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quarta-feira, 12 de março de 2025
José Luiz Boromelo (Ferrugem)
O arrependimento já incomodava. As filas imensas e o calor insuportável se encarregavam de fornecer os ingredientes necessários para testar os limites da paciência. A balconista mostrava-se incapaz de resolver uma simples adição e com a calculadora na mão atrapalhava-se ainda mais, voltando inexplicavelmente ao ponto de partida. Irritou-se com a oferta de ajuda externa (a minha), sem conseguir contabilizar o valor final dos produtos. Sua teimosia mostrou-se infinitamente maior que o pífio conhecimento de cálculos elementares, apesar da impossibilidade momentânea de uso do tradicional sistema de leitura por código de barras, em virtude da falta de energia elétrica. Para sorte de minha “vítima” o socorro providencial chegou a tempo de viabilizar a transação comercial, deixando o cliente “plenamente satisfeito” com a inesquecível demonstração da invejável capacitação profissional, proporcionada pela empresa a seus funcionários.
Cada vez mais sou levado a acreditar no conhecido ditado popular da época de nossas avós que garante: “Tudo o que não se usa, enferruja”. Nada mais verdadeiro, constatado ao vivo e em cores naquele supermercado. O uso da tecnologia facilitou de tal forma as atividades cotidianas que deixamos de exercitar o cérebro, transferindo essa função aos incontáveis meios disponíveis para tal. Em todos os setores sobressaem as mais diferentes possibilidades da modernidade, em que o usuário só tem o trabalho de digitar alguns caracteres e pronto: tudo está à mão em questão de segundos. Mas nem só o cérebro foi afetado pela tecnologia. Há muito deixamos de exercitar os músculos por conta do vidro elétrico, da direção hidráulica e do câmbio automático. Ou os tendões e o sistema cardiorrespiratório ao preterir a escada e utilizar constantemente o elevador. Ou ainda quando perdemos a oportunidade de caminhar algumas quadras para atender a algum compromisso, preferindo o conforto do ar condicionado e do som automotivo.
Às vezes sou acometido pela nostalgia dos tempos da adolescência, quando frequentava o curso de datilografia. A disciplina rígida imposta pelo professor culminava com a habilidade necessária para concluir os exercícios com eficiência (fico inconformado com o humilhante “cata-milho” exibido por alguns “experts” da tecnologia). Sinto saudades do tempo da chamada oral para a tabuada (imagino o sentimento do educador diante do aluno que manipula descaradamente o telefone celular em sala de aula), da disciplina de Educação Moral e Cívica; do emprego correto da crase, do trema, do acento agudo. Coisas que não voltam mais.
Ainda hoje procuro preservar aqueles valores quase esquecidos, mesmo que para isso seja considerado ultrapassado (os mais jovens empregam maldosamente outros termos pejorativos). Minha velha e boa Remington acabou empoeirada na prateleira, depois de quatro décadas de bons serviços prestados. Decerto também já apresenta vestígios de ferrugem. Para mim e para ela, não há desengripante que dê jeito. Sinal de que o nosso tempo já se foi.
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José Luiz Boromelo, é de Marialva/PR, policial rodoviário aposentado, escritor, cronista e agricultor, colaborador da Orquestra Municipal Raiz Sertaneja.
Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing
Célio Simões (O nosso português de cada dia) “Mão de Vaca”
A expressão idiomática MÃO-DE-VACA indica pessoa egoísta, extremamente apegada ao dinheiro e que faz de tudo para economizar até os centavos nas compras mais insignificantes. É também conhecido como avarento, sovina, unha de fome, miserável, agarrado, cobiçoso, forreta, cúpido ou casquinha. Tem origem no formato da pata da vaca, que é fechada como a mão do indivíduo pão-duro, que não admite gastar dinheiro nem que a “vaca tussa”.
Tem o mesmo significado de “mão fechada” se refere especificamente a alguém que mesmo dispondo de recursos, não solta a grana, não gasta, se escora nos outros, não contribui com nada e por vezes atrasa ou não honra suas obrigações financeiras como taxas condominiais, mensalidades escolares, de clubes e associações, foge de despesas com festas, passa longe de restaurantes ou confraternizações entre amigos, das quais, quando raramente vai, sai sorrateiramente antes que peçam a conta.
Há uma ligeira diferença entre as expressões ser “muquirana” e “mão-de-vaca”. Enquanto aquela se refere a quem não gosta de emprestar dinheiro a terceiros, esta retrata o tipo miserável, mesquinho, forreta e pão-duro. Tal expressão ganhou até mesmo uma série na Discovery denominada “OS MÃOS DE VACA” narrando a saga de quatro famílias que chegam ao limite de vasculhar o lixo e reformar a casa com as próprias mãos para economizar, levando assim vida monástica, com o mínimo de desembolso ou sofisticação.
A propósito, todo aglomerado humano tem os seus mão-de-vaca e sobre eles, contam-se episódios quase inacreditáveis, mercê de sua costumeira aversão a qualquer gasto, embora não dependam disso para viver. Ficou famoso entre familiares e vizinhos, o sujeito que tapava vários orifícios do chuveiro elétrico, para economizar na conta de energia elétrica. Mas há situações até histriônicas, que vão da alimentação à higiene pessoal, nenhuma despesa passando ilesa pelos que adotam artifícios até bizarros, contanto que resultem na economia de alguns trocados.
Tem gente muito criativa concebendo métodos para não gastar, como aprender a reformar casa para não contratar pedreiro, consertar o carro para não chamar o mecânico e até arriscar levar choques reparando a fiação elétrica para não contratar eletricista. Outras situações, por hilárias, merecem registro.
Na década de 60 as compras ainda eram feitas nas mercearias da esquina. Vizinho de uma delas, um conhecido forreta ia até lá comprar leite Ninho, àquela época ainda vendido em latas. Ele colocava de duas em duas latas nos pratos da balança e ficava observando qual delas era mais pesada que a outra. Repetia sistematicamente a experiência e só depois pagava e ia embora, levando a que lhe parecia conter alguns gramas a mais de leite que as outras.
A forretice dos “mão-de-vaca” inspirou um dos quadros mais engraçados na célebre Escolinha do Professor Raimundo, exibida na TV Globo até maio de 1995, programa criado por Chico Anysio e Haroldo Barbosa, reunindo um seleto grupo de humoristas, dentre os quais o comediante Marcos Plonka (26/09/1939 - 06/09/2011) que encarnava a personagem "Samuel Blaustein", comerciante avarento que usava o bordão “fazemos qualquer negócio”. Errava todas as respostas da arguição e quando recebia nota “zero” do professor, comemorava dizendo “mas antes zero na nota do que prejuízo na bolsa”.
Segundo a gozação popular, quando o rei Roberto Carlos compôs em 1978 o grande sucesso que foi “Café da Manhã”, na verdade tinha em mente um apaixonado “mão-de-vaca”, que em vez de presentear sua amada com uma sofisticada cesta de café da manhã, optou por algo bem mais barato, achando que apenas um café dava para os dois, que ainda ficou esfriando na mesa:
AMANHÃ DE MANHÃ
VOU PEDIR O CAFÉ PARA NÓS DOIS
TE FAZER UM CARINHO E DEPOIS
TE ENVOLVER EM MEUS BRAÇOS
Fazendeiro afortunado, senhor de terras e gado, o Major Salustiano - oficial da antiga Guarda Nacional - no fastígio da borracha adquiriu uma imponente embarcação para visitar seus vastos seringais no alto Rio Purus e para se auto homenagear, resolveu batiza-lo com o seu próprio nome e sua patente militar, da qual muito se orgulhava. Porém, vítima de atávica sovinice, o mão-de-vaca mudou de ideia quando soube que o serviço de pintura era cobrado por cada letra desenhada no casco da embarcação. Depois de muita barganha com o pintor, de “MAJOR SALUSTIANO” o majestoso barco passou a se chamar simplesmente de “SALU”, obviamente bem mais barato para o dono.
Episódios como esse evidenciam que os mão-de-vaca são facilmente identificáveis em quaisquer grupos sociais, pela psicótica aversão que tem a qualquer desembolso, mesmo quando o gasto se mostra absolutamente necessário, pois é sabido que eles jamais abrem a mão para nadar, dar adeus aos poucos amigos ou mesmo para cigana ler a sorte...
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CÉLIO SIMÕES DE SOUZA é paraense, advogado, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho, escritor, professor, palestrante, poeta e memorialista. Membro da Academia Paraense de Letras, membro e ex-presidente da Academia Paraense de Letras Jurídicas, fundador e ex-vice-presidente da Academia Paraense de Jornalismo, fundador e ex-presidente da Academia Artística e Literária de Óbidos, membro da Academia Paraense Literária Interiorana e da Confraria Brasileira de Letras. Foi juiz do TRE-PA, é sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, fundador e membro da União dos Juristas Católicos de Belém e membro titular do Instituto dos Advogados do Pará. Tem seis livros publicados e recebeu três prêmios literários.
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Enviado pelo autor
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O nosso português de cada dia,
Sopa de Letras
terça-feira, 11 de março de 2025
Adega de Versos 133: Clevane Pessoa
José Feldman (Um dia… um tanto quanto bagunçado na praia)
Era uma manhã com um sol vibrante no céu, quando Aparecido e Lindolfo decidiram ir à praia na Vila das Velhas. Enquanto Aparecido carregava uma expressão de desânimo, Lindolfo pulava de entusiasmo, quase derrubando a bolsa de praia.
— Olha, Aparecido! Hoje vai ser um dia incrível! — disse Lindolfo, animado.
— Incrível até você fazer alguma besteira, como sempre — resmungou Aparecido.
Chegando à praia, o primeiro desafio foi montar o guarda-sol. Lindolfo, com seu jeito atrapalhado, logo começou a lutar com a estrutura.
— Deixe que eu ajudo, Lindolfo! — Aparecido disse, tentando consertar o guarda-sol.
— Não precisa, eu sou um mestre em guarda-sóis! — respondeu Lindolfo, confiante.
Assim que Aparecido segurou o guarda-sol, um vento forte soprou e, com violência, o guarda-sol voou das mãos deles.
— Ah, não! — gritou Aparecido.
Mas era tarde demais. O guarda-sol saiu deslizando e colidiu com uma tenda onde várias pessoas faziam ioga.
— O que foi isso?! — gritou uma instrutora, enquanto algumas pessoas caíam de costas, outras rolavam e batiam em uma barraca de bebidas.
— Ai, meu Deus! — exclamou Lindolfo, tentando ajudar, mas acabou tropeçando em um tapete de ioga. Ele caiu, e junto com ele, um grupo inteiro de praticantes de ioga desmoronou.
— Olha o que você fez! — Aparecido gritou.
As bebidas ficaram espalhadas pela areia, encharcando várias pessoas que estavam em suas esteiras.
— Essa é a melhor aula de ioga que já fiz! — alguém comentou, rindo, enquanto tentava se levantar.
Lindolfo, ainda tentando se recuperar da queda, disse:
— Vamos para o mar! O banho vai nos refrescar!
Os dois correram em direção à água, mas, ao chegarem à beira, perceberam que a areia estava escaldante.
— Ai, ai! Como está quente! — reclamou Aparecido, pulando de um pé para o outro.
— Pula como um saci, Aparecido! — brincou Lindolfo, que estava pulando de forma desengonçada.
Ao fazer um salto, Lindolfo, em sua típica falta de coordenação, acabou tropeçando em um cachorro que passava.
— Cuidado! — Aparecido gritou, mas já era tarde. Lindolfo caiu na areia, derrubando Aparecido junto, que foi parar de cara na água.
— Eu sabia que você ia fazer alguma besteira! — resmungou Aparecido, com a cara encharcada e enlameada.
— Foi só um pequeno acidente! — defendeu-se Lindolfo, rindo enquanto tentava se levantar.
No entanto, ao se levantar, Lindolfo escorregou na areia molhada e caiu novamente, agora em cima de Aparecido.
— Você está me afundando! — gritou Aparecido, tentando empurrá-lo.
— Desculpa! É tudo culpa do cachorro! — disse Lindolfo, se agitando descontroladamente.
Depois de muitas trapalhadas, finalmente conseguiram se limpar e foram para a água. O mar estava delicioso, e Aparecido até começou a relaxar um pouco.
— Olha, Aparecido! Estamos nos divertindo, não estamos? — disse Lindolfo, mergulhando.
— Se você não parar de fazer besteira, talvez sim! — Aparecido respondeu, tentando manter a calma.
Depois de um tempo, eles decidiram voltar para a areia. Mas, ao chegarem, perceberam que a confusão ainda não havia acabado. A tenda de ioga estava cheia de pessoas tentando se secar e algumas ainda confusas com a situação.
— Eles parecem estar se divertindo com o "aula de ioga aquática" — Aparecido comentou, tentando não rir.
— Olha, quem sabe isso não vira uma nova tendência? — sugeriu Lindolfo, piscando o olho.
— Tendência ou não, eu só quero um pouco de tranquilidade! — Aparecido resmungou.
Quando finalmente se prepararam para ir embora, Aparecido estava ainda mais irritado com as trapalhadas de Lindolfo.
— Você sempre arruma confusão, não é? — Aparecido reclamou.
— Mas pelo menos é divertido! — respondeu Lindolfo, rindo.
— Divertido para você! Eu acabei de passar por uma "experiência de areia" — Aparecido disse, enquanto se sacudia.
— Vamos fazer disso uma tradição! — sugeriu Lindolfo, enquanto caminhavam para o carro.
— Tradicionalmente, eu prefiro um dia tranquilo em casa — Aparecido resmungou, mas não pôde evitar um sorriso ao olhar para o amigo.
E assim, entre risadas e trapalhadas, os dois amigos foram embora da praia, mesmo que Aparecido ainda achasse que a próxima saída deveria ser para um lugar bem longe de qualquer guarda-sol.
Depois de um dia cheio de trapalhadas na praia, Aparecido chegou em casa ainda resmungando sobre as aventuras de Lindolfo. Enquanto se aprontava para tomar um banho, Lindolfo, entusiasmado, começou a mexer no celular.
— Olha, Aparecido! As fotos da praia estão incríveis! — disse Lindolfo, piscando para o amigo.
Aparecido saiu do banheiro, com a toalha na cabeça, e olhou para o telefone.
— Fotos? De que fotos você está falando? — perguntou, já prevendo mais confusões.
— Das nossas aventuras! — respondeu Lindolfo, passando rapidamente pelas imagens. — Olha essa aqui: você caindo de cara na areia!
Aparecido se aproximou, e a imagem era realmente hilária. Ele estava com um olhar de espanto, coberto de areia, e Lindolfo, ao lado, rindo descontroladamente.
— Isso é ridículo! — Aparecido exclamou. — Eu pareço um polvo!
— E essa aqui? — continuou Lindolfo, mostrando outra foto. — Olha a cara de quem estava "mergulhando" na água, com areia na cara!
Aparecido olhou para a foto e teve que admitir que, embora fosse constrangedor, era engraçado.
— Tudo bem, essa é engraçada. Mas e a parte em que você derrubou todo mundo na tenda de ioga?
Lindolfo começou a rolar as imagens e, em seguida, apareceu uma foto com várias pessoas deitadas na areia tentando se levantar.
— Olha, — disse Lindolfo. — você não pode negar que foi uma grande aventura!
— Grande aventura? Você quer dizer "grande desastre"! — Aparecido rebateu, mas com um sorriso involuntário.
Lindolfo finalmente encontrou uma foto que o fez rir ainda mais. Era uma selfie deles, com Aparecido de cara emburrada e Lindolfo com um sorriso enorme, coberto de areia.
— Essa é a melhor! — disse Lindolfo. — "Aparecido, o campeão da praia e eu, seu fiel escudeiro!"
— Fiel escudeiro? Você quer dizer "criador de problemas"! — Aparecido respondeu, mas já não continha as risadas.
— Vamos postar no grupo! — sugeriu Lindolfo, já pronto para compartilhar.
— Não! — Aparecido gritou. — Não quero que todos vejam isso!
— Ah, vai! Todos vão adorar! É um momento especial! — insistiu Lindolfo.
— "Especial"? Se você acha que eu quero ser conhecido como o cara que caiu na areia e foi atingido por um guarda-sol, você está muito enganado! — Aparecido retrucou.
— Mas é isso que faz a vida divertida! — disse Lindolfo, finalmente convencendo Aparecido a deixar ele postar as fotos.
Assim que Lindolfo publicou as imagens, rapidamente começaram a chegar comentários dos amigos.
— "Aparecido, você é um artista da areia!" — comentou um amigo.
— "O que aconteceu com o guarda-sol?!" — outro perguntou, rindo.
Aparecido olhou para Lindolfo, que estava quase se engasgando de tanto rir.
— Ok, você ganhou essa! — disse Aparecido, rendendo-se à situação. — Mas não quero mais aventuras como essa!
— Prometo que na próxima vamos apenas relaxar! — disse Lindolfo, com um sorriso travesso.
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Sílvio Romero (Amiga raposa e amigo corvo)
Amiga raposa convidou amigo corvo para fazerem uma viagem. A raposa convidou o gambá para seu companheiro, e o corvo convidou o caracará*. Partiram. Chegando no meio dos montes, veio a noite e foram pedir rancho na casa da amiga onça. A onça andava por fora atrás de um rebanho de carneiros, e chegou na casa muito tarde, trazendo um grande carneiro morto. Os hóspedes, que se achavam em casa, ficaram com medo.
Disse a raposa:
— Compadre corvo, as coisas não estão boas.
Disse o caracará:
—Ora, esta é boa, não temos de que temer; mas você, comadre raposa, é que deve estar em maus lençóis, sem ter onde se meter!
A raposa deu uma gargalhada e disse:
—Serei eu pior do que compadre cachorro?
O caracará:
— Comigo ninguém pode, não corro por terra, porque não corto bem o chão, mas corto o vento. Você, amiga raposa, e compadre gambá, é que têm de se ver hoje, quando ela pegou o compadre carneiro, que é maior de que vocês, quanto mais!
Chegou a hora da ceia. A onça convidou os seus hóspedes para cearem. Só a raposa é que pôde comer, por causa do feitio do prato. A onça fez mais mingau e espalhou numa pedra, e a raposa tornou a lamber. Depois o corvo disse:
— Comadre onça, eu não acho boa esta moda: quem lambe, come, quem pinica com fome fica! Foram todos dormir.
O corvo disse para o caracará:
— Nós não havemos de ficar com fome.
Quando a onça pegou no sono, o corvo agarrou nos filhotes da onça, e os devorou com o bico; o caracará fez o mesmo. Safaram-se, deixando a raposa e o gambá dormindo.
Quando a onça acordou, procurou os filhotes e só viu os ossos, e investiu para a raposa, que escapou-se e foi ao encontro de seus companheiros de viagem e os encontrou na casa do macaco.
A raposa disse:
—Agora é ocasião de vingar-me do que vocês me fizeram.
Mas como era hora de jantar, ela esperou. No fim do jantar viu um cachorro, teve medo e despediu-se. Foram o corvo e o caracará para a casa do galo e a raposa já lá estava, esperando pela ceia.
Chegada a hora, foram todos cear. O galo espalhou milho por toda a casa e disse:
Venham de bico
Que me despico:
Quem tem focinho.
Nem um tico.
A raposa meio desconfiada:
Façam o que quiser,
Durmam vocês, é que se quer.
Foram todos dormir, e a raposa foi convidar mais amigas para virem dar cabo de seus inimigos de penas. Deram cabo de todos, só deixando o gambá, por ser muito fedorento.
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* Caracará = ave de rapina semelhante ao falcão.
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SÍLVIO VASCONCELOS DA SILVEIRA RAMOS ROMERO (1851-1914) foi crítico e historiador da literatura brasileira. Fundador da Academia Brasileira de Letras. Pensador social, folclorista, poeta, jornalista, professor e político. Era sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Nasceu na vila de Lagarto, Sergipe, 1851. Em 1868 mudou-se para o Recife e ingressou na Faculdade de Direito. Polêmico, combativo e contraditório, foi influenciado por seu conterrâneo Tobias Barreto. Juntos, lideravam uma escola que reunia jovens inteligentes e destemidos, que se encarregavam de irradiar as recentes ideias vindas da França. Quando estava no 2. Ano da faculdade, Sílvio Romero colaborou com vários jornais, entre eles, o Diário de Pernambuco, a República, o Liberal, o Correio de Pernambuco e o Americano. Em 1873 concluiu o curso de Direito. Em 1876 mudou-se para o Rio de Janeiro onde obteve a cátedra de filosofia. Ao defender sua tese, travou uma discussão com um de seus examinadores, o professor Coelho Rodrigues. A agressão resultou em um processo, que não teve consequências. Romero foi também professor da Faculdade Livre de Direito e da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Como poeta, teve uma breve carreira. O primeiro livro de poemas foi Cantos do Fim do Século, lançado em 1878, em uma tentativa de aderir poesia filosófica científica que pregava desde 1870 em artigos, mas que não obteve êxito. Em 1883 publicou Últimos Arpejos, seu segundo e último volume de poesia. Desenvolveu intensa atividade como escritor. Escreveu vários livros que abordavam praticamente tudo que se referia à realidade cultural brasileira como: filosofia, literatura, folclore, educação, política e religião. Publicou assuntos ligados à cultura popular revelando-se um grande folclorista. Escreveu sobre filosofia no Brasil e sobre escolas filosóficas diversas. Em 1878 escreveu Filosofia no Brasil, publicado em Porto Alegre. Sua obra História da Literatura Brasileira (1888), em dois volumes, menos uma história literária do que uma enciclopédia de conhecimentos sobre o Brasil, a origem e evolução de sua cultura, suas raízes sociais e técnicas, foi considerada sua obra mais revolucionária. Deixou uma vasta obra culturalmente valiosa e pioneira em muitos aspectos. Respeitado pela imprensa nacional, conquistou seu lugar como um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura brasileira do século XIX. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1914.
Fontes:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Publicado originalmente em 1883.
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segunda-feira, 10 de março de 2025
Adega de Versos 132: Jérson Brito
José Feldman (A Pimenta da discórdia)
Era
uma tarde chuvosa na pequena casa de Dona Elza. Ela estava na cozinha,
concentrada em preparar seu famoso ensopado. Com um avental florido e uma
colher de pau na mão, ela mexia os ingredientes quando seu marido, Seu Manoel,
entrou com um olhar curioso.
— O que você está fazendo, minha querida? — perguntou Manoel, coçando a cabeça.
— Estou fazendo ensopado, Mané. Você sabe, o seu favorito! — respondeu Elza, sorrindo.
— Ah, sim! E eu posso ajudar? — ele disse, já se aproximando da mesa de temperos.
— Claro, amor! Só não mexa nos potes, por favor — advertiu ela, lembrando-se de algumas tentativas anteriores.
Manoel começou a olhar e mexer nos potes, mas logo se deparou com um dilema.
— E a pimenta? Onde está? Você já colocou?
— Coloquei sim! — disse Elza, sem muita certeza.
— Tem certeza? O que você acha que é essa cor aqui? — apontou ele para o ensopado.
— Mané, isso é o colorau! — ela riu, balançando a cabeça. — Você ainda lembra o que é pimenta?
— Ah, estou certo de que não colocou... — ele murmurou.
— Então, vamos colocar mais um pouco, só para garantir! — decidiu Elza, pegando o frasco de pimenta.
— Espera! — Manoel gritou. — E se já tiver? E se ficarmos com a boca em chamas?
— Mané, você está exagerando! A comida não vai explodir! — ela riu, já despejando uma boa quantidade.
— Ok, ok! Mas se eu não conseguir sentir o gosto depois, a culpa é sua! — ele retrucou, cruzando os braços.
Após o tempero, Dona Elza serviu o ensopado fumegante em dois pratos. Ambos se sentaram à mesa, ansiosos para experimentar a refeição.
— Vamos lá! — disse ela, pegando a colher. — Um brinde ao nosso jantar!
— Ao nosso jantar! — replicou Manoel, levantando o garfo.
Os dois deram a primeira colherada ao mesmo tempo. O silêncio pairou por um momento, até que Manoel começou a chorar.
— O que foi, Mané? Está tudo bem? — perguntou, preocupada.
— Eu... estou... — ele tentou falar, mas as lágrimas escorriam. — Está muito forte! Parece que coloquei fogo na boca!
— O que você esperava? — disse ela, tentando conter o riso. — Você mesmo insistiu que não sabia se a pimenta já estava lá!
— Agora eu sei! — ele respondeu, fazendo caretas. — Eu não vou conseguir comer isso!
— Que bom que você decidiu ajudar! — Elza brincou, servindo-se de um copo de água. — Deixa que eu cuido do jantar da próxima vez.
Manoel, ainda ofegante, sorriu e levantou o copo.
— Então, um brinde à pimenta esquecida e ao nosso amor!
— E que nunca mais esqueçamos onde a pimenta está! — Elza completou, rindo.
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe.
Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Silmar Bohrer (Croniquinha) 130
Terminados os trabalhos na cozinha lavando a louça, areando a chapa do fogão, passando pano no chão, aquela senhora grisalha, olhos vivos e brilhantes, chegou na sala e viu o marido costurando um buraco na meia.
- Mas por que costurar esta meia usada. Já está rota e velha !?!
- Devo costurá-la.
- Por quê ?
- Ela faz parte das minhas coisas.
Quantas vezes não valorizamos estas pequenas coisas, detalhes que podem valer pouco, mas valem muito materialmente, sentimentalmente, humanamente.
Esquecemos de nos ater ou não darmos atenção a objetos ditos insignificantes, quando na realidade não são. Como também não seguimos aquele quase preceito de que não devemos jogar fora tudo que não serve mais -um parafuso enferrujado, a toalha de banho que vira pano de chão, a casca de uma fruta que podemos transformar em deliciosa sobremesa, um prego torto . . .
E ouve-se seguidamente que quem guarda o que não presta, tem o que precisa.
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SILMAR BOHRER nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).
Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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Hans Christian Andersen (O Isqueiro)
Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.
Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:
- Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na imaginação.
- Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.
- Vês essa enorme árvore? Pois está toda oca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.
- E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.
- Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada, pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão e, sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre e se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.
- Tudo isso é muito bom- disse o soldado – mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.
- Não, não quero nem um vintém, só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.
- Pois bem: ata-me a corda à cintura.
- Pronto! E aqui está também o meu avental.
O soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.
Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!
- És um belo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa.
Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
- Não me olhes assim, tão fixamente - disse ele. - Podes ficar vesgo!
E pôs o cão no avental, mas quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu.
E... que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenhague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.
- Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.
Cumprimentava o cão, porque jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergueu-o e o depôs no avental e abriu a arca.
Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenhague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro!
O soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase nem podia andar. Agora sim, que estava rico!
Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:
- Puxa a corda, velha feiticeira!
- Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.
- E esta! Tinha-se esquecido dele!
Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.
- Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.
- Isso agora não é da tua conta, já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.
- Escuta, velha feiticeira, se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!
- Pois não te digo!
E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida. Ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.
Era uma cidade muito bonita. Ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar, já que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.
O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas, mas é que ele não tivera tempo de comprar outras.
No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro elegante, e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.
- E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.
- Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o custo que a profecia se realize.
- Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.
Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.
Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia ao teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos, todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.
Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro e viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão. Tinha de limpar as botinas e até remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.
Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. Quando bateu com o fuzil na pederneira, saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:
- Que ordena, meu senhor?
- Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!
Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:
- Traze-me dinheiro.
Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.
Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre, se dava duas, vinha o da arca de prata e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.
Pôde assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.
Mas um dia veio-lhe à memória o caso da princesa.
- Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?
Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.
- É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!
Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal, e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado - porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.
Saiu o cão levando a princesa, mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.
- É uma história linda - disse a rainha.
E naquela noite ficou uma dama de honra ao pé da cama da princesa para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.
O soldado tinha um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honra se pôs no encalço do animal, e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se.
Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade. Era um cão sagaz, pois assim a dama de honra não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz.
De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honra e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.
- É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.
- Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.
- Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.
E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.
Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda, fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.
À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.
Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:
- Serás enforcado amanhã!
Não era nada alegre a notícia, e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.
De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores, via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:
– Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!
Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas, saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e... mas vamos ver o que aconteceu.
Tinham erguido uma forca alta; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado. Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.
Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer, pois seria a última vez que fumava neste mundo.
Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães - dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague.
– Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.
Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.
- Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.
Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.
Então os soldados e o povo, amedrontados, puseram-se a gritar:
- Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás com a bela princesa!
Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:
- Viva! Viva!
Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!
As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam.
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HANS CHRISTIAN ANDERSEN foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.
Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
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domingo, 9 de março de 2025
Eduardo Martínez (O Leitor)
Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas.
Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"
As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.
A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras.
Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada!
Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.
Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.
Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz.
O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.
Fontes:
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José Feldman (Desabafo)
A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.
O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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DESABAFO
Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.
Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Yasmin, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Yasmin, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.
Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.
Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.
A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Yasmin e da filha Samara, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.
A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.
A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.
Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Samara, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.
Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.
A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.
A música também o conectava a memórias de Yasmin. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.
Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Samara. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.
A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.
Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.
Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Yasmin.
“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.
O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.
Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO
A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu cobertor.
Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.
Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.
Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.
A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.
Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.
E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega,
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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