sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Jerson Brito (Asas da poesia) 05


= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Jerson Lima de Brito, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.

José Feldman (O Café da Tarde)

Era uma tarde ensolarada em Londrina/PR, e Luana decidiu visitar seu avô, Seu Afonso, que morava em um pequeno apartamento no centro da cidade. Ele sempre tinha histórias fascinantes sobre o passado, e Luana adorava ouvi-las. Ao chegar, encontrou-o sentado à mesa, tomando café e lendo um jornal antigo.

— Oi, vovô! — Luana disse, sorrindo ao entrar. — O que você está lendo?

— Ah, minha neta! — Ele respondeu, levantando os olhos. — Estou vendo as notícias de antigamente. Olha isso aqui, um anúncio de um carro que custava menos que um salário mínimo!

Luana se aproximou, interessada. — Uau, como as coisas mudaram, né? Hoje em dia, um carro é quase um sonho para muitos.

— É verdade. Na minha juventude, as pessoas sonhavam em ter um carro, mas o foco era diferente. A gente sonhava com pequenas coisas, como ter uma casa própria, uma família... — Seu Afonso disse, lembrando-se de tempos passados.

— E como eram esses sonhos, vovô? — Luana perguntou, sentando-se à mesa.

— Ah, os sonhos eram simples, mas cheios de significado. — Ele sorriu. — Eu queria estabilidade. O que importava era trabalhar duro e cuidar da família. Acredito que as pessoas valorizavam mais as relações pessoais.

— Hoje, parece que tudo é tão diferente. As pessoas estão mais focadas em ter sucesso rápido. — ela disse, balançando a cabeça. — Eu vejo meus amigos sempre correndo atrás de likes nas redes sociais.

— Likes? O que é isso? — Seu Afonso perguntou, franzindo a testa.

— É como uma forma de aprovação online. A gente posta fotos e o pessoal curte. — Luana explicou, meio envergonhada. — Mas às vezes fica parecendo que isso é mais importante do que viver as experiências de verdade.

— Sabe, Luana, na minha época, a gente valorizava mais o momento. Não ficávamos pensando em como os outros nos viam. — Seu Afonso disse, pensativo. — Acreditávamos que a felicidade estava nas coisas simples, como um passeio no parque ou um jantar em família.

— Isso é verdade, vovô. Mas hoje em dia, a pressão para ser “perfeito” é muito maior. — ela suspirou. — Todo mundo quer ser influencer, ter uma vida perfeita nas redes sociais.

— E o que é uma vida perfeita? — ele questionou, com um olhar curioso. — Na minha visão, a perfeição está nas imperfeições. Nas risadas, nas lágrimas, nas histórias que construímos juntos.

Ela sorriu, admirando a sabedoria do avô. 

— Você sempre tem uma forma especial de ver as coisas, vovô. Mas às vezes sinto que a geração mais nova não se conecta como antes. Nossos relacionamentos são mais superficiais.

— É verdade, Luana. A tecnologia trouxe muitas facilidades, mas também uma certa solidão. — Seu Afonso concordou. — Lembro-me de quando nos reuníamos com amigos para jogar baralho ou contar histórias. Não havia distrações. As pessoas se ouviam.

— Isso faz falta. — ela admitiu. — Às vezes, quando estou com meus amigos, todos estão no celular, e parece que estamos todos juntos, mas, na verdade, cada um está em um mundo diferente.

— E o que você faz para mudar isso? — ele perguntou, interessado.

— Eu tento propor atividades que nos tirem do celular, como ir a um parque ou fazer um piquenique. — ela respondeu. — Mas é um desafio!

— Você está no caminho certo! — Ele elogiou. — É importante cultivar relações verdadeiras. E não esqueça de passar tempo com a família. As memórias que criamos juntos são inestimáveis.

Luana olhou nos olhos do avô e percebeu como ele valorizava esses momentos. — Eu quero aprender mais com você, vovô. Suas histórias são inspiradoras.

— E você ainda tem muito a ensinar também! — ele disse, com um sorriso. — A juventude de hoje é mais engajada em questões como meio ambiente e justiça social. Isso é admirável.

— É verdade! Nós nos preocupamos mais com o futuro do planeta. — ela afirmou. — Tentamos fazer a diferença, mesmo que seja pequena.

— Isso é excelente! — Ele exclamou. — Na minha juventude, lutávamos por direitos básicos, mas agora vocês têm uma luta mais ampla. É bom ver que a chama está acesa.

— Mas às vezes me sinto perdida. — Luana confessou. — Há tantas causas e tanta pressão para fazer a coisa certa.

— A vida é cheia de incertezas, minha neta. — Seu Afonso disse. — O importante é agir conforme suas convicções. E não se esqueça de cuidar de si mesma no processo. A jornada é tão importante quanto o destino.

— Você tem razão, vovô. Às vezes, me preocupo tanto com o futuro que esqueço de viver o presente. — ela refletiu.

— A vida é um equilíbrio. — Ele sorriu. — E lembre-se: você não precisa ter todas as respostas agora. O que importa é continuar aprendendo e crescendo.

Luana se levantou e foi até a janela, olhando para a cidade. 

— Eu quero fazer a diferença, mas também quero aproveitar a vida, como você fez.

— E você pode! — Seu Afonso disse, levantando-se para ficar ao lado dela. — Encontre seu próprio caminho. E, acima de tudo, nunca perca a capacidade de se maravilhar com o mundo ao seu redor.

A tarde passou, e os dois continuaram conversando sobre vida, sonhos e diferenças entre as gerações. O café esvaziou, mas as ideias e as risadas encheram o ambiente. Luana sabia que, apesar das diferenças, havia um fio invisível que os unia: o amor e a vontade de aprender uns com os outros.

E assim, naquela tarde ensolarada, Luana e Seu Afonso descobriram que, embora as épocas fossem diferentes, as experiências e os sentimentos humanos permaneciam eternos e conectados, sempre prontos para serem compartilhados e celebrados.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores de universidades do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Eduardo Martínez (Amigo imaginário)

Maria Luiza corria pelo gramado, enquanto os pais sorriam, surpresos que estavam com o crescimento da filha.

— Gente, como tá enorme!

— É verdade. Ontem mesmo era tão pequenina.

O pai de última viagem, não tardou, foi brincar com a menina, cuja energia parecia ser infinita. Pelo menos era assim que o corpo envelhecido do homem imaginava. Seja como for, tratou de aprumar a coluna e deu aquela esticada, o que fez as juntas estalarem como ranger de porta de filme de terror. 

Enquanto o marido tentava acompanhar o ritmo frenético da cria, a mulher aproveitou para colocar em dia a leitura. Apaixonada que era por Drummond e Pessoa, há quase seis meses se deliciava com as poesias dos livros "O diagnóstico do espelho", de Sarah Munck, e "A verdade nos seres", de Daniel Marchi. 

De tão entretida com aqueles versos, não percebeu quando um homem se sentou em um dos bancos da praça. Se tivesse notado, talvez não lhe daria importância, mesmo porque o sujeito parecia interessado em algo ao seu lado. Não que houvesse algo ali, pelo menos não perceptível à primeira vista.

Enquanto pensava sobre a última estrofe lida, a mulher foi interrompida pela voz do estranho.

— Desculpe.

— O quê?

— Desculpe.

— Não entendi.

— Quero me desculpar com a senhora.

— Desculpar? Como assim?

— Desculpa pelo zum-zum-zum.

— Zum-zum-zum? Que zum-zum-zum?

— O zum-zum-zum de agora há pouco. Mas pode ficar tranquila, que a pessoa que estava aqui conversando comigo já foi embora.

Instintivamente, ela olhou para todos os lados, mas não havia ninguém por ali, a não ser o marido e a filha, que continuavam brincando. Em seguida, o gajo se levantou e foi embora gesticulando, como se estivesse reencontrado o amigo imaginário.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Eduardo Martínez possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Vereda da Poesia = 187


Trova de
SÍLVIA ALICE DE CARVALHO SOARES
Angra dos Reis/ RJ

No jogo do “perde e ganha”
Da guerra da Humanidade,
até sonho se barganha,
pois falta autenticidade!
= = = = = =

Soneto de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

Antes que vosso amor meu peito vença
Soror Violante do Céu in "Cem Sonetos Portugueses", p. 31

Antes que vosso amor meu peito vença
Eu me entrego ao exército inimigo
Desse olhar que me traz em grande perigo
De eu mesma já não ser de mim pertença.

É uma peleja a vossa benquerença
Mesmo sem espada a que haveis comigo
E antes que, por derrota, ache castigo
A minha mão vos dou, em recompensa.

Madrigais foram armas da batalha
Insistindo fenderam a muralha
Onde eu guardava a minha castidade.

A vós se rende, alegre, o coração
Fazei dos vossos braços a prisão
Onde eu, feliz, me sinta em liberdade.
= = = = = = = = =  

Trova de
JESSÉ FERNANDES DO NASCIMENTO
Angra dos Reis/ RJ

Contemplo maravilhado,
me inspirando em cada verso,
o céu noturno estrelado
embelezando o universo.
= = = = = = 

Soneto de
ATÍLIO ANDRADE
Curitiba/PR

Poeira

A poeira
que o tapete
esconde
é a divisória
entre nós…
Do saber
e do não ver,
do ver e crer
e do não querer saber.
É na decência
que se ilumina
a descrença
na utopia
do dia a dia.
= = = = = = 

Trova de
MARIA HELENA URURAHY CAMPOS DA FONSECA
Angra dos Reis/ RJ

Quando a noite em seu langor
se despede embriagada,
o amanhecer, em louvor,
ilumina a madrugada.
= = = = = = 

Poema de
CARLOS FERNANDO BONDOSO
Alcochete/ Portugal

Vi-te no vento

olho-te
nos passos dos meus olhos
vejo escolhos
solidão e silêncios

lanço os braços agasalhos
frios pensamentos
afagados por momentos
no teu rosto quente

sinto-te
na difusa luz da minha mente

amor
por ti estou aqui
o brilho que sinto
no espaço que serpenteias
são teias teares e meias
que me vestem
nos silêncios

danças dançarinas
embaladas não foram meninas
foram melodias acabadas pelo som dos tambores
foram canções onde brotei amor e falei de ti

vi-te no vento

diluindo fugiste
deixas-te as partículas da dor
no tempo
corro e não consigo abraçar
o momento
que passa e que graça

agarro o Sol o brilho marfim
espiga
o teu sorriso de mulher
na minha alma de poeta
sim!
= = = = = = = = = 

Trova de
LÉLIA MIGUEL MOREIRA DE LIMA
Angra dos Reis/ RJ

Aquela folha que vaga,
naquela mata sou eu!
Aquele vento que afaga,
lembra quando tu eras meu.
= = = = = = 

Poema de
OLAVO BILAC
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

A boneca

Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: “É minha!”
— “É minha!” a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha...

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca...
= = = = = = 

Trova de 
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/ RN, 1951 – 2013, Natal/ RN

Em humor não me destaco, 
mas, por pura peraltice; 
mesmo não sendo macaco, 
vou fazendo macaquice.
= = = = = = 

Poema de 
CRIS ANVAGO
Lisboa/ Portugal

Existe sim, uma força maior,
um querer, um desejo
de caminhar lado a lado

O coração só quer amar
E ser amado!
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Ficou rico o Zé Maria
na seca do Juazeiro,
vendendo "fotografia 
de chuva"... por "dois cruzeiro"...
= = = = = = 

Poema de
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/Portugal

Leva-me contigo

Leva-me contigo
sempre que viajares por aí.
Guarda-me de mansinho,
seguirei deveras em ti.
Mas não vás sem mim,
não me deixes, por favor, assim.

Não me trates como uma desconhecida,
como se não te tivesse tocado jamais.
Fazes-me sentir perdida,
apenas mais uma entre as demais.
És o caminho que tanto sigo,
leva-me contigo.

E se não me levares,
que eu aprenda a sossegar o meu coração
que respira e palpita,
que sangra por dentro e por fora,
que a ansiedade devora,
ao sabor desta emoção.
= = = = = = 

Trova de
CAROLINA RAMOS 
Santos/ SP

Se a ternura nos aquece
e um grande amor nos ampara,
é quando a penumbra desce
que a vida fica mais clara!
= = = = = = 

Hino de
OSASCO/SP

De mãos dadas, unidos, mil sonhos
Gestaremos no sul do querer
O ontem vitória dos tempos
Faz o hoje feliz florescer
É Osasco cantando a História
As glórias de um povo em ação
O movimento dos autonomistas (bis)
E voos que a vista
Dá no coração

Osasco
Osasco brilha
Na América do Sul
Foi em Osasco que o Homem
Sonhou e conquistou
O céu azul

Osasco
Osasco trilha
Os corações do porvir
Do trabalho ao esporte: a semana (bis)
A arte proclama
Um jeito de ser Brasil

De mãos dadas, cultura e raças
Se embalaram num mesmo querer
E do sonho se fez a cidade
Que hoje se orgulha de ser
"Osasco-Cidade Trabalho"
Bandeira de um povo em ação
Unido na fé e esperança (bis)
Brasão da vitória
Do "SIM" sobre o "NÃO"

Osasco
Osasco brilha
Na América do Sul
Foi em Osasco que o Homem
Sonhou e conquistou
O céu azul

Osasco
Osasco trilha
Os corações do porvir
Do trabalho ao esporte: a semana (bis)
A arte proclama
Um jeito de ser Brasil
= = = = = = = = =  

Trova de
NEUSA APARECIDA MOREIRA MAIA
Angra dos Reis/ RJ

Coração apaixonado
não se cansa de esperar,
retorna sempre ao passado,
para o amor reencontrar.
= = = = = = = = =  

Poema de 
ANTERO JERÓNIMO
Lisboa/ Portugal

Impunidade

Das muralhas frontais da tua determinação
Pensamento vigilante nas ameias da coragem
Com o fogo do sangue correndo nas veias
Implodiste a vontade de respirar liberdade
Na noite longa clareaste a madrugada

Hoje as muralhas estão corroídas
erodidas por ventos agrestes de corrupção
As ameias enfraquecidas de valores
não conferem proteção ao amor pelo próximo
Corre pelas veias o sangue da indiferença
cobiça e inveja são armas dilacerantes
O dia cinzento ecoa em seu prolongado lamento.

Levantem-se as sentinelas da integridade
Sacuda-se das vestes o cheiro bafiento* a impunidade!
= = = = = = = = =  
* Bafiento = mofado
= = = = = = = = =  = = = = 

Trova de
RITA MOURÃO
Ribeirão Preto/ SP

Minha casa é pequenina, 
com janelas sem vidraça, 
mas tem a luz genuína 
que do céu me vem de graça.
= = = = = = = = = 

Olavo Bilac (A Pátria)

O pai, velho soldado que a vida das guerras alquebrara, gostava de lembrar, à noite, quando toda família se reunia na sala de jantar em roda da grande mesa antiga, os episódios das campanhas que vira.

A mulher não ouvia com prazer aquelas histórias de cargas de cavalaria, de emboscadas, de assaltos, tão cheias de sangue e de horror. Quando o velho recordava aquele tempo, com os cotovelos na mesa e o cigarro no canto da boa, — ela revivia a angústia dos dias passados na solidão, sem notícias do marido que lá andava no Paraguai. Via toda a agonia daqueles seis anos de sobressalto e choro, daquelas noites em que não podia dormir sem ver em sonhos o marido estendido, retalhado de golpes, numa poça de sangue, sem confissão e sem um carinho, entre os montões de cadáveres, sobre os quais passavam, sem respeito, as patas dos cavalos, no ardor da batalha. Lembrava-se da ansiedade e do medo com que esperava o correio, naquelas amaldiçoadas tardes de desespero. Quando não vinham cartas, logo a sua alma adivinhava desgraças. Imaginava o marido prisioneiro, entre os paraguaios, sofrendo tratos duros, chorando lágrimas de vergonha e de raiva. Quando o carteiro lhe entregava um envelope fechado, — quantos minutos ficava ela a mirar e a revolver nas mãos aquele pedaço de papel que vinha do querido ausente, e que tinha recebido os seus beijos e as suas lágrimas de saudade!

Por fim abria a carta. A princípio não podia ler.

As letras se embaralhavam, atrapalhadas. Tremia-lhe nos dedos o papel. Tinha de repousar um pouco: e, quando conseguia terminar a leitura, ficava abatida e sem consolo diante daquelas notícias que não variavam nunca. Era sempre a mesma coisa: não se sabia quando acabaria a guerra; mas Deus velava por ele; era preciso assegurar, conquistando um bom posto, um futuro feliz para os filhos; além disso a Pátria estava acima de tudo...

Ela amarrotava a carta... a Pátria! Que era a Pátria, para valer mais do que ela, mais do que aquelas duas crianças, que dormiam ali, estreitamente unidas, num só berço pequeno, — pobres inocentes que talvez a essa mesma hora já estivessem sem pai? Ficava então a contemplar os filhos, e ali ficava chorando, horas inteiras...

Quando o pai voltou da guerra, vinha major. Fora ferido. Perdera uma perna. A mulher abençoou essa desgraça. Ao menos, assim mutilado, ficava ele posto à margem, dispensado de voltar à mesma existência de perigos e canseiras. Podiam viver modestamente com seu soldo. Qualquer outro trabalho leve de que se pudesse encarregar, dar-lhe-ia o suficiente para educar os filhos. Carlos, o mais velho, preparar-se-ia para qualquer profissão honrosa e tranquila (nunca a profissão do pai): — e Alice, a mais moça, casaria, seria feliz... e a boa mãe já sorria, prevendo para sua velhice essa felicidade absoluta: toda família reunida, calma e livre de desgostos, numa vida sem luxos mas sem privações...

Agora, porém, quando o velho major, durante os serões domésticos, começava a contar os seus episódios de campanha, a mulher estremecia. Recordava-se dos sofrimentos passados, e ansiosamente olhava o filho, Carlos, já mocinho de anos, que escutava o pai, abrindo muito os olhos, em que o prazer de ouvir aquelas façanhas acendia um brilho de febre.

O velho falava. Contava como, um dia, surpreendidos por mais de cem paraguaios em uma emboscada, ele e mais dezenove brasileiros se tinham defendido como leões, conseguindo, por um milagre de intrepidez e de calma, destroçar os inimigos. No entusiasmo da narração, o velho transfigurava-se. O seu braço, estendido no ar, indicava os golpes de espada. A sua voz imitava, ora o ruído contínuo e seco da fuzilaria, ora o estrondo rouco dos canhoneiros. Diante dele, Carlos, também transfigurado, bebia as suas palavras, com inveja, respirando a custo, agitando-se na cadeira. Alice, que tinha então dez anos, admirava o pai e o irmão: e os seus olhos espantados, dilatados pelo medo que lhe faziam essas coisas de guerra, iam do velho ao menino e do menino ao velho. E a mãe quase arrebentava em soluços, vendo a alegria do filho.

Era aquele, há muito tempo, o seu maior receio... Pobre mãe! Desde o tempo em que, o pequenino, Carlos, como as outras crianças, apenas devia pensar em bonecos, — o menino manifestava uma grande predileção pelas coisas da vida militar.

Ficava horas inteiras contemplando as fardas do pai: e, à noite, deixando de estudar, fechando sobre a mesa as suas gramáticas e os seus dicionários, era ele o primeiro a pedir ao velho mais uma daquelas narrações que o embriagavam. Às vezes ia a mãe surpreendê-lo, na sala de visitas, extasiado diante do pequeno armário envidraçado, onde o major guardava as relíquias de sua glória: a espada, as dragonas, as medalhas de outro e bronze, as condecorações esmaltadas, e, entre esses atestados da sua coragem, a bala que lhe atravessara a perna, no combate de Humaitá.

Quando foi preciso escolher uma carreira, Carlos, sem hesitação, declarou que queria ir para a Escola Militar. O velho exultou. A mulher, resignada, não teve protesto.

Os anos correram. Alice, já moça, casou com um militar. E a boa senhora viu assim toda sua família submetida àquela existência que odiava.

Uma noite, conversavam os dois velhos, sós, naquela mesma sala de jantar em que tinham feito explosão os primeiros entusiasmos de Carlos. Falavam do filho. — Não te aflijas, mulher! — dizia o major. — Hoje, anda tudo em paz. O Brasil nunca mais terá guerras: isto é uma geração de molengas. Que perigo corre o nosso rapaz? Formar-se-á em engenharia militar, terá bons empregos, e morrerá de velhice. Não te aflijas, que o Brasil nunca mais terá guerras!

Neste momento, bateram à porta. Vinham dizer à família que Carlos morrera, vítima de um desastre, na Escola. Experimentava uma espingarda. Puxou o gatilho, julgando que a arma estivesse descarregada. Havia dentro uma bala, que lhe varou o peito.

O major sobreviveu pouco a esse desastre. Morreu um ano depois. E a viúva concentrou toda a sua afeição num neto, filho de Alice. E um dia, vendo esse pequenino brincar, fingindo de soldado, com uma barretina de papel e uma espada de pau, a velha murmurou:

— Também este ama a vida de soldado!... Será o que Deus quiser!
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

Olavo Bilac, nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro — Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas. 

Fontes: Coelho Neto e Olavo Bilac. Contos pátrios para crianças. Publicado em 1931. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing 

Estante de Livros ("Volpone" ou "A Raposa", de Ben Jonson)

"Volpone", escrito por Ben Jonson em 1605, é uma comédia satírica que explora a avareza, a ambição e a moralidade da sociedade. A peça se passa em Veneza e gira em torno de Volpone, um rico e astuto comerciante que finge estar à beira da morte para enganar os que o cercam e se apropriar de suas riquezas.

ENREDO

Volpone, cujo nome significa "raposa" em italiano, é um personagem extremamente astuto e manipulador. Ele vive com seu criado, Mosca, que é igualmente astuto e serve como seu cúmplice. Para se divertir e aumentar sua fortuna, Volpone finge estar gravemente doente, atraindo a atenção de vários herdeiros que esperam herdar sua riqueza.

Cada um dos pretendentes traz presentes para Volpone, acreditando que seus esforços os farão merecedores de sua fortuna. Enquanto isso, Mosca manipula a situação, alimentando as esperanças dos herdeiros e aproveitando-se de sua avareza.

A trama se complica quando Celia, a esposa de Corvino, entra em cena. Ela é desejada por Volpone, que, ao vê-la, decide que quer possuí-la. Mosca percebe a oportunidade e, com promessas de recompensas, tenta seduzir Corvino a permitir que Volpone encontre um "cuidado" para sua saúde, insinuando que a presença de Celia seria benéfica.

Celia, no entanto, se recusa a ceder aos desejos de Volpone e, ao perceber o plano traiçoeiro, acaba sendo alvo de assédio. A situação se intensifica quando Corvino, enciumado e manipulador, se torna cada vez mais controlador e violento.

O clímax ocorre quando Volpone, em um ato de pura avareza, decide revelar sua verdadeira identidade. Ele organiza uma cena onde todos os pretendentes se reúnem, e, ao invés de conceder a herança a um deles, expõe suas verdadeiras intenções e a hipocrisia que permeava suas ações. A revelação se torna um espetáculo, e o público é levado a rir da audácia de Volpone e da tolice dos herdeiros.

No entanto, a comédia não termina sem consequências. A avareza e a traição têm um custo. Volpone, que acreditava estar no controle, é finalmente punido. As autoridades de Veneza, alertadas sobre suas fraudes, o condenam. Mosca, que inicialmente parecia ser seu aliado, acaba sendo traído e se vê em apuros.

Celia e seu verdadeiro amor, que é um jovem chamado Bonario, acabam por se unir, enquanto a moral da história sublinha os perigos da avareza e da manipulação.

TEMAS CENTRAIS

Avareza e Consequências: 
O tema da avareza é central em "Volpone". A peça mostra como a busca desenfreada por riqueza leva à degradação moral e ao colapso das relações humanas. Volpone, ao manipular os herdeiros, não apenas se coloca em um caminho de autodestruição, mas também revela a hipocrisia e a corrupção da sociedade veneziana.

Manipulação e Engano: 
A manipulação é um elemento crucial na trama. Volpone e Mosca, em suas artimanhas, demonstram como o engano pode ser uma ferramenta poderosa. A peça questiona a moralidade da manipulação e sugere que, em um mundo onde as aparências são enganosas, a verdade é frequentemente subjugada pelo desejo.

Moralidade e Justiça: 
Jonson utiliza a história para questionar as normas morais da sociedade. Embora Volpone e Mosca inicialmente pareçam estar no controle, suas ações têm consequências. O final da peça, com a punição dos protagonistas, sugere que a justiça pode finalmente prevalecer, mesmo em um mundo corrupto.

Hipocrisia Social: 
"Volpone" critica a hipocrisia da sociedade veneziana, onde a aparência e o status social são valorizados acima da integridade. Os herdeiros, em sua busca por riqueza, revelam a superficialidade de suas relações e a falta de princípios que permeia suas ações.

ESTILO E ESTRUTURA

Jonson utiliza uma estrutura de comédia clássica, com elementos de sátira. O uso de diálogos ágeis e espirituosos, combinado com uma rica variedade de personagens, cria uma narrativa envolvente. A linguagem é repleta de trocadilhos e jogos de palavras, refletindo a inteligência e a astúcia dos personagens.

A peça é dividida em cinco atos, cada um intensificando o conflito e a tensão entre os personagens. A construção da trama é habilidosa, levando o público a rir das situações absurdas, enquanto também provoca reflexões sobre a moralidade e a natureza humana.

CONTEXTO HISTÓRICO

"Volpone" foi escrita em uma época em que a avareza e a corrupção estavam em evidência na sociedade. A Inglaterra do século XVII enfrentava profundas mudanças sociais e econômicas, e Jonson, como dramaturgo, estava atento a essas questões. A peça reflete as tensões da época, utilizando a comédia para criticar a moralidade da elite e as instituições sociais.

PERSONAGENS

Volpone: O protagonista astuto, Volpone, é um rico comerciante que finge estar à beira da morte para enganar os herdeiros que desejam sua fortuna. Ele representa a avareza em sua forma mais pura, mostrando como a busca incessante por riqueza pode levar à degradação moral. Sua inteligência e manipulação o tornam uma figura fascinante, mas também repulsiva.

Mosca: O criado de Volpone, Mosca, é um cúmplice que se destaca por sua astúcia e capacidade de manipulação. Ele é o verdadeiro arquétipo do "servo astuto", que, apesar de sua posição subserviente, exerce grande influência sobre os eventos da trama. A dinâmica entre Mosca e Volpone revela uma complexa relação de poder, onde ambos se utilizam um do outro.

Os Herdeiros Voltore, Corbaccio e Corvino representam diferentes facetas da avareza e da ambição. Cada um deles, em busca da fortuna de Volpone, revela suas verdadeiras intenções e a moralidade duvidosa que os caracteriza:

Voltore: um advogado ambicioso que está disposto a fazer qualquer coisa para herdar a fortuna de Volpone.

Corbaccio: um velho avarento que, em sua cegueira por riqueza, decide deserdar seu próprio filho em favor de Volpone.

Corvino: um comerciante ciumento que tenta ganhar a favor de Volpone oferecendo sua esposa, Celia, em troca da herança.

Celia e Bonario: Celia, a esposa de Corvino, é uma figura de pureza e virtude em contraste com os outros personagens. Sua resistência aos avanços de Volpone a torna um símbolo de integridade, enquanto Bonario, seu amante, representa a juventude e a esperança. Juntos, eles oferecem uma contraposição à corrupção que permeia a vida dos outros personagens.

CONCLUSÃO

"Volpone" é uma obra rica em complexidade e significado, que transcende seu contexto histórico. Ben Jonson utiliza a comédia para explorar temas universais como avareza, manipulação e justiça, criando uma narrativa que ressoa com o público contemporâneo. A peça não apenas diverte, mas também provoca reflexões profundas sobre a natureza humana e a moralidade, consolidando seu lugar como um clássico da literatura.

Fonte: José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Luiz Poeta (Nuvens de Sonhos) 05

 
====================================

Luiz Gilberto de Barros, registrado como Luiz Poeta, nasceu em 1950, no Rio de Janeiro/RJ. Escritor, Poeta, Contista, Cronista, Ensaísta, Trovador, Aldravianista, Sonetista, Músico, Compositor, Produtor Musical, Artista Plástico, Gestor Educacional e Docente Aposentado  de Língua Portuguesa e Literaturas Brasileira e Portuguesa. Destacou-se no meio artístico como produtor fonográfico, violonista, guitarrista, compositor, poeta e artista plástico. Acadêmico da AVLBL membro da UBT, é Verbete do Dicionário de Música Popular Brasileira Antônio Houaiss e detentor de  relevantes títulos acadêmicos. Fundador de diversas entidades culturais Nacionais e internacionais. Autor premiadíssimo em inúmeros concursos no Brasil e no Exterior. Foi Presidente da Academia Pan-Americana de Letras e Artes; do Centro Cultural Leopoldina de Souza Marques, da Faculdade Souza Marques, e Diretor Presidente do Jornal “O Coruja“, de circulação universitária. Membro da Confraria Brasileira de Letras, Academia Luso-Brasileira de Letras; Academia Paulista de Letras; Cerc Universal des Ambasssadeurs de la Paix; Divine Academie Française de Letters y Arts; Associação dos Acadêmicos da Academia Brasileira de Letras; Diretor Cultural da Associação Cultural Encontros Musicais; Inbrasci (Instituto Brasileiro de Culturas Internacionais, entre outros. Sua obra artística é eclética e engloba mais de 10.000 trabalhos (músicas, poesias, ensaios contos, novelas, textos dramáticos e crônicas – além de telas e trabalhos artesanais ). Tem CDs e DVDs gravados, tendo publicado mais de 100 obras publicadas entre livros-solo, antologias, CDs, DVDs, jornais e revistas.

José Feldman (Aventuras e Desventuras nos Céus. Oh, céus!)

Viajar é uma das experiências mais emocionantes da vida, até você se deparar com a realidade dos aeroportos. 

O dia começa com aquela adrenalina gostosa: você acorda mais cedo do que gostaria, como se estivesse indo para um exame importante. A primeira missão é garantir que tudo esteja na mala. Você checa e re-checa: passaporte? Check. Bilhetes? Check. O carregador do celular? Ah, essa é sempre uma questão delicada. E, claro, você leva um livro. Não porque vai ler, mas porque viajar sem um livro dá a impressão de que você é uma pessoa despreparada.

Chegando ao aeroporto, você percebe que está em um microcosmos da sociedade. A fila do check-in é uma verdadeira competição. O “Senhor que Não Lê as Instruções” está tentando entender como funciona o autoatendimento, enquanto a “Mãe com Crianças” tenta manter a calma enquanto seus filhos são verdadeiros pequenos furacões. A tensão no ar é palpável. Você se vê envolvido em um drama da vida.

Depois de atravessar o check-in, você chega à segurança, onde a experiência se transforma em um verdadeiro filme de ação. Você tira o cinto, os sapatos, a jaqueta e, por último, a dignidade. Enquanto isso, o “Tio do Laptop” tenta passar com sua imensa mochila que poderia facilmente ser confundida com uma mala de viagem. Ele se estica como um contorcionista, tentando encaixar tudo na esteira, enquanto você se pergunta se ele realmente precisa de todas aquelas coisas.

Ufa! Finalmente, você chega ao portão de embarque. Mas aí é que a variedade de personagens da aventura que ainda está por vir, que você participa, se faz presente. Há o “Viajante Frequente”, que já conhece todos os atendentes pelo nome e parece ter um passaporte com mais carimbos do que alguns países têm. Em contraste, a “Turista Desavisada” está olhando confusa para o painel de voos, como se tentasse decifrar um enigma.

O momento do embarque é um espetáculo à parte. Após o chamado para os passageiros da primeira classe, a fila começa a se formar. Você rapidamente se dá conta de que as pessoas têm uma habilidade incrível em ignorar as instruções. O “Apressado” se junta à fila, como se estivesse prestes a perder o voo, enquanto o “Sabichão” já começa a abrir a bolsa e a procurar algo, mesmo antes de ser chamado. A cena é digna de um filme.

Dentro do avião, a verdadeira aventura começa. Você encontra seu assento, e lá está o “Companheiro de Viagem” ao seu lado, que parece ter uma habilidade inata para invadir o seu espaço pessoal. Ele ocupa o braço do assento como se estivesse reivindicando território, e você se pergunta se deveria ter trazido uma bandeira para marcar seu território. Ao seu redor, a “Mãe com Bebê” tenta acalmar seu filho, enquanto ele se transforma em um pequeno maestro, regendo uma sinfonia de choros.

Assim que o avião decola, você sente aquela leve turbulência que faz seu estômago dançar uma valsa. “Nada como um pouco de adrenalina”, você pensa. Mas logo percebe que a turbulência não é nada em comparação com a “Comida do Avião”. O “Menu Gourmet” oferecido a bordo é uma combinação de ingredientes que você nunca soube que existiam. O cheiro é uma mistura de mistério e aventura, e você se pergunta se deveria mesmo experimentar. Mas, claro, você se arrisca e acaba numa jornada gastronômica que pode ser descrita como uma “experiência de sabores”.

Enquanto isso, o “Passageiro do Fundão” tenta se levantar para ir ao banheiro no meio da turbulência. Ele se equilibra como um acrobata do circo, e você está prestes a aplaudir sua performance. Quando consegue chegar ao banheiro, a porta se fecha, e você se pergunta se ele vai voltar.

A viagem continua. 

Você tenta assistir a um filme, mas o “Cinéfilo Ao Lado” está comentando cada cena como se estivesse assistindo a um clássico. “Olha, essa parte é ótima, mas você já viu a versão original?” A cada frase, você se pergunta se deve rir ou chorar. E quando você finalmente consegue desligar-se do mundo externo e se concentrar na tela, o avião começa a balançar novamente. Você se agarra com unhas e dentes à poltrona como se fosse um salva-vidas em um naufrágio.

Após horas, finalmente, a aterrissagem se aproxima. Você sente uma mistura de alívio e cansaço. O avião toca o solo, e você aplaude — não porque é uma prática comum, mas porque a sobrevivência merece ser celebrada. Ao desembarcar, você observa as pessoas se espremendo para pegar as malas, como se houvesse um prêmio para quem conseguir primeiro.

Assim, ao deixar o aeroporto, você percebe que viajar é uma experiência cheia de altos e baixos, risadas e percalços. A comédia da vida se desenrola em cada esquina, e, apesar das aventuras e desventuras, você sabe que cada viagem traz histórias para contar.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  

José Feldman nasceu na capital de São Paulo. Formado técnico de patologia clínica, não conseguiu concluir o curso superior de psicologia. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; trovador da UBT São Paulo e membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, Hermoclydes S. Franco, e outros. Casado com a escritora, poetisa e tradutora professora Alba Krishna mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, radicou-se definitivamente em Maringá/PR. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras e de trovas, fundador da Confraria Brasileira de Letras e Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, com cerca de 20 mil publicações. Atualmente assina seus escritos por Campo Mourão/PR. Publicou mais de 500 e-books. Em literatura, organizador de concursos de trovas, gestor cultural, poeta, escritor e trovador. Dezenas de premiações em trovas e poesias.

Fontes 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

Luís da Câmara Cascudo (Almofadinha de Ouro)

Era uma vez uma menina muito bonita e graciosa, filha única, e que teve a infelicidade de ficar órfã de mãe. Seu pai ficou ainda moço e casou novamente, com uma viúva que tinha uma filha, pondo-se mocinha e muito feia e orgulhosa. 

A madrasta, na presença do marido, tratava a enteada bem, mas como esse vivia viajando, vingava-se, obrigando-a em trabalhos pesados, como lavar roupa, limpar a estrebaria, o galinheiro, a casa inteira, etc. A mocinha começou a viver amargurada e sofrendo toda a espécie de privações e insultos. De tanto padecer, perdeu a paciência e achou que o remédio era fugir daquele purgatório.

Antes de tomar essa decisão, a moça rezava todas as noites à Nossa Senhora, que era sua madrinha, pedindo que lhe ensinasse os caminhos do bom proceder. 

Nossa Senhora virou-se numa velhinha e falou com ela no caminho do rio, explicando tudo. Abençoou-a e lhe deu uma almofadinha de ouro que era encantada. Quando precisasse de alguma coisa, pedisse à almofadinha de ouro, que fora dotada por Deus com poderes.

Deixando a casa, a moça andou muitos dias, com fome e sede, e acabou encontrando uma ocupação num palácio vistoso, residência de um príncipe solteiro e muito agradável.

A moça, para não causar suspeitas e despertar maldades, sujou o rosto e andava tão imunda que só lhe deram o serviço de tratar das galinhas e dos porcos, dormindo no fundo do quintal, num quartinho escuro e isolado do palácio.

Dia vai e dia vem, anunciaram três dias de festas e toda a gente ficou influída para esse divertimento preparando as roupas novas, encomendando os arranjos e fazendo cálculos. O príncipe era um dos mais alegres e as moças da cidade desejavam que ele se engraçasse de uma delas e casasse, por ocasião das festas.

Chegando o primeiro dia, o príncipe foi para o baile e os empregados do palácio fugiram para ver as luzes e a entrada das pessoas que iam dançar. A princesa velha, mãe do príncipe, foi também.

Ficando sozinha, a moça tomou banho, penteou-se e pediu à almofadinha de ouro que lhe desse um vestido cor do campo com suas flores e uma carruagem com criados.

Apareceu, incontinenti, o pedido, e a moça vestiu-se e compareceu à festa, causando um assombro pela sua formosura e beleza do traje. O príncipe largou todas as outras e só dançou com ela. 

Como lembrança do encontro, fez-lhe presente de um anel. Perto da meia-noite a moça desapareceu, fugindo para casa onde trocou a roupa; o vestido e o carro sumiram.

No segundo dia aconteceu a mesma coisa. A moça levou um vestido cor do mar com todos os seus peixinhos e o príncipe ficou encantado por ela, dançando, servindo-a e conversando. Deu-lhe uns brincos. Antes da meia-noite a moça não foi encontrada em parte alguma. Já estava em casa, suja e feia como habitualmente parecia aos olhos de todos.

No terceiro dia, o mesmo sucedido. Desta vez o vestido era da cor do céu com todos os seus astros, e a moça encandeava (deslumbrava) a vista pelo brilho das joias. O príncipe só faltava gritar de contente. Presenteou-lhe com um colar e ficou triste quando ela desapareceu, antes da meia-noite.

Passados os três dias, só se falava na cidade naquele assunto da moça desconhecida, com os três vestidos mais bonitos do mundo. O príncipe procurou-a como um cego procura a luz e não a encontrou em parte alguma. 

Estava tão apaixonado que adoeceu de cama, trancou-se no quarto e só deixava entrar sua mãe. Todo mundo lastimava a doença do príncipe e os médicos não tinham mais remédio para aconselhar nem receita que servisse. O príncipe nem queria comer e a princesa velha fazia as maiores promessas para que o filho se alimentasse, fosse como fosse.

Um dia a moça disse à princesa velha que queria fazer um bolo para o príncipe doente. A princesa achou graça no atrevimento, mas tanto a moça pediu e rogou que obteve o consentimento. Preparou-se, foi para a cozinha e fez um bolo dourado, colocando dentro da massa o anel que o príncipe lhe dera na primeira noite do baile.

O príncipe nem queria ver a comida, mas sua mãe tanto pediu que ele cortou um pedaço do bolo e, ao levar à boca, reparou num objeto que aparecia na parte restante no prato. Puxou com o bico da faca e reconheceu o anel. 

Comeu todo o bolo, melhorando, e declarou que queria outro bolo feito pela mesma pessoa. 

A moça fez o outro bolo e neste mandou o brinco, que o príncipe achou e ficou certo de que a moça estava por perto. 

Pediu outro bolo e neste veio o colar. Então, sem ter mais dúvida, disse à princesa velha que mandasse ao seu quarto quem fizera os três bolos. 

A princesa obrigou a moça a mudar de roupa, perfumar-se para tirar o mau cheiro do galinheiro, e disse que se apresentasse ao seu filho.

A moça subiu a escada, com a almofadinha de ouro na mão, e, assim que bateu na porta, pediu que lhe aparecesse no corpo o vestido do terceiro dia da festa, dos pés à cabeça. Quando a porta se abriu e ela entrou, o príncipe deu um grito de alegria, levantou-se da cama bonzinho de saúde, chamando pela mãe e mostrando a moça que estava mais bonita do que nas noites passadas.

Casaram-se imediatamente, contando a moça sua história, e foram felizes até a morte.
= = = = = = = = =  = = = = = = = = =  
Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.

Fontes> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing