segunda-feira, 1 de julho de 2024

Aluísio de Azevedo (Uma lição)

Era uma saleta ao lado de uma sala de jantar; ao fundo um reposteiro corrido com ares burocráticos; ao centro uma banquinha de charão, conspurcada de cinza de charuto e nicotina diluída em saliva. É noite e a luz que vem de cima, transbordando de um globo de gás, iluminando o grupo de três velhotes, mais ou menos barrigudos, que conversavam em voz baixa e com voluptuoso interesse.

Um deles acabou de contar alguma coisa que ainda faz rir aos outros dois. E, tal é o riso, que os três amigos, segurando cada qual a competente barriga com ambas as mãos, deixam-se cair para as costas do sofá e arfam ao som uniforme da mesma gargalhada.

– Ora o Silveira …. Ora o nosso Silveira!… dizia um, aproveitando as curtas intermitências da hilaridade. Não sabia, desembargador, que você em rapaz fora tão levado! Ora o demo!

O desembargador, limpando as lágrimas do riso, ia talvez contar mais alguma das suas, quando o terceiro velhote segredou ao grupo:

– Homem, deixe lá falar! Todos nós pagamos o nosso dízimo ao diabo! Aqui onde me veem, pai de dois filhos homens, avô por aí naturalmente, e em vésperas de conselheiro do Estado; eu, acreditem, também tive as minhas rapaziadas…

Estas palavras acalmaram, como por feitiço, o riso dos outros dois, que se voltaram para quem as pronunciou, já dispostos a saborear a nova anedota.

– Uma ocasião, isto vai há coisa de uns trinta anos, – principiou o quase conselheiro - uma ocasião, recolhi-me para o meu quarto de estudante, um pouco apressado pelo mau tempo, quando dou com uma rapariga muito bem parecida, que vinha em sentido contrário e sem guarda-chuva.

Instintivamente parei defronte dela. O demônio da pequena tinha uns olhos!… Parei e logo em seguida retrocedi, acompanhando-lhe o passo.

Ela não deu resposta.

No fim de três minutos acrescentei:

– Por que não aceita o meu chapéu?… Não posso ver uma dama apanhar chuva deste modo!

– Obrigada. - volveu ela, sem me voltar o rosto.

E apressou o passo.

– Ingrata!

E apressei o passo também.

– Mau! – exclamou a perseguida, estacando em frente de mim e desferindo-me um olhar, tão sobranceiro, imponente e tão digno, que eu abaixei as pálpebras e pedi-lhe perdão com um gaguejo.

– Não tive intenção de a magoar… disse. Vossa excelência apanhava chuva e entendi que era do meu dever oferecer-lhe uma parte do meu chapéu.

– E se eu fosse para muito longe?…

– A verdadeira cortesia não olha distâncias!…

Ela, ao que parece, compreendeu a sinceridade das minhas palavras, porque interrogou logo, desfranzindo o rosto:

– Foi então por mera delicadeza que…?

– Juro-lhe que sim, minha senhora. Uma vez, porém, que vossa excelência se julga ofendida, peço-lhe mil perdões e sigo de novo o meu caminho…

Nisto, uma formidável rajada de vento passou por entre nós, e a chuva recrudesceu tempestuosamente.

– E, para provar que não minto, acrescentei, entregando-lhe o chapéu, tenha a bondade de levá-lo, e depois me restituirá…

– E o senhor?…

– Ali! Eu moro muito perto, naquele sobrado de alugar cômodos. Vossa excelência fará o obséquio de remetê-lo para o nº 5. Aqui o tem.

Ela consultou o tempo, mediu-me de alto a baixo e depois, tomando uma resolução, disse:

– Não! Dê-me o seu braço e acompanhe-me ao canto da rua. Talvez apareça um carro.

Mal, porém, avançamos alguns passos, por tal forma recresceu a chuva, que era quase impossível prosseguir.

E esta?… – resmungou ela, muito contrariada. – Esta só a mim sucede!… A maldita chuva aumenta, e nada de aparecer um carro!…

Ao chegarmos à esquina, tivemos de parar defronte da grande enxurrada que cortava a rua. Não era possível ir mais adiante. De carro, nem sinal! As casas fechavam-se todas, se bem que não passasse de nove horas da noite; os relâmpagos repetiam-se num bruxulear elétrico, os trovões abalavam os prédios e faziam tremer os vidros gotejantes dos lampiões. Já ninguém se animava a afrontar o tempo; os próprios cães escondiam-se pelos batentes das portas trancadas.

E o meu belo par, muito impaciente, mordia os beiços e marcava compassos, espaçando a lama debaixo dos pés, sem dar palavra.

Eu também não dava.

Entretanto, não podíamos ficar ali: a peste da chuva crescia… crescia…

Em breve teríamos água até ao meio da canela. De vez em quando passava um carro, mas ao longe, com as rodas a levantar água, como as de um vapor.

– E agora?… – perguntou-me a desconhecida, com raiva.

Eu sacudi os ombros.

Decorreu mais um instante.

– Se vossa excelência quisesse…

– Quê?

– É verdade que não tenho mais do que um pobre quarto de estudante, todavia…

– Entrar numa república?… Ora!…

– Perdão! Não é uma república, minha senhora. Moro naquele sobrado; casa muito séria, ocupo um quarto da frente, e…

– Que não pensariam seus companheiros?

– Moro só, vossa excelência não seria vista, nem desacatada por ninguém…

– Ainda assim seria estúrdio!…

– Em todo o caso, sempre me parece mais razoável do que ficar aqui, com este tempo!… A chuva não durará toda a noite… eu poderia arranjar um carro, e…

– Diga-me uma coisa: O senhor dá-me a sua palavra de honra em como será cavalheiro?

– Oh! Minha senhora!…

– Jura que se portará condignamente comigo?… Jura que não me faltará ao respeito?…

– Dou-lhe minha palavra de honra!

– Bem. Aceito o seu convite. Estou certa de que o senhor não quererá desmerecer da confiança que me inspirou! E vamos, vamos que já me sinto resfriar até aos ossos!

Dei-lhe de novo o braço e voltamos ambos por onde tínhamos andado.

Na ocasião em que eu acendia a vela que costumava ficar atrás da porta da rua, a senhora ainda insistia, cravando-me um olhar muito sério!…

– O senhor promete então quê …

– Pode entrar descansada, minha senhora!

E as nossas duas sombras estenderam-se juntas pelo fundo esvazamento de corredor.

Chegamos ao primeiro andar, abri meu quarto, dei luz ao gás, ofereci uma cadeira à bela hóspede e fui buscar a um canto uma garrafa.

– Acho que vossa excelência fará bem em tomar uma gota de conhaque… – propus, enchendo dois cálices. – Está frio e talvez vossa excelência sinta os pés molhados.

– Não, os pés estão enxutos, trago galochas. Mas aceito.

Bebido o conhaque, a senhora começou a correr com os olhos uma silenciosa revista no aposento. Em seguida ergueu-se e foi, um pouco apavorada, contemplar de perto o meu esqueleto de estudo, que jazia pendurado ao fundo do quarto; depois encaminhou-se para a minha pequena mesa de trabalho, abriu os compêndios que aí estavam, fez uma careta de indignação à vista das gravuras de um tratado de fisiologia, que lhe caiu às unhas; e ficou muito espantada encontrando sobre o criado-mudo um revólver e um carregamento de balas inglesas.

– Isto então é o que se chama uma república?… – perguntou afinal, abrangendo com um gesto o que seus olhos lobrigavam.

E depois da minha resposta:

– Mora inteiramente só?!

– Inteiramente.

– E tem família?

– Em Minas.

– Ah! É da província. Está há muito tempo na corte?

– Há cinco meses.

– Apenas?…

E aproximou-se de mim.

– É exato. – disse eu - Ainda não conheço bem isto por aqui…

– Tem gostado?

– Nada posso dizer por enquanto. Minha vida tem sido tão pouco divertida… Saio de casa para as aulas, das aulas para o restaurante e do restaurante para casa. Ainda não tenho amigos…

– Deve então sentir muita saudade da família…

– Pudera! Vivi sempre em companhia dela, e agora, de um momento para outro, ficar assim tão só.. tão…

– Por que não mora com outros estudantes?

– Ainda não descobri um bom companheiro… Além disso, sou mesmo um pouco esquisito de gênio. Prefiro estar só.

– Ah! Mas há de ter algumas relações…

– Muito poucas, e essas poucas em consideração a meu pai.

– E por que não frequenta os teatros?

– Vou de vez em quando. Não posso perder noites seguidas: quero ver se faço dois anos em um só.

– Ah! é estudioso!…

– Não sou dos mais vadios…

– Bom será que continue assim. Esta cidade é muito perigosa para os rapazes…

– Ora! não é tanto como se diz… Eu, pelo menos, confesso que supunha outra coisa!… Sempre imaginei gozar no Rio de Janeiro uma vida mais divertida…

– Em que sentido?

– Em todos. A respeito de amores, por exemplo, sou de um caiporismo!…

– Creio que levantou o tempo!… – observou a senhora, afastando-se de mim escrupulosamente e lançando o olhar para a janela.

Eu supliquei perdão com um gesto de ternura e humildade.

– Tenha a bondade de ver se levantou o tempo. - exigiu ela batendo com o pé.

– Chove a cântaros! Ah! mas pode ficar tranquila, que eu sei respeitar a quem o merece.

Ela deixou-se cair numa cadeira, soltando um suspiro de resignação.

– Vossa excelência toma uma xícara de café?… - perguntei, indo buscar a máquina e a garrafa de espírito de vinho.

– Não se incomode por minha causa.

– Costumo fazer café todas as noites.

– Nesse caso…

– Tenho também requeijão e doce. Se vossa excelência quisesse… O que nos falta aqui é pão!

Ela sorriu à simplicidade destas palavras.

– E estou quase aceitando… – respondeu já de bom humor, e vindo assentar-se perto da mesa, depois de tirar o chapéu e o mantolete.

– Bem. Vou num instante arranjar o que falta!…

– Com este tempo? Não! não consinto!

– É um momento! Não me molho! Há uma confeitaria na esquina! Ora! quantas vezes não tenho feito o mesmo com tempo ainda pior!…

Ela tornou a sorrir.

– Quer ver?… – perguntei, lançando sobre a cabeça uma grande capa de borracha, sacando as botinas e as meias e enrodilhando as calças nos joelhos. – De um pulo estou lá e de outro cá!

Ela soltou uma risada.

Voltei daí a meia hora, não com os pães simplesmente, mas também com uma empada de camarões, uma galinha assada, alguns pastéis de Santa Clara, duas garrafas de Borgonha e outra de moscatel de Setúbal.

– Que é isto, Nossa Senhora! – exclamou a moça, largando o livro, que ficara a ler durante a minha ausência.

– Pareceu-me melhor cearmos juntos… Eu estou com tanto apetite!

– Que extravagância! Por isso é que vocês estudantes andam sempre atrapalhados no fim do mês!… Se esbanjam a mesada logo nos primeiros dias!…

– Mas eu faço nisto tanto gosto… Espero que vossa excelência aceitará uma asa desta galinha, que me parece deliciosa. Vamos! Arranja-se a mesa aqui mesmo.

– E eu posso ajudá-lo. - declarou a senhora, afastando os meus livros e os meus papéis para um canto do quarto.

– Tenha a bondade de não segurar o tinteiro desse modo. Está quebrado…

– Estes estudantes! Ainda chove muito lá fora?

– Chih! Horrorosamente! Um dilúvio!

– E eu aqui!…

– Não terá motivos para arrepender-se, verá! Bom! Agora, faz favor? Dê-me aqueles embrulhos que eu trouxe.

– Pronto!

– Obrigado.

– Três garrafas! -… Para que tanto vinho?

– Fica aí, se sobrar.

– Vocês!

– Muito bem! O diabo é que só temos um talher… Ah! posso arranjar-me com esta espátula e este canivete. Felizmente há dois pratos e não faltam copos. Principiemos!

– Isto contado não se acredita!

– Não sei onde esteja o mal!… Creio que não praticamos até agora nenhuma ação feia…

– Não digo que haja mal, nem que praticássemos ações feias, mas parece-me extraordinário, imprevisto pelo menos, achar-me neste momento ceando ao lado de um rapaz, que eu há duas horas não conhecia…

– Rapaz que procura merecer essa honra, esforçando-se para cumprir com os seus deveres de cavalheiro…

– O senhor como se chama?

– João Carlos do Souto. E a senhora?

– Não lhe posso dizer. Compreenderá que…

– Está claro, e não insisto.

– Espero mesmo que se algum dia nos encontrarmos noutro lugar, o senhor guardará toda a discrição sobre estas casualidades de hoje…

– Oh! Certamente, minha senhora!

– Sim, porque afinal de contas não me pesa na consciência o que sucedeu… Se não fosse esta maldita chuva!…

– Diga antes: esta chuva abençoada!…

– Mal! Não vá por esse caminho, que vai mal! Nada de galanteios!…

– Já aqui não está quem falou!

E calamo-nos os dois por um instante, a mastigar em silêncio, enquanto lá fora o vendaval esfuziava contra as janelas.

– Vossa excelência bebe tão pouco… não gosta de Borgonha?

– Gosto, e este me parece bem bom, mas não convém abusar. O senhor já tomou quase uma garrafa!… Cuidado!

– Ora, este vinho é inocente!

– Fie-se nisso!

– Quer mais um pouco?

– Vá lá!

– Além de que a chuva não parece disposta a parar tão cedo… Ainda sente muito frio?

– Já vai passando.

– Está aborrecida?

– Não. E a graça é que me chegou o apetite… Quer saber? Vou repetir a empada!

– É tão bom comer em companhia, não é verdade? E agora, são bem poucas as vezes em que eu não como sozinho!… Isto para quem estava acostumado com família!… Por meu gosto, casava-me…

– Já tem noiva?

– Qual!

– Podia ter deixado alguma na província…

– Ninguém me quer…

– É porque ainda é cedo; quando chegar a ocasião…

– Estarei velho…

– Velho? Tem graça. Que idade é a sua?

– Vossa excelência não acredita. Dezoito anos.

– Só?

– Mostro ter mais, não é?

– Parece ter vinte e tantos. Mas está criança; eu sim é que me posso chamar velha…

– Tem vinte, aposto!

– Acrescente mais cinco.

– Vinte e cinco… Ninguém dirá.

– E então que idade represento?

– Aí dezoito, quando muito…

– Lisonjeiro…

– Afianço-lhe que não sou…

E, com o pretexto de servir-lhe o doce, fui aproximando a minha cadeira da sua.

– Quê… Pois o senhor ainda vai abrir essa terceira garrafa?…

– Não nos havemos de servir de Borgonha para o doce…

– Não lhe faça mal!…

– Qual! Sou de cabeça muito forte!

– Então, à sua saúde!

– Obrigado. Toque!

– Sim; mas não precisa chegar-se tanto ….

– Eu não me estou chegando…

– Deixe-se disso! Lembre-se do que me prometeu!…

– Tem razão. Desculpe, e bebamos à saúde do feliz mortal que possui o seu coração…

– Não sei quem seja, mas acompanhado. Passe-me aquele queijo.

Em vez do queijo, o que lhe passei foi o braço em volta dos quadris, chamando-lhe a cabeça para junto dos meus lábios.

– Mau, mau, mau! – exclamou ela, defendendo-se– . O senhor parece que bebeu demais! Já não estou achando muita graça!

– Não são os vinhos que me embriagam… A senhora bem o vê.

– Não quero ver coisa alguma…

– Então, bem o sente…

– Não sinto nada!

– Adivinhe então, minha senhora, adivinhe o que não tenho ânimo de dizer, meu anjo!

– Ora bolas! Isso já passa de desaforo! solte-me! Se eu desconfiasse disto, não tinha entrado!

– Que queres?… A gente nem sempre se governa em certas ocasiões! És tão bela! Tão bela! Eu te amo! Sim! eu já te amo, minha flor!

E, como acompanhasse estas palavras com uma gesticulação em extremo correlativa, ela ergueu-se de improviso e fez menção de sair.

Alcancei-a já na porta do quarto e caí aos seus pés, envolvendo-a nos braços.

– Perdoa, perdoa, minha santa! – exclamara, a cobrir-lhe de beijos as duas mãozinhas, que nessa ocasião me pareciam mais bonitas, sem luvas.

– Perdoa! Sou um bruto, sou um grosseiro, mas…

– Quero sair! Já! Não fico aqui nem mais um instante! Deixe-me! Deixe-me!

– Pois sim, mas hás de sair depois de haver perdoado! Juro que estou arrependido do que fiz!

– Não sei! Deixe-me!

– Oh! Ainda chove tanto! Espere ao menos que chegue o carro que mandei buscar pelo caixeiro da confeitaria.

– Um carro?…

– Sim, e não deve tardar. É mais um segundo! Um segundo apenas!

– Mas se o senhor está com tolices!.

– Prometo não fazer nada!

– Jura!

– Juro!

– Ora, vamos a ver!

Acabamos de tomar café, quando a carruagem parou à porta.

– Ei-la aí! – disse a tirana pondo-se de pé.

– Ainda chove… – observei eu timidamente.

– Não faz mal!…

– Ao menos não se vá, fazendo de mim um juízo desfavorável, creia que…

– Não. Adeus. Não vou fazendo juízo algum! Adeus, obrigada!

– Jura que não está ressentida?…

– Pode ficar descansado. Adeus.

– Acredite que…

– Adeus!

– Não. Diga primeiro se ainda está contrariada! Com franqueza!

– Com franqueza – estou!

– Não me perdoa?…

– Não. Boa noite!

Acompanhei-a ao corredor e, já na porta da rua, ainda lhe pedi perdão.

***

Dois dias depois, entrando num hotel, habitado só por mulheres, fugiu-me da garganta um grito de pasmo:

– Que vejo?!... Pois é a senhora?! A senhora aqui?!

Ela soltou uma gargalhada e apontou-me com o dedo a três companheiras que lá se achavam.

– É o tal!…

– Ora esta!… – resmunguei. – Para que então me iludiu daquele modo?

– Iludi! Ó filho, eu estava no meu papel, fazendo o que fiz; tu é que não estavas no teu acreditando! Quem te mandou ser tolo?…

– É boa! – disse um dos velhotes. – É muito boa!

E as três barrigas tornaram-se a agitar nas convulsões do riso.

Fonte: Aluísio de Azevedo. Demônios. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Abismo de rosas)


Compositores: Canhoto e João do Sul

Ao amor em vão fugir
Procurei, pois tu
Breve me fizeste ouvir
Tua voz mentirosa, deliciosa...
E, hoje, é meu ideal
Um abismo de rosas
Onde, a sonhar, eu devo,
Enfim, sofrer e amar!
Mas, hoje, que importa
Se tu'alma é fria?
Meu coração se conforta
Na tua própria ironia!
Se há no meu rosto
Um rir de ventura,
Que importa o mudo desgosto
De minha dor, assim,
Sem fim?
Se minha esperança
O que não se alcança
Sonhou buscar,
Deve calar
Hoje o meu sofrer
E jamais dele te dizer.

O amor que é puro
Suporta obscuro,
Quase a sorrir,
A dor de ver
A mais linda ilusão morrer.
Humilde, bem vês que vou
A teus pés levar
Meu coração, que jurou
Sempre ser amigo e dedicado.
Tenha embora que viver
Neste sonho enganado,
Jamais direi
Que assim vivi
Porque te amei!
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O Abismo de Rosas: Amor, Dor e Ilusão

O grande violonista Canhoto tinha apenas 16 anos quando compôs "Abismo de Rosas", em 1905. A composição era um desabafo a uma decepção amorosa, pois o autor acabara de ser abandonado pela namorada, filha de um escravo. Canhoto realizou três gravações desta valsa: a primeira, com o nome de "Acordes do Violão", lançada no disco Odeon número 121249, em meados de 1916; a segunda, já como "Abismo de Rosas", no disco Odeon 122932, em 1925; e, finalmente, a terceira no disco Odeon 10021- a que fazia parte do suplemento de agosto de 1927, um dos primeiros da era da gravação elétrica no Brasil.

Ressalta nesta terceira gravação seu vibrato característico e inigualável, que ele tirava de um violão de corpo mais fino com braço não muito rígido. Peça obrigatória no repertório de nossos violonistas - de Dilermando Reis a Baden Powell -, "Abismo de Rosas" é considerada o hino nacional do violão brasileiro pelo professor Ronoel Simões, uma autoridade no assunto.

A música "Abismo de Rosas" é uma obra que explora a complexidade do amor não correspondido e a dor que ele pode causar. A letra começa com o eu lírico tentando fugir do amor, mas sendo inevitavelmente atraído pela voz mentirosa e deliciosa da pessoa amada. Essa contradição inicial já estabelece o tom de sofrimento e idealização que permeia toda a canção. O abismo de rosas é uma metáfora poderosa que representa um lugar de beleza e dor, onde o eu lírico se vê preso entre o sonho e a realidade, entre o sofrimento e o amor.

A segunda parte da letra revela a resignação do eu lírico diante da frieza da alma da pessoa amada. Mesmo sabendo que seu amor não é correspondido, ele encontra conforto na ironia dessa situação. A dor é constante, mas é mascarada por um sorriso de ventura, uma fachada que esconde o desgosto mudo e profundo. A esperança de alcançar o inalcançável é uma ilusão que o eu lírico decide calar, preferindo sofrer em silêncio a revelar sua dor à pessoa amada.

Na última parte da canção, o eu lírico expressa a pureza de seu amor, que suporta a dor quase a sorrir. Ele se humilha ao levar seu coração aos pés da pessoa amada, jurando amizade e dedicação, mesmo sabendo que vive em um sonho enganado. A humildade e a resignação são evidentes, e o eu lírico decide nunca revelar que viveu assim por amor. A música, portanto, é uma reflexão profunda sobre a natureza do amor não correspondido, a dor silenciosa e a ilusão que muitas vezes o acompanha. 
Fontes:

domingo, 30 de junho de 2024

José Feldman (Versejando) 142

 

Eduardo Martínez (Salustiano e Salazar, eternos rivais)

De tão antiga é essa história, não se tem notícia de que alguém ainda se lembre dos protagonistas. Na certa, os que a presenciaram já são tão velhos e a memória há tempos os abandonou. Se bem que o mais provável é que estejam todos escondidos debaixo da terra. 

Pois bem, quem me contou esse causo foi o Moacir, um septuagenário, que o ouviu do pai, o falecido Januário, cuja fama de amigo das inverdades ainda corre lá pelos lados do município de São Bento do Una, localizado no Planalto do Borborema, bem aqui no nosso lindo Pernambuco. E como a história é muito antiga, nem vou me preocupar em trocar os nomes dos envolvidos.

Salustiano e Salazar, dois amigos de idades parelhas, eram vizinhos desde os primeiros dias de vida. Apesar da amizade, a disputa sempre os acompanhou. Era uma coisa de saber quem era melhor nisso ou naquilo. Até discussão para saber quem era o mais bonito, mesmo que nenhum tivesse nascido com traços de um famoso contemporâneo, um tal Rodolfo Valentino. 

O imbróglio entre aqueles dois estava tão acirrado, que as competições andavam cada vez mais esdrúxulas. Uma delas, que parece que foi vencida pelo Salustiano, era a de quem conseguia comer jiló puro e cru. Isso, aliás, foi o estopim para que o perdedor lançasse um desafio.

— É, Salustiano, estamos ficando velhos. Não demora, a danada da Dona Morte aparece para puxar o pé da gente.

— Que coisa mais besta, Salazar! Homem que é homem vai ter medo da morte? Isso é coisa de gente frouxa!

— Ah, não? Então, você vai querer me dizer que não tem medo de morrer?

— Tenho nada! Sou é homem!

— Hum. Nem de defunto?

— Salazar, se eu não tenho medo de suçuarana, vou lá ter medo de gente que já morreu? Deixa de ser besta! Aqui é macho!

— Hum. 

— Tá duvidando?

— Hum. Então, que tal uma apostazinha?

— Que aposta?

— Cada um de nós vai ter que ir lá no cemitério e pregar um prego no portão. Mas tem que ser à meia-noite em ponto. 

— Combinado! Quem vai primeiro?

— Vamos tirar a sorte pra ver.

Salazar ficou aliviado por ter ganhado e, por isso, o amigo precisou ser o primeiro a cumprir a missão. O homem, mesmo com um frio percorrendo toda a espinha, tratou de não demonstrar medo. Disse que iria naquela mesma noite cumprir o trato. Salazar, desconfiado de falcatruas por parte do amigo, tratou de marcar o prego e o entregou a Salustiano.

Quase meia-noite, Salazar, na janela de sua casa, viu o amigo sair.

— Já vai, né?  

Como era julho, época de frio e o vento gritava que nem alma penada vagando em busca de redenção, Salustiano pensou em desistir. Que nada! Não tinha como. Pegou uma capa de frio com capuz, apertou o cinto para as calças não caírem, caso precisasse correr, e rumou na direção do cemitério. Olhos arregalados, começou a imaginar assombração. 

Quando chegou ao destino, pegou o prego no bolso da calça e, pouco antes de martelá-lo, ouviu o piar de uma coruja. Apavorou-se, mas conseguiu pregar o maldito prego.

Na manhã seguinte, Salazar foi procurar o amigo. Mas nada do Salustiano. Pensou até que ele estivesse dormindo o sono atrasado. Entretanto, como o dia prosseguiu sem notícias do companheiro, Salazar começou a desconfiar que Salustiano teria sido arrastado por algum espírito. Tanto é que, por volta das duas horas da tarde, rumou para o cemitério. 

Mal chegou, viu o amigo em pé no portão do cemitério. Salustiano estava com a face apavorada e disse para Salazar não se aproximar. 

— O que houve, Salustiano?

— Uma alma me pegou!

Salazar, sabendo que àquela hora do dia as almas estavam todas dormindo, se aproximou do amigo, quando começou a gargalhar. Salustiano, sem entender, continuou com o pavor estampado no rosto.

— Salustiano, mas você é burro mesmo! Você pregou a manga do casaco no portão.

Vereda da Poesia = 49 =


Trova Humorística, de São Paulo/SP

MARINA BRUNA
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP

"Dez filhos do mesmo leito?!"
pergunta o padre e ela fala:
"Acho que não, pois suspeito
que um é da rede da sala..."
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Poema da França

CARLOS EDMUNDO DE ORY 
Cádiz/ Espanha, 1923 - 2010, Thézy-Glimont/ França

Poema

Amo aquilo que arde
o que voa e se abre
o que enlouquece e cresce
o que salta e se move
aquilo que bebe os ventos
e é música e contato
o que é vasto e é casto
o que é milagre e perigo
e se espreguiça e respira
e viaja por capricho.
Amo viajar descalço.

(Tradução: Herberto Helder)
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Aldravia de Belo Horizonte/MG

ANGELA TOGEIRO

mente
jovem,
corpo
envelhecendo:
ninguém
merece!
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

JOÃO COSTA

Viajante do Tempo

Venho de longe, nos ombros trazendo
peso de vidas outrora vividas.
Venho de longe, venho de outras vidas,
tempo afora vivendo e revivendo.

De tempos idos, priscas eras idas
venho volvendo tempo-espaço, sendo
em cada ciclo (vivendo e aprendendo)
preparado para futuras vidas.

E sigo nesta contínua viagem
pelo que chamam tempo. Na bagagem
vou transportando infinitas memórias.

Venho de longe e vou rumo ao futuro
– destino infinito. Sigo seguro
de que ainda viverei muitas histórias.
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Trova Premiada  em Jambeiro/SP, 2003

ABÍLIO KAC 
(Rio de Janeiro/RJ)

Num dos rodeios da vida
conquistei o meu espaço...
Não pela prova vencida,
mas por vencer meu fracasso!
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Poema do Rio Grande do Sul

MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

A Torre Azul

É preciso construir uma torre
- uma torre azul para os suicidas.
Têm qualquer coisa de anjo esses suicidas voadores,
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas.
É preciso construir-lhes um túnel
- um túnel sem fim e sem saída
e onde um trem viajasse eternamente
como uma nave em alto-mar perdida.

É preciso construir uma torre…
É preciso construir um túnel…
É preciso morrer de puro,
puro amor!…
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Quadra Popular

Que cigarro tão cheiroso!
Me dê uma fumacinha.
Com a desculpa do cigarro,
sua mão pega na minha.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

FERNANDO FORTES
Carlos Fernando Fortes de Almeida
1936 – 2016

X

Tu finges que és feliz e em ti persiste
A miséria de todos os humanos
Se os anos da existência foram tristes
Não há por que ocultar teus próprios danos.

Fizeste pela vida tantos planos
E nenhum de teus planos construíste
Tudo aquilo que um dia possuíste
Foi poeira na estrada de teus anos.

A velha eternidade te carrega
No seu colo triunfal de fantasia
Mas foge o tempo e a morte ainda não chega.

Buscas a Deus e o mesmo Deus te nega
O coração do céu que se anuncia:
Pois Deus existe mas jamais se entrega.
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Trova de Curitiba/PR

VANDA ALVES DA SILVA

Na vida vivo tentando
tornar meu mundo risonho,
pois a tristeza vem quando
existe ausência de um sonho.
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Poema de Belo Horizonte/MG

ROGÉRIO SALGADO

Conceito
para Otávio de Campos

Sou o que representa
a febre, a dor
a expressão exata
a corda que desata
todos os nós acorrentados
aos conceitos do que
querem que a poesia seja.

Canto a canção ferida
daquilo que é doído

tenho olhos de vidros partidos
e a imensidão de compor.

Não me estabeleço
amanheço, entardeço, anoiteço
na forma mais concreta.
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Haicai de Ilhéus/BA

GIL NUNESMAIA

Vi a lua cheia
entre fios telegráficos:
uma semibreve!
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Setilha de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Mesmo com tanta maldade
eu alimento a esperança,
de ver um mundo feliz
sabendo que não se alcança;
mas esta fé que me guia,
vem da força da poesia
que trago desde criança.
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Trova de Belo Horizonte/MG

OLYMPIO COUTINHO

Nada recebe quem nega
 dar amor ou coisa assim...
 Só colhe flores quem rega
 dia e noite o seu jardim.
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Glosa do Rio Grande do Sul

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Entrar no céu sonhando

MOTE:
Sei que, deste mundo lindo,
vou sair, só não sei quando,
mas quero morrer dormindo
para entrar no céu sonhando.
José Lucas de Barros 
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

GLOSA:
Sei que, deste mundo lindo,
o meu tempo está escasso,
mas continuo sorrindo...
Sou feliz, por onde passo.

Tenho sim, plena certeza,
vou sair, só não sei quando,
vou deixar esta beleza:
o mundo, que estou amando!

Dias e noites, vão indo,
e a morte ronda por perto...
Mas quero morrer dormindo,
morrerei feliz, por certo!

Vou dormir, tal qual criança,
mil sonhos acalentando,
não perderei a esperança...
Para entrar no céu sonhando.
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Aldravia de São Gonçalo do Rio Abaixo/MG

MIRIAM STELLA BLONSKI

olhos
vazios
de
sonhos:
face
perdida
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Soneto de São Paulo/SP

MARIA JOSÉ GIGLIO

[4]

Não se deve gritar ao surdo vento
a canção destinada a ser ouvida
na glória silenciosa de um momento
no efêmero momento de uma vida.

Não se deve pedir ao isolamento
a comunhão ao gênio oferecida,
na face opaca do deslumbramento
espelha-se a maldade enlanguecida.

Não bastam para a vida os temas puros,
não dês à morte falsos esconjuros
que vida e morte se rirão de ti.

Ama, inda que esse amor semelhe um crime
pois só o amor de teu amor redime
a dispersão das almas que perdi.
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Trova Premiada  em Curitiba/PR, 2010

MILTON SOUZA 
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Madrugada… No infinito,
estrelas a cintilar…
Mas meu céu é mais bonito:
ele brilha em teu olhar!
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Poema de São Paulo/SP

OSWALD DE ANDRADE
1890 – 1954

Escapulário

No Pão de Açúcar 
de cada dia 
Dai-nos Senhor 
a Poesia 
de cada dia. 
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Triverso de São Paulo/SP

GRACIANE DOS SANTOS SILVA

Vento forte na janela
a menina se assusta -
Trovoada.
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Ramalhete de Trovas Traiçoeiras com Final Feliz!

NEMÉSIO PRATA 
Fortaleza/CE

Olhando com bem clareza
pras marcas do seu herdeiro,
já não tem tanta certeza
de ser o pai verdadeiro!

Olho azul, branco e lourinho
o filho do "Zé Negão"
lembrava mais o vizinho;
coitado, tinha razão!

Mas o popular ditado
diz que Pai é o que cria,
sem olhar se foi botado,
ou se feito à revelia!
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Trova de Fortaleza/CE

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
Fortaleza/CE, 1949 - 2020

Quando o sol se faz mais forte
e a chuva responde...não!
a silhueta da morte
se espraia pelo sertão. 
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Hino de Juiz de Fora/MG

Compositores: Duque  Bicalho e Lindolfo Gomes

Viva a Princesa de Minas,
Viva a bela Juiz de Fora,
Que caminha na vanguarda
Do progresso estrada a fora! 

Os seu filho operosos
Asseguram-lhe o porvir,
Para vê-la grandiosa 
Nunca têm mãos a medir...

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Demos palmas, demos flores
Aos encantos da Princesa!
Ela é rica de primores
Da poesia e da beleza.

É a cidade aclamada,
Do trabalho e da instrução,
É do Cristo abençoada
Sob o sol da religião.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.

Das cidades brasileiras
Sendo a mais industrial,
Na cultura e no trabalho
Não receia outra rival.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poetrix de Limeira/SP

CARLOS ALBERTO FIORE

Pico

Sons, buzinas, neuroses.
Pressa predadora, desumana.
A rua enfrenta o dia.
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Poema de Portugal

HERBERTO HELDER
Funchal/Ilha da Madeira, 1930 – 2015, Cascais 

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Se vejo o mundo às escuras,
embarco em meu sonho...e assim,
subo a escada e, nas alturas,
acendo um sol para mim!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

Ossos do ofício

Uma vez uma besta do tesouro
Uma besta fiscal,
Ia de volta para a capital
Carregada de cobre, prata e ouro,
E no caminho
Encontra-se com outra carregada
De cevada
Que ia para o moinho.

Passa-lhe logo adiante
Largo espaço,
Coleando arrogante
E a cada passo
Repicando a choquilha,
Que se ouvia distante.

Mas salta uma quadrilha
De ladrões,
Como leões,
E qual mais presto
Se lhe agarra ao cabresto.
Ela reguinga e dá uma sacada,
Já cuidando
Que dispersava o bando;

Mas, coitada!
Foi tanta a bordoada,
Que exclamava enfim
A besta oficial:
«Nunca imaginei tal!
Tratada assim...
Uma besta real!
Mas aquela, que vinha atrás de mim,
Porque a não tratais mal?!

— Minha amiga! cá vou no meu sossego:
Tu tens um belo emprego;
Tu sustentas-te a fava, e eu a troços;
Tu lá serves El-Rei, e eu um moleiro;
Eu acarreto grão, e tu dinheiro:
Ossos do ofício... que não há sem ossos!»

(tradução: João de Deus)
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Colaborações: gralha1954@gmail.com

Leon Tolstói (Lipúniuchka)

Um velho vivia com uma velha. Não tinham filhos. O velho foi arar a terra e a velha ficou em casa para fazer panquecas. A velha fez as panquecas e disse:

− Se a gente tivesse um filho, ele levaria as panquecas para o pai; mas, agora, a quem vou pedir?

De repente, do meio do algodão, saiu um menininho e disse:

− Bom dia, mamãe!

A velha perguntou:

− Filhinho, de onde você saiu e como se chama?

E o filho respondeu:

− Mãezinha, você fiou o algodão e enrolou as meadas e eu saí de lá. Pode me chamar de Lipúniuchka. Pode deixar, mãezinha, eu levo as panquecas para o papai.

A velha disse:

− Você consegue levar mesmo, Lipúniuchka?

− Consigo, mãezinha…

A velha amarrou as panquecas dentro de uma trouxinha e deu para o filho. Lipúniuchka pegou a trouxa e correu para o campo. No campo, ele topou com um morrinho na estrada e gritou:

− Papai, papai, me ajude a passar pelo morrinho! Eu trouxe panquecas para você.

No campo, o velho ouviu que alguém chamava, foi ao encontro do filho, levou o menino para o outro lado do morrinho e disse:

− De onde você veio, filho?

E o menino respondeu:

− Papai, eu saí do algodão − e deu as panquecas para o pai.

O velho sentou-se para comer e o menino disse:

− Deixe que eu vou arar a terra.

O velho disse:

− Você não tem força para arar a terra.

Mas Lipúniuchka pegou o arado e começou a arar. Ele arava e ainda por cima cantava.

Um senhor de terras passou por aquele campo e viu que o velho estava sentado comendo enquanto o cavalo arava sozinho. O senhor de terras desceu da carruagem e disse para o velho:

− Como pode ser isso, velho? O cavalo está arando sozinho?

O velho respondeu:

− Tenho um menino que está arando, e ele ainda canta.

O senhor de terras chegou mais perto, ouviu a canção e viu Lipúniuchka.

O senhor de terras disse:

− Velho! Venda esse menino para mim.

E o velho respondeu:

− Não, não posso vender, só tenho um.

E Lipúniuchka disse para o velho:

− Venda, papai, eu fujo dele.

O mujique vendeu o menino por cem rublos. O senhor de terras deu o dinheiro, pegou o menino, embrulhou num lenço e guardou no bolso. O senhor de terras correu para casa e disse para a esposa:

− Trouxe uma alegria para você.

E a esposa disse:

− Mostre. O que é?

O senhor de terras tirou o lenço do bolso, abriu e dentro do lenço não havia mais nada. Fazia tempo que Lipúniuchka tinha fugido para o pai.

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.  Disponível em Domínio Público

Recordando Velhas Canções (Maringá)


Compositor: Joubert de Carvalho

Foi numa leva que a cabocla Maringá 
Ficou sendo a retirante que mais dava o que falar 
E junto dela veio alguém que suplicou 
Pra que nunca se esquecesse de um caboclo que ficou 
  
Maringá,  Maringá 
Depois que tu partiste tudo aqui ficou tão triste 
Que eu "garrei" a imaginar 
Maringá,  Maringá 
Para haver felicidade é preciso que a saudade 
Vá bater noutro lugar 
Maringá,     Maringá 
Volta aqui pro meu sertão pra de novo o coração 
De um caboclo a sossegar 
  
Antigamente uma alegria sem igual 
Dominava aquela gente na cidade de Pombal 
Mas veio a seca, tudo a chuva foi-se embora 
Só restando então as águas 
Dos meus "'óio" quando chora 
Maringá,   Maringá 
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A Saudade e a Seca em 'Maringá' de Joubert de Carvalho

É comum no mundo inteiro cidades emprestarem seus nomes a canções. Difícil é uma canção inspirar o nome de uma cidade, como foi o caso de "Maringá". O fato ocorreu em 1947, quando Elizabeth Thomas, esposa do presidente da Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná, sugeriu que a composição desse nome a uma cidade recém-construída pela empresa, e que em breve se tornaria uma das mais prósperas do estado.

O curioso é que a canção jamais teria existido se seu autor Joubert de Carvalho não fosse, quinze anos antes, um frequentador assíduo do gabinete do José Américo de Almeida (Ministro da Viação e Obras), tinha como chefe de gabinete o senhor Ruy Carneiro , que mais tarde viria a governador e senador do seu Estado (a Paraíba)..

Joubert, formado em medicina, pleiteava uma nomeação para o serviço público. Numa dessas visitas, aconselhado pelo oficial de gabinete Rui Carneiro, o compositor resolveu agradar o ministro, que era paraibano, escrevendo uma canção sobre o flagelo da seca que na ocasião assolava o Nordeste.

Surgia assim a toada "Maringá", uma obra-prima que conta a tragédia de uma bela cabocla, obrigada a deixar sua terra numa leva de retirantes. Alguns meses após o lançamento vitorioso de "Maringá", Joubert de Carvalho foi nomeado para o cargo de médico do Instituto dos Marítimos, onde fez carreira chegando a diretor do hospital da classe.

Joubert de Carvalho gostava da boemia e naquele ambiente veio a conhecer e se tornar amigo do senhor Alcides Carneiro (irmão de Ruy Carneiro e também funcionário do Ministério da Viação e Obras), que solteiro e apaixonado por uma namorada chamada Maria, residente na cidade do Ingá (60 km de João Pessoa - PB), compôs a música “Maringá”, narrando o flagelo da seca no nordeste, principalmente na cidade de Pombal, localizada na alto sertão paraibano. 

A música 'Maringá', composta por Joubert de Carvalho, é uma obra que retrata a dura realidade do sertão nordestino brasileiro, marcada pela seca e pela migração forçada. A letra conta a história de uma cabocla chamada Maringá, que se torna uma retirante, uma pessoa que precisa deixar sua terra natal em busca de melhores condições de vida. A partida de Maringá é um evento significativo, que causa grande comoção e tristeza na comunidade, especialmente para um caboclo que fica para trás, suplicando para que ela não o esqueça.

A canção também aborda a transformação da cidade de Pombal, que antes era dominada por uma alegria sem igual, mas que foi devastada pela seca. A falta de chuva trouxe desespero e tristeza, restando apenas as lágrimas do caboclo que chora pela partida de Maringá. A seca é uma metáfora poderosa para a ausência e a saudade, que são temas centrais na música. A repetição do nome 'Maringá' no estribilho reforça a intensidade da saudade e o desejo de que ela volte para trazer de volta a felicidade ao sertão.

'Maringá' é uma canção que, além de contar uma história de amor e saudade, também serve como um retrato social e cultural do sertão nordestino. A música destaca a resiliência e a esperança das pessoas que vivem nessa região, mesmo diante das adversidades. A saudade e a seca são elementos que se entrelaçam, mostrando como a ausência de uma pessoa querida pode ser tão devastadora quanto a falta de água. A canção é um exemplo da rica tradição da música brasileira em abordar temas sociais e emocionais de maneira poética e tocante.

Fontes: