sábado, 11 de janeiro de 2025

Simões Lopes Neto (Casos do Romualdo) O meu cinto de couro de anta

Coisas fortes... coisas fortes ... Não, certos objetos não devem ser tão fortes que possam por isso vir a ser prejudiciais.

Eu me explico. Tive um cinto de couro de anta. Como se sabe, o couro de anta é um couro quase impossível de quebrar-se: é de uma resistência espantosa, rival do aço estirado.

Meu pai, durante cinquenta anos, usou umas rédeas de couro de anta, couro por ele esfolado, e já as havia herdado de meu avô, que foi quem caçou o dito bicho, sozinho, e até sem cachorro; e eu usei-as ainda por muitos anos, pelo prazer de serem feitas do couro de um animal que eu mesmo havia morto; foi mesmo com uma dessas rédeas que amarrei o meu baio Gemada à cauda de um tatu-rosqueira, o que custou a vida ao meu estimado cavalo... Parece-me que já falei nisso.

Pois o meu cinto, tirado do couro daquela mesma anta, e companheiro das rédeas, o meu cinto, digo, por forte, certa vez fez-me passar agonias... Andava em trabalho de campo, lidando com uma tourada de conta, cada bicho bem-criado, forte e bravo, que metia medo! Havia então um certo touro brasino (cor de brasa) que era uma verdadeira fera, e foi justamente esse que tomou-me embirrância especial, creio que por causa do pelo do cavalo que eu montava, que era vermelho. Por várias vezes ele atropelou-me de rijo; não andasse eu tão bem montado e seria colhido.

O tal era de raça franqueira, e tinha umas aspas abertas, quase de braça, cada uma, e grossas, na proporção.

Pois não lhes digo nada!

A última carga foi tão repentina, que eu só senti o perigo quando os companheiros gritaram, assustados. Mal tive tempo de cravar as esporas no baio, que deu dois saltos pra diante, mas - fatalidade! - para tropeçar e cair…

Com a minha calma habitual, saí perfeitamente, de pé; mas o touro vinha.., e no ímpeto em que vinha, com a chifrada armada, mal pude dar um passo à frente...

Ele baixou a cabeça, dando a tremenda marrada, e quando levantou a chifrada, esta resvalou por cima do cavalo e veio colher-me a mim, ainda de costas, certo, perfeitamente certo, entre o cinto e o corpo, nem mais nem menos; e, assim, fiquei dependurado no chifre do touro, tal qual um par de calças, suspenso pela presilha, num cabide... Que situação!

Por causa do peso do corpo, eu não podia desafivelar o cinto, e soltar-me; na posição em que estava, de costas, não podia fazer finca-pé e alçar-me acima do chifre e desengatar-me ...

E o touro disparou para o banhado levando-me dependurado, a dar com as pernas e os braços, como um boneco de cata-vento...

Os companheiros, que estavam de cavalos cansados, não puderam socorrer-me e perderam-me de vista...

O touro meteu-se banhado adentro, para a sua querência. Curti sofrimentos!

Fiquei sabendo falar de cadeira sobre o micuim, mosquito ruivo e mutuca parda... sobre espinho de gravatá e serrilha de tiririca... sobre camoatim e formiga vermelha!

À custa de muito esforço consegui, movendo-me, torcendo-me, ajeitando-me, consegui firmar um pé no cachaço (cangote) do touro e melhorar a posição, sentado naquele estranho banco.., sem encosto... Mas sempre foi um meio alívio.

Escureceu; como é fácil de imaginar, tive insônia. Amanheceu; e eu, como é fácil de imaginar, contrariado, por não poder ao menos lavar o rosto e pentear-me, como de costume...

touro, parece que nem sentia o meu peso; andava, pastava, remoia, mugia, farejava as vacas e acariciava os terneiros - seus filhos, provavelmente - sem mostrar que eu pesasse mais que uma palha seca...

Lá pelas tantas da segunda tarde, encontrou-se ele com outro touro. Berraram, ambos; escarvaram, rodearam um pelo outro, em desafio, e, de repente... - questão de ciumada - de repente, atiraram-se, em briga de morte, como duas feras, que eram.

E eu, de testemunha obrigada!

Ah! meu amigo! Me vi morto, esmagado, esborrachado entre aquelas duas cabeças duras ... esborrachado, estripado, entre aqueles quatro chifres pontudos! ...

Morto! ... Morto! ... Morto! ...

Pois ... não, senhor: justo, justo, quando se chocaram as duas brutas testas numa marrada formidável, capaz de esfarinhar urna pedra.., justo, justo, aí... quando, brrr! ... eu ia morrer, aplainado, chato, quebrou-se o dente da fivela do cinto, que, pois, desprendeu-se, e eu caí ao chão, solto, livre enfim, e disparei rua fora, e quebrei a primeira esquina, sem olhar pra trás! ...
Esquecia-me de dizer que durante esses dias de fome sustentei-me de araçás, que havia muito, no tal banhado.

Pois é... se não fosse o dente da fivela quebrar-se, o meu cinto de couro de anta, por bom demais, matava-me, olé, se matava!…
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João Simões Lopes Neto nasceu e morreu em Pelotas/RS, 1865 — 1916. Foi um escritor e empresário sul-rio-grandense e brasileiro. Segundo estudiosos e críticos de literatura, foi o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, pois procurou em sua produção literária valorizar a história do gaúcho e suas tradições. Era membro de uma tradicional família pelotense, e possuía ancestrais portugueses, de origem tanto açoriana como continental, tendo ambos os seus antepassados emigrado para o Brasil em busca de melhores condições de vida. Começa a escrever em 1888. No jornal “A Pátria”, depois no “Diário Popular” (no qual escreveu Balas de Estalo, comentários satíricos sobre a sociedade pelotense em forma de versos) e, posteriormente, no Correio Mercantil. Sob o nome de "Serafim Bemol" se lança como dramaturgo: O Boato (1893/1894), Os Bacharéis (1894), Mixórdia (1894/1895), O Bicho (1896), A Viúva Pitorra (versões de 1896 e 1898) e A Fifina (1899). Devido a uma úlcera duodenal morre em 1916, aos 51 anos. Considera-se que publicou apenas quatro livros em vida: Cancioneiro Guasca (1910); Contos Gauchescos (1912); Lendas do Sul (1913) e Casos do Romualdo (1914).

Fontes:
Simões Lopes Neto. Casos do Romualdo. Publicado originalmente em 1914. Disponível em Domínio Público.
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Arthur Thomaz (O quarto aposento)

Filomena era uma costureira muito requisitada no bairro, levava uma vida tranquila, tendo optado por não se casar e morando sozinha, conseguia se organizar financeiramente.

Ao completar quarenta anos foi chamada por Dona Henriqueta sua centenária bisavó e matriarca da família.

Ela entregou-lhe as chaves e o documento de propriedade, já em seu nome, de uma casa.

Contou que era um casarão repleto de “poderes mágicos” e que Filó só deveria ir morar lá quando completasse sessenta anos e que nada mais poderia esclarecer. Saiu intrigada com o acontecimento, imaginando que era uma possível senilidade da bisavó.

A vida seguiu seu curso normal, às vezes até esquecendo da tal casa, só recordando quando tinha que pagar os impostos do imóvel.

Alguns dias antes de completar sessenta anos começou a sentir-se ansiosa e pensar muito no que poderia significar a tal magia da casa.

Mesmo já tendo passado algumas vezes em frente ao casarão, foi lá para fazer uma avaliação mais detalhada do imóvel.

Era um casarão antigo situado no final de uma rua tranquila e com pouca vizinhança. Construído com excelente material, não aparentava sinais de deterioração pelo tempo.

No dia do aniversário recebeu a visita de alguns familiares e de amigas da paróquia, companheiras nas noites de bingo, organizadas pelo padre Anselmo, com a finalidade de arrecadar fundos para seus gastos pessoais, nada condizentes a sua opção pelo sacerdócio.

Após a confraternização, dirigiu-se apressadamente ao casarão para, enfim, cumprir os desejos da bisavó.

Logo ao entrar, ouviu uma risada muito parecida com a de dona Henriqueta, mas atribuiu o fato à sua ansiedade. Deparou-se com uma grande sala que apresentava quatro portas com chaves nas fechaduras.

Notou que o recinto estava arrumado e limpo, sem nenhum vestígio de pó ou manchas nos tapetes.

Trêmula foi até a primeira porta.

Era um cassino que, entre tantas mesas, incluía uma de bingo, seu jogo predileto. O segundo aposento era um ateliê completo de costura com equipamentos moderníssimos, o que a deixou encantada. O terceiro, apresentava uma estranha decoração e ao entrar sentiu-se tomada por poderes mediúnicos que nunca havia imaginado possuir. Imediatamente pensou em como capitalizar esse estranho fenômeno. Ao sair do quarto, notou o letreiro na porta com os dizeres "Mãe Filó médium, quiromante e cartomante". Quando foi abrir a quarta porta, ela, misteriosamente, transformou-se em uma parede, impedindo, assim, que adentrasse ao local. Através dessa parede ouviu novamente, a estridente risada da bisavó. Relevou mais uma vez esse fato e começou a fazer planos para desfrutar da nova moradia.

Nas manhãs, continuou seus trabalhos de costura, agora com maquinário moderno, o que aumentou substancialmente a sua freguesia .

Nas tardes, atendia pessoas que vinham procurar os trabalhos mediúnicos de Mãe Filó.

O aposento era composto por três mesas, cada qual propícia a determinada finalidade. No centro da primeira havia uma faiscante bola de cristal. A segunda mesa era revestida de feltro, adequada ao manuseio do baralho de tarô, e a última, era acolchoada, servindo para a quiromancia.

Ao entrar neste quarto Filomena transformava-se automaticamente, em Mãe Filó - portadora destes estranhos poderes.

Ganhou muito dinheiro nessa atividade. Nas noites, ela gerenciava o salão de jogos, dando atenção maior às rodadas de bingo, sempre repleta de jogadores.

Obteve altos rendimentos nesta função. Padre Anselmo observou que suas paroquianas, frequentadoras do bingo não compareciam mais. Sem dinheiro para custear suas nada religiosas ocupações paralelas, resolveu averiguar o que estava acontecendo. Descobriu, então, que elas estavam indo a um determinado endereço. Avisou seu amigo de noitadas, o delegado Montedonio, que prontamente organizou uma operação para interditar a tal casa de jogos ilícitos.

Quando a polícia chegou as portas dos quartos transformaram-se em paredes, deixando à vista somente o ateliê de costura.

Desconcertados realizaram buscas na casa e nada encontrando pediram desculpas à Dona Filomena e foram tomar satisfações do pároco pelas denúncias infundadas. Filomena depois deste acontecimento e já com uma quantia substancial na sua conta bancária, resolveu ultimar os preparativos para deixar o casarão.

Foi a Portugal, onde adquiriu uma Quinta no Além Tejo. Retornando ao Brasil para reunir seus pertences e dar uma destinação ao casarão, procurou Mafalda, sua sobrinha em quem depositava confiança.

Foram ao cartório e passaram a propriedade para o nome da sobrinha.

Explicou, detalhadamente, as condições para que Mafalda pudesse entrar na casa. Realçou o fato de somente poder entrar lá quando completasse sessenta anos, exatamente como ela havia feito.

Disse também que o casarão era mágico, notícia que foi recebida com ceticismo pela sobrinha. Entregou as chaves, fez as malas e nunca mais retornou ao Brasil, vivendo confortavelmente seus últimos anos. Mafalda, ao ver sua tia embarcar, não titubeou e foi até o endereço da sua nova residência.

Sem cumprir as determinações de sua tia, aproximou-se da porta e quando ia colocar a chave na fechadura ouviu uma gargalhada vinda do interior da casa.

Sem se impressionar com o fato, introduziu a chave.

Escutou então um forte estrondo, o que a fez recuar ao meio da rua, e presenciar o desabamento da construção que ficou reduzida a escombros.

Do meio das ruínas continuou a ouvir-se sonoras gargalhadas.
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Arthur Thomaz é natural de Campinas/SP. Segundo Tenente da Reserva do Exército Brasileiro e médico anestesista, aposentado. Trovador e escritor, publicou os livros: “Rimando Ilusões”, “Leves Contos ao Léu – Volume I, “Leves Contos ao Léu Mirabolantes – Volume II”, “Leves Contos ao Léu – Imponderáveis”, “Leves Aventuras ao Léu: O Mistério da Princesa dos Rios”, “Leves Contos ao Léu – Insondáveis”, “Rimando Sonhos” e “Leves Romances ao Léu: Pedro Centauro”.

Fontes:
Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: mirabolantes. Volume 2. Santos/SP: Bueno Editora, 2021. Enviado pelo autor.
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sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Daniel Maurício (Poética) 84


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O poeta Daniel Mauricio é natural de Jaguariaíva/PR, em 1968, Graduado em Letras - UFPR; Administração de Empresas - FESP; Direito - FARESC; Pós-graduado em Gestão Administrativa e Tributária – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão de Pessoas e Qualidade no Setor Público - SPEI; Pós-Graduado em Gestão Pública de Tecnologia da Informação – PUC/PR; Pós-Graduado em Gestão Pública – FAEL. É Auditor de Tributos Municipais da Secretaria Municipal de Finanças da Prefeitura Municipal de Curitiba. Foi Integrante da Câmara Técnica Permanente da ABRASF – Associação dos Secretários de Finanças das Capitais, atualmente Chefe de Serviços do Setor de Processos Administrativos da PMC, Professor da Rede Municipal de Curitiba; Monitor na área de Linguística na Universidade Federal do Paraná, entre outros. Pertence ao  Centro de Letras do Paraná; - Academia de Cultura de Curitiba; Confraria Brasileira de Letras; Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil; União Brasileira de Escritores etc. Publicou livros de poemas: Mosaico de Sentimentos; Cacos e Retalhos; Gotas Poéticas; Origamis de Palavras; Palavras de Cheiro;  Miudezas do Coração; Poemininos; Poesias da Madrugada; Leve-me;  Alma Lírica; Olhares; e Amar É.

Antonio Juraci Siqueira (Metamorfose)

A noite envolve a floresta em seu sudário. Pouco a pouco a lua liberta-se das copas das árvores para espiar o rio deslizar em silêncio entre jarandubas. De repente um punhal de fogo rasga a mortalha da noite e o estampido de um foguete quebra o silêncio. Em poucos segundos novos fachos de luz varrem o céu e o troar ecoa nas lonjuras insondáveis assustando a vida notívaga das redondezas e, ao mesmo tempo, avisando os moradores das cercanias que no velho barracão de madeira e palha, debruçado sobre o rio, a festa do santo padroeiro está começando. Após a ladainha, haverá arrasta-pé no salão de paxiúba-batida à luz de velhos candeeiros a querosene.

A Lua vai alta quando cessam os últimos “ora pro nóbis” nas bocas dos rezadores. A parte profana vai começar. A cuíra é geral. Num canto da sala, à ilharga do oratório enfeitado de fitas onde alguns cotos de velas ainda ardem nos castiçais de bronze, Dico Pimenta arranca as primeiras notas da velha clarineta herdada do avô, com quem aprendera os primeiros acordes. Presença garantida nas festas do lugarejo, sempre acompanhado da viola fiel do Neco Libório.

Mas nessa noite há um certo quê de intranquilidade rondando o ambiente. Se no rosto de cada caboclo a preocupação transparece, no semblante de cada ribeirinha há um furtivo ar de ânsia e de espera. Mas, afinal, o que será que semeia tanta preocupação nas almas dos homens e inunda de ansiedade os corações das mulheres? Ninguém sabe explicar com segurança. Tudo começou quando um rapaz passou a frequentar as festas, saído sabe Deus de que brenhas. Ninguém o conhecia na localidade ou, pelo menos, cruzara seu caminho durante o dia. 

A verdade é que todas as vezes que havia festas por aquelas bandas lá estava ele envergando elegante terno de linho branco a rodopiar no salão, arrancando suspiros inconfessáveis das moças interioranas e crivando de inveja e ódio os espíritos dos jovens caboclos. E não era para menos: o garboso mancebo, além do alinhado fato branco e do inseparável chapéu de abas largas a sombrear-lhe a face enigmática, ostentava, ainda, um belo relógio de pulso folheado a ouro, um reluzente par de negros sapatos e um vistoso cinturão de pele de cobra com dois rubis encravados na fivela. Jamais alguém o ouvira pronunciar uma só palavra. Um olhar sedutor acompanhado de um leve gesto com a cabeça na direção de uma dama era o bastante para que ela, alma em fogo e o coração em brasa, se lançasse perdidamente em seus braços. E como dançava!... Onde aprendera a dançar daquela maneira ninguém sabia. Nem mesmo a superfície irregular do soalho de paxiúba era capaz de obstruir a elegância de seus passos. Quando menos se esperava, desaparecia sem deixar vestígios, levando consigo, sabe Deus como, a moça com quem dançava minutos antes, deixando, em seu lugar, o medo e a tristeza plantada nos rostos dos amigos e parentes da infeliz. A festa findava ali. No dia seguinte, após fatigável busca, a vítima era localizada num trecho qualquer das margens do rio, olhar mortiço a fitar o vazio, trazendo, agora, a germinar no ventre, a semente indesejável de um amor maldito.

Os mais velhos aceitavam o fato como obra do destino, algo terrível e fatal contra o qual não tinham como lutar. Já os mais jovens não se conformavam ante a situação de terem suas irmãs, namoradas e até noivas infelicitadas por esse ente maligno do qual nem sequer o nome sabiam.

O grão da revolta há muito tempo semeado e regado na alma dos nativos, germinou e ganhou corpo com tanta intensidade que nessa noite um grupo deles planejou acabar com aquele estado de coisas, caso o diabólico rapaz de branco ousasse aparecer na festa.

Indiferente ao destino da humanidade, a Lua singra os mares celeste derramando sua luz sobre seres brutos e mortais. É preamar. O rio interrompe seu fluxo por uns instantes como a recobrar forças para reiniciar sua perene jornada em direção ao mar. De repente, como se fora o próprio luar materializado, uma figura humana em trajes resplandecentes surge no terreiro. Passos lentos e firmes transpõem o batente da porta do barracão. Não há surpresa. Apenas indignação e raiva no olhar dos homens contrastando com a indissimulável alegria bordada no olhar das moças.

Após o impacto emocional do primeiro instante a festa prossegue embalada ao som da velha clarineta do Dico Pimenta, acrescida, agora, de mais um cavalheiro que, indiferente a tudo, volteia pelo salão mal iluminado, ora com uma, ora com outra dama que completamente mundiadas disputam-lhe a posse.

A festa vai rasgando a madrugada quando o estalido seco de uma bofetada dá início à briga premeditada pelo grupo de rapazes com o intuito de nela envolver o intruso dançarino. O furdunço é total. As mulheres, apavoradas, correm em busca de abrigo. O cerco se fecha em volta do misterioso rapaz de branco que num salto felino livra-se da dama e, com movimentos incrivelmente ágeis, vai escapando das peixeiras ávidas de sangue. A cena insólita tende ao sobrenatural. Facas relampeiam em busca do corpo do fantástico ser e nada encontram. O cansaço e o medo apoderam-se dos ribeirinhos. Em dado momento o moço mergulha no mar de facas em direção ao soalho para recuperar o chapéu perdido na contenda. Ao levantar-se uma mancha vermelha macula a lapela esquerda do terno branco. Mortalmente ferido, consegue, num derradeiro esforço, lançar-se porta a fora em direção ao rio. Novas e violentas facadas o prostram, definitivamente, a poucos passos da ribanceira.

O barracão, outrora festivo, se veste de silêncio. Somente o rio murmura entre barrancos sob o jugo da maré vazante. O povo, ainda sem entender direito o que aconteceu, vai formando um circo ao redor do corpo agonizante que, em dado momento, com um pavoroso grunhido, estremece devolvendo à fria atmosfera seu último suspiro. Nesse instante, com o terror desenhado nos rostos, os presentes testemunham uma estranha e aterradora metamorfose: aquilo que antes parecera, aos olhos de todos, um par de negros sapatos a deslizar faceiros pelo salão, retoma a forma original de dois acaris; do belo relógio de pulso, que tanta inveja despertava nos corações dos jovens caboclos, nada mais resta além de um pequeno caranguejo e o cinturão de pele de cobra com rubis na fivela, revela-se, agora, uma temível jararaca-do-barranco. Finalmente, rostos banhados de luar e pânico, aquela gente simples do interior da Amazônia vê o inseparável chapéu de abas largas do rapaz de branco transformar-se, ante seus olhos, numa arraia a debater-se, indefesa, ao lado do corpo inerte e exangue de um formidável boto tucuxi.
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Antônio Juraci Almeida Siqueira, nasceu em Afuá, no Pará, em 1948). Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes: 
https://blogdobotojuraci.blogspot.com/2008/08/metamorfose.html
Imagem = https://br.pinterest.com/pin/98586679343712210/

Vereda da Poesia = 197


Trova de
LEÔNCIO CORREIA 
Paranaguá/PR (1865 – 1950)

No mar aberto em feridas
em cuja dor te renovas,
sana-se o mal de outras vidas
em meio de grandes provas.
= = = = = =

Triversos de
LUCIAH LOPEZ
Curitiba/PR

Vesperais

I
extraindo a saudade
das varandas e alpendres
tua substância esvanece

II
no horizonte vermelho
ídolos se avizinham
fugidias são as horas

III
ázimos serão os pães
que alimentarão as bocas
ao final do dia

IV
ao entardecer
o jardim é secreto
palco de euforias

V
ao cair da tarde
despertam cigarras cantadeiras
sonora euforia
= = = = = = = = =  

Trova de
GERSON CÉSAR SOUZA
São Leopoldo/RS

Ator, arisco ao cabresto,
rebelde, se for preciso,
a vida escreve o meu texto
e eu teimo e sempre improviso!
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Lembranças de Minas Gerais

De manhãzinha -
Janela entreaberta
À mesa de madeira
Pequenas flores perfumam
A caneca de ágata,
Recebendo os tênues raios de sol,
Enquanto o gato se espreguiça
À soleira da porta -
Distancia-se o som do trem,
Sinto o aroma de café
Que evola do antigo bule azul,
Emoldurando
O despertar da vida
Em poesias e nas alegres
Borboletinhas brancas -
Manhã de primavera
Desperta em Minas...
= = = = = = 

Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Guri do boné virado, 
estilingue... palavrão..., 
hoje, vigário ordenado: – 
Pax vobiscum, meu irmão!
= = = = = = 

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Hei de render-me de braços levantados
(Mário Sousa Ribeiro, in “Textos de Amor”, p. 118)

Hei de render-me de braços levantados
Se apontares um beijo ao meu coração
E, algemados, arrastares à prisão
Estes meus olhos puros de amor armados.

Detido entre os teus braços já desfardados
Não irei implorar nada, nem perdão
E só assinarei uma confissão
A de querer os ferros eternizados.

Provo que sou culpado, sim, pela morte
Desses dias de pasmo e sinistra sorte
Que tive antes de tu bem me aprisionares.

Sei que o teu amor me salva e me redime
Mas irei cometer sempre o mesmo crime
Para nunca, nunca mais tu me soltares. 
= = = = = = = = = 

Poetrix de
REGINA LYRA
João Pessoa/PB

Harmonia

Supostas teclas
dedilham saudades.
Música que fazíamos juntos.
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918


Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.

De motejo em motejo arrasta a alma ferida...
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.

Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!

E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Almoço e janto poesia. 
E neste meu universo, 
mastigo um pão todo dia 
amanteigado de verso.
= = = = = = 

Poema de
HEINRICH HEINE
Alemanha, 1797 – 1856

De Manhã Cedo

Minha esposa querida e boa.
Minha bem amada esposa,
Que logo pela manhã
Negro café, branco leite,

É ela mesma quem serve!
E com que encanto, que sorriso!
Em todo o mundo de Cristo
Não há quem sorria assim.

E a flauta que é sua voz
Só entre os anjos se encontra.
Cá por baixo, quando muito,
Entre os melhores rouxinóis.

E as mãos que são como lírios
E os cabelos que entressonham
Em volta do róseo rosto!
Ah, tudo nela é perfeito!

Hoje, porém, ocorreu-me
- Não sei porquê - que um pouquinho
Mais elegante o seu corpo
Pudera ser. Um pouquinho.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Pergunta o padre ao noivinho: 
- "É de espontânea vontade?" 
e ele respondeu baixinho:
- "Não senhor...necessidade!...”
= = = = = = 

Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

Eu sou aquele

Eu sou aquele que, estando sentado a uma janela,
a ouvir o Apóstolo das Gentes,
adormeci e caí do alto dela.
Nem sei mais se morri ou fui miraculado:

consultai os Textos, no lugar competente —
o que importa é que o Deus que eu tanto ansiava
como uma luz que se acendesse de repente,
era-me vestido com palavras e mais palavras

e cada palavra tinha o seu sentido...
Como as entenderia — eu tão pobre de espírito
como era simples de coração?

E pouco a pouco se fecharam os meus olhos...
e eu cada vez mais longe... no acalanto
de uma quase esquecida canção...
= = = = = = 

Trova de
MIFORI
(Maria Inês Fontes Rico)
São José dos Campos/SP

A flor caiu dos cabelos
da jovem que ali passava
e levada foi sem zelos
para o mar que a cobiçava.
= = = = = = 

Hino de
TORRES/ RS

Torres.
Tu és, cidade - menina,
A mais formosa praia sulina....
Tu és vida, luz e calor,
Tu és um poema de amor.

Entre as praias gaúchas,
Tu és a mais bela;
És uma linda aquarela.
De cor e de poesia...
És magistral sinfonia.

O teu mar de verdes águas,
Batendo contra os rochedos,
Vai cavando entre penedos
Tuas furnas deslumbrantes...

O Mampituba sereno,
A Torre Sul e a Guarita,
O Farol e a Torre Norte,
A Igrejinha tão bonita.

Recantos cheios de sonhos...
Torres : Ó praia tão sedutora,
Tens a beleza morena
Da menina sonhadora,
Da moça que devaneia
Sobre a tua areia...

Ó Torres :
Das três torres,
Tu és a rainha das praias...
= = = = = = = = =  

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

A palavra

Palavras no contexto expressam vida
de felizes momentos ou tristezas,
de dor, condenação ou de belezas,
mas sempre vão estar em tua lida.

As decisões tratadas nas empresas,
nas escolas, na rua ou na avenida,
terão pra sempre a nota definida
pelas palavras cheias de certezas.

Mas, se a elas usamos com desprezo
transformarão aquilo que fizermos,
perderão o sentido em apalermos.

Mas se o texto estiver já bem coeso,
com a palavra usada em bom contexto
vamos, pois, escrever, não há pretexto.
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova Premiada de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

A mulher que é mãe me encanta, 
no lar, seja aonde for.
Pois sendo mãe ela é santa 
sendo mulher é o amor.
= = = = = = = = = 

Poema de
ANTONIO JURACI SIQUEIRA
Belém/PA

Missão

Quando alguém te ferir,
escreve;
quando a noite chegar,
escreve;
quando a chuva cair,
escreve;
quando o sonho acabar,
escreve!

Se a tristeza se for,
escreve;
se o amor renascer,
escreve;
se a esperança se impor,
escreve;
se o jardim florescer
escreve!

E só então
terás cumprido à risca
tua missão.
= = = = = = = = =  

Quadra de
AUTOR ANÔNIMO

Não sei se vou ou se fico,
não sei se fico ou se vou…
Se vou, eu sei que não fico,
se fico, eu sei que não vou…
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José Feldman (Fábulas) O Burro, o Cavalo, o Cão, a Vaca e o Homem

Havia um tempo em que os animais falavam entre si e com os homens.

Era uma vez, em uma pequena fazenda, um burro chamado Tobias, que era conhecido por sua força, mas também por sua falta de esperteza. Ele trabalhava duro, carregando sacos de ração e ajudando no transporte de mercadorias. No entanto, seus amigos, um cavalo chamado Estrela, um cão chamado Rex e uma vaca chamada Margarida, sempre riam de suas confusões.

Um dia, o dono da fazenda, Paulo, decidiu organizar uma competição para ver quem era o mais útil entre os animais. 

“Vou premiar o que me ajudar mais”, disse ele, com um sorriso no rosto. 

Todos os animais ficaram animados com a ideia, exceto o burro Tobias, que já tinha uma ideia de que as coisas poderiam não sair bem para ele.

Na manhã da competição, Estrela, o cavalo, começou a correr em círculos, puxando um carro cheio de fardos. “Olhem como sou rápido e forte!” exclamou ele, enquanto todos o aplaudiam. 

Rex, o cão, decidiu mostrar sua agilidade. Ele correu atrás de uma bola que o Paulo lançou, pegando-a rapidamente e trazendo-a de volta. “Eu sou o melhor amigo do homem!” latia Rex, orgulhoso.

Margarida, a vaca, por sua vez, decidiu impressionar o homem com seu leite fresco. Ela se posicionou ao lado do balde e, com um movimento elegante, produziu um litro do melhor leite da região. “Olhem, eu sou essencial para a alimentação!”, disse ela, enquanto todos a elogiavam.

Tobias, o burro, observava seus amigos com um olhar triste. “O que eu posso fazer para ajudar o Sr. Paulo?”, pensou ele. 

De repente, uma ideia lhe ocorreu. Ele se aproximou do homem e disse: “Posso carregar todos os fardos que você precisar, senhor!”

Paulo, surpreso com a oferta, aceitou. O burro Tobias começou a carregar os fardos, mas logo se distraiu com uma borboleta colorida que passou voando. Ele começou a persegui-la, esquecendo completamente do que estava fazendo. Os fardos começaram a cair e a bagunçar o lugar. 

O homem, irritado, gritou: “Tobias, você é o burro mais burro que conheço! Olhe o que está fazendo!”

Os outros animais riram e zombaram de Tobias. 

“Viu? O burro não serve para nada!”, disse o cavalo Estrela. 

“Nem para carregar fardos direito!”, completou o cão Rex. 

A vaca Margarida, mesmo rindo, sentiu um pouco de pena do amigo.

No entanto, enquanto os animais se divertiam, Paulo começou a perceber que, apesar de sua força, ele mesmo estava cometendo um erro. Ao se distrair com a confusão dos animais, ele deixou o portão da fazenda aberto. Um grupo de ovelhas decidiu aproveitar a oportunidade e saiu correndo pelo campo.

Quando o homem percebeu o que havia acontecido, ficou desesperado. 

“Minhas ovelhas! Voltem aqui!”, gritou ele, correndo atrás delas. 

Tobias, o burro, vendo o caos, teve uma ideia. Ele se apressou e começou a conduzir as ovelhas de volta para a fazenda, usando sua força e agilidade. Com determinação, conseguiu reunir todas as ovelhas e guiá-las de volta.

Quando o homem viu o que Tobias havia feito, ficou em choque. 

“Eu estava tão preocupado em avaliar a utilidade dos outros que não percebi que o verdadeiro burro aqui sou eu!”, disse Paulo, envergonhado. “Tobias, você é mais sábio do que pensei! Obrigado por me salvar!”

Os outros animais, que antes riam de Tobias, agora o viam com respeito. 

“Às vezes, a força não é tudo. A sabedoria pode vir de onde menos se espera”, refletiu Margarida, a vaca.

Moral da Fábula:
A verdadeira sabedoria e utilidade não estão apenas na aparência ou nas habilidades, mas também na humildade e na capacidade de agir em momentos de necessidade.
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José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR, onde pertence a diversas entidades. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura,. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat.Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Coelho Neto (Divagando)

Entrando, de manhã, no meu escritório, vi o velho calendário murcho, a oscilar com a aragem na parede fronteira à minha mesa de trabalho — só lhe restava uma folha... Para que arrancá-la se nada mais havia atrás daquele número que representava apenas uma recordação? Que o mísero levasse aquela última folha para o lixo.

Outro calendário, novo e gordo, carregado de folhas, como uma árvore na primavera, foi substituir o velho bloco lentamente consumido e foi somente essa substituição que me fez sentir o tempo, porque não notei diferença alguma na manhã — nem mais moça, nem mais velha. No alto o mesmo azul, no azul o mesmo sol; voando, os mesmos corvos e as mesmas andorinhas; na terra às mesmas árvores, as mesmas flores, as mesmas águas, entretanto, durante a noite, o mundo silenciosamente vencerá outro marco. E porque só o calendário acusava a passagem destruidora do tempo?

Indiferentemente, todas as manhãs, eu lhe arrancava uma folha e a lançava à cesta dos papéis. E que representava aquela folha morta?

Quem lhe escrevesse o inventário teria de encher resmas e resmas de páginas largas registrando a campanha dos homens “pelo ventre”, como diz Epicuro: vidas e mortes, fomes e frios, agonias e prazeres, bodas e enterramentos, marchas de exércitos e convênios pacíficos, cerimônias rituais e conciliábulos covardes, inventos e desilusões, sonhos desfeitos e utopias realizadas, travessias de águas e de areais estéreis, ascensões arriscadas e mergulhos no seio da terra à cata do ouro das minas, trabalhos serenos, estudos calmos, ânsias desesperadas, ambições voracíssimas, e, superiormente, a marcha tranquila dos astros luminosos.

Tudo isso continha a miserável folha morta que eu atirava, com desprezo, à cesta dos papéis inúteis; cada uma delas representava um dia.

Ai de mim! Cada uma delas era como um recibo que eu dava de um dia que vivera e como eles são avaramente contados, como o dinheiro de Shylock (1), era o meu capital de alento que assim se esgotava. Era, pois, de mim mesmo que eu arrancava aquelas parcelas — o calendário era apenas um símbolo, o que eu ia destruindo era o meu próprio ser.

E fiquei a olhar o papelão onde estava estampado aquele número que era tudo quanto restava do velho calendário. Ocorreram-me, então, as palavras do filósofo: “a vida é como um rio que corre sobre um leito eterno — o tempo”.

Nós somos as águas que passam, águas, como as do Nilo santo, de origem misteriosa. Para onde correm elas? Para a eternidade, que é um oceano sem praias. As margens são de vários aspectos — aqui frondosas, ali estéreis, acolá sombrias, iluminadas além.

Há gotas de água que descem desde a nascente, pelo meio claro do rio, rolando em tumulto, refletindo o sol e as estrelas, numa alegria sem fim: são as vidas ligeiras e inúteis; que bem fazem? Que destino cumprem? Correm, engrossam apenas a caudal e passam.

Outras, como se houvessem petrificado para conservar em carcérula (2) uma centelha astral, cristalizam-se em diamantes imperecíveis e refulgem no seio das águas — a luz é a inspiração perene, o gênio cristaliza o esplendor em obras imorredouras. Outras remansam-se junto à raiz de uma árvore e transformam-se em seiva e, subindo, desabrocham em flor e metamorfoseiam-se em fruto. Outras, as mais humildes e as mais numerosas, transbordam com as cheias, são repelidas pelo fluxo do rio e alastram alagando as margens, formam nateiros (3) pingues (férteis) onde reponta a messe de ouro. Essas são as gotas generosas, são o enxurdeiro (lamaçal) da fecundação, o tremedal da abundância. As outras passam — o rio é alvo e feliz e discorre cantando, o lodo é negro e parado.

Que nasce no rio? A ninfeia; o centro é estéril, só as margens tranquilas verdejam e o nateiro é todo trigo, é todo linho, é todo azeite.

Queres tu ser a gota que vai na derrama fertilizante? Não, por certo — preferes, sem dúvida, ser a gota ligeira e despreocupada que desce na correnteza para o oceano do eterno silêncio. O ideal é a “facilidade” — feliz é o que corre sem encontrar tropeço, brincando nos remoinhos, saltando nos pedrouços, revoluteando nos grotões e mais feliz ainda é a bolha efêmera de espuma que vive apenas o tempo necessário para refletir o azul do céu e o verde formoso da paisagem.

Como são desiguais os desejos! Vede como variam nas almas os ideais. Cada qual trata com mais empenho de iludir o tempo. O menino imagina-se um homem — é guerreiro e, brandindo armas, que são brinquedos, afronta inimigos imaginários, ou é artífice e trabalha ajustando a ferramenta: aplaina, serra, prega e pule; ou é agricultor e cava, revolve a terra, planta e colhe. A menina, ainda balbucia, e já pensa em ser mãe — ei-la tartamudeando carícias à boneca e nina-a, e veste-a, e afaga-a. Chega-a ao colo agasalhando-a, alisa-lhe os cabelos, fecha-lhe as pálpebras e, à noite, cabeceando de sono, não há convencê-la a deixar a filha: leva-a nos braços e dorme com ela chegada ao coração.

O menino julga-se capaz de realizar a conquista do mundo e orgulha-se da sua força e da sua agilidade levantando pesos, lutando ou subindo lentamente às árvores como um esquilo. A menina já se imagina sedutora e dengosamente ensaia a faceirice — um corre aos ninhos, corre a outra aos espelhos, e que fazem? Sonham com o amanhã, é o instinto que os impele através do tempo ao destino prescrito.

Para complemento da ilusão o menino põe-se a repuxar o lábio, a retorcer as guias de um bigode imaginário, engrossa a voz, pisa com firmeza e, arrastando um bengalão, lá vai pela casa a pavonear ufano, e a menina reclama um vestido comprido, exige que lhe levantem o cabelo, adelgaça a cintura, toma atitudes lânguidas e, quando se reúnem, continuam a sonhar e o sonho é a família: são compadrios, crianças que nascem, projetos de batizados, mesas de lauto festim; ou intrigas na vizinhança, as rugas no casal e até (horresco referens! (4)) alusões ao divórcio por incompatibilidade entre os cônjuges — é uma comédia da vida por marionetes animadas. Esses querem avançar. Agora vede mais adiante — outra face da ilusão: os que procuram retroceder: É o homem que se encalamistra (5), é a dama que se maquilha (6); que fazem? Procuram reparar “des ans l’irreparable outrage” (7): são os regressivos.

Há aqui um cabelo branco indiscreto, há ali uma ruga denunciadora, a pele encarquilha-se, perde a frescura, vão-se os olhos tornando ternos, os lábios já não são tão róseos, que fazer? Pedir socorro ao artifício — e são tintas, pomadas, pastas, lápis, ferros de feitios complicados, toda uma farmácia, toda uma cutelaria no toucador.

O homem recorda, então, o tempo em que era um trêfego rapaz ágil e forte — ah! Dançava toda uma noite sem sentir fadiga, excedia-se em extravagâncias, sem jamais sofrer as consequências. Uma noite em claro... que era isso! Bom tempo!

A dama relembra os seus quinze anos viçosos, o seu primeiro namoro, os dias do seu noivado... como era feliz! Tudo lhe sorria e os espelhos eram mais puros... Porque não havia de tornar esse tempo amável?

E os velhos, os que já não podem esconder as injúrias do tempo? Esses tornam à infantilidade. O próprio tempo como que os transforma — tornam-se tartamudos, ficam desdentados, caminham à custa de apoios, alimentam-se como os petizes e até vão engelhando: — a velhice é a caricatura da infância, os extremos tocam-se.

Certos povos entendiam que era uma caridade matar os velhos — que ficavam eles fazendo na vida? Pobres ruínas, antes que aluíssem o melhor era deitá-las abaixo e os velhinhos, como era de uso o sacrifício, resignavam-se, e, arrimados aos mancebos, rindo, talvez, por entre os trigos e os fenos, ouvindo pela derradeira vez as vozes alegres dos pássaros, lá iam para o cutelo, desejando a paz aos que ficavam e abençoando os pequenitos.

Que nos importa mais um ano? Isso de idade é grave para os velhinhos — quando o copo está cheio basta uma gota de água para que transborde. Para nós outros, porém, que ainda vamos pelo meio, que nos importa essa gota que caiu da clepsidra (8)?

A vida é como aquela colina encantada do conto maravilhoso — para alcançar-lhe tranquilamente o viso é mister seguir de fronte erguida, olhando sempre em frente.

Ai! Dos que volvem os olhos ao Passado — ficam na melancolia e na saudade e, se não vêm rochas que clamam, como viram os irmãos de Parisada, vêm lápides tumbais e ilusões perdidas. Assim, pois — caminhemos de olhos no além! E que o novo caminho nos seja suave.
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NOTAS
(1) Shylock = personagem de o Mercador de Veneza, de William Shakespeare.

(2) carcérula =[ Botânica] Nome dado às cavidades de alguns frutos indeiscentes, como a romã.

(3) nateiro = Camada de lodo formada pela poeira, detritos orgânicos e água da chuva.

(4) horresco referens! =  locução latina “tremo ao contá-lo”.  Exclamação de Eneias (de Virgílio), referindo a morte de Laocoonte, nas roscas das serpentes, e que se emprega quase sempre em tom jocoso.

(5) encalamistra = torna crespo o cabelo.

(6) maquilha = se enfeita com cosméticos, se maquia.

(7) des ans l’irreparable outrage = dos anos de indignação irreparável.

(8) clepsidra = antigo instrumento constituído por dois cones que se comunicavam pelo ápice (sendo um deles cheio de água) e que era utilizado para medir o tempo com base na velocidade de escoamento da água do cone superior para o inferior; relógio de água.
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Henrique Maximiano Coelho Netto nasceu em Caxias/MA, em 1864 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife. No Rio de Janeiro, conheceu José do Patrocínio, que o introduziu na redação do jornal Gazeta da Tarde e no periódico A Cidade do Rio, época em que começou a publicar os seus contos. No início da República, além de jornalista e professor de literatura e teatro, foi deputado federal, pelo Maranhão, em três legislaturas. Em 1890, casou-se e teve catorze filhos. Nesse mesmo ano ocupou a Secretaria do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Sua residência no Rio, na rua do Rocio, tornou-se famosa como ponto de encontro de celebridades e artistas. Nas reuniões animadas por declamadores e músicos, era comum a presença de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Humberto de Campos. Além de jornalista, Coelho Neto estreou na literatura, em 1891, com o livro de contos "Rapsódias". Em 1892, lecionou História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes e Literatura no Colégio Pedro II. Coelho Neto realizou uma obra extensa, que chega a mais de cem volumes, entre romances, contos, crônicas, memórias, conferências, teatro, crítica e poesia. Em 1896, Coelho Neto participou das primeiras reuniões com objetivo de criar a Academia Brasileira de Letras. Em seguida, tornou-se sócio fundador da cadeira de nº 2 e foi presidente em 1926. Em 1910, Coelho Neto foi nomeado para a cátedra de História do Teatro e Literatura Dramática na Escola de Arte Dramática. Em 1928, foi consagrado como “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, em uma votação realizada pela revista O Malho. Coelho Neto era um dos mais lidos e prestigiados escritores de seu tempo, porém, no final da década de 1920, os modernistas passaram a criticar a forma pomposa e rebuscada, cheias de artifícios retóricos em muitos de seus textos e que não seriam capazes de enfrentar os grandes dilemas da nacionalidade. Algumas obras: os romances Capital Federal (1893), Inverno em Flor (1897), Turbilhão (1906), O Rei Negro (1914), contos: Jardim das Oliveiras (1908), Vida Mundana (1909), Banzo (1913), Contos da Vida e da Morte (1927) e outros.

Fontes: 
Coelho Neto. A bico de pena. Publicado originalmente em 1903.
Biografia = https://www.ebiografia.com/coelho_neto/
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quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 07

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Silmar Bohrer nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).