sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Aparecido Raimundo de Souza (O velho balanço)

ÀS VEZES, na minha saudade cheia de pesadas digressões e insípidos detalhes, recordo a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo. Dentro dessa saudade, afrontando perigos terríveis os mais diversificados, me transporto (como num sonho bom), levado que sou pelas asas coloridas da fantasia dimensional. Nessa viagem minhas prerrogativas se propagam e então, extasiado, alcanço os primórdios daquela quadra risonha e feliz, onde, pés descalços, palmilhando sofregamente a terra batida passava os dias brincando contente, numa adolescência puramente bucólica e envolvente destituída da maldade dos adultos e da perversidade dos homens sem lei.

Claro como a luz incandescente que abrasa meus dias atuais, vai se desenrolando, com a nitidez de uma reconstituição inesperada, uma espécie de visão cadente. Dentro dela, vejo o alpendre com as mesas e as cadeiras em madeira pura, a pinguela sobre o córrego junto aos canaviais, o curral, o paiol de guardar mantimentos (que, de tão antigo, se debruçava no peso de sua própria caducidade) e o monjolo que funcionava incansável, às margens de um riacho de águas límpidas e brilhantes, onde no começo de noite, por volta das dezoito, uma lua bonita vinha refletir a sua resplandescência. A tudo sinto claramente, como se tivesse vivendo aquele momento (tal e qual aconteceu exatamente) sessenta e quatro anos atrás.

Mas esperem! Falta uma peça importante para completar esse jogo de recordações que invade meu “eu” entorpecido. Não consigo encontrar esse elo ausente, esse brinquedo que durante anos a fio representou a minha verdadeira razão de existir. Falo de um balanço. De um velho balanço que vivia escondido, lá bem longe da casa grande (mais para perto dos campos cobertos de primavera), quase a roçar nos trilhos da velha Maria Fumaça, que propriamente do imenso quintal que adornava a galeria em torno da construção principal. Todo cair de tarde, por volta das quatro horas, quando vinha descansar da estafa da escola primária, era naquele balanço de correntes enferrujadas, meu passatempo preferido. 

Vezes sem conta, me punha a balançar em ritmo coordenado e eloquente, esquecido de tudo, da vida, das lições chatas de matemática (de português não, adorava as aulas de redação), da professora de história, da merenda ruim e repetida, dos colegas brigões e dos castigos impertinentes com joelhos ao milho (rosto colado à parede), ou quando, por qualquer besteira, extrapolava além da conta, entrava em cena, a admoestação endossada pela abusada e temida palmatória. Naquele vai e vem mavioso, algo bom e sensível espantava para as colinas verdes e adornadas de esperança, as intempéries e incertezas de meus dias memoráveis.  

Dava a impressão em minha desenvoltura espiritual, meus tesouros de astúcia e fertilidade de imaginação, que no “vai”  alcançava um futuro muito além das minhas possibilidades de menino sem dono. Como se, num repente, topasse com outro mundo paralelo e desconhecido, esmagando taciturnamente meus sonhos desordenados. Na verdade, era mais feliz o “vem,” porque novamente retrogradava, recuava no tempo, passava pela infância querida, batia os pés no meu chão vermelho e tudo, tudo como num passe de mágica, se transformava. 

Nessa conversão, voltava a ser criança outra vez. Dentro de mim, me sentia gente, apesar de morar com vovô João, senhorzinho encurvado pelo peso dos janeiros, seu rosto congelado sob as rugas, como o de um ser sem vida, entretanto, simples de alma e humilde de coração. Retinha dentro de sua fragilidade meu querido avô, uma paciência de Jó. Parecia um personagem saído de uma canção carnavalesca dos tempos do “ronca”. Na pele de um rei, me via poderoso, apesar de não ter mamãe por perto, papai ausente e separado dela, de não existir, tampouco, nenhum irmão da minha idade ou qualquer outra criança que me viesse fazer companhia. Embora prevalecesse essa lacuna, me aquilatava exaltado. De certa forma, fortalecido e solenizado. Como era bom estar de volta ao aconchego familiar! Vovó Martinha, entrincheirada nas suas horríveis dores de coluna, não regateava a atenção para comigo. 

Sinto, por todas essas coisas, uma falta tremenda de seus pães quentinhos, do café feito na hora, de seus doces, da sua comida no fogão à lenha. Por volta das oito horas, logo depois do jantar, tendo por companhia a lareira, vovô João, acomodado em sua espreguiçadeira, fazendo prevalecer a sua imaginação, botava pra fora histórias fantásticas, inventadas, contos classificados no prodigioso fichário que se transformara a sua memória.  Hospedeiro aos extremos, lhano e sociável, agarrado a esses enredos de espantos crescentes, criavam vida e forma, em suas palavras, bruxas e príncipes, fadas encantadas e cinderelas que se viam presas em castelos, por mãos de homens de corações maus, que transportavam criaturas inocentes em carruagens vermelhas, com cavalos de duas cabeças para um planeta desconhecido, cuja entrada ficava numa caverna, em meio da floresta densa e intocável...

Nesse retornar, me sentia envolvido pelo calor daqueles que me cercavam de carícias e afetos. Esses mimos se faziam quase opressivos, contudo, dentro de uma ansiedade que não chegava a ser tirana. Tarde da noite (não poderia me esquecer desse detalhe), meu Deus do céu... os vagalumes do campo vinham enfeitar a sacada, onde me sentava antes de dormir, para espiar longamente o tempo. Tinha a impressão de que o céu caía inteiro do infinito e se postava, vencido, aos meus pés descalços de pobreza. Apesar dessa desproteção, eu era capaz de viver, numa única existência, uma série de outras realidades num percurso que se me abria com infinitas sucessões.  

Como se fosse o apertar de um gatilho de uma arma poderosa, quebrava o marasmo, algo parecido com uma bala zunindo sons estranhos, libertando as vozes eufóricas dos sapos enterrados no brejo, dos grilos perdidos nas folhas das árvores e fazendo voar, num deslocamento pesado, os morcegos irrequietos que durante o dia dormiam negligentes e omissos na hospedagem do monjolo. Esses fatos, em conjunto, provocam uma espécie de explosão momentânea. 

Em mil pedaços me reparto agora, me desdobro, me compartilho. Ao fazê-lo, me vejo correndo feito guri daninho, de um lado para outro do passadiço. A todo custo, pretendo reter a noite, com todos os seus segredos. Guardar tudo numa caixinha de madeira velha, que mantenho escondidinha debaixo de minha cama. Porém, as mãos trêmulas de moleque encapetado não me permitem tal façanha.  Agora, quando passados tantos e tantos janeiros, percebo, com certa tristeza, todas essas coisas se foram, se perderam, sumiram no abismo imensurável e não volta mais. Abobalhado, de queixo caído, me questiono: por Deus, todas essas relíquias para onde foram? Em que parte de mim está escondida aquela quadra risonha que fazia parte do meu dia a dia? Essas indagações giram em minha cabeça no ritmo de um motor sendo acionado numa aceleração sôfrega. 

Talvez seja por isso, que às vezes, na minha saudade, angústia imensa como um mar proceloso de encontro a restos de um naufrágio, recorde a infância distante, perdida, agora, na poeira do tempo…

Como é bom, como faz bem viajar ao passado! Encontrar o chão de terra vermelha (nele o pomar de laranjas e as bananeiras), entremeado entre as duas velhas montanhas rochosas que os dominavam do alto. De roldão, o abacateiro florido onde eu subia e rasgava as calças. Havia também, as galinhas, os patos, marrecos e porcos que vovó Martinha juntava no terreiro, quando saia à porta da cozinha, sem deixar de lado as pedras e bugigangas rejeitadas que colocava nos trilhos dos trens que cortavam a herdade...

Nessa minha agonia imorredoura e atroz, sempre falta o velho balanço, com seu barulho tênue que ficava esquecido nos fundos do quintal. Essa peça enferrujada, que me fazia sentir mais criança que o moleque peralta existente dentro de mim. Cadê o velho balanço? Em que cantinho oculto de minha alma, em que desvio da minha lembrança, em que atalho nesse meu agora ele se quedou adormecido e estático? Indubitavelmente, era nesse velho balanço que viajava para o futuro. 

No mesmo passo, montado nele, andejava desenredado. Roubava, com uma só mão segurando a corrente, o espaço distante, as nuvens que voavam baixinhas, o sol gostoso, o ar mormacento que respirava o vento ameno que tocava nas folhas, e também o calor que aquecia meus cabelos. Confortavelmente sentado nesse brinquedo, acomodado com todas as minhas quimeras e esperanças, a cabeça jogada para trás, roubava com arrojo o azul mavioso do infinito e, de contrapeso, a paz enternecedora dos olhos de Deus para enfeitar os caminhos incertos e desconhecidos da minha louca imaginação.
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APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA, natural de Andirá/PR, 1953. Aos doze anos, deu vida ao livro "O menino de Andirá," onde contava a sua vida desde os primórdios de seu nascimento, o qual nunca chegou a ser publicado. Em Osasco, foi responsável, de 1973 a 1981, pela coluna Social no jornal "Municípios em Marcha" (hoje "Diário de Osasco"). Neste jornal, além de sua coluna social, escrevia também crônicas, embora seu foco fosse viver e trazer à público as efervescências apenas em prol da sociedade local. Aos vinte anos, ingressou na Faculdade de Direito de Itu, formando-se bacharel em direito. Após este curso, matriculou-se na Faculdade da Fundação Cásper Líbero, diplomando-se em jornalismo. Colaborou como cronista, para diversos jornais do Rio de Janeiro e Minas Gerais, como A Gazeta do Rio de Janeiro, A Tribuna de Vitória e Jornal A Gazeta, entre outras.  Hoje, é free lancer da Revista "QUEM" (da Rede Globo de Televisão), onde se dedica a publicar diariamente fofocas.  Escreve crônicas sobre os mais diversos temas as quintas-feiras para o jornal "O Dia, no Rio de Janeiro." Acadêmico da Confraria Brasileira de Letras. Reside atualmente em Vila Velha/ES.

Fontes:
Aparecido Raimundo de Souza. Travessuras de Mindinho e Fura—Bolos (Textos para se ler dentro do ônibus escolar). Enviado pelo autor.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 22 *

 

Renato Frata (Memórias)

A maioria de meus amigos usava botinas. Marrons, pretas, amarelas, de couro de búfalo. Engraxadas, lustradas, limpas, outras craqueadas, como a cara do freguês. Uma lindeza de calçado que me dava certa inveja, vez que meus pés calçavam, por contingência financeira, o 
par de Conga azul que durava uma eternidade. Machucava os pés, punha neles dose extrema de chulé, imensa quentura e me fazia escravo de sua durabilidade. As unhas dos dedões até que lhe fizeram buracos, mas nem assim o Conga estragou.

Falo da época em que os pais só trocavam os calçados dos filhos quando esses já não lhes cabiam nos pés e quase ninguém possuía dois pares. Usava-se o mesmo de domingo a domingo, até se acabarem, para provar que o verbo acabar, nessa época, era nossa salvação.

Minha mãe me obrigava a lavar os meus semanalmente com escova e sabão de soda, especialmente em época de chuva que, não tendo o sol para secá-los, usava-se a taipa do fogão. No outro dia, estavam ótimos, mas cheirando à fumaça, meios tortos e duros, e isso era o de menos.

De certo que meus amigos também me invejavam, pois não possuindo o Conga de sola de borracha, novidade para a molecada, os sapatões que também aqueciam os pés eram. desconfortáveis e, por igual, de vida longa. Mas ninguém reclamava, aceitando a realidade. Nessa época, pedia-se tudo, mas se o pai podia, ganhava–se o necessário.

Fui trabalhar numa frutaria com a obrigação de abastecê-la de agrião e, para isso, o dono colocou em minhas mãos uma bicicleta com a qual, toda manhã por volta das seis, saía para buscar, numa chácara a uns cinco quilômetros de distância, uma cesta grande de verduras.

Fiz isso com gosto por um bom tempo, e a bicicleta foi um lenitivo que me levava a voar nos meus sonhos e enquanto "voava" com ela pelas ruas buraquentas, poeirentas ou enlameadas, até que chegou o fim do mês e com ele meu primeiro ordenado. Caramba, meu!

Com o maço de notas de trocados nas mãos, um desassossego tomou conta do meu eu; como gastá-las?

Os olhos brilhavam de emoção, e claro, jamais compraria outro par de Conga, por isso pensei nas botinas que me igualariam aos meus amigos. Eu tinha dinheiro, podia tudo e, terminado o expediente, com o dinheiro 'queimando' em meu bolso, corri à loja. Mostrei à moça a quantia e ela sorriu, ao tempo que desceu da prateleira dois pares das botinas que brilhavam; um preto e um marrom e, ao vê-las tão junto de mim, ao lado dos meus pés, minha alma resplandeceu. Eram lindas, macias e ficaram bem nos meus pés. Mas ao olhar a vitrina ali do lado, outro par de sapatos me chamou á atenção. Reluzia num pedestal, um par de sapatos femininos. Olhei-os bem e os imaginei nos pés da minha mãe. Sim, vi-a calçada neles, desfilando pela igreja aonde ia todos os domingos, até que resolvi; deixaria as botinas para o próximo pagamento. Os sapatos para ela, a meu ver, eram mais importantes e necessários.

A vendedora, que a princípio não entendera o motivo da repentina troca, sorriu dizendo: - Ela vai gostar, ora, se vai. Um presente desse não se recebe a todo momento. São os sapatos mais bonitos que temos aqui...

Então, mandei embrulhar, paguei-lhe com o maço de notas sem receber troco, e sai apressado com o pacote. Minhas mãos tremiam de emoção. Por isso, corri pela rua como aloprado. Eu daria ã minha mãe o melhor dos presentes que meu salário podia e não sei, se de emoção ou do calor, ou das duas coisas juntas, meu coração pulava de arrebatamento. Eu daria a ela um presente comprado com o meu primeiro salário.

Pois chispei, abri o portão no peito, invadi o quintal, pulei na cozinha e, com um saboroso sorriso cortando a cara, a encontrei a mexer polenta com a indefectível colher de pau.

Estranhou aquela balbúrdia, mas me recebeu com um abraço.

- Upa! Meu filho! Que bom que você voltou, logo a boia fica pronta.

Olhou-me sem entender, diante do pacote que lhe era estendido, até que o recebeu, abriu-o e corou. Seus lábios tremiam, sua testa aflorou suor e ficou tão vermelha quanto a crista do galo Pimpão, que ciscava por ali. Então, como se tivesse levado baita um susto, de cenho fechado retendo e mastigando o choro, olhou-me com olhos de pleno amargor, virou-se e voltou a embrulhar os calçados, depositando o pacote na mesa e, lentamente, se agachou ã minha altura.

Segurou com ambas as mãos os meus ombros e me disse, olhando seriamente nos meus olhos:

- Meu filho, esse é o dia mais feliz da minha vida. Poderei viver cem anos e ganhar milhões de presentes, mas jamais esquecerei esse seu gesto de amor. Muito obrigada. Mas... é também o dia mais triste para mim, pois não poderei aceitá-lo. Preciso do sapato, é verdade, e ficaria linda com ela nos pés, mas o seu dinheiro... preciso mais. Preciso para o aluguel que está atrasado... e essa dívida está me fazendo perder os cabelos...

Engoliu grosso soltando um gemido de dor e eu não sei onde guardei minha decepção. As lágrimas tomaram meu rosto e subiram comigo ã forquilha do araticunzeiro que floria e ali, e em meio às suas folhagens e à aragem que bolinava os ramos, molhei seus galhos com a tristeza vertida em brasas. Que decepção!

Não conseguia entender o porquê de ela dar mais valor à dívida do maldito aluguel, que ao meu esforço do mês inteiro sob frio e calor em subidas e descidas com uma cesta pesada à garupa da bicicleta que me obrigava a guiá-la com as pernas enfiadas no seu quadro, tão alta que não me permitia sentar no selim.

Ao tempo, ela saiu da cozinha pisando seus velhos chinelos de pano. Levava entre dedos como se segurasse uma bandeja, o pacote de calçados com a fita solta e, na pressa, sem dar conta que a assistia, passava o avental nos olhos...

- Porca miséria! - arrulhou o âmago do seu ser - Porca miséria de vida!
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RENATO BENVINDO FRATA, trovador e escritor, nasceu em Bauru/SP, em 1946, radicou-se em Paranavaí/PR. Formado em Ciências Contábeis e Direito. Além de atuar com contador até 1998, laborou como professor da rede pública na cadeira de História, de 1968 a 1970, atuou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Paranavaí, (hoje Unespar), atualmente aposentado. Atua ainda, na área de Direito. Fundador da Academia de Letras e Artes de Paranavaí, em 2007, tendo sido seu primeiro presidente. Acadêmico da paranaense Confraria Brasileira de Letras. Seus trabalhos literários são editados pelo Diário do Noroeste, de Paranavaí e pelos blogs:  Taturana e Cafécomkibe, além de compartilhá-los pela rede social. Possui diversos livros publicados, a maioria direcionada ao público infantil.

Fontes:
Renato Benvindo Frata. Crepúsculos outonais: contos e crônicas.  Editora EGPACK Embalagens, 2024. Enviado pelo autor.
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Eduardo Martínez (Um caso comum)

Eu não sou racista. Estou contra toda forma de racismo e segregação, 
toda forma de discriminação. 
Eu acredito nos seres humanos, 
e que todos os seres humanos devem ser respeitados como tais,
 independentemente da sua cor. (Malcolm X)

Gervásio abriu os olhos e viu uma luz branca. Sentiu que, finalmente, havia chegado ao seu destino, como sua mãe lhe contara nos tempos de menino.

— Seja bom, meu filho, que um dia o Senhor o chamará.

O homem sorriu aquele sorriso de dever cumprido quando, então, percebeu uma voz feminina. Seria Deus uma mulher? A forte luz sob seu rosto o impediu de ver com clareza, mas notou um vulto todo de branco vindo em sua direção. Um calafrio percorreu por toda sua espinha, quando ouviu uma voz doce como a de Veridiana, sua amada esposa.

— Senhor Gervásio, vou acompanhá-lo até o próximo andar.

O sujeito pensou que a mulher fosse um anjo, que certamente o levaria até o Senhor. Sua mãe não havia mentido. Afinal, mães não mentem ou, ao menos, a sua não era afeita a inverdades. 

Enquanto aguardava, Gervásio foi tomado por lembranças que o atormentavam há quase cinco anos, quando Fernando, seu primogênito, se envolveu com Laura, favelada e preta.  E o que parecia apenas mais um namorico, se transformou em paixão, o que, aos olhos de Gervásio, roubou toda a razão do filho, que resolveu se casar com a tal. 

O homem tentou a todo custo demover Fernando daquela insanidade. Entretanto, jovem que era, o rapaz bateu pé e seguiu firme naquele pensamento, que, aos olhos do pai, só poderia dar no que deu. Pois é, caso já não bastasse expor o nome da família perante a sociedade, alguns meses após o casório, Laura desfilava sua prenhez pelo bairro. 

Gervásio, apesar de contrariado, jamais expulsou o filho do convívio familiar. Não que ele não merecesse, mas simplesmente porque, bom pai que era, não poderia abandonar a prole por pior que fosse a desobediência. Dessa forma, Fernando continuou com trânsito livre na casa dos pais. Todavia, nada de trazer aquela fulana, ainda mais porque carregava o fruto do pecado.

Por mais que tentasse desviar o pensamento, Gervásio tinha pesadelos corriqueiros com aquela mucama parindo seres disformes. Certa vez, o pobre homem se deparou com a visão de Laura de cócoras, gargalhando com todos aqueles dentes alvos e beiços grossos, enquanto uma criatura horrenda, da cor de piche, era expelida pelas partes pudendas da mulher.

Gervásio se recordava da visita do filho numa quarta-feira, dia 18 de julho. Fernando parecia radiante, pois fora contar para a família sobre o nascimento não de um mestiço, mas de três criaturas do sexo feminino. Ironia maior é que aqueles seres carregados na cor haviam sido expelidos de Laura justamente no dia do aniversário de 58 anos do sogro. 

Veridiana, para não desagradar o marido, conteve a alegria diante da notícia trazida pelo filho. Entretanto, era nítida em seus olhos castanhos a felicidade de ser avó e, melhor ainda, de três meninas. A mulher, apesar da ânsia de correr para o hospital e conhecer as netas, preferiu manter a cabeça baixa para que Gervásio não notasse as lágrimas que escorreram por sua face.  

Os dias que se seguiram foram repletos de encenações. Gervásio fingia que desconhecia o nascimento da prole de Laura, Veridiana tentava imaginar como eram os rostinhos das netas. Avó que era, precisava ajudar a cuidar dos bebês, sem contar a ânsia de pegá-los no colo, niná-los e lhes contar as mesmas histórias que aprendeu quando ela, ainda neném, fora tantas vezes colocada para dormir no colo da mãe. 

Conheceu o futuro marido em novembro de 1911, pouco antes dos 17 anos. Um ano após, casou-se com Gervásio, que, a princípio, precisou convencer o pai de Veridiana de que era capaz de sustentar uma família. Caráter, nem o futuro sogro duvidava que ele possuísse, apesar de divergências políticas. 

Desconfiança superada, o sogro até ajudou o futuro genro a arrumar uma casa próxima à sua. Desse modo, a família continuaria próxima, e os vínculos com o novo membro seriam fortalecidos. E foi o que ocorreu, com almoços aos domingos, ora na residência do sogro, ora no lar do novo casal.

Os primeiros enjoos de Veridiana ocorreram no início do verão. Ela estava ajudando sua mãe a preparar o ensopado, quando precisou correr para o banheiro. Fora os respingos, bastou que a mulher desse descarga na privada. Foi amparada pela mãe, que pareceu feliz.

— Vá se deitar, que eu cuido do almoço. A primeira vez parece o fim do mundo, mas logo você se acostuma. 

Fernando nasceu em meados do ano seguinte. Robusto que nem o pai, os olhos eram de Veridiana. Primeiro filho, primeiro neto, primeiro tudo, o menino desfrutou de todos os mimos. 

Quando Fernando começou a dar os primeiros passos, Veridiana sentiu novos enjoos, que perduraram pelos meses seguintes. O marido passava o dia inteiro fora, mesmo porque precisava garantir que nada faltasse para a família, que, em breve, ficaria maior. O que Gervásio não esperava é que a esposa parisse gêmeos: Juliana e José.

O parto, além de difícil, fez com que Veridiana não pudesse ter mais filhos. Ela ficou triste, pois esperava poder encher a casa com pelo menos mais três crianças. Entretanto, religiosa que era, entendeu aquilo como vontade de Deus e se conformou. E foi com esse sentimento de resignação que, em 1918, enterrou os dois pequenos, vitimizados pela gripe espanhola. Fernando, apesar de afetado pela terrível doença, conseguiu resistir.

Gervásio se revoltou com Deus nessa época, recusando-se a frequentar a igreja por longo período, até que, já no início de 1920, foi levado pelas mãos da esposa. O homem, a princípio, se sentiu envergonhado aos olhos do padre. Coisa breve, já que o pároco o acolheu de braços abertos. 

— Gervásio, meu filho, apesar de muitas vezes não os entender, jamais devemos contestar os desígnios de Deus. 

Fernando cresceu rápido. Quando os pais perceberam, ele já se transformara em um belo rapaz de cabelos negros. Pouco mais alto do que Gervásio, atraía os olhares das moças e, não tardou, começou a se interessar por Maria de Lourdes, que morava na rua ao lado. A garota parecia corresponder ao interesse do rapaz, e tudo encaminhava para firmar compromisso.

A primeira a notar o interesse do filho por Maria de Lourdes foi Veridiana. Não disse palavra, entendia que, aos 21 anos, Fernando havia se tornado homem. E, quando pensou em conversar com Gervásio sobre o acontecimento, o filho decidiu abrir o coração.

— Mãe, acho que me apaixonei.

— Que notícia boa, meu filho! Bem que notei seu modo de olhar para a Maria de Lourdes.

— Não é por ela que estou apaixonado, minha mãe.

— Não? E por quem é então?

— Pela Laura.

— Laura? Não me lembro de nenhuma Laura, Fernando.

— É uma moça que conheci há pouco tempo. A senhora não conhece.

— Pois traga essa moça aqui para que seu pai e eu possamos conhecê-la.

— Ainda não conversei com os pais dela, mamãe. 

— Pois se você gosta mesmo dessa moça, vá conversar primeiro com os pais dela. E depois a traga aqui em casa, que tenho certeza de que seu pai aprovará o namoro. 

Quase um mês após, Fernando retomou a conversa com a mãe. Disse-lhe que o namoro estava firme, inclusive com a aprovação dos pais de Laura. Era hora de, finalmente, Veridiana e Gervásio conhecer a futura nora. 

— Pode deixar, meu filho, que vou conversar com seu pai ainda hoje. 

Veridiana, ao se deitar naquela noite, puxou assunto com o marido. Contou-lhe as novidades. Gervásio ficou surpreso, mas não desaprovou a conduta do filho. O homem disse para a esposa que poderia marcar o almoço para o sábado seguinte. E que viessem também os pais da moça para conhecê-los. Desse modo, tudo ficaria acertado. 

Fernando recebeu a notícia com entusiasmo e, no mesmo dia, foi contá-la para Laura. Ela ficou encarregada de conversar com os pais, que aceitaram de bom grado o convite. 

Além da macarronada ao molho de tomate, foi servido vinho tinto. Os jovens e as esposas tomaram suco de caju. Entre garfadas e goles dos presentes, Gervásio quase não tocou na comida. Era nítido o descontentamento do dono da casa, enquanto Veridiana procurava afastar qualquer constrangimento colocando mais comida nos pratos e enchendo os copos dos convidados. 

À noite, quando já estavam recolhidos em seus aposentos, Gervásio e Veridiana se entreolharam. O marido parecia furioso e, não tardou, despejou sobre a mulher todo seu desapontamento.

— Uma preta? Como é que o Fernando me aparece aqui em casa com uma preta?

A despeito da desaprovação do pai, o coração do filho falou mais alto e ele prosseguiu com o namoro. Veridiana até tentou demover Fernando daquele amor. Menos por preconceito, mais para acabar com a discórdia em seu lar. Foi em vão, já que os jovens logo firmaram noivado e se casaram em maio.

Nunca houve embate explícito entre Gervásio e Fernando, apesar dos desvios de olhares todas as vezes em que o filho mencionava a agora esposa. O pai chegou a desejar que a nora fosse abalroada por um bonde desgovernado. Que a mulher não sofresse, mas perdesse a vida para, assim, livrar a família de um mal maior. 

Os pensamentos de Gervásio não surtiram efeito. Tanto é que, não tardou, Laura engravidou. Que frutos esperar do ventre de uma preta? O sujeito tinha pesadelos mesmo quando acordado, até que o momento chegou e a ninhada, em número de três, foi jogada neste mundo. 

Gervásio, diante do espelho, jurou que jamais iria ver aquelas aberrações. Ele comunicou sua decisão à Veridiana, que, cabeça baixa, acatou. Que ela pusesse Fernando a par. E foi o que a mulher fez dois dias após. 

Fernando, a princípio, quis explodir. Entretanto, ao perceber a tristeza no rosto da mãe, conteve seu ímpeto e chorou. Chorou copiosamente nos braços da mãe, que aninhou o rebento como outrora o fizera a cada percalço que o menino teve na vida. 

— O seu pai é um homem bom, meu filho. Essa situação vai passar. Tenhamos fé em Deus, que passa.

 Não passou. Tanto é que, para conhecer as netas, Veridiana precisou fazê-lo escondida, enquanto o esposo estava no trabalho. E assim prosseguiu, inclusive recebendo a visita das meninas durante o dia. Mas, assim que a hora do retorno de Gervásio se aproximava, Laura ou Fernando ia buscar as filhas. 

 Não se sabe se Gervásio desconfiava. Na dúvida, Veridiana carregava no alho a janta para sobrepor qualquer resquício de cheiro de criança. Ela, no entanto, levava chorosa aqueles momentos, inclusive buscando nas narinas o cheiro das meninas.

 Veridiana pensou em pedir conselho ao padre. Homem sábio que era, certamente abriria o coração de Gervásio. Todavia, antes que pudesse agir, viu o marido contorcer o rosto e tombar sobre o prato de sopa. Desesperada, tentou acudi-lo, mas não soube como. Correu para casa do filho, que ficava duas ruas abaixo. 

 — Pai! Pai! - Fernando gritou quando viu o corpo de Gervásio caído.

Com a ajuda dos vizinhos, Gervásio foi socorrido ao hospital. O médico foi chamado e, ao se deparar com o quadro do paciente, mandou os enfermeiros o colocarem numa maca.  Não teve dúvida. Típico caso de derrame cerebral. O prognóstico não era dos melhores. 

Há meses, Gervásio pensava em procurar a nora e, principalmente, as netas. Ele, que nunca as havia visto, deseja pegá-las no colo. Nem mesmo sabia o nome das crianças. Decidido, pousou a colher sobre a mesa e, ao tentar se erguer da cadeira, tudo ficou escuro. 

Agora sozinho no quarto, Gervásio conversava com Deus. Não pedia conselhos, mas perdão. Como é que ele, um homem bom, não permitiu a aproximação da nora e, principalmente, das netas? Como elas o receberiam? A dúvida o transtornou até que o homem fechou os olhos pela última vez. 

O enterro se deu dois dias após. Lá estavam Veridiana, Fernando, alguns familiares e amigos. Num canto, Laura segurava as mãos das filhas, enquanto lhes contava sobre o avô.

— Minhas filhas, aquele é o vovô. Ele as amava muito.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Pensamento de Malcolm X adicionado pelo blog.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 127: Erigutemberg Meneses

 
 

Newton Sampaio (Tragédia das mãos)

| I | 

— Maria! 

Nada.

— Mariiia! 

Nem assim. 

— Mariiiiia!

Atira longe o bagaço, salta em três tempos da laranjeira. 

— Já pra dentro, coisa-ruim!

Vai se chegando, desconfiada. 

— Potranquinha ardida!

O beliscão é aplicado com dignidade. Deixará marca no mínimo por dois dias.

A menina se morde toda, pisca os olhos repetidamente, não diz palavra. Vence num instante a escada do sótão.

— Que fim levou a coalhada daqui? 

— Não sei não, dona Orsina.

— Foi você, negrinho? 

— Juro por Nosso Senhor. 

— Quem foi, siá Chica?

— Não sei dizer. 

— Quero saber, já. (Tem uma ideia).

— Maria! Nada. — Mariia!

A filha continua virando a folhinha, na sala.

— Mariiiia! 

— Sinhora...

— Quem mexeu no armário? 

— Eu.

— Não sabia que a coalhada era pras visitas? 

— Sabia.

— E comeu tudo assim mesmo? 

— Comi.
(Desta vez o beliscão pega só o braço direito).

Dona Orsina não aguenta mais. Diz que a filha é pior que saci, e nem tem mais inocência para andar aí com os moleques, trepando nas árvores, destripando sanhaços e tico-ticos. Opta por um colégio de freiras, daqueles bem fechados.

Indalécio concorda vagamente. Só para não destemperar a mulher.

| II |

— Maria da Luz Fonseca. 

— Presente.

— Os exercícios... 

— Não fiz.

— Outra vez?

— Outra vez. É a quarta...

— Ainda tem o desplante de confessar? 

— Tenho.

(Passa mais uma semana sem marmelada no jantar).

— Maria da Luz… 

— ...

— Ma-ria-a da Luz.

— Não sou surda.

— Compareça ao Gabinete da Madre Superiora. 

— Já vou.

Acaba de arrumar o cabelo, desce ao pátio de recreio, displicentemente.

O brinquedo não dura cinco minutos, porque a vigilante a distingue no centro do grupo.

— Já foi à Madre Superiora? 

— Ainda não.

A disciplina leva um choque...

No Gabinete da Diretoria — bonito, arrumadinho, com um enorme a óleo do Santo Padre Pio XI — o encontro com o pai a surpreende.

O abraço de Indalécio é longo, sentido. Maria apanha, num relance, o significado daquele terno escuro, da gravata preta. Começa a soluçar, baixinho, agarrada ao velho.

Consola-a, como pode, a Madre Superiora. Passada a crise, retoma a severidade habitual. E diz que Maria da Luz era extremamente rebelde, estava em ponto de ser eliminada. Entretanto, a nova situação da família exigia um pouco mais de tolerância.

Pergunta-lhe se modificará a conduta, a partir daquele momento. Não obtém resposta.

(Os dentes da colegial fazem um barulhinho).

| III |

A professora de geografia tira os óculos, zangadíssima. 

— Quem jogou a bolinha?

Ninguém informa.

— Quero saber, imediatamente. Foi a senhora, dona Maria da Luz?

— Não.

— O quê? Perdeu também a coragem de confessar? (Recebe o castigo, sozinha).

O relógio da igreja anuncia duas horas.

Maria da Luz afunda a cabeça no travesseiro, aperta bem os olhos. Inútil.

Vira-se do lado esquerdo, encolhe as pernas, põe as mãos no peito. As mãos sobem e descem com a respiração.

(O sono aonde foi não chegou).

Levanta-se. Vai à única janela aberta do dormitório. A camisola com monograma azul se lhe encosta melhor à pele.

Fica pensando, um tempão. Depois atravessa o corredor, desce cuidadosamente a escada, procura o salão de estudos.

Acende a vela clandestina, sente logo um cheiro de igreja, começa a escrever:

Querido papai. Saúde e felicidades.
Escrevo estas mal traçadas linhas para perguntar como vão todos aí. Tenho muitas saudades de todos. O negrinho já sarou da mordida da cobra? O Gabriel da nhá Chica já voltou do serviço militar?

Quanto a mim, ando muito triste. Não quero mais ficar aqui, por causa da Irmã Teresa, que não me deixa sossegada nunca, me chamou hoje de nervosa e de um nome feio que não entendi bem. Escrevi uma carta ontem, mas elas não quiseram botar no correio e me proibiram de escrever outra vez, mas agora de noite eu resolvi escrever outra, só de raiva, porque me acham culpada de tudo, toda a vida. Juro que não fui eu que roubei o dinheiro da Josefina, mas a irmã não quer acreditar e bateu em mim com a palmatória uma porção de vezes. Isso é demais, eu chorei bastante, chorei, porque nunca neguei minhas feitorias mas agora não tenho culpa, juro por Deus.

Tenho chorado muito; às vezes, não sei por que, começo a chorar”.

O vento fresco agita a chama da vela, e sombras informes tremem na parede, como um aviso.

A menina sente cãibras nos dedos, por isso repousa a caneta até passar o incômodo.

Continua:
Minha mão ficou doendo por demais, inchou mesmo, parece que cresceu, sabe papai?

Larga a caneta, outra vez. Contrai os dedos, inquieta.

Agora eu estava é com medo. Mas isso é impressão, acho, todo mundo está dormindo, sozinha no salão de estudo a gente tem medo. Tive a impressão de que minha mão crescia mesmo, isso é cãibra”.

A impressão não desaparece. Ao contrário, se torna mais nítida.

Credo, papai. Acho que vou parar, minha mão...

De fato, interrompe a carta, solta um grito: — Jesus!

A mão direita cresce ainda, cresce mais, cresce sem parar, esbarra na vela de cera com cheiro de igreja, a chama treme, aumentam na parede as sombras informes, terríveis.

A mão vai à janela, volta à carteira colegial, mergulha nos cabelos de Maria da Luz, alcança a porta, é capaz de tocar os sinos da torre, está agora caminhando no espaço, furando as nuvens, furando tudo histericamente.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  = = = = 

NEWTON SAMPAIO natural de Tomazina/PR, 1913 e falecido na Lapa, em 1938,  foi um médico, ensaísta, escritor e jornalista brasileiro. Newton é considerado um dos mais importantes contistas paranaenses sendo o precursor do conto urbano moderno. Em 1925, saindo da pequena Tomazina foi estudar no Ginásio Paranaense, em Curitiba, e precocemente, passou a lecionar nesta instituição, além de colaborar para alguns jornais da capital paranaense, principalmente o "O Dia". Ao ser admitido na Faculdade Fluminense de Medicina, transferiu-se para a cidade de Niterói. Após formado em Medicina, permanece na capital do país, porém, com a saúde bastante abalada, retornou a Curitiba e em seguida internou-se em um sanatório na cidade da Lapa onde faleceu no dia 12 de julho de 1938. Duas semanas após o seu falecimento, recebeu o Prêmio Contos e Fantasias concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Irmandade. Newton Sampaio pertenceu ao Círculo de Estudos Bandeirantes de Curitiba e como homenagem ao jovem modernista, um dos principais prêmios de contos do Brasil leva o seu nome: Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio. Algumas obras:  Romance “Trapo”: trechos publicados em jornais e revistas; Novela “Remorso”, 1935; “Cria de alugado”, 1935; Contos: “Irmandade”, 1938, “Contos do Sertão Paranaense”, 1939; “Reportagem de Ideias”: contos incompletos, etc.

Fontes:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.
Biografia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Newton_Sampaio
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Vereda da Poesia = 220

 
Soneto de
ANÍBAL BEÇA
Manaus/ AM, 1946 – 2009

ARS POÉTICA

Nesse afago do meu fado afogado
as águas já me sabem nadador.
A rês na travessia marejada
gado da grei de um mar revelador.

Vou e volto lambendo o sal do fardo
língua no labirinto, ardendo em cor
furtiva, enquanto messe temperada,
da tribo das palavras sou cantor.

Procuro em frio exílio tipográfico
o verbo mais sonoro em melodia
o ritmo para a cal de um pasto cáustico.

Sou boi e sou vaqueiro dia a dia
no laço entrelaçado fiz-me prático
catador de capins nas pradarias.
= = = = = = = = =  

Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

ETERNO ARGUMENTO

Já foi o refugo em minha mente
Algo ultrapassado em demasia
Que em mim aflorava livremente
Sempre que de mim, eu me perdia

Elevava-o nos pensamentos meus
Que eram Conflitantes e envolventes
Eram tudo que tinha, quando nada era teu!
Nem meu corpo, minha vida ou minha mente.

Cá estou a falar do Amor que eu maldizia
Do fiel argumento do poeta infiel
Que tira um pedaço do inferno e faz um “céu”

Cá estou a falar do que nunca entendia
Não mais o refugo, agora o bom sabor dor
Infiel e eterno argumento do poeta fiel... O amor!
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

O LIVRO ONDE SEPULTE O MEU SOFRER
(Fernandes Valente Sobrinho in "Poemas Escolhidos" p. 93)

O livro onde sepulte a minha dor
Não o lavro com lágrimas de tinta
Pois com medo que invente ou que eu lhe minta
Não achará jamais qualquer leitor.

Seria, com certeza, um fraco autor
E a minha mão de inspiração faminta
Daria, em pouco tempo, por extinta
Essa obra sem ter um editor.

Guardo em pasta de capa dura e preta
Essas folhas que fecho na gaveta
Como os mais crus e tristes documentos.

Um dia, quando o livro estiver feito
Com a pena que usei rasgo o meu peito
E essas páginas rudes solto aos ventos.
= = = = = = = = = 

Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

CARAS SUJAS

Ao longo destas avenidas,
Recordação de velhas lendas,
Cantam as chácaras floridas
Com suas líricas vivendas.

Lá dentro, há risos, jogos, danças,
Crástinas, módulas fanfarras,
Um pandemônio de crianças,
Um zagarreio de cigarras.

Fora, penduram-se na grade
Os pobre, como gafanhotos;
Têm dos outros a mesma idade,

Mas estão pálidos e rotos.
Chora a injustiça da cidade
Na cara suja dos garotos.
= = = = = = 

Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

AMOR

Amor de minha vida, amor ventura,
vem comigo seguir a nossa estrada,
vamos viver a vida simples, pura,
antes que o sol desfaça a madrugada.

E vou te amar assim com tal doçura,
com tanto amor serás a minha amada,
que meus versos repletos de ternura
vão se espalhar em tua caminhada.

Terei em minha vida o teu carinho
e nunca mais me sentirei sozinho
e tu terás o amor mais verdadeiro.

Quando o tempo passar, calmo e sereno,
verás que fui e sou, mesmo pequeno,
teu homem, teu poeta e seresteiro.
= = = = = = = = =  

Poetrix de
THOMAZ RAMALHO
Luanda/Angola

MELANCOLIA

Os cotovelos no parapeito da sacada
e o pensamento apoiado
na linha do horizonte.
= = = = = = 

Poema de
MÁRIO A. J. ZAMATARO
Curitiba/PR

IMPOSTO

Amigo imposto?
Isso é conversa!
- de pronto, digo.
Dá até desgosto,
qual vice-versa:
imposto amigo...
= = = = = = 

Soneto de
BENEDITA AZEVEDO
Magé/ RJ

A VERDADE

Ó querida, quem sabe neste dia
Encontrarei u’ amor que me fascine!
E talvez uma estrela que ilumine
Esta vida cruel que me iludia.

Só tu podes me dar tanta euforia,
Sem impedir, também, que raciocine,
E com meu sentimento me destine
A dor de ser um velho, mas queria...

Coragem pra buscar esta verdade
E talvez, a esperança sem vaidade
De poder te encontrar sem levar foras.

Esperando que agora possas rir
Sem  ilusão, embora possas vir
Com essa liberdade, por quem choras.
= = = = = = = = =  = = = = 

Cantiga Infantil de Roda
SERENO DA MEIA-NOITE 

É uma uma roda de crianças, com uma no centro. Cantam as da roda:

Sereno da meia-noite }
Sereno da madrugada } bis

Eu caio, eu caio }
Eu caio. sereno, eu caio } bis

Responde a menina do centro:

Das filhas de minha mãe }
Sou eu a mais estimada } bis

Eu não m'importo, }
Que da amiguinha, }
Eu seja a mais desprezada } bis
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Coração de sapo morto,
banana não tem caroço.
Garrafão tem fundo largo,
botija não tem pescoço.
= = = = = = = = =  

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

PANDORA

Do escuro da caixa
Voam lágrimas...
Diáfana solidão,
Silencia-se
A Esperança.
= = = = = = 

Célio Simões ("O nosso português de cada dia") "Sem eira nem beira"

 
“Eira” é um terreno de chão batido ou rusticamente cimentado onde, em Portugal, os grãos da colheita ficavam ao ar livre para secar. A palavra “eira” vem do latim "área", significando um espaço de terra batida, lajeada ou cimentada, próximo às casas, nas aldeias portuguesas, onde se malhavam, trilhavam, limpavam e secavam cereais. Depois da colheita, os cereais ficavam ao ar livre expostos ao sol, a fim de serem preparados para a alimentação ou para serem armazenados. Quem possuía uma eira era considerado proprietário e produtor, com terras, casa, bens, riqueza, poder e influência social.

E “beira” é a beirada da eira, é a aba da casa, aquela extensão do telhado que serve para proteger da chuva. Quando uma eira não tem beira, o vento leva os grãos e o proprietário suporta o prejuízo. Há regiões em que este ditado tem o mesmo significado, porém com outra e curiosa explicação. Qual seria? 

Antigamente, como dito acima, as casas dos cidadãos endinheirados tinham esse tipo de telhado triplo: a eira, a beira até mesmo a tribeira, como era chamada a sua parte mais alta. E como a camada pobre da população não tinha condições de fazer tal telhado, rebuscado e dispendioso, se limitavam a construir somente a “tribeira”, ficando, por conseguinte, "sem eira nem beira". 

Por aqui, a expressão surgiu no Brasil Colônia, em referência tanto ao estilo arquitetônico como à condição social das pessoas, incorporando-se à linguagem coloquial, pois até hoje se refere a quem é despido de bens materiais, posses ou dinheiro, que vive na condição de extrema pobreza.

Dizer que determinado indivíduo não tinha “eira nem beira”, significava e ainda significa ser ele economicamente carente, despido de patrimônio pessoal, que não tem onde cair morto, que alguns dizem que “não tem onde cair vivo”, porque morto ele cai em qualquer lugar... A rima contida na expressão tem forte conteúdo discriminatório, pois implícita e jocosamente evidencia a condição de grande parte da população do Brasil que infelizmente é muito pobre, daí ser prudente sua não utilização, mesmo que a título de gracejo.

Na música popular brasileira a expressão marcou presença no DVD “PRA TOMAR CACHAÇA”, do cantor, músico e compositor “Luan Estilizado”, ritmo brega forte e marcante, de sugestiva letra:

“Perdeu o seu cobertor
Não tem mais seu lugar
Tá do lado de fora do meu coração.
Tá no frio e não tem fogueira
No relento, sem eira e nem beira
Sem meus braços pra te aquecer
Sem ninguém pra ficar com você (...)”

O sacerdote, evangelizador, escritor, poeta, compositor e cantor brasileiro, José Fernandes de Oliveira, nacionalmente conhecido como Padre Zezinho, um dos maiores nomes da nossa música cristã, atualmente com mais de três mil músicas em seu extenso repertório, também utilizou a expressão vinda de Portugal em uma de suas composições, que ele denominou “SEM EIRA NEM BEIRA”, cujo texto poético alude à vida despojada de Jesus Cristo: 

“José trabalhava na carpintaria,
cuidando zeloso da sua Maria.
Maria esperava chegar sua hora,
no ventre levava seu filho e Senhor.
Mas eis que um decreto os arranca do teto
que foi testemunha do mais puro amor.
E assim foi que antes de haveres nascido,
te vistes banido pelo imperador.
Por longas estradas que ainda não vias,
sem eira nem beira calado seguias (...)”.

Na literatura, o escritor Jorge Menezes lançou o livro “SEM EIRA, NEM BEIRA” (Editora Jorge Menezes, 92 páginas, ano 2020), no qual, em um momento de fantasia, a personagem Antônio lembra de seu passado, invocando momentos de sua via, tanto os bons, como aqueles marcados pela carência de quem nada tinha para chamar de seu.

Outra escritora, Efigênia Zeferina Costa, também nos legou o excelente livro “MINHA INFÂNCIA SEM EIRA NEM BEIRA” (Editora Efigênia Zeferina Costa, 75 páginas, ano 2020) em que narra com leveza, sem mágoas e de maneira quase poética, as vicissitudes de sua infância e a vida social transcorridas na primeira metade do Século XX em Itapecerica, minúsculo vilarejo no interior de Minas Gerais (hoje município), incursionando numa seara modestamente explorada na literatura, mas com relevante papel na cultura brasileira. 

Pode-se dizer que a expressão “SEM EIRA NEM BEIRA” deixou sua marca indelével na poesia, na música, na literatura, nas rodas de conversas em família ou entre amigos, tantas foram as obras que dela se ocuparam desde que aqui chegou de caravela com os portugueses, e de tão utilizada que continua sendo, acabou “dando panos pras mangas”. Opa! Sem querer, acabamos de mencionar outra expressão idiomática do nosso linguajar de cada dia, que bem poderá vir á lume numa terça-feira qualquer...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras, em Maringá (PR). Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.

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