quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Nilto Maciel (O desafio de Facundo)


Vicente ria, porque me via apreensivo, toda vez que o bebedor de coca-cola se aproximava de mim.

“Você está com medo desse doido?”

Eu realmente demonstrava inquietação, bastasse ver o maluco da rua.

Meu interesse em conversar com loucos é puramente literário. Prefiro observá-los de longe, descobrir suas manias a luneta.

Com o bebedor de coca-cola afoitei-me.

“Por que você bebe tanto isso?”

 Sua resposta me deixou tonto, perplexo e, ao mesmo tempo, penalizado dele: “É para me lavar por dentro. Ando sujo, como todo mundo. Não bebo cachaça, com medo de perder o juízo.”

Antes de se embriagar e se tornar triste, revoltado, pessimista, Vicente passava por duas fases: na primeira, parecia alegre, contava seu mais recente passado, o dia findo, a semana, no máximo; na segunda, se achegava ao mais presente do presente e até arriscava prever os próximos minutos.

“Eu quero é cegar da gota-serena se o Helvécio não estiver falando mal de mim. Quer apostar?”

Numa dessas olhadas para o seu redor, quis saber minha opinião a respeito do dono do bar.

“Um tipo quase pitoresco, como aquele doido que bebe coca-cola como se bebesse cerveja.”

Gostou do pitoresco e do resto da frase, mas não podia esperar uma resposta como aquela. Porque existem tipos interessantes em demasia. Eu mesmo podia ser tido como um deles. E se perdeu num labirinto de considerações e descrições, esquecido já do próprio Helvécio.

Não sei se antes ou depois disso, Helvécio denegria alguns de nossos conhecidos, entre eles Vicente.

“Um beberrão ignorante. Fala mal de todo mundo e não repara nem as dívidas que faz.”

Não me pediu opinião. Apenas parou de esbravejar e se pôs a olhar para mim, como se me inquirisse: É ou não é?

“Eu não compro fiado, mas também falo mal do governo.”

Achei por bem não me referir diretamente a Vicente, nem tocar em bebida, apesar de as palavras engolidas terem sido: “Beberrão, não, porque, se for assim, seus filhos são beberrões também.” “Não insulte meus filhos, veja como se expressa.”

“É, mas você não fala à toa, sabe distinguir o certo do errado.”

Aquela minha audaz indagação feita ao doido, arranjei-a e aprimorei-a durante mais de um mês. A primeira versão dizia: você gosta dessa porcaria? Talvez ele não a entendesse e até ficasse calado. Podia imaginar que eu me referisse à sua vida. Ou mesmo à cidade, ao bairro, à rua onde morávamos. Modifiquei-a, a seguir, para: você gosta de beber essa porcaria? Se ele bebia, era porque gostava de coca-cola ou porque gostava de bebê-la. Poderia me responder simplesmente: Gosto. E eu não saberia de que gostava.

Fui reconstruindo a pergunta: por que você gosta de beber essa porcaria? por que você gosta tanto de beber essa porcaria? por que você bebe tanto essa porcaria?

O não mencionar o nome da bebida grudou-se-me feito nódoa na camisa. Bastava ver o pobre doido para me sentir alvo de sua loucura. Poderia me rachar a cabeça com uma garrafada. E Vicente fez a pergunta como se me acusasse de um crime. Não olhava para meus olhos ou minha boca, mas fitava meu peito, como se ali estivesse o segredo, a solução. E ria sempre, como se suas palavras ecoassem: medo medo medo.

Ri também e me controlei. Organizei a resposta: a loucura só dá medo ao sistema.

Tencionava discorrer sobre a relação entre poder e anarquia, ordem legal e desordem social. Um discurso violento e radical. E calaria a boca dele. Nenhuma ordem temia o discurso anárquico de qualquer bebedor de cerveja. O álcool dos rebeldes não incomoda a lucidez dos poderosos.

“Andei mexendo com ele.”

"Tirou coca-cola da boca do coitado?”

“Não sou perverso. Seria o mesmo que tomar mamadeira da boquinha de neném.”

Muito mais tarde, compreendi a vulgaridade dessas duas frases e imaginei um diálogo inteligente, a partir da segunda indagação de Vicente, se houvesse respondido assim: o tratamento dado por um homem rico a um pobre, estudado a um rude, de alta estatura a um de baixa, etc., é comumente maléfico, por mais humildes que sejam os primeiros. Há sempre perversidade nessa relação, por mais humanistas que sejam o burguês, o diplomado, o gigante. Porque analisar, estudar, perquirir, tentar conhecer outrem é, em essência, um ato bárbaro, egoísta, desumano.

“Então, o que você fez?”

Se outro o rumo dado por mim à conversa, qual a importância da especificidade de minha ação? O egoísmo existe na mãe ou na babá que corta ao meio o prazer bucal da criança; no burguês que dá uma esmola; no escritor que se compadece da personagem, sua ou de outro, que nunca bebeu champanha; no homem que alisa os cabelos do menino.

Esperei eras pelo momento de ver no bar do Helvécio o Vicente e o doido. Minha intenção: embriagá-los e fazê-los abraçarem-se, ao som de um baião. O cenário: fotos do Padre Cícero, da Seleção Brasileira e aquele imenso cartaz da Coca-Cola. Não seria apenas a encenação. Eu fotografaria o instante para capa de um romance: O Reino do Verbo.

Ao vê-los, não paguei nenhuma bebida. Desafiei-os para uma partida de bilhar. Eu contra os três.

Fontes: Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 01

 

José Feldman (Um dia na academia)


Era uma manhã nublada quando Epitáfio e Etelvina decidiram que era hora de se inscreverem na academia. Depois de uma longa conversa sobre a importância de manter a saúde, ambos concordaram que os exercícios eram uma boa maneira de combater o sedentarismo.

Ao chegarem à academia, Epitáfio, com seu jeito cômico e exagerado, olhou ao redor com um misto de admiração e pânico. 

"Olha, Etelvina! Esse lugar parece um campo de batalha! Olha aquelas máquinas, parecem armas de tortura!"

Etelvina, que sempre foi a mais prática dos dois, respondeu: "Epitáfio, é só uma esteira! Você não precisa entrar em pânico. Vamos apenas caminhar um pouco."

"Eu não sei... Caminhar em uma esteira que se move? Isso não parece um pouco perigoso?" 

Epitáfio fez uma expressão de dúvida, como se estivesse considerando entrar em um filme de ação.

"Se você não conseguir andar em uma esteira, amor, estamos perdidos", disse Etelvina, tentando conter o riso. "Vamos lá, é só subir e começar a andar!"

Depois de alguma hesitação, Epitáfio finalmente subiu na esteira. Assim que começou a andar, ele logo se distraiu olhando para a televisão na frente. 

"Olha, um programa de culinária! Isso parece muito mais interessante do que andar."

"Foca no exercício, Epitáfio!" Etelvina gritou do lado, já na sua própria esteira. “Se você não se concentrar, vai acabar caindo!”

"Eu não vou cair, calma! Eu sou um atleta nato!"

Ele disse isso enquanto tentava aumentar a velocidade da esteira, mas logo percebeu que havia exagerado.

"Atleta nato? Desde quando? Desde a última vez que você correu para pegar um pedaço de bolo na festa do aniversário da sua mãe?" Etelvina resmungou.

Epitáfio, agora lutando para se manter em pé, respondeu: "Era um bolo de chocolate, Etelvina! É uma questão de sobrevivência!"

Finalmente, ele conseguiu desacelerar a esteira e se equilibrar. 

"Pronto! O que fazemos agora?"

"Agora vamos para a bicicleta!" Etelvina sugeriu, já se dirigindo para a máquina.

"Uma bicicleta? Ah, isso é mais fácil. Eu sei andar de bicicleta!" 

Epitáfio disse, já se sentando na bike. Mas, assim que começou a pedalar, percebeu que a resistência estava mais alta do que esperava. 

"Ei! Isso não é uma bicicleta, isso é uma tortura! Eu vou acabar com as minhas pernas!"

"Você também não precisa exagerar, Epitáfio! É só ajustar a resistência!" Etelvina estava rindo cada vez mais da situação.

Epitáfio, tentando ajustar a máquina, acabou apertando todos os botões ao mesmo tempo. 

"Olha, Etelvina, agora estou em uma corrida contra o tempo! Estou em uma competição para ver quem se cansa primeiro!"

"Você e suas competições! O que você vai ganhar? Um troféu de 'Maior Drama na Academia'?" Etelvina respondeu, rindo.

Depois de um tempo, Epitáfio, já cansado, decidiu que era hora de experimentar algo diferente. 

"Vamos fazer um pouco de musculação? Eu sempre quis parecer com aqueles caras de filme de ação!"

"Você? Parecer com um desses? Você precisa de muito mais do que um dia na academia!"

"Desafio aceito!" Epitáfio disse, enquanto se dirigia para os pesos. Pegou um haltere que parecia maior do que ele. "Olha, Etelvina, sou o Hulk!"

"Mais parece um Hulk de pelúcia!" Etelvina não conseguiu conter o riso. "Cuidado para não quebrar o pé!"

Ele levantou o peso, mas ao tentar impressionar, acabou fazendo uma careta tão engraçada que chamou a atenção de outros frequentadores da academia.

"Se você fizer isso, vai acabar viralizando na internet como o 'Homem que quis ser Hulk e não conseguiu ser nem Hulkzinho bebê'!" Etelvina continuou a zombar, enquanto ele lutava para colocar o peso de volta.

"Você está torcendo contra mim, não está?" Epitáfio perguntou, tentando recuperar a compostura.

"Claro que não! Estou apenas te dando um empurrãozinho para você não se levar tão a sério!", respondeu Etelvina, rindo.

Finalmente, após uma série de exercícios que mais pareciam uma comédia, Epitáfio e Etelvina decidiram que era hora de encerrar o "treinamento". Eles se sentaram em um banco, ofegantes.

"Então, o que você achou da nossa experiência na academia?" Epitáfio perguntou.

"Eu acho que precisamos de mais prática... e talvez de um 'personal trainer' só para você!" Etelvina respondeu, piscando.

"Ou talvez só precisemos de um bom café e um pedaço de bolo para comemorar nosso 'sucesso'!" 

Epitáfio sugeriu, fazendo uma expressão de quem já estava pensando no próximo lanche.

"Essa eu topo! Afinal, a vida é curta demais para não ter um pedaço de bolo depois de um dia de exercícios!" Etelvina concordou, levantando-se.

E assim, enquanto deixavam a academia, Epitáfio e Etelvina continuaram com suas brincadeiras e discussões, prontos para enfrentar a próxima aventura juntos, seja na academia ou na cozinha, onde o verdadeiro 'treinamento' aconteceria.

Fontes: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 155 =


Trova de
WAGNER MARQUES LOPES
Pedro Leopoldo/MG

Ao reler os teus escritos
grafados com teu carinho,
superei dias aflitos,
jamais estive sozinho.
= = = = = =

Folclore Português em Versos de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Adamastor

Nos mares bravios, um gigante a clamar,
Adamastor, sombra de um passado a surgir,
com voz de tempestade e olhar de luar,
aos navegantes, seu destino a cingir.

Guardião das ondas, das rotas a zelar,
em cada naufrágio, um lamento soando,
seu corpo é a tempestade, seu ser é o azar,
e em cada história, um aviso deixando.

Mas sob a fúria, há dor que se oculta,
um amor perdido, uma vida em tumulto,
e na imensidão, sua tristeza a fluir.

Adamastor, lenda que nunca se exulta,
um eco profundo que procura indulto,
nas brumas do mar eternamente a existir.
= = = = = = 

Trova de
MYRTHES MASIERO
São José dos Campos/SP

Eu vivo na corda bamba
tentando me equilibrar,
mas sem ter você, caramba:
nem consigo me encontrar.
= = = = = = 

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Silêncio

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!
= = = = = = 

Trova Premiada no Rio de Janeiro de
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Não temas portas fechadas,
nem mesmo fracassos temas,
há sempre forças guardadas
para as conquistas supremas.
= = = = = = 

Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

A meu irmão Guilherme de Castro Alves

Na Cordilheira altíssima dos Andes
Os Chimborazos solitários, grandes
Ardem naquelas hibernais regiões.
Ruge embalde e fumega a solfatera...
É dos lábios sangrentos da cratera
Que a avalanche vacila aos furacões.
A escória rubra com os geleiros brancos
Misturados resvalam pelo francos
Dos ombros friorentos do vulcão...

Assim, Poeta, é tua vida imensa,
Cerca-te o gelo, a morte, a indiferença...
E são larvas lá dentro o coração.
= = = = = = 

Quadra Popular

Menina de olhos de fada,
me dê água pra beber;
não é sede, não é nada,
é vontade de te ver.
= = = = = = 

Soneto de
MANUEL BANDEIRA
Recife/PE (1886 – 1968) Rio de Janeiro/RJ

Verdes mares

    Clama uma voz amiga: — "Aí tem o Ceará."
    E eu, que nas ondas punha a vista deslumbrada,
    Olho a cidade. Ao sol chispa a areia doirada.
    A bordo a faina avulta e toda a gente já

    Desce. Uma moça ri, quebrando o panamá.
    "— Perdi a mala!" um diz de cara acabrunhada
    Sobre as águas, arfando, uma breve jangada
    Passa. Tão frágil! Deus a leve, onde ela vá.

    Esmalta ao fundo a costa a verdura de um parque.
    E enquanto a grita aumenta em berros e assobios
    Rudes, na confusão brutal do desembarque:

    Fitando a vastidão magnífica do mar,
    Que ressalta e reluz: — "Verdes mares bravios..."
    Cita um sujeito que jamais leu Alencar.
= = = = = = 

Trova de
CESÍDIO AMBROGGI
Natividade da Serra/SP (1893 — 1974) Taubaté/SP

Há nos velhos corações
uma fonte -  a da saudade,
que reaviva as emoções
vividas na mocidade.
= = = = = = 

Poema de
HANS MAGNUS ENZENSBERGER 
Alemanha (1929 – 2022)

Para um Livro de Leituras Escolares

Não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exatos. Desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
O dia vem vindo em que hão de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. Aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
Treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga cotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito
e são meticulosos por ti.

(Tradução: Jorge de Sena)
= = = = = = = = = 
Trova de
LÚCIA LOBO FADIGAS
Rio de Janeiro/RJ

Ouço harmonias nas águas;
ouço acordes no tufão;
mas na avalanche das mágoas
nem ouço o meu coração!...
= = = = = = 

Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Canção navegante

Compus uma canção, lancei ao mar!
Pedi-lhe humildemente que a levasse!
E em caso de procela a amparasse,
Para nenhuma estrofe se afundar!

Às estrelas pedi para a guiar,
Ao luar que o seu rumo iluminasse.
A Netuno roguei, que não deixasse,
De a um porto seguro a acompanhar!

Eu sei que alguém espera esta canção.
Terá seu peito arfando de emoção,
Pra ouvir a melodia, e seu cantar!

Meus versos, um a um recolherá!
Seu peito generoso se abrirá,
Para nele a canção se aboletar!
= = = = = = 

Trova de
PROF. GARCIA
Caicó/RN

A liberdade do poeta,
está num verso... Num grito...
No equilíbrio se completa,
vencendo o próprio infinito!
= = = = = = 

Soneto de 
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Irreversão

Da terra brota a flor cada estação,
haurindo a seiva fértil do existir,
Nutrindo-se de vida, o coração
da planta vibra, em cores a expandir.

Um dia... o ar sombrio, a acridão
da quadra estéril, triste, que há de vir,
desnuda o solo, onde, em contradição,
terá lugar a ausência do florir.

A estação das flores retornando,
cor de esperança a terra se enfeitando,
a haste ostentará de novo a flor.

Murcha no peito a rosa da ilusão,
a seiva não renova, e o coração
passa, infecundo, à estação da dor.
= = = = = = 

Trova de
ELISABETE AGUIAR
Mangualde/ Portugal

Por sobre as águas do mar,
ou sobre as terras da Terra,
um avião vem lançar
bombas de Amor contra a guerra.
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Primavera 

Invernos chuvosos saem
levando apenas saudade, 
deixando ilusões serenas.

São brisas amenas que valsam
no jardim intenso da primavera,
um beijo nas pétalas pequenas.
Os vestígios carmins das rosas
serão versos das futuras cenas.
= = = = = = 

Trova de 
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

O rostinho amarelado
encostado ao mostruário
cobiçava o tão sonhado
presente. Triste cenário!
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Por quê?

Não sei por que é que Deus me fez assim
completamente tolo e apaixonado,
que só para ficar sempre ao seu lado,
acabo me esquecendo até de mim!

Pois desde que você me deu seu sim
e eu confiei que foi um sim pensado,
não permiti jamais que houvesse um fim
em nosso amor tão meigo e desejado!

Você é meu sonho todo santo dia!
E o dia todo desde o amanhecer...
E logo após também, quando adormeço!

E nestes sonhos cheios de alegria
e de utopias, só tenho prazer...
Tanto prazer que eu sei que não mereço!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Ah, como é útil a avó, 
com seus cuidados e afetos! 
Já o avô, serve tão-só 
pra ensinar besteira aos netos... 
= = = = = = 

Poema de
ANTÓNIO GEDEÃO 
Lisboa/Portugal, 1906 – 1997

Dez reis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingênuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aquarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras seletas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
= = = = = = 

Triverso de
ÁLVARO POSSELT
Curitiba/PR

Aqui tudo pode.
Até a cabra
fica de bode.
= = = = = = 

Soneto de
ALFREDO GUISADO
Lisboa/Portugal, 1891 – 1975

Ela, em meu sonho

Ela vivia num palácio mouro…
Nas harpas, os seus dedos a espreitarem
como pajens curiosos, a afastarem
os cortinados todos fios de ouro.
 
As suas mãos, tão leves como as aves,
ora fugiam volitando, frias,
ora pousando, trêmulas, frias,
nas cordas, a sonharem melodias…

E os sons que ela tangia, aos seus ouvidos
chegavam, receosos de senti-la,
voltavam a não ser nunca tangidos.
 
É que ela, as suas mãos, as harpas de ouro,
não eram mais do que um supor ouvi-la
e o meu julgá-la num palácio mouro.
= = = = = = 

Trova de
THARCÍLIO GOMES DE MACEDO
Taubaté/SP

A montanha neblinada,
quando foge à nossa vista,
é a natureza enciumada
que esconde o quadro do artista.
= = = = = = 

Poema de 
LORENZO OLIVAN
Cantábria/ Espanha

O Guardião de si mesmo

Escondido em algum dos ângulos
do pensamento, oculto no seu matagal,
fico de vigia durante a noite.
Quero julgar com nitidez a linha
indefinida que separa sempre
a vigília do sono.
Quero saber que porta
a minha mente tem de atravessar,
que sombra aos poucos cai ou sobe
do alto de do profundo,
de que porção de mim terei que desprender-me
e que porção saberá
atravessar o leve umbral comigo.

Hoje o sono não vai poder vir de luvas brancas,
não vai roubar a minha casa impunemente,
vou aprender as suas artes,
vou vê-lo penetrar silencioso
pela porta de trás da consciência.

Assim fico de vigia
e guardo, com olhos bem fechados,
a minha interior escuridão
debaixo da noite escura.

Nada se move, só o pensamento,
cansado dos círculos que tem de
descrever durante o dia. De que parte
do negro infinito virá o sono?
Onde, onde essa linha?

O sol da manhã dá no teu rosto.
Náufrago de ti mesmo,
levanta-te Ulisses.
Que recordas da viagem?
Irónica, a luz atira sobre ti
uma sonora gargalhada.

(Tradução: Joaquim Manuel Guimarães)
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Carreteiro em disparada,
transporto a carga suicida;
se atrás é mais longa a estrada,
na frente é mais curta a vida!
= = = = = = 

Hino de 
ÓBIDOS/ PA

Sentinela que guarda riqueza
deste vale imenso sem par;
podes bem ser chamada princesa,
das belezas do grande Rio-Mar.
Os teus filhos são bem brasileiros,
são valentes e sabem lutar.
E trabalham ao sol altaneiros,
sempre avante, não sabem parar!

Óbidos, és minha terra,
Óbidos, és meu torrão,
Óbidos, estás inteira,
dentro do meu coração.

Já tens glória passada que a história,
podes bem com justiça assentar;
não são gestos falazes que a vitória,
que soubeste tão bem conquistar.
És a filha do Rio Amazonas
e conheces o seu murmurar:
onde estás é a única zona,
por onde ele tem que passar !

Óbidos, és minha terra,
Óbidos, és meu torrão,
Óbidos, estás inteira,
dentro do meu coração.

Tuas noites são bem estreladas,
e o teu céu é mais puro azul.
E são claras as tuas madrugadas,
quando sopra o vento taful.
És rincão da terra brasileira,
na Amazônia és forte e viril,
vives sob a mesma bandeira,
que tremula em todo o Brasil!
= = = = = = 

Trova de
AGOSTINHO RODRIGUES
Campos dos Goytacazes/RJ

Estendam as mãos, amigos,
mantendo o mundo seguro.
Dos jovens e dos antigos
depende o nosso futuro!
= = = = = = 

Poema de
ELISA ALDERANI
Ribeirão Preto/SP

Feridas

Abri a gaveta das lembranças
Tirei tudo o que dentro estava.
Fechei todas as portas e janelas,
Não queria que elas saíssem por ai,
Para espalhar minha história.
O mundo está cheio
De palavras inúteis.
Que não servem para nada.
Não enobrecem a vida.
Preciso agora descobrir
Os segredos da alma:
Curar, ungir, suturar feridas…
Sutis, apodrecidas.
Dobras doentes
Procurando refrigério,
Procurando alento,
Na simples carícia
Do toque do vento…
Depois, com carinho, guardo-as novamente,
Na última gaveta da minha mente.
= = = = = =

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Quando deixei minha terra,
jurei e cumpri a jura,
que venceria esta guerra
entre o sertão e a cultura!
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
EU SEI QUE VOU TE AMAR 
(samba-canção, 1959) 

 Eu    sei que vou te amar
Por toda a minha vida
Eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente eu sei que vou te amar

E cada verso meu será      
pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida

Eu sei que vou chorar
A  cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida.

Eu sei que vou sofrer
A eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida.
= = = = = = = = = = = = =