras levantavam ruídos temerosos.

Às vezes José detinha-se, hesitando na bifurcação de duas trilhas, mas pouco durava a dúvida porque uma das veredas enegrecia ainda mais, ao passo que a outra rutilava fúlgida, como calçada a diamantes, oferecendo-se, clara e segura, aos peregrinos.

Como entrassem em sinuosa e augusta passagem murada de rochas anfractuosas (sinuosas), eriçada de agaves e ecoando como o âmbito de uma caverna, ouviram leve, frouxo ruído como de esfolar de asas.

Uma águia, talvez, que acordara em alguma tensão e de pé, atenta, alargando as asas, ficara em atitude hostil pronta a arremeter em defesa do ninho.

O patriarca, acolhendo a esposa meiga, cujas faces pareciam de neve, apertou com força o cajado e levantou os olhos.

Maria, sentindo o perigo, tartamudeou, tímida e trêmula, uma oração ao Senhor. O receio de um ataque em sítio tão desolado, longe de toda habitação, onde nem choça de pegureiro havia, deteve o homem.

Os corações batiam. Nela era o pavor do desconhecido, o grande medo trágico das sombras do Scheol (região dos mortos), que erram, à noite, pelos descampados; nele era o temor por ela.

Não falavam, de olhos muito abertos, quietos, imóveis como os rochedos que os emparedavam.

De repente um clarão fulgurou. A passagem iluminou-se, as pedras cintilaram e as palmeiras dos cardos ficaram como de prata. E eles viram uma grande luz à flor da terra e clareando as rochas.

Aves despertando galreavam (papagaiavam) festivamente o canto da madrugada.

Levantando o olhar, viram os dois a fonte do esplendor. Era um anjo que os precedia, ora trilhando os caminhos, ora voando acima das rochas, pousando nos alcandores (cumes) quando o lento e fatigado andar de Maria retardava a marcha.

A virgem sorria de enlevo e José, tolhido de emoção, não se atrevia a encarar o guia resplandecente, cujo reflexo abria na terra um clarão de luar. E as asas ruflavam docemente no silêncio.

A virgem reconheceu no anjo o mancebo que a saudara com as palavras misteriosas, cuja promessa cumpria-se e José reviu o divino emissário que lhe aparecera em sonho, sob a figueira do horto, defendendo a inocência de Maria, em cujo seio, como em corola de flor, a Graça perpassava em gênese imareável, fecundando-o como o sol fecunda a leiva (campo lavrado), eternamente pura.

Fonte: Coelho Neto. Mistério do Natal. Publicado originalmente em 1911, 
Disponível em Domínio Público 

domingo, 19 de maio de 2024

Isabel Furini (Poema) 60: A menina e as flores

 

José Feldman (Á Guisa de Explanação)

Eu sempre tive um problema (dádiva ou maldição?). Não me contento com pouco. No sentido de divulgar os literatos. Desde quando comecei o blog em 2007, quem vem acompanhando, percebe que ele tem aumentado de tamanho (hoje são mais de 19 mil publicações, com dezenas de milhares de trovas, poesias, contos, etc). É muita gente, e pior, ou será melhor? Muita gente de valor. Desde quando entrei no “campo” trovadoresco, lá pelos idos de 1991, mais especificamente, quando recebi meu certificado da Oficina A Hora da Trova, na Casa Mario de Andrade, em São Paulo, das mãos do seu coordenador, mais tarde um grande amigo e incentivador meu, o falecido Izo Goldman, deixei de ser um rosto perdido na multidão. 1991… são 33 anos transcorridos. A quantidade de amigos/as, amigos/as-irmãos/as que nunca sonhei em ter nos meus 37 anos vividos anteriores, multiplicou-se a uma progressão geométrica nos últimos 33 anos. É… a trova faz amigos, mais… faz-nos ver que não somos apenas um número a mais, e que cumprimos um papel importante neste mundo imenso. Também fazemos inimigos, mas quem não os têm? Mas vale a pena. São muitos nomes, entre poetas, trovadores e escritores. Este ano, em setembro completo 70 anos, estimando que se seguir os passos de minha mãe, já falecida, viva pelo menos mais 23, não vai dar para colocar todos, então espero me perdoe se seu nome não estiver em destaque, não será por má vontade, mas pela quantidade enorme de nomes deste imenso Brasil, de Portugal e outros países.

George Sand* (As moças de Berry)

 Eu tenho uma moça, então duas,
Que não tem boca nem olhos;
Tenho três, então quatro,
Eu bem que queria resisti-las.
Eu tenho cinco, então seis,
Quem não quer seus beijos?
Por trás veio a sétima,
Nunca vi a oitava.

Verso antigo relembrado por Maurice Sand.

As moças de Berry parecem-nos primas das Milloraines da Normandia, que o autor de “Fantasias da Normandia” descreve como seres de tamanho gigantesco. Elas ficam paradas e sua forma, muito pouco distinta, não permite discernir seus membros ou seu rosto. Quando nos aproximamos, elas fogem por uma sucessão de saltos irregulares muito rápidos.

Estas moças ou jovens podem ser de diversos países. Eu não acredito que sejam de origem gaulesa, mas sim francesa, da Idade Média. De qualquer forma, vou relatar uma das lendas mais completas que consegui através de um de seus relatos. 

Um senhor de Berry, chamado Jean de La Selle, que viveu no século passado em um castelo localizado nas profundezas da floresta de Villemort. O camponês, triste e selvagem, comemora um pouco na orla da mata, onde a terra seca, plana e coberta de carvalhos, desce em direção a prados que dão em uma série de pequenos lagos que hoje em dia estão mal cuidados.

Já no momento de que falamos, as águas ficavam nos prados do senhor de La Selle, o bom cavalheiro não tendo muito o que fazer para limpar as suas terras. Tinha uma extensão bastante grande, mas de qualidade escassa e de pouco valor. No entanto, ele viveu feliz, graças aos gostos modestos e um caráter sábio e alegre. Seus vizinhos estavam sempre à sua procura devido ao seu temperamento agradável, bom senso e paciência na caça. Os camponeses daquele domínio e arredores o consideravam um homem de bondade extraordinária e de rara delicadeza. Dizem que ele preferiria que sua camisa ficasse permanentemente grudada em seu corpo e seu cavalo entre suas pernas a prejudicar um vizinho.

No entanto, aconteceu que, uma noite, o senhor de La Selle tendo estado em Berthenoux para vender um par de bois, voltava tranquilamente, escoltado por seu meeiro, o grande Luneau, que era um homem fino e educado, carregando na garupa esguia de sua égua cinza a soma de seiscentas libras em grandes moedas planas com a efígie de Luís XIV. Era a soma pelo gado vendido.

Como um bom senhor do campo que era, o senhor de La Selle havia jantado na taberna e, como não gostava de beber sozinho, fez o grande Luneau sentar-se à sua frente e serviu-lhe o vinho sem poupar, a fim de deixá-lo à vontade.

Tanto é que o vinho, o calor e o cansaço do dia e, acima de tudo, o trote rítmico da égua cinza tinha adormecido Monsieur de La Selle, e ele chegou em casa sem saber por quantas horas havia andado ou o caminho que havia seguido. Cabia a Luneau conduzi-lo, e Luneau o dirigira bem, pois chegaram sãos e salvos; seus cavalos não tinham o lombo molhado.

Bêbado, o senhor de La Selle não estava. Em sua vida, ninguém o tinha visto sem fazer sentido. Assim que se levantou, disse ao criado que levasse a mala para o seu quarto, depois conversou muito razoavelmente com o grande Luneau, deu-lhe boa-noite e foi para a cama sem dificuldades para encontrá-la. Mas no dia seguinte, ao abrir a mala para pegar o dinheiro, encontrou apenas pedras grandes e, após buscas inúteis, foi forçado a perceber que haviam sido roubados.

O grande Luneau, chamado e consultado, jurou por sua crisma e seu batismo que tinha visto o dinheiro contado na mala, que ele carregou e amarrou nas costas da égua. Também jurou por sua fé e pela lei que ele não havia deixado seu mestre sozinho desde que entraram na estrada principal. Mas confessou que, ao entrar na floresta, sentiu-se um pouco sonolento e conseguiu dormir em seu cavalo por cerca de um quarto de hora. De repente, ele se viu perto da Gâgne-aux--Demoiselles e, desde aquele momento, não tinha dormido e não havia visto nenhuma alma cristã.

— Vamos — disse o senhor de La Selle —, algum ladrão deve estar rindo de nós. A culpa é ainda mais minha do que sua, meu pobre Luneau, e o mais sábio é não se gabar. O prejuízo é só meu, já que você não participou da venda do gado. Eu saberei como me decidir, embora o assunto me incomode um pouco. Isso vai me ensinar a não adormecer a cavalo.

Luneau queria em vão levantar suspeitas de alguns caçadores pobres que estavam no lugar.

— Não, não — respondeu o bravo escudeiro. — Não irei acusar ninguém. Todos na vizinhança são honestos. Não falemos mais nisso. Eu tive o que mereci.

— Mas talvez você esteja um pouco bravo comigo, mestre...

— Por ter dormido? Não, meu amigo; se eu tivesse lhe dado a mala, eu tenho certeza de que você teria ficado acordado. Eu só culpo a mim, e minha fé, não pretendo me punir por isso. É o bastante ter perdido o dinheiro, vamos guardar nosso bom humor e apetite.

— Se você acredita em mim, no entanto, mestre, você deveria procurar em Gâgne-aux-Demoiselles.

— Gâgne-aux-Demoiselles é uma vala que tem cerca de meio quarto de légua de comprimento; não seria fácil remexer toda aquela lama, e além disso, o que encontraria lá? Meu ladrão não teria sido tão tolo a ponto de atirar minhas moedas lá!

— Você pode dizer o que quiser, mestre, mas o ladrão talvez não seja como você pensa!

— Ah, meu grande Luneau, você também acredita nas jovens que são espíritos malignos que gostam de pregar peças!

— Eu não sei, mestre, mas eu estive lá uma manhã, em plena luz do dia, com meu pai, nós as vimos como vejo você agora; ao mesmo tempo, voltamos para casa com muito medo, sem chapéus, nem gorros em nossas cabeças, nem sapatos em nossos pés, nem facas em nossos bolsos. Elas são muito espertas! Parecem fugir, mas, sem te tocar, te fazem perder tudo que conseguem pegar e se beneficiam disso, porque ninguém encontra suas coisas outra vez. Sim, se eu fosse você, drenaria todo aquele pântano. Seria melhor para você e as jovens logo sairão de lá; já que é de conhecimento de todo homem de bom senso que elas não gostam de lugares secos e que vão de lagoa em lagoa, à medida que a névoa da qual se alimentam é removida.

— Meu amigo Luneau — respondeu o senhor de La Selle —, secar o pântano certamente seria um bom negócio para o prado. Mas, além das seiscentas libras que perdi, nunca tive nenhum motivo para desalojar as jovens. Não é que eu acredite nelas precisamente, já que nunca as vi, nem qualquer outra criatura parecida; mas meu pai acreditava um pouco nisso, e minha avó acreditava completamente. Quando conversamos sobre isso, meu pai disse: “Deixe as moças em paz; elas nunca me fizeram mal, nem a ninguém.” E minha avó costumava dizer: “Nunca atormente ou invoque as moças; sua presença é boa para a terra, e sua proteção é um amuleto de boa sorte para uma família”.

— Por isso mesmo — retomou o grande Luneau, acenando com a cabeça. — Elas lhe roubaram!

Cerca de dez anos depois desta aventura, senhor de La Selle voltou da mesma feira de Berthenoux, trazendo de volta a mesma égua cinza, já muito velha, mas ainda trotando sem vacilar, com uma soma equivalente àquela que lhe fora roubada de forma tão singular. Desta vez ele estava sozinho, o grande Luneau havia morrido há vários meses; e nosso senhor não dormiu a cavalo, tendo renunciado e perdido definitivamente este hábito importuno.

Quando ele estava na orla da floresta, ao longo da Gâgne-aux-Demoiselles, que está localizada na parte inferior de uma encosta bastante alta e toda coberta de arbustos, velhas árvores e grandes gramíneas silvestres, o senhor de La Selle foi tomado de tristeza ao se lembrar de seu pobre fazendeiro inquilino, sentindo sua falta, embora seu filho Jacques, alto e magro como ele, e assim como ele prudente e astuto também, parecia fazer o seu melhor para substituí-lo. Mas não podemos substituir velhos amigos, e o senhor de La Selle também estava envelhecendo.

Ele foi tomado por pensamentos sombrios; mas sua boa cabeça logo os dissipou, e ele começou a assobiar uma melodia de caça, dizendo a si mesmo que, como em sua vida e em sua morte, seria o que Deus quisesse.

Quando estava aproximadamente no meio do comprimento do pântano, foi surpreendido ao ver uma forma branca, que até então ele havia tomado por aqueles vapores com os quais as águas paradas são cobertas, mudam de lugar, depois saltam e voam para longe, dissipando-se por entre os galhos. Uma segunda forma mais sólida emergiu dos juncos e seguiu a primeira, estendendo-se como uma tela flutuante; depois uma terceira, depois outra e mais outra; e, ao passarem pelo senhor de La Selle, tornaram-se vultos tão visivelmente enormes, vestidos com saias longas e claras, com cabelos esbranquiçados arrastando em vez de esvoaçantes atrás delas, de tal forma que ele não conseguiu sair dali.

Estes eram os fantasmas sobre os quais ele tinha ouvido falar quando criança. Assim, esquecendo-se do que sua avó o recomendara, de que se algum dia se deparasse com elas deveria agir como se não as visse, passou a saudá-las como o homem educado que era. Cumprimentou a todas, e quando chegou à sétima, que era a maior e mais visível, não pôde deixar de dizer a ela: “senhora, estou ao seu dispor”.

Mal proferiu esta frase, a jovem alta apareceu na garupa atrás dele, abraçando-o com os dois braços, frios como o amanhecer, e a velha égua cinzenta, apavorada, saiu a galope, carregando o senhor de La Selle pelo pântano.

Embora muito surpreso, o bom cavalheiro não perdeu a cabeça. “Pela alma de meu pai”. Ele pensou. “Nunca fiz nada de errado e nenhum espírito pode me machucar”. Ele segurou firme as rédeas e forçou a égua para fora da lama. Lutou, enquanto a jovem parecia tentar detê-lo e desviar a égua.

O senhor de La Selle tinha pistolas em seus invólucros, e ocorreu-lhe a ideia de usá-las; mas, julgando que se tratava de um ser sobrenatural e lembrando-se além disso que seus pais o haviam recomendado não ofender as donzelas da água, contentou-se em dizer gentilmente: “Realmente, linda senhora, deveria me deixar seguir meu caminho, pois não cruzei o seu para incomodá-la, e se a cumprimentei, foi por educação e não por escárnio. Se você quiser orações ou missas, torne seu desejo conhecido e, palavra de um cavalheiro, você as terá!”

Então o senhor de La Selle ouviu uma voz estranha acima de sua cabeça dizendo: “Mande rezar três missas pela alma do grande Luneau e vá em paz!”

Ele pensou então que tinha tido uma visão; no entanto, ordenou as três missas. Mas qual não foi sua surpresa quando, abrindo a mala, encontrou ali, além do dinheiro que recebera na feira, as seiscentas libras em moedas planas, ostentando a efígie do falecido rei.

Elas queriam dizer que o grande Luneau, arrependido na hora da morte, havia pedido para que seu filho Jacques fizesse essa restituição, e que este, para não manchar a memória de seu pai, havia solicitado que as jovens o fizessem. O senhor de La Selle nunca permitiu que nenhuma palavra fosse dita contra a probidade do falecido, e quando essas coisas eram faladas sem respeito em sua presença, ele costumava dizer: “os homens não podem explicar tudo, talvez seja melhor aqui estar sem censura do que sem fé”.
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* Biografia
George Sand (pseudônimo de Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa de Dudevant) nasceu no dia 1 de julho de 1804, filha de Maurice e Sophie Dupin. Seu pai faleceu quando ela era ainda criança, após uma queda de cavalo, quando acompanhava o príncipe Murat em campanhas armadas. Amandine é então mandada para Nohant, aos cuidados de sua avó, Marie-Aurore de Saxe. Sua avó era neta do célebre Marechal de França, o conde Maurício de Saxe, sendo este, filho bastardo de Augusto II, rei da Polónia e de Saxe, e da sua amante, a condessa Maria Aurora von Königsmark.

Durante sua infância, ao lado de sua avó, Amandine passava os dias brincando e descobrindo cada canto da propriedade de Nohant com seu meio-irmão Hippolyte Chatiron (filho do seu pai com uma amante da região), companheiro e parceiro em todas as suas aventuras e travessuras. Os dois estudavam em casa com um preceptor, quando não desapareciam nas profundezas da região. Sua avó preocupada com a educação e o comportamento de sua neta, a matriculou no Couvent des Anglaises em Paris e enviou Hippolyte para uma grande escola de cavalaria de uma cidade vizinha. Acontece que a menina se apaixonou pela vida silenciosa e introspectiva que levava dentro das paredes de pedra do convento e desejou ser freira. Lá, se interessou também por música e teatro e para alegrar suas amigas, decidiu criar pequenas peças de teatro e montar um grupo de meninas para representá-las.

As peças eram um sucesso, e Amandine gostava cada vez mais da vida no convento. Sua avó sabendo disso, levou a neta de volta a Nohant. De volta ao convívio com Aurore de Saxe, ela começou a compreender e amar cada vez mais a sua avó e quando esta morreu, pouco tempo depois, Amandine sofreu muito. Para que herdasse Nohant seria preciso que se casasse, assim, pouco tempo depois, ela se casou com François-Casimir Dudevant, em 1822. Desse casamento nasceram dois filhos - Maurice e Solange. Essa união, devido a infidelidades e alcoolismo de Casimir, desencadeou incontáveis problemas, culminando com o divórcio - fato incomum para a época - em 1836.

George começou a escrever para o jornal Le Figaro, com a colaboração de Jules Sandeau. Usavam, então, o pseudônimo de Jules Sand – inspirado no nome de Sandeau. Em 1831, lançaram o livro Rose et Blanche. Passou a usar o pseudônimo de George Sand em 1832, quando escreveu, sozinha (obrigada a usar um pseudônimo masculino, para ser aceita no meio literário), o romance Indiana, seu primeiro livro, seu primeiro sucesso. De 1832 a 1837, escreveu muitos outros romances, que invariavelmente eram publicados, primeiramente, como folhetins no jornal. Esses romances refletiam seus próprios desejos e frustrações, advogando o direito da mulher de ter um amor sincero e dirigir sua própria vida.

Além de seus comentados relacionamentos, Sand também tinha outros hábitos incomuns para sua época. Vestia-se com roupas masculinas por diversão ou praticidade e comodidade (como dizia). Também tinha o costume de fumar em público num tempo em que isso era inaceitável para uma mulher. Comentava-se, ainda, sobre a grande quantidade de obras que produzia como sendo uma característica pouco feminina.

George Sand teve uma vida amorosa agitada, com paixões que a influenciaram consideravelmente, como o escritor Jules Sandeau, que lhe deu o pseudônimo literário, o poeta Alfred de Musset, o advogado Michel de Bourges (entre 1835 e 1837), que a converteu aos ideais republicanos e socialistas, o músico Frédéric Chopin, a quem esteve ligada entre 1838 e 1847 e seu último amante Alexandre Manceau, gravador e dramaturgo. Depois de Jules Sandeau e antes de Alfred de Musset, teve também uma breve aventura com o escritor e arqueólogo Prosper Mérimée.

De 1838 a 1845, Sand expressou suas preocupações com os problemas sociais em romances como Consuelo (1842-1843) e O Companheiro da Viagem pela França (1840). Sonhava com um mundo em que o amor fraterno unisse as classes sociais. Teve participação ativa na revolução de 1848. De 1846 a 1853, escreveu romances leves, idealizando a vida nas províncias francesas. Estes incluem Francisco, o Bastardo (1847-1848), A Pequena Fada (1849) O Charco do Diabo (1846), Mauprat, 1837, entre tantos outros de igual sucesso. Finalmente, de 1854 a 1876, escreveu contos simples, à maneira das histórias de fadas. Desse período destaca-se Contos de uma Avó (1873), com histórias que ela escreveu para seus netos.

Os personagens de George Sand e suas histórias são invariavelmente repletos de ingenuidade, poesia e otimismo. Como dizia a escritora: "O romance não precisa ser necessariamente a representação da realidade." Ela faz parte também dos escritores políticos, contando em sua obra mais de 70 títulos, entre novelas, contos, peças de teatro e textos políticos. Suas memórias constituem suas obras de maior interesse, especialmente A História de Minha Vida (1854-1855) e Ela e Ele (1859), referência à sua ligação com Alfred de Musset

George Sand faleceu no dia 8 de junho de 1876, em Nohant, na França. Alguns dos seus romances se transformariam em filmes e séries de tv, como: Mauprat (1926), Mauprat (1972), os belos cavalheiros da Floresta Dourada (1976), A pequena fada (2004), O charco do diabo (1972), As crianças do século (1999), entre outros. Seus romances continuam a serem versionados para o teatro e realizados muitos filmes e livros sobre sua vida, assim como grupos de estudo sobre ela, seu tempo e sua obra.

Considerada a maior escritora francesa e a primeira mulher a viver de direitos literários, sua propriedade em Nohant foi doada ao governo francês, por sua neta Auror e está aberta à visitação pública - Maison de George Sand. Seus restos mortais e de quase toda a sua família estão no pequeno cemitério ao lado de sua casa em Nohant. (https://pt.wikipedia.org/wiki/George_Sand

Fonte: George Sand. Lendas Rústicas. Publicado originalmente em 1858. 
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