quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Jerônimo Mendes (História da Poesia Universal – Breve Relato ) Parte II


Quase todas essas tragédias foram primeiro apresentadas como trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros – selvagens pantominas em homenagem a Dioniso – no Teatro de Dioniso Eleutério, junto à Acrópole Ateniense.

Os Persas, escrito por Ésquilo e apresentado em 472 a.C. com o jovem Péricles como líder do coro, inovou ao tratar de um tema contemporâneo. A peça descreve a derrota de Xerxes (antigo imperador Persa) frente aos gregos. No poema, Ésquilo descreve a batalha naval de Salamina com detalhes muito mais vividos do que os encontrados nos relatos históricos. A maioria dos seus temas posteriores foi extraída da mitologia e das lendas - épicos sombrios e taciturnos, repletos de paixão e de sangue, nos quais os feitos desastrados dos mortais são mostrados em flagrante contraste à majestade e ao poder dos deuses e deusas do Olimpo.

Das setenta peças que escreveu, apenas sete sobreviveram. A Orestéia, a grande trilogia de Ésquilo, conta a antiquíssima história da casa de Atreu em dois registros : o da intimidade do amor e do ódio humanos, e o da história em seu sentido mais amplo. Atreu, rei de Micenas (ou Argos), matou os filhos de seu irmão Tiestes; apenas um deles, Egisto, sobreviveu. Mais tarde, os filhos de Atreu, Agamenon e Menelau, casam-se com as irmãs Clitemnestra e Helena. Quando esta abandona Menelau por causa de Páris, de Tróia, os irmãos montam uma expedição que dá início à guerra de Tróia, tendo Agamênon sacrificado a própria filha para que os bons ventos facilitassem a travessia marítima.

Em Agamênon, a primeira das peças, o rei retorna vitorioso de Tróia. Em sua ausência, Clitemnestra tomara Egisto com amante e, juntos, eles governam Micenas; para vingar a filha e se manter no poder, ele mata Agamênon.

A riqueza da linguagem e a concentração metonímico-metafórica é de causar alegria e espanto aos olhos de um bom amante da literatura. Veja abaixo uma parte do poema :

AGAMÊNON

( . . . ) foi Helena
levar a Tróia lágrimas e sangue.
Mas aqui, em seu lar abandonado,
lamentações se ouviam, relembrando
a ingrata que partira. Seu marido,
sem comer, sem dormir, qual um fantasma
percorre os aposentos do palácio,
com o pensamento posto além dos mares,
chorando de saudade, e não de ódio.
Um fantasma rondando pela casa,
que um túmulo parece, e não palácio.
O corpo escultural de sua amada
não lhe sai da memória um só momento.
Tem impressão de vê-la: corre em frente
esperando abraça-la . . . Em vão, em vão.
Desfaz-se logo o sonho. Em vão, em vão . . .

Em As Coéforas, Orestes, filho de Agamênon e Clitemnestra, retorna de seu esconderijo e, para vingar o pai, mata tanto a mãe quanto Egisto. Deusas selvagens, as Eumênides, ou Fúrias, o perseguem, exigindo que paguem com seu sangue pela morte de Clitemnestra.

Na peça final, As Eumênides, deusas mais jovens, lideradas por Atena, julgam Orestes perante um júri de mortais e decidem que a vingança foi redimida. Eles aceitam as Eumênides na hierarquia dos novos deuses, como protetoras de Atenas.

Explorando essa trama de relacionamento, Ésquilo discute questões mais abrangentes. Quando atos privados orientaram decisões governamentais, o resultado foi morte e destruição, canta o coro, referindo-se a Helena, no trecho de Agamênon destacado anteriormente. A exigência de vingança aprisiona as nações por gerações; um coro de prisioneiros de guerra lamenta o fato na passagem de As Coéforas. No entanto, em uma nova fase da civilização, esses costumes podem ser alterados e As Eumênides terminam com uma suave canção de paz, conforme podemos apreciar no texto que segue :

Marchai para o vosso lar, grandes amantes da honra,
Filhas da Noite Ancestral, vossa paz foi alcançada.
(E toda palavra é santa).
Nas profundezas da terra, na imemorial caverna,
honradas com sacrifício, com reverência e temor.
(E toda palavra é santa).
Temidas e amigas deusas, que amam e guardam a nossa
terra; e embora devorem chamas, abrem um caminho de
luz, que repousem satisfeitas, todas as vezes
proclamem o triunfo da alegria !
Derramai de novo o vinho em sacrifício incruento,
e o onisciente Zeus guarde a cidade de Palas.
O Deus e o Destino juntos, todas as vezes proclamem
o triunfo da alegria !

Ésquilo procurou no trágico destino de seus personagens confirmar a justiça da ordem divina. “Zeus, que orienta os pensamentos dos homens”, escreveu ele, “estabeleceu que só se alcança a sabedoria através do sofrimento”.

Sófocles, aristocrata, general e amigo de Péricles, considerado muito culto e jovial na época, nasceu por volta de 497 a. C., combateu sob Péricles na guerra contra Samos, conforme dito anteriormente.

Adotou uma visão mais equilibrada do relacionamento entre os homens e os deuses. Sua principal preocupação era o caráter e o modo pelo qual qualquer excesso - de orgulho, por exemplo - podia transformar o equilíbrio natural e levar à ruína.

Extremamente produtivo, elaborou seus dramas com graça e nobreza impecáveis. Também foi um inovador, ampliando os recursos e a flexibilidade de forma trágica - por exemplo, acrescentando um terceiro ator, como citamos no início do capítulo. Sete de suas 130 peças foram preservadas.

A trilogia tebana de Sófocles é um estudo da ambigüidade. Ele mostra que uma pessoa pode ser, ao mesmo tempo, inocente e culpada, praticando o mal com as melhores intenções. A coragem e a aceitação parecem ser as únicas reações frente a um universo racional.

A primeira peça, Rei Édipo (Rei de Tebas, famoso por solucionar o enigma da Esfinge), revela uma história de horror. tão sábio que solucionou o enigma da Esfinge, casou-se com a rainha de Tebas e passa a governar essa cidade. No início da peça, Tebas está amaldiçoada : ela abriga um parricida (Pessoa que matou pai, mãe ou qualquer dos ascendentes ) que desposou a própria mãe, afrontando os deuses. Édipo é esse homem.

Desconhecendo seu parentesco, Édipo havia matado um homem, seu pai, e se casado com uma mulher que era sua mãe. Pouco a pouco ele se aproxima da verdade; nessa fala, Tirésias, o adivinho cego, começa a esclarece-lo. Quando compreende o que ocorreu, Édipo fura os próprios olhos e se exila. Toda grandeza do poema pode ser avaliada no pequeno trecho que segue :

REI ÉDIPO

Se tu possuis o régio poder, ó Édipo,
eu posso falar-te de igual para igual !
Tenho esse direito ! Não sou teu subordinado,
mas sim de Apolo; tampouco jamais seria
um cliente de Creonte. Digo-te, pois,
já que ofendeste minha cegueira,
que tu tens os olhos abertos à luz,
mas não enxergas teus males, ignorando
quem és, o lugar onde estás, e quem é aquela
com quem vives. Sabes tu, por acaso,
de quem és filho ?
Sabes que és o maior inimigo
dos teus, não só dos que há se encontram no Hades,
como dos que ainda vivem na terra ? Um dia virá,
em que serás expulso desta cidade pelas maldições
maternas e paternas. Vês agora tudo claramente;
mas em breve cairá sobre ti a noite eterna.
E agora . . . podes lançar toda a infâmia sobre mim,
e sobre Creonte, porque nenhum mortal, mais do que tu,
sucumbirá ao peso de tamanhas desgraças !

No poema Édipo em Colona, o rei, abandonado por todos, com exceção de sua filha Antígona, acaba seus dias em uma colina fora de Atenas. Seu destino - e o da humanidade - é lamentado pelo coro nos versos mostrados abaixo :

ÉDIPO EM COLONA

Embora tendo vivido uma vida plena,
por vezes um homem ainda deseja o mundo.
Juro que nisso não vejo sabedoria.
As horas intermináveis trazem apenas sofrimento
que aumenta a cada dia; e, quanto ao prazer,
se alguém se curva sob o peso da idade excessiva
não encontra em parte alguma seu prazer.
A derradeira acompanhante é a mesma para todos,
jovens e velhos, pois à sua chegada se revela
a herança do outro mundo que cabe a cada um
cessam para sempre o epitalâmio 1 ,
a música e a dança. A morte é o desfecho . . .

(Nota: epitalâmio: 1. Canto ou poema com que se celebram núpcias, depois de realizadas; a celebração antecipada faz o protalâmio.)

No entanto, o amaldiçoado Édipo também é abençoado: a terra se abre em Colona para levá-lo à morte e libertá-lo, tornando sagrado o local em que ele perece.

Antígona, produzida em 441 a.C. por Sófocles, relata o trágico destino da filha de Édipo, de Tebas, condenada por enterrar o cadáver de seu irmão rebelde. Antígona também mostra um homem que, imaginando agir corretamente, faz o mal.

Creonte, tio e sogro de Antígona, salvou Tebas de revolucionários, dentre os quais o agora morto irmão de Antígona. Para servir de exemplo, Creonte proíbe que o corpo deste seja enterrado. Antígona não pode permitir o sacrilégio, embora seu ato de desafio implique morte. Ela sepulta o corpo do irmão, admitindo o que fez. Como punição, ela é enterrada viva. Creonte percebe sua injustiça tarde demais e também é punido: Antígona se enforca em sua sepultura e o filho de Creonte também se suicida.

Na peça, o coro lamenta por Antígona, referindo-se a mitos trágicos familiares aos gregos: o de Dânae, mencionado anteriormente; o de Licurgo, que se enfureceu contra o deus Dioniso, enlouqueceu e matou seu filho Drias ; o de Fineus, cuja segunda mulher provocou a cegueira dos filhos de seu primeiro casamento com Cleópatra.

Eurípedes, nascido por volta de 480 a.C., era um filósofo austero, recluso e menos idealista do que os outros dois. Das noventa peças que escreveu restam somente dezoito. Escreveu suas peças numa fase tardia da época de Péricles, quando as crenças e os valores tradicionais do mundo helênico estavam sendo questionados. Na sua maioria, as peças refletiam a incerteza, retratando um mundo no qual os deuses estavam perdendo seu poder sobre os gregos, cuja atenção se voltava para as dúvidas e contradições da existência humana. “ Ele retrata os homens como eles são ”, disse Sófocles, que admirava a obra do dramaturgo mais jovem, “ eu retrato os homens como eles deveriam ser ”.

As obras de Eurípedes revelam uma percepção incomparavelmente profunda das paixões e motivações de seus conterrâneos.

As Troianas, encenada em 416 a.C., de Eurípedes, relata o cerco de Tróia e suas conseqüências fascinando a imaginação de todos os gregos, especialmente a dos dramaturgos.

A peça é um longo lamento pelos horrores da guerra - pelos guerreiros que morreram e pelas mulheres levadas cativas. Neste pequeno trecho, Hécuba, a rainha troiana, chora pelo cruel destino que coube a ela e suas crianças :

AS TROIANAS

Ai de mim ! Aqui estou, ao lado das tendas de Agamenon.
Levam-me para a escravidão, uma velha igual a mim, com
a cabeça dilacerada pela afiada lâmina do sofrimento.
É demais ! Lastimosas viúvas dos guerreiros de Tróia e vós,
virgens noivas da violência, Tróia está fumegante,
choremos por Tróia . . .

Eurípedes escreveu também tragédias sobre Ifigênia, a filha de Agamênon; sobre Medéia, a assassina; e também sobre Hipólito, o filho de Teseu, injustamente acusado de tentar seduzir sua madastra. No entanto, sua obra mais brilhante e aterrorizante talvez seja a que tem como tema o próprio deus que era o patrono da arte teatral.

As Bacantes foi escrita no final da vida de Eurípedes, quando o dramaturgo havia deixado a enfraquecida e dilacerada Atenas e vivia na região selvagem da Macedônia.

Dioníso era um espírito primitivo da fertilidade e da criatividade, que deu aos homens o conhecimento do vinho. Era um deus venerado por toda a Grécia com rituais orgiásticos, muitas vezes sangrentos. Aqueles que o aceitavam, diziam os crentes, tornavam-se parte do deus e recebiam a inspiração divina. Aqueles que o recusavam eram levados à loucura. Na peça de Eurípedes, o jovem deus Dioniso surge com seu alegre séquito em Tebas, para ser venerado e provar sua própria divindade : dizia-se que ele era filho de Zeus e uma princesa tebana.

Penteu, o rei de Tebas, um homem inflexível e irritável, repudia o deus e comete o sacrilégio de colocá-lo a ferros. Em seguida, Dioniso enlouquece as mulheres de Tebas e as envia - lideradas pela mãe de Penteu – às montanhas para que festejem como suas seguidoras, as bacantes (Sacerdotisas de Baco, deus do vinho).

Ele também enlouquece Penteu e o atrai para o local onde se encontram as bacantes. Lá, Penteu é morte de maneira terrível por sua mãe enlouquecida, que havia sido levada a um frenesi animalesco. Por decoro, tal cena de violência não aparece na tragédia: um mensageiro descreve o que ocorreu na montanha.

Quase todas as tragédias escritas foram primeiro apresentadas como trilogias, as quais eram seguidas por peças de sátiros - selvagens pantomimas (Arte ou ato de expressão por meio de gestos) em homenagem a Dioniso - no teatro Dioniso Eleutério, junto à Acrópole ateniense.

A enorme concha de pedra do anfiteatro podia receber 15 mil espectadores e apresentava excelente acústica. No interior da concha, havia a orquestra circular ou plataforma de dança, com o altar de Dioniso ao centro e, atrás, a skene, ou cena. Esta era uma plataforma encimada por uma edificação retangular de madeira, cuja fachada ocultava os camarins e os acessórios. Pelas três portas da cena, os atores ou declamadoras faziam suas entradas e saídas. A peça começava quando um ator, usando a máscara de linha e gesso, túnica, capa e coturnos especiais, declamava o prólogo. Em seguida, o coro começava a declamar seus versos. O segundo e o terceiro ator entravam e davam início aos diálogos, os quais se alternavam com comentários do coro, até que a peça chegasse ao final e o coro e os atores cantassem juntos o komoses, lamento final.

Não se conhece a música de acompanhamento das tragédias, mas as palavras dos poetas ainda ressoam com toda a sua força. O importante de tudo que foi relatado neste capítulo é a conclusão lógica e pura de que a poesia dos primeiros tempos exerceu papel importantíssimo na formação cultural dos povos e foi motivo de júbilo para aqueles que dedicaram-se ao desenvolvimento das suas formas diversas e estruturação do pensamento poético, classificadas em odes, elegias, sátiras, epopéias, hinos ou outro gênero.

Os principais poetas eram considerados parte da elite cultural da época e arrastavam multidões, desde simples curiosos e admiradores de rua que se aglomeravam nos locais escolhidos para encenações ao ar livre até os mais afamados filósofos e pensadores da antigüidade, fossem eles críticos ou incentivadores de qualquer modalidade.

A notoriedade da poesia nos primórdios era muito superior à que verificamos na atualidade uma vez que os poemas eram declamados sempre em público e nunca para ouvintes solitários. Toda expectativa dos ouvintes era trabalhada com antecedência pelos poetas e demais pessoas que promoviam os eventos poéticos aliados ao teatro onde os poetas se preparavam ao máximo para não decepcionar a platéia.
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Continua
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Fonte:
Monografia feita pelo autor em Curitiba / PR , março de 2001

Casa do Poeta de Canoas (Convocação)


EDITAL DE CONVOCAÇÃO
A Casa do Poeta de Canoas, por intermédio de sua representante legal instituida,
convoca todos seus associados para a Assembléia Geral Extraordinária, que realizar-se-á em:

19/12/2009 - Sábado - 14h

Fundação Cultural de Canoas
Av. Victor Barreto, 2301 - Centro / Canoas

PAUTA:
- Eleição da nova Diretoria para o biênio 2010/2011

Maria Santos Rigo
Presidente da Casa do Poeta de Canoas

Fonte:
Casa do Poeta de Canoas

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XXI



CAPÍTULO VI

FORMAÇÃO DE LENDAS RECENTES

CARTOUCHE ET MANDRIN

Dois célebres bandidos de proezas diferentes que souberam cativar a imaginação popular: Cartouche tornou-se assim o bom ladrão enquanto que Mandrin é um salteador temível que socorre os humildes. Desde a morte desses dois personagens, os livros se apoderaram de suas personalidades.

I. — Cartouche

a) Sua vida — Louis Dominique Cartouche, nascido em outubro de 1693 no bairro de La Courtille, em Paris, teve uma educação bastante rudimentar. Aos onze anos foi raptado por um bando de boêmios e aos dezoito já roubava pelos belos olhos de uma pequena roupeira. Recrutador, organizou mais tarde o seu bando de acordo com os principios militares; seus tenentes chamavam-se Duchâtelet, bem como Duplessis d’Entraigues, Louis Marcant, estudante de direito, Pélissier, cirurgião. Como a França estava coberta por uma rede de agentes (teve trezentos e sessenta e seis cúmplices) Pélissier pode atacar o correio de Lião. A audácia desses homens é inacreditável: um pregoeiro proclama a busca de Cartouche, esse se dá a conhecer e apavora a multidão que nada faz para detê-lo. Suas evasões são espetaculares (Fort-l’Evêque).

Apesar de enriquecido pela rua Quincampoix onde François Le Roux despojava os visitantes do banco Law, Cartouche tornou-se receoso — ele próprio foi delator junto a M. d’Argenson. Duchâtelet vende o seu chefe no dia 14 de outubro de 1721; encarcerado no Chatelet e depois na Conciergerie, sua pena de morte foi-lhe comunicada no dia 26 de novembro de 1721. No dia 27, na praça de Greve, já sem esperanças de ser salvo pelos seus, denunciou seus cúmplices, enquanto que no interrogatório, apesar do suplício dos sapatos de ferro, nada confessou.

b) Sua popularidade — Esse bandido sanguinário, supliciado na roda aos vinte e oito anos, foi exposto em casa do ajudante do carrasco: cada curioso pagava um soldo. A Confraria dos Barbeiros-Cirurgiões trouxe o corpo para seu hotel e durante três dias os parisienses puderam desfilar para vê-lo. O molde de sua máscara é conservado na biblioteca de Saint-Germain; outra figura no Museu do Homem.

Sua biografia aparece em 1721, L’Histoire de la vie et du procès du fameux Louis-Dominique Cartouche (História da vida e do processo do famoso Louis-Dominique Cartouche), mas Legrand e Quinault já havia atualizado sua peça quando vieram ver Cartouche na prisão; os italianos seguiram o teatro francês e representaram-no como Arlequim. Uma multidão se formou para assistir essas peças. A aristocracia velo para ver o bandido prisioneiro, o próprio regente saiu das suas comodidades; os gravadores venderam seu retrato, os poetas, entre eles Racot de Grandvai (1725), glorificaram sua coragem, sua inteligência, seu gênio de comando:

Ainsi finit Cartouche, et la Fleur des Guerriers
Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.
(Assim morre Cartouche, e a Flor dos Guerreiros.
No cadafalso deixa sua vida e seus louros.)

II — Mandrin

a) Sua vida — Nascido em Saint-Etienne-de-Saint-Geoirs em Dauphiné, no dia 11 de fevereiro de 1725, Louis Mandrin é um contrabandista popular com poses de gentil-homem. Em Chambéry é recebido pela nobreza. Mandrin organiza um bando disciplinado e promove verdadeiras campanhas contra os Fermiers généraux. Sua sexta campanha foi sangrenta. Mandrin não ataca os particulares mas obriga os administradores oficiais e intermediários a comprarem os seus produtos contrabandeados; fornece recibos regulares. Mandrin é o gerente de um estabelecimento comercial; escrupuloso quanto aos pesos, as quantidades, insurge-se todavia contra os impostos descontados por quarenta mil empregados detestados. Malesherbes, primeiro presidente da Corte de Apelação, havia também condenado esse abuso.

Mandrin retoma as façanhas de Puymoreau que em 1548, com um bando organizado de seis mil homens lutou contra o imposto da gabela e tomou Saintes, Cognac, Bordéus, libertando os contrabandistas arrestados.

Audacioso, afugenta as tropas de Luís XV que se lhe opõem, ataca cidades inteiras: Autun, Bourg-en-Bresse — (5 de outubro de 1754), Beaune (dezembro de 1754). Liberta os prisioneiros, menos os assassinos e os ladrões; assina libertações e endereça cartas corteses, porém firmes, às mais altas autoridades.

Depois de uma batalha decisiva contra os hussardos da legião de Fitscher, refugia-se na Savóia. Seis regimentos de infantaria e dois de cavalaria foram mobilizados. Mas na noite de 10 para 11 de maio de 1755, raptado por soldados de La Morliêre, do castelo de Rochefort, em território Sardo, os Fermiers généraux instauram imediatamente um processo. A Corte de Turim manifesta-se contra essa violação de direitos e de seu território, mas, no dia 26 de maio de 1755 era executado em Valença. Em seguida, a França humilhou-se perante a Casa de Sardenha e libertou dois companheiros de Mandrin injustamente aprisionados. Mandrin não denunciou nenhum de seus companheiros, fez supor que não era responsável por nenhuma morte; aos trinta e um anos sua morte foi edificante.

b) Sua popularidade — Suas aventuras galantes, suas fugas, suas façanhas audaciosas, seu papel de benfeitor para com a população à qual vendia produtos de excelente qualidade a preços muito acessíveis, fizeram com que o nomeassem “capitão geral dos contrabandistas da França”. Seus irmãos Antônio, Francisco e Cláudio, bem como sua irmã Mariana, ficaram incumbidos de continuar a organização do irmão.

Entre 1755 e 1760, vinte e cinco contrabandistas foram supliciados à roda ou esquartejados e cinco foram enforcados. O povo chorou a morte de Mandrin. O abade Regley criou para os Fermiers généraux uma Histoire de Louis Mandrin (1755) com “detalhes das suas crueldades, dos seus assaltos e do seu suplício”; o que nada mais é do que uma rede de calúnias encontradas em algumas “madrinades”. Os Fermiers généraux pretendiam assim desviar a opinião geral: Mandrin nada mais era do que um salteador. Foi confundido com Cartouche. De fato, a Revolução francesa ia realizar a obra sonhada por esse contrabandista.

Conclusão — Esses homens, com sua coragem audaciosa, tomaram proporções sobrenaturais. Com os louvores desses homens criou-se a lenda. O mecanismo dessa miragem da imaginação popular é assim bem evidenciado. Mais recentemente lembramo-nos de Bonnot cujas façanhas foram multas vezes comentadas, ou do bandido siciliano Giuliano glorificado nas telas cinematográficas. Mas essas lendas ainda novas já não deixam lugar ao simbolismo, somente ao maravilhoso. A lenda de Santa Teresa de Lisieux poderia ser considerada sob esse prisma.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

domingo, 13 de dezembro de 2009

Jean-Pierre Bayard (História das Lendas) Parte XX



IV. — Pierre de Provence

Obra moralizadora é a narrativa de um amor fiel; sua singeleza transmite-lhe uma graça e uma suavidade bem características dos Romans courtois (Romances corteses) nos quais tudo é encantamento e prodígio.

1. — O tema

Pierre de Provence rapta Maguelone, filha do rei de Nápoles. Mas durante a viagem, Pierre, ao perseguir um pássaro que se apoderou de uma jóia, extravia-se. Muito tempo separados, os dois amantes se encontram finalmente e formam o par mais unido.

2. — As fontes

a) Literárias — Romance anônimo conhece-se o manuscrito de Coburgo e a edição gótica de Lião, atribuída a Barthélémy Buyer em, aproximadamente, 1477. Parece que esse texto foi escrito nas regiões do sul da França em, aproximadamente, 1442. As edições Le Roy, em Lião (1485) inspiraram-se no mesmo tema muito popular na Idade Média.

Conforme Gariel (Idée de Montpellier, 1665), o assunto teria sido estudado por Petrarca segundo um texto de Bernard de Tréviez. Esta hipótese é posta em dúvida por Ancona (1889), rebatida por Gaston Paris (Romania, t. XVIII, l889,pág. 511). Parece mais certo ser Tréviez o escultor que ornou o lintel da porta da catedral de Maguelone.

b) Histórico — Vêm-nos ao pensamento a ilha de Maguelone, perto de Montpellier e nos condes de Toulouse; supôs-se ser o bom rei René o conde de Provença (1435-1480). Mas com mais certeza pensou-se em Pierre de Melgueil que ofereceu o seu condado ao papa Gregório VII, no dia 27 de abril de 1085. Sua esposa era Almodis. Esse generoso conde, glorificado pela Igreja de Roma, tornou-se uma figura popular (estudo de A. Germain, 1854).

3. — A sucessão literária

Duas vezes Cervantes citou Pierre de Provence em D. Quixote. As poesias de Tieck, com a música de Brahms, foram editadas em Berlim, em 1911. Mistral trata de Maguelone (Trésor du Félibrige, II, 244) (Tesouro do Felibrige) Esse tema popular inspira numerosos artistas e um sarcófago de mármore existe na catedral de Maguelone.

Os elementos desse romance se encontram nas Mil e uma noites (história do príncipe Camaralzanam e da princesa Badur), no poema italiano Ottinello e Giulia, no romance francês L’Escoufle. O furto de jóias por um pássaro é um caso comum na literatura.

O romance persa Histoire des amours de Cofroès (História dos amores de Cofroès) lembra ainda a narrativa francesa.

4. — Paris e Vienne

Esse romance terminado em 1443 (conforme Biedermann, em 1427), compara-se a Pierre de Provence.

É a história de um invencível cavaleiro que cativa o amor de Vienne, filha do Delfim do Vienense. Paris, como Pierre, é aprisionado no Oriente, na Síria e na Alexandria. Finalmente desposa Vienne.

Esse texto é conservado na biblioteca de Carpentras (n.o 172). Podemos ainda pensar no amor de Flora que corre para o palácio do Sultão na Babilônia a fim de lá arrancar Brancaflor. Aucassin et Nicolette retoma o tema e Aucassin, depois de aventuras cômicas, consegue desposar a filha de Garin de Beaucaire que se opunha aos seus amores.

5. — Conclusão

Paris e Vienne dão um lugar importante aos feitos da cavalaria, mas os dois textos são histórias de amor edificantes nas quais a constância dos amantes triunfa. Pierre de Provence continua sendo uma obra mais humana e mais elegante; o estilo é simples, direto. A clareza e a uniformidade dessa narrativa muito sóbria foram a razão do seu êxito.
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continua...
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Fonte:
BAYARD, Jean-Pierre. História das Lendas. (Tradução: Jeanne Marillier). Ed. Ridendo Castigat Mores

sábado, 12 de dezembro de 2009

Trova LXXXVII - Lacy José Raymundi (Garibaldi/RS)

Qorpo Santo (Mateus e Mateusa)


Personagens
Mateus, velho de 80 anos
Mateusa, idem
Catarina
Pêdra e filhas
Silvestra
Barriôs, criado

ATO PRIMEIRO

Cena Primeira

MATEUS (caminhando em roda da casa; e Mateusa assentada em uma cadeira)
– Que estão fazendo as meninas, que ainda as não vi hoje?!

MATEUSA (balançando-se)
– E o Sr. Que se importa, Sr. Velho Mateus, com as suas filhas?

MATEUS (voltando-se para esta)
– Ora é boa esta! A Sra. Sempre foi, é, e será uma ( atirando com a perna) – não só impertinente, como atrevida!

MATEUSA – Ora, veja lá, Sr. Torto (levantando-se), se estamos no tempo em que o Sr. A seu belo prazer me insultava! Agora eu tenho filhos que me hão de vingar

MATEUS (abraçando-a) – Não; não, minha querida Mateusa; tu bem sabes que isso não passa de impertinências dos 80. Tem paciência. Vai me aturando, que te hei de deixar minha universal herdeira ( atirando com uma perna) do reumatismo que o demo do teu Avô torto meteu-me nesta perna! (atirando com um braço) das inchações que todas as primaveras arrebentam nestes braços! (abrindo a camisa) das chagas que tua mãe com seus lábios de vênus imprimiu-me neste peito! E finalmente (arrancando a cabeleira): da calvície que tu me pegaste, arrancando-me ora os cabelos brancos, ora os pretos, conforme as mulheres com quem eu falava! Se elas (virando-se para o público) os tinham pretos, assim que a sujeitinha podia, arrancava-me os brancos, sob o frívolo pretexto de que me namoravam! Se elas os tinham brancos, fazia-me o mesmo, sob ainda o frivolíssimo pretexto de que eu as namorava (batendo com as mãos, e caminhando). E assim é; e assim é, - que calvo! calvo, calvo, calvo, calvo, calvo (algum tanto cantando) calvô... calvô...calvô... ô...ô...ô!...

MATEUSA (pondo as mãos na cabeça)
– Meu Deus! Que homem mais mentiroso! Céus! Quem diria que ainda aos 80 este judeu-errante havia de proceder como aso quinze, quando roubava frutas do Pai!

MATEUS (com fala e voz muito rouquenha) –
Ora, Sra.! Ora, Sra.!Quem, quem lhe disse essa asneira?!
(Profere estas palavras querendo andar e quase sem poder. É este o todo do velho em todos os seus discursos.)

MATEUSA (empurrando-o) – Então para que fala de mim a todas as moças que aqui vêm, Sr., chino?! Para quê, hem? Se o Sr. não fosse mais namorador que um macaco preso a um cepo, certamente não diria – que sou velha, feia e magra! Que sou doente de asma; que tenho uma perna mais curta que a outra; que... que... finalmente, que já (voltando-se com expressão de terror) não lhe sirvo para os seus fins de (pondo a mão em um olho) de... O Sr. bem sabe! (esfregando com as costas da mão o outro [olho] com voz de quem chora). Sim, se eu não fosse desde a minha mais tenra idade um espelho, tipo, ou sombra de vergonha e de acanhamento, eu diria (virando-se para o público): Já não quer dormir comigo! Feio! (saindo da sala) mau! velho! Rabugento! Também não te quero mais, fedorento!

MATEUS – Mas (voltando-se para o fundo), e as meninas, onde estão!? Onde? Onde?
(Puxa a cabeleira.) Pêdra! Catarina! Silvestra! (Escuta um pouco.) Nenhuma aparece! Cruéis! Fariam o mesmo que a Mãe!? Fugiriam de mim!? Coitado! Pobre de quem é velho! As mulheres fogem, e as filhas desaparecem!

Cena Segunda

PÊDRA (entrando) – O que é, Papaizinho? O que é que quer? O que tem? Sucedeu-lhe alguma cousa? Não? (Pegando-lhe no braço.)

MATEUS (como acordando-se de um sonho.) – Hem? (Esfregando os olhos.) Hem? O que é? Que é? Chegou alguém? Eu estava, aqui estava.

PÊDRA – Que tem, meu Pai?

MATEUS (assoando-se sem tocar no nariz, e olhando) – Vejam o que é ser velho!
Menina, menina, já que estás aqui, dá-me um lenço; anda (pegando nos braços da filha), anda, minha queridinha; vê um lenço para o vosso velho paizinho! Sim; sim; vai; vai; anda. (Fazendo-a caminhar.)

PÊDRA (voltando-se) – Também este meu Pai cada vez fica mais porco! Por isso é que a minha mãe já enjoou ele tanto, que nem o pode ver! (Saindo.)
Eu já vou buscar! Espere um minuto (com as mãos, fazendo-o parar), já venho, Papai! Já venho, e vou buscar-lhe um dos mais lindos (com ar gracioso) que encontrar em meu guardaroupa, ouviu, Papai? Ouviu?

MATEUS – Sim, sim; já ouvi. Tu sempre foste o encanto dos meus olhos; o sonho de todos os meus momentos... (Entra outra.) Esta menina (voltado para o povo) é os encantos da imaginação desta cabeça (batendo com as mãos, uma de cada lado da cabeça) e objeto que ao ver, me enche (apalpando o coração) este coração de alegria!

CATARINA – E eu, Papai? E eu, então não mereço alguma?!

MATEUS (voltando-se e olhando para Catarina) – Minha querida Filha! Minha querida Catarina! (Abraçando-a .) És tu, oh! Quanto me apraz ver-te! Se tu soubesses, queridíssima Filha, quão grande é o prazer que banha (inclinando [-se] e levando a mão ao peito) este peito! Sim (tornando a abraçá-la) , tu és um dos entes que fazem com que eu preze a velha existência, ainda por alguns dias! Sim sim, sim! Tu, tua sábia irmã Pêdra; e... e aquela que ainda hoje não tive a fortuna de ver, a tua mais que simpática irmã Silvestra; - são todas três os Anjos que me amparam; que me alimentam o corpo e a lama; por que, e para quem vivo; e morreria, se fosse mister!

(Entra Silvestra, aos pulinhos, e Pêdra, fazendo passos de dança.)

SILVESTRA – Papaizinho do meu coração! (abraçando-o pelas pernas.) Você é o meu tudo! Olhe, Papaizinho: eu sonhei que o Sr. queria um lenço, e corri! Tomei este que a mana Catarina lhe trazia, e lhe truce!

MATEUS – Quanto sou feliz! (Pega o lenço e enxuga os olhos.)

CATARINA (à parte, e com expressão de dor) – Ele disse que a outra era simpática; e de mim nem ao menos diz que sou formosa. Sempre é velho: não sabe agradar a todos!

PÊDRA – Papai! Eu não fui portadora do que me pediu, porque a Silvestra é muito velhaca, e muito ligeira! Assim que me viu com o lenço na mão, tomou-m’o, e correu para trazer-lhe primeiro que eu!

SILVESTRA – É porque eu quero ( dando com a mão na irmã) mais bem ao Papai do que Você; aí está!

PÊDRA – Pois não! Não vê que a Sra. já pesou os graus de amor que em meu coração eu consagro a meu Pai...

SILVESTRA – Não preciso pesar! Olhe: no seu coração existe certa força ou quantidade de amor consagrado (afagando com as mãos) ao papaizinho! E em mim, todo o meu coração é puro amor a ele tributado!

PÊDRA – Vejam só ( com aspecto impertinente, desgostoso; rosto franzido, pondo a cabeça de um lado, etc.) como é retórica! Não pensei que a Sra. estivesse tão adiantada! Não estudou; não se preparou hoje tãobém em seus velhos alfarrábios de filosofia!? Se não se preparou, para outra vez prepare-se, e veja se ganha mais um afeto do papai!

CATARINA (acomodando-as) – Meninas! (pegando no braço de uma e de outra) acomodem-se; vocês parecem nenês!

MATEUS – Meus anjos ( tãobém querendo acomodá-las). Minhas santas; minhas virgens... não quero que briguem, porque isso me desgosta. Sabem que já sou velho e que os velhos são sempre mais sensíveis que os moços... Quero vê-las contentes; contentezinhas; ao contrário fico triste.

PÊDRA E CATARINA (formando com as mãos pegadas umas nas outras um círculo em roda do pai.) – Nosso Papaizinho! Não há de se desgostar; não há de chorar (dançando). Nós havemos de amparar o nosso querido Papai. (Umas para as outras) Vamos; pulemos; dancemos; e cantemos: todos! Todos a uma só voz. ( O Pai vira-se ora para uma, ora para outra, cheio do maior contentamento: o sorriso não lhe sai dos lábios; os olhos são ternos; a face se franze de prazer; quer falar, e apenas diz: )
Meu Deus! Eu sou; eu sou tão feliz! que... Sim, sou; sou muito feliz!
(As filhas cantam:)
Nós somos três anjinhos;
E quatro éramos nós,
Que do céu descemos;
E o amor procuremos:
- Mataremos ao algoz
Destes dois nossos paizinhos!
Sempre fomos bem tratadas
Quer deste, quer daquela:
Não queremos que a maldade,
Para nossa felicidade,
Maltrate a ele ou a ela...
Mataremos tresloucadas!
Não somos só anjos
Que assim pensamos;
Que assim praticamos;
Tãobém são os arcanjos!
De principados – exércitos
Temos também de virtudes!
De tronos! Não mudes,
Papai! Vivam as ordens!
- Para debelarmos facínoras!
- Para triunfarem direitos,
- As armas temos nos peitos!
- A força de milhões d’espíritos!
(Terminado o canto, abraçarão todas o Pai, e este a elas, banhados todos na maior efusão de júbilo.)

PÊDRA ( para o pai) – Agora, Papai, vamos coser, bordar, fiar; fazer renda. ( Para as irmãs: ) Vamos, Meninas; a Mamãe já há de Ter a nossa tarefa pronta para nos dar trabalho!

CATARINA- Ainda é cedo; eu não ouvi dar oito horas; e o nosso trabalho sempre principia às nove.

SILVESTRA – Eu não sei o que fazer hoje: se bordar, se fiar, ou se crivar!

PÊDRA – Por bem de Deus, você nunca sabe o que há de fazer!

SILVESTRA (olhando-a com certo ar de indiferença) – Se te parece, minha querida Maninha, chama-me de preguiçosa!

PÊDRA – Não; isso eu não digo, porque a Sra. deu as mais delumbrantes provas de que há de vir a ser lá... (elevando a mão) para o futuro uma moça das mais trabalhadoras que eu conheço! E ainda hoje disso deu segurança no jardim do quintal, em que não ficava flor que não fosse pela Sra. cultivada!

SILVESTRA – Inda bem que a Sra. sabe, e faz-me o obséquio de dizer! E se eu o não fora ainda, não era de admirar; pois não conto mais de nove a dez anos de idade.

MATEUS (voltando-se para Silvestra) – Pois a Sra. esteve no quintal?

SILVESTRA – Pois então, Papai; eu não havia de ir cortar, arrancar todas as ervas perniciosas, que crescendo destroem as plantas, as flores preciosas ?

MATEUS (com muita alegria, pegando a filha) – Filha! Filha minha! Vem a meus braços!
(Abraça-a e beija-a muitas vezes.) Fazes, minha muito amada Silvestra, o que Deus faz aos Governos! O que os bons Governos fazem aos Governados! Prendem; castigam; melhoram; ou inutilizam os maus – para que não ofendam, nem prejudiquem os bons! E vocês (para as outras), o que faziam, durante o tempo em que minha inteligente Silvestra procedia com tanto acerto, praticando uma tão meritória ação e digna dos maiores elogios?

PÊDRA E CATARINA (quase ao mesmo tempo) – Eu regava as plantas e flores, com a mais fresca e cristalina água, a fim de que crescessem e dasabrochassem – perfeitas e puras! ( Isto disse Catarina)

PÊDRA - Eu, Papai, mudava algumas e plantava outras.

MATEUS – Já vejo que todas trabalharam muito! Hei de fazer a cada uma das Sras. O mais lindo presente! (Movendo a cabeça – inclinando- a.) Isto é, quando eu sair à rua! Pois bem sabem que eu aqui não tenho com que lhes presentear.

PÊDRA – Eu quero... quero: o que há de ser? (Levantando algum tanto a cabeça.) Uma boneca de cera, do tamanho da (apontando) Silvestra! E toda vestida de seda, ouviu, Papai? Com brincos, adereço... O Sr. sabe como se vestem as moças que se casam; assim é que eu quero! Não se esqueça; não se esqueça de comprar e me trazer assim. Olhe ( batendo- lhe a mão no braço), se na loja do Pacífico não tiver, tem na do Leite, na do Rodolfo, ou do Paradeda.

SILVESTRA – Eu me contento com menos! Quero um vestido de seda, lavrada a barra, e as mangas a fio de ouro; com blonds, e tudo o mais que se usar, do mesmo fio, ou daquilo que for mais moderno.

MATEUS (para Silvestra) – Contentas-te só com isso? Não queres sapatos de seda, botinhas de veludo tãobém bordadas de ouro, ou enfeite fino para a cabeça?

SILVESTRA – Não, Papai; basta o vestido; o mais tudo eu tenho muito bom, e em estado de poder servir com o lindo vestido que lhe peço. Sempre gostei da economia; e sempre aborreci a prodigalidade!

MATEUS – Estimo muito; é o mais fiel retrato da moral do velho Mateus!
(Para Catarina:)E a Sra., que está tão calada! Então, não pede nada?

CATARINA - As manas já pediram tanto, que eu não sei o que lhe hei de pedir; parece que tudo há de custar tanto dinheiro, que se o Sr. não tivesse ainda há pouco tirado a sorte grande na loteria do Rio de Janeiro, eu acreditaria – que teria de vender a cabeleira, para satisfazer tantos pedidos!

MATEUS – Não; não, menina! O que elas pedem custa pouco comparativamente aos meus e vossos rendimentos. Diga, diga: o que mais estimará que eu lhe traga, para comprar e trazer-lhe?!

CATARINA – Pois bem; em vou dizer-lhe: mas V. Mcê não se há de zangar.

MATEUS – Não; não; peça o que quiser, que eu com muito prazer lhe trago!

CATARINA – Pois então, visto que tem gosto em me fazer um presente... Até se eu não tivesse de ir a um batizado à casa da minha amiga e comadre D. Leocádia das Neves Navarro e Souto, eu não diria o que mais preciso, e quero que me dê... É um ramalhete das mais delicadas flores que se costumavam vender nas lojas das modistas francesas e alemãs.

MATEUS – E levou tanto tempo para pedir uma cousa de tão pouco valor!?

CATARINA – Não é de muito pequeno valor! O que eu quero é de uns muito mimosos, cujo preço sobe a dez ou doze mil-réis!

MATEUS – Pois então, isso é muito barato! Mas como é o que me pede, fique certa que há de ser servida, tanto mais que tem a intenção de se apresentar com ele em um baile, batizado, ou não sei que festa!

CATARINA – É quanto basta; e com ele ficarei muito contente!

MATEUSA (entra rengueando, revirando os olhos, e fazendo mil trejeitos; as filhas que a observam dizem umas para as outras) – Aí vem a Mamãe! – (Quase em segredo, rapidamente:) Olhem a Mamãe! Vamos! Vamos! Já são nove horas! ( Para o pai: ) Papai! Não se esqueça das nossas encomendas, como nós não nos esquecemos d’orar a Deus para que prolongue seus dias; e que estes sejam felizes! Até logo à hora do jantar ( e fazendo uma profunda cortezia, depois de lhes beijarem a mão, pegando nas saias dos vestidos), que é quando poderemos ter o inexprimível prazer de passar alguns preciosos momentos em sua estimável companhia.

Cena Terceira

MATEUSA (aproximando-se às filhas) – Vão meninas, vão fazer a sua costura! Está tudo marchando! Cada uma das Sras. Tem na sua almofada o pano, a linha, a agulha; e tudo o mais que é necessário para trabalhar até às 2 da tarde. O que é de abordar para a Pêdra, está desenhado a lápis; os picados para a Catarina, estão alinhavados; e a costura lisa, a camisa deste velho feio (batendo no ombro do marido) está começada. Tenham cuidado: façam tudo muito bem feitinho.

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA – Como sabe, somos obedientes filhas; deve por isso contar que assim havemos de fazer. (Saem.)

MATEUSA (para o marido, batendo-lhe no ombro) – Já sei que está repassado de prazer! Esteve com suas queridas filhinhas mais de duas horas! E eu lá, sofrendo as maiores saudades!

MATEUS – É verdade, minha querida Mateusa (batendo-lhe também no ombro), mas, antes de te dizer o que pretendia, confessa-me: Por que não quiseste tu o teu nome de batismo, que te foi posto por teus falecidos Pais?

MATEUSA – Porque achei muito feio o nome Jônatas que me puseram; e então preferi o de Mateusa, que bem casa com o teu!

MATEUS – Sempre és mulher! E não sei o que me pareces depois que ficaste velha e rabugenta!

MATEUSA (recuando um pouco) – És bem atrevido! De repente, e quando não esperares, hei de tomar a mais justa vingança das grosserias, das duras afrontas com que costumas insultar-me!

MATEUS (aproximando-se e ela recuando)

MATEUSA – Não se chegue para mim ( pondo as mãos na cintura e arregaçando os punhos) que eu não sou mais sua! Não o quero mais! Já tenho outro com quem pretendo viver mais felizes dias!

MATEUS (correndo a abraçá-la apressadamente) – Minha queridinha; minha velhinha! Minha companheirinha de mais de 50 anos (agarrando-a), por quem és, não fujas de mim, do vosso velhinho! E as nossas queridas filhinhas! Que seriam delas, se nós nos separássemos; se tu buscasses, depois de velha e feia, outro marido, ainda que moço e bonito! Que seria de mim? Que seria de ti? Não! Não! Tu jamais me deixarás.
(Tanto se abraçam; agarram; pegam, beijam-se, que cai um por cima do outro.)
Ai! Que quase quebrei uma perna! Esta velha é o diabo! Sempre mostra que é velha e renga! (Querem erguer-se sem poder.) Isto é o diabo!...

MATEUSA ( levantando-se, querendo fazê-lo apressadamente e sem poder, cobrindo as pernas que, com o tombo, ficaram algum tanto descobertas)
– É isto, este velho! Pois não querem ver só a cara dele? Parece-me o diabo em figura humana! Estou tonta.. Nunca mais, nunca mais hei de aturar este carneiro velho, e já sem guampas!
(Ambos levantaram-se muito devagar; a muito custo; e sempre praguejando um contra o outro. Mateusa, fazendo menção ou dando no ar ora com uma, ora com outra mão: ) Hei de ir-me embora; hei de ir; hei de ir!

MATEUS – Não há de ir; não há de ir; não há de ir porque eu não quero que vá! Você é minha mulher; e pelas leis tanto civis como canônicas, tem obrigação de me amar e de me aturar; de comigo viver, até eu me aborrecer! (Bate com um pé. ) Há de! Há de! Há de!

MATEUSA – Não hei de! Não hei de! Não hei de! Quem sabe se eu sou sua escrava!? É muito gracioso, e até atrevido! querer cercear a minha liberdade! E ainda me fala em Leis da Igreja e civis, como se alguém fizesse caso de papéis borrados! Quem é que se importa hoje com Leis ( atirando-lhe com o ‘Código Criminal’) , Sr. banana! Bem mostra que é filho dum lavrador de Viana! Pegue lá o Código Criminal, - traste velho em que os Doutores cospem e escarram todos os dias, como se fosse uma nojenta escarradeira!

MATEUS (espremendo-se todo, abaixa-se levanta o livro e diz à mulher) – Obrigado pelo presente: adivinhou ser cousa de que eu muito necessitava!
(Mete-o na algibeira. À parte: ) Ao menos servirá para algumas vezes servir-me de suas folhas, uma em cada dia que estas tripas (pondo a mão na barriga) me revelarem a necessidade de ir à latrina.

MATEUSA – Ah! já sabe que isso não vale cousa alguma; e principalmente para as Autoridades – para que tem dinheiro! Estimo muito; muito; e muito! (Pega em um outro – a ‘Constituição do Império’ e atiralhe na cara.)

MATEUS (gritando) – Ai! cuidado quando atirar, Sra. D. Mateusa! Não continuo a aceitar seus presentes, se com eles me quiser quebar o nariz! (Apalpa este, e diz: ) Não partiu, não quebrou, não entortou! ( E como o nariz tem parte de cera, fica com ele assaz torto. Ainda não acaba de endireitá-lo, Mateusa atira-lhe com outro de ‘História Sagrada’, que lhe bate numa orelha postiça, e que por isso com a pancada cai; dizendo-he: ) Eis o terceiro e último que lhe dou para... os fins que o Sr. quiser aplicar!

MATEUS (ao sentir a pancada, grita) – Ai que fiquei sem orelha! Ai! Ai! Ai! Onde cairia? (Atirando os livros na velha e com raiva. ) Por mais que recomendasse a esta endemoninhada que não queria presentes caros, este demônio havia de quebrar-me o nariz e pôr-me fora uma orelha! Ó Mateusa do diabo! Com quê, partes desta casa sem eu ir amanhã ao baile masquê, visitar as Pavoas!? E...

MATEUSA (batendo o pé) – Cachorro! Ainda me fala em pavoas, e em baile masquê!?
Traste! Ordinário! Já... rua, seu maroto!

MATEUS (voltando-se para o público) – Já se-viu que escaler velho mais impertinente! Esperem que eu lhe boto cavernas novas! (Procurando uma bengala. ) Achei! ( Com a bengala em punho) Já que a Sra. não faz caso da lei escrita! falada! e jurada! há de fazer da lei cacetada! paulada! ou bengalada!
(Bate com a bengala no chão.)

MATEUSA – Ah! dessa lei, sim, tenho medo. (À parte.) Mas ele não pode comigo, porque eu sou mais leve que ele; tenho melhor vista ; e pulo mais. (Pega em uma cadeira e dá-lhe com ela, dizendo: ) Ora tome lá! (Ele apara a pancada com a bengala, encolhendo-se todo; enfia esta na cadeira; empurram para lá, empurram para cá.)

CATARINA, PÊDRA E SILVESTRA (aparecendo na porta dos fundos; umas para as outras) – Vai lá! (Empurrando. Outra: ) Vai tu apartar! (Outra: ) Eu, não; quando eles estão assim, eu tenho medo, porque sou pequenina!

MATEUS – Ai! eu caio! Quem me acode! Perdi o queixo!

MATEUSA (gritando e correndo) – Ai! eu esfolei um braço, mas deixo-lhe a cadeira enfiada na cabeça! (Quer assim fazer e fugir, mas Mateus atiralhe a cadeira às pernas; ela tropeça e cai; ele vai acudi-la; quer correr; as filhas convidam-se a fugir; ele cai aos pés da velha).

BARRIÔS ( o criado) - Eis, Srs., as conseqüências funestas que aos administrados ou como tais considerados, traz o desrespeito das Autoridades aos direitos destes; e com tal proceder aos seus próprios direitos: – A descrença das mais sábias instituições, em vez de só a terem nesta ou naquela autoridade que as não cumpre, nem faz cumprir! – A luta do mais forte contra o mais fraco! Finalmente, - a destruição em vez da edificação! O regresso, em vez do progresso!

Porto Alegre, maio 12 de 1866.

Fonte:
Virtual Books

Qorpo Santo (1829 – 1883)


José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo Santo (Triunfo, 19 de abril 1829 — Porto Alegre, 1 de maio de 1883) foi um dramaturgo brasileiro.

José Joaquim Leão, natural da vila do Triunfo, interior do Rio Grande do Sul. Percorreu várias localidades do interior antes de se estabelecer em Porto Alegre. Foi comerciante, professor, vereador, delegado de polícia. Vai para Porto Alegre em 1840, já órfão de pai, para estudar gramática e conseguir emprego na capital, habilitando-se ao exercício do magistério público, que passou a exercer a partir de 1851.

Casa-se em 1855 e, em 1857, muda-se com a família para Alegrete, cidade na qual funda um colégio, adquirindo respeitabilidade como figura pública, escrevendo para jornais locais e ocupando ainda cargos públicos de delegado de polícia e vereador.

Em 1861, de volta a Porto Alegre, segue a carreira de professor e começa a escrever sua Ensiqlopédia ou seis mezes de huma enfermidade. Parecem manifestar-se, neste momento, os primeiros sinais de seus transtornos psíquicos, rotulados então sob o diagnóstico de “monomania”, sendo afastado do ensino e interditado judicialmente a pedido da própria família. QS não aceita pacificamente este seu enquadramento psiquiátrico, recorrendo ao Rio de Janeiro, sendo examinado então por médicos daquela capital, que diferem do diagnóstico inicial e não endossam sua interdição judicial.

Todavia, o estigma estava posto, e o autor se vê cada vez mais isolado. Este isolamento social parece incitá-lo a escrever febrilmente, e o leva ademais a constituir sua própria gráfica, na qual viabiliza e edita sua produção textual.

A extensão e a natureza de seus problemas mentais não são claras. Os médicos que o examinaram no Rio de Janeiro, em 1868, declararam que estava apto para administrar negócios e família. Porém, de volta a Porto Alegre, no mesmo ano, foi interditado pela Justiça. Conseguiu montar uma gráfica, em 1877, para imprimir uma estranha série de livros intitulada Ensiqlopédia, ou Seis Mezes de huma Enfermidade.

As Relações Naturais, Mateus e Mateusa e Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte foram montadas, pela primeira vez, em 1966 na capital gaúcha.

Três anos mais tarde, foi lançada a coletânea das peças por iniciativa de Guilhermino César. Desde a década de 80 sua vida e obra têm inspirado livros, teses e discussões. ‘‘Atualmente, procura-se disfarçar a superficialidade dos seus enredos com algumas tintas de protesto e denúncia’’, afirma o professor Fraga no ensaio Um Corpo que se Queria Santo, introdução ao Teatro Completo. ‘‘Mas, na essência, lá está todo o arsenal cômico vindo diretamente de Martins Pena: quiproquós, esconderijos dentro dos armários, personagens caricaturais, os mesmos velhos preconceitos disfarçados com a máscara da liberalidade.’’

Os textos têm tantos personagens quanto possível diante da crença do autor na migração das almas. A Impossibilidade da Santificação ou a Santificação Transformada, por exemplo, traz 31 deles. Alguns personagens viram outros durante o enredo. ‘‘Alguns personagens são pessoas da sociedade carioca que ele queria atacar’’, conta Denise. Curioso são os nomes: Rubincundo, Revocata, Helbaquínia, Ridinguínio, Ostralâmio, Lamúria, Rocalipsa, Esterquilínea, Eleutério, Régulo, Catinga, Esquisito, Córneo, Ferrabrás, Simplício e por aí segue. A edição mantém os nomes originais, mas atualiza a grafia das palavras para o português usual, em vez de manter a proposta do autor. Muda inclusive a escrita dos títulos: Relasões Naturaes, por exemplo, vira Relações Naturais.

Campos Leão pretendia reformar a língua portuguesa suprimindo letras inúteis como ‘‘u’’ depois do ‘‘q’’ (daí o Qorpo-Santo) e lançou a sua Ensiqlopédia com tipologia própria. Idéia que fazia certo sentido, tanto que algumas de suas propostas foram mais tarde incorporadas ao idioma, como a eliminação do ‘‘ph’’ de pharmacia e o ‘‘h’’ quando não soa, como em deshonesto e deshumano. Para sexo, no entanto, propunha a grafia seqso. Achava que assim atenderia melhor à alfabetização, baseado em sua experiência como professor. ‘‘Quando ele percebeu que não havia chance de suas peças serem lidas, virou tipógrafo e editou a Ensiqlopédia em casa’’, explica Denise.

A Ensiqlopédia ou Seis Meses de uma Enfermidade possui nove volumes. Cada um deles é dedicado a um gênero — as comédias estão no quarto e as poesias, no primeiro. Há três na biblioteca da família Assis Brasil, três com o colecionador Julio Petersen, ambos de Porto Alegre, e os outros três estão desaparecidos. Há somente um exemplar de cada. Reeditada, a obra teatral funciona como pretexto para enveredar pelo universo de uma das figuras mais intrigantes da dramaturgia brasileira. O melhor de tudo parece mesmo o autor, inventor de si mesmo e da proposta que, como lembra Fraga, a Emília de Monteiro Lobato apreciaria conhecer.

As dezessete comédias (uma delas incompleta) reunidas em Teatro Completo são todas datadas de 1866 e levariam exatamente um século para ser encenadas. A primeira montagem foi realizada por um grupo estudantil de Porto Alegre, em 1966. Desde então, os textos de Qorpo-Santo voltaram poucas vezes ao palco. É um autor difícil, que exige ousadia da direção. Os personagens não apresentam uma identidade coerente, e suas ações são as mais desvairadas: ateiam fogo no cenário, soltam ratos no palco, bolinam e espancam uns aos outros. Muitas peças têm uma pesada carga sexual. As Relações Naturais inclui cenas em um bordel e insinuações de incesto. A Separação de Dois Esposos encerra-se com um diálogo hilariante entre Tatu e Tamanduá, o primeiro casal gay da dramaturgia brasileira. O curioso é que o dramaturgo era um conservador empedernido. Só quando escrevia, o monarquista José Joaquim de Campos Leão dava lugar ao anárquico Qorpo-Santo.

Adotou o nome Qorpo-Santo por razões místicas que não explica muito bem – em seus escritos, compara-se a Jesus Cristo e afirma encontrar-se, pelo fenômeno da "transmigração das almas", com o espírito de Napoleão III. A grafia de "Qorpo" obedece à ortografia criada pelo autor, que assim desejava simplificar a escrita em português.

Obras

* Certa identidade em busca de outra
* Eu sou vida eu não sou morte
* Um credor da Fazenda Nacional
* As relações naturais
* Hoje sou um; e amanhã sou outro
* Um assovio
* Um parto
* Hóspede atrevido ou O brilhante escondido
* A impossibilidade da santificação ou A santificação transformada
* Dois irmãos
* A separação de dois esposos
* La
* Lanterna de fogo
* Marinheiro escritor
* Marido extremoso
* Mateus e Mateusa
* Elias e sua loucura bíblica

Sobre a Obra

Foram necessários quase cem anos, a partir da publicação original dos textos de autor gaúcho do século XIX, José Joaquim de Campos Leão, nome ao qual o próprio autor acrescentou a alcunha de Qorpo-Santo (QS), para que sua obra conquistasse reconhecimento devido aos esforço de muitos intelectuais que assim o quiseram e para tal trabalharam, na década de 1960.

Alguns críticos datando desta republicação, destacando-se o editor de seu teatro completo, Guilhermino César, buscaram situá-lo como precursor de modernas tendências da arte teatral, a princípio o teatro do absurdo -na época, pretendendo atribuir-lhe a paternidade desta moderna corrente teatral- e mais tarde querendo situa-lo como antecessor movimento surrealista.

Flávio Aguiar descreve a época do relançamento das obras, muito bem recebido, com análise profunda, ao seu Os homens precários -ainda na década de 1970, bem como a tendencia dos intelectuais de glorifica-lo como um criador do tão famoso e moderno teatro do absurdo. Enquanto Eudinyr Fraga, em trabalho datado aos anos 80, defende que QS seja enquadrado como autor surrealista, por fazer uso constante em seu texto do chamado "automatismo psíquico", que caracterizaria aquela corrente estética: "Suas personagens são sempre projeção dele próprio, e com ele muitas vezes se confundem, como observamos pelo conhecimento de sua biografia. Inclusive, deixam a categoria de personagens e assumem um tom discursivo, lamentando as infelicidades e as injustiças sofridas pelo criador. Por outro lado, não tem preocupações estéticas. Suas lamúrias estão sempre a um nível existencial, ou melhor, individual. Sua obra visa satisfazer uma necessidade interior que a expressão determina”.

Hoje, QS é visto como um indivíduo criativo e fora de seu tempo, não se propõe mais sua suposta intenção como inovador da estética, mas como um artista envolvido e dedicado intimamente à sua obra, tanto que, por vezes, sua mente invade os personagens liberando seu discurso como uma colagem desconexa da lógica da personagem.

Aguiar analisa em detalhe o teatro de QS, e seus argumentos fogem à discussão sobre ser QS o precursor não reconhecido de modernas tendências do teatro moderno. Para Aguiar, QS constrói um teatro da paralisia, em que o pano de fundo da moralidade vigente é antagonizado pelo desenrolar dos acontecimentos, em atropelo da possível lógica de seus enredos, nas peças de QS o ritmo do tempo se mostra caótico demais para que dele possa nascer, ‘espontaneamente’, qualquer conclusão lógica.

Cabe ressaltar que, à exceção destes dois autores citados acima, é perceptível a ausência de uma reflexão sobre a questão da loucura, a qual foi julgado em vida pelo juridico de Porto Alegre, sobre os limites da normalidade psíquica, no universo textual deste autor. E, no entanto, a falta de razão se faz presente no cerne de seus escritos, nas nervuras de seu texto.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org
http://veja.abril.com.br
www2.correioweb.com.br

Mauro Faccioni Filho (Helenos)


Algumas Poesias do livro "Helenos"

Areílico é morto pelo filho de Menetes

Areílico é morto pelo filho de Menetes
com a longa haste de bronze cravada na coxa
Menelau percebe o peito nu de Toante
aí o fere cobrindo seus olhos de treva
Ânflico mata Filido destroçando seus ossos
Nestórida derruba Antímnio, que irrita o irmão
e este, Máris, é morto também pela mesma lança
Peneleu, num golpe, de Lico tira a cabeça
Cleóbulo baixou os olhos frente a Ajax
Piracme cai na poeira fixo à lança de Pátroclo
Meríones atinge Acamante com a espada no ombro

Abre-se o fosso no caminho do Hades
um a um os heróis se retiram às sombras
onde não tardarão a encontrar a nova luta
no primoroso verso de um poeta brônzeo
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Amanhece junto aos rumores dos pássaros

amanhece junto aos rumores dos pássaros
o campo aberto está à espera dos filhos
prendo às pernas minha sandália de couro
com o elmo de bronze expondo seu brilho

última olhada a este espelho turvo
lâmina fria em um lago escuro
preparo punhal espada e escudo
expectativa das dores de um golpe duro

ouvi no sonho a voz da justiça
mas ela não tinha mãos corpo ou face
talvez fosse meu medo pedindo socorro
alimentando de vida o que só é disfarce

meus irmãos chamam, e vamos juntos
aos que sobrarem da luta, cobrir de glória
aos outros, descer aos campos do Hades
que a tudo engole e aos sonhos devora
=======================

Três cavaleiros viajam em um campo de areia e pedra

três cavaleiros viajam em um campo de areia e pedra
em direção à tenda de Aquiles pedir-lhe favores
dentro da noite sobre os cavalos não se falam
é a ânsia da chegada, a surpresa e os temores

à tarde canta Aquiles intrigante música
mergulhado em si próprio e na escura dor
ver que o herói é sempre só é uma estátua
o bronze é sua roupa o sangue seu amor

desfeita a carne sobre o fogo do banquete
bebem os cavaleiros um vinho doce no silêncio
composto aos poucos pelos galos montanheses
e a densa nuvem da fumaça dos incensos

" - estende tua mão e tua bravura sobre o povo
mostra ao destino que teu desejo é tua espada"
" - guerreiros valorosos, minha resposta é não
o limite desta tenda é minha glória conquistada

o navio negro exposto ao frio e ao bravo mar
é meu retiro e junto a Pátroclo farei reino
combinando esquecimento e ardor, fracasso e luta
na insegura espera do prazer que nunca tenho"
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Amo sobretudo as batalhas

amo sobretudo as batalhas
seus longos preparativos
e a chance de olhar nos olhos
um inimigo que é amigo

contemplar o vermelho da tarde
abraçado aos desfalecidos
contar entre nós os que sobraram
honrar em lágrimas os desaparecidos

amo sobretudo esta rotina
fazer dia a dia o que é devido
no campo entre homens valorosos
brigar e sofrer sem um grito

longe das mulheres e das intrigas
longe do amor do corpo e do seu ritmo
afiando facas, carregando pedras
entre homens desfiamos nosso íntimo

amo sobretudo a disciplina
a construir este muro infinito
dentro estamos a sós e no silêncio
marchando firmes num labirinto
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Os primeiros vapores da manhã estendem-se na baía

Os primeiros vapores da manhã estendem-se na baía
longe os primeiros pios, devagar se contorce a água
em crespas ondas de um profundo mito atrás.

Aqueles que me contaram, e os que contaram a eles
uns sobre os outros em sucessivos gestos rituais
a história deste fogo, também minha e também sua.

Preso em sua própria tenda, leves panos estendidos
armações rústicas e frágeis sobre o exército
este guerreiro persegue os sinais de sua luta.

Rede tecida no contorcer das decisões e palavras
pouco a pouco, apesar do empenho em desfazer
cada gole amargo e cada curva estranha.

Armam-se os escudos, brilham as espadas matinais
protetores de couro, detalhes de bronze sobre os olhos
não há lágrimas, a festa é feita de louvor

A romper esta espera feita no silêncio
abatem-se os primeiros combatentes gloriosos
deixando atrás o nome a ser escrito em ouro

Horas, sol de inverno, rolam as cabeças
olhos nos olhos, corpo a corpo, sangue
leio em mais um dia o retorno eterno.

A esperança da vitória, fé no inalcançável
buscando no braço forte que levanta o golpe
um dia esquecido onde isto está escrito

Tarde, os que voltam abraçados se recomporão
novas tiras de couro, está aceso o fogo
músculos e olhos cansados se aconchegam

Este guerreiro tenso porém não findou o dia
e a cela à qual está preso não fraquejou
tendo se armado como um monstro surdo

Vindo do tempo vazio, pêndulo na escuridão
não há resposta, porém pergunta, guerreiro doce
os pêlos do braço voejam na brisa triste

Claro como os exaustos companheiros adormecidos
estende-se o passar das horas sobre eles
cantam pelo campo os insetos passageiros

Venham a ouvir este canto incerto
foi inscrito em tua fronte de guerreiro
que em ti se cantarão os dias da glória

Bem como os do começo da pergunta
os dias do amor e da música
também os do pêndulo, da dor e do escuro.
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Primeiro vieram e arrancaram sua casa

primeiro vieram e arrancaram sua casa
depois impuseram o dia sobre o dia
fizeram com que a paz fosse sonho
que o fato novo da manhã um amargo

lançaram sobre ele o fogo e o ferro
também o desprezo do inimigo no campo
os sons da noite o sino badalando
o vão o fútil o só e o volúvel

desde seu ponto perdido na terra
procurou o que explica o sentido da luta
seu gesto inglório e a esperança inútil
a razão de si em seu momento de luto

ajoelhado frente ao deus dos homens
pediu e suplicou e acreditou na fé
que do nada se reerguesse sua casa
e que seu nome se transformasse em pó

Fonte:
FACCIONI FILHO, Mário. Helenos. Letras Contemporâneas, 1998.

A Cinética Poesia de Mauro Faccioni Filho


Helenos, livro de poesia do poeta, engenheiro e cineasta paranaense, residente em Santa Catarina, Mauro Faccioni Filho, marca pelo movimento cinético e estranhamento. E isso ocorre tanto no conteúdo, quanto na forma dos poemas.

Editado em 1998, pela editora Letras Contemporâneas, sob o comando de Fábio Brüggemann e Péricles Prade, a obra encontra-se esgotada e apenas disponibilizada pelo autor na internet.

O livro traz em epígrafe, a tradução de um poema de Jorge Luis Borges, feita pelo autor. O poema chama-se Arte Poética, e traz versos que denotam o eterno retorno da poesia. A poesia que nunca morre e retorna com a aurora e o ocaso.

Entrando em HELENOS damos de cara com Areílico morto pelo filho de Menetes. "Abre-se o fosso no caminho do Hades/ um a um os heróis se retiram às sombras/onde não tardarão a encontrar a nova luta/no primoroso verso de um poeta brônzeo"

Não me engano quando constato que esse livro de poemas é um quase-roteiro cinematográfico, na maneira im-expressionista de condução/movimento das cenas/poemas, sua matéria e significação.

Homero, divisa um poeta no tempo. Homero no tempo a divisar um poeta que lhe retorna convicto de linguagens novas. Sedento do sangue das deusas e heróis despojados nos campos de batalhas. Homero não morreu. A poesia não morreu e retorna homérica no tempo, no vento. Homero o paradigma da poesia repartida na face da terra. Todos sofremos a carga inconsciente do poético, que atravessa os séculos. Há muito de grego e romano na tradição poética do ocidente. Essa riqueza órfica transcende as mais atentas consciências (não como defeito mas como importante contributo) e vem somar a lira contemporânea, como no caso de Helenos. Helenos, um livro que já nasce clássico, pela diferença que faz, na poesia brasileira posultramoderna. Nada a ver. Nada a dever, a santos, deuses e tempestades. Nada e tudo ao mesmo tempo. A poesia de Mauro Faccioni Filho, deslumbra pelo rompante da linguagem, dos cenários, da movimentação dos corpos, das almas, das armas, da empática destreza de estar deslocado no tempo e em tantas personas. Eis o poder do poeta que adentra espaços sagrados para extrair dali a matéria mais rica do seu dizer.

Pretensiosa na significação, sua poesia, almeja mundos na ponta da lâmina de prata, a adaga lampejante do verbo novo, que é o enfoque contemporâneo ao tema antigo. O ponto de partida inusitado e franco, que só o poeta contemporâneo na rede de interferências/referências, pode tomar e toma.

Vencer, perder, sonhar, lutar, empunhar as armas, honrar os mortos em batalha. Essa a voz poética que o território greco-romano, nathuralmente provocado, da poesia do Mauro F. Filho apresenta. Uma poesia de alta inspiração e retorno a raiz da raça "meus irmãos clamam, e vamos juntos/aos que sobrarem da luta, cobrir de glória/aos outros, descer aos campos do Hades/que a tudo engole e aos sonhos devora".

No sistema nervoso central da poesia de Helenos, está a batalha. O amor que os homens nutrem pela luta. "amo sobretudo as batalhas/seus longos preparativos/e a chama de olhar nos olhos/contar entre nós os que sobraram/honrar em lágrimas os desaparecidos".

O sentido da luta, é o sentido do próprio viver, eis que viver é lutar obsessivamente contra as forças ocultas da nathureza, e o poeta assim prescreve no poema Primeiro vieram e arrancaram sua casa: "desde seu ponto perdido na terra/procurou o que explica o sentido da luta/seu gesto inglório e a esperança inútil/a razão de si em seu momento de luto".

Nesse território sagrado de Helenos, onde a poesia de Mauro Faccioni Filho se assenta, existe luta, muita luta, vencidos e vencedores, heróis anônimos, nomes que passam com o vento do deserto. "que venham as ondas apagar imagens/desenhos turvos, a expressão incompleta/que passe o amanhã e passe o depois também/passem os nomes com o vento do deserto".

Alvo livre o coração do sol. Em Quando os guerreiros dão-se trégua, iniciam os jogos olímpicos, e uma outra realidade se estabelece na vida e no poema: "nada de sangue, nada de lágrimas/o que é dor e guerra pode esperar/a poderosa lança é a mais distante/cujo alvo livre é o coração do sol".

Do amor, da morte, suas faces no tempo, nada ficou de fora da poética proposta pelo autor, e em Assilikis troca bilhetes com seu futuro amante, vê-se: "Arrumo as mechas, mergulho no frio/empunho os batidos seios para a aurora/ao lado do amor há o vento da morte/cantarei um poema, só desejo dormir".

Mesmo com a boca cheia, poema híbrido de gozo e dor, de corpo se prostituindo, de corpo que se dá e vende-se, o furor do prazer sobre todas as coisas, eros e tanatos reinvocados: "arrancarei todos os cabelos/gozando aos uivos e às bofetadas/e me jogarei sobe meus restos/e mais cinco moedas prateadas".

Amor e perdição. A louca selvagem vinda da fábula – o sexo virado fabulação. O poema Deite-se na cama convida a passividade do outro. O outro que será objeto dos muitos desejos. "baterei como uma louca/uma selvagem vinda da fábula/serpentes pelo pescoço..." Belíssimos esses versos do poema, trazendo alto poder de imaginação do poeta, que busca na raiz da raça, como entendi e mencionei acima, a matéria do seu poético. O poeta é mais que lutador na poesia de Helenos, resolve-se mártir de sua causa íntima. "saúdo este resignado poeta/mártir de sua causa íntima/algumas facas moças poemas/versos e esperança íntima".

Helenos não é livro de leitura fácil e rápida. Há de se perquirir, isolar, trafegar pela floresta dos símbolos híbridos de sóis e luas que o poeta nos oferece. A primeira paisagem poderia ser até bucólica, não fossem as espadas, as mortes, as lutas fratrícidas, o profano das relações, quando a mulher também comparece no usufruir da vida em sua completude. Há também o território de sombra e lusco-fusco, onde os objetos surtem miragens, ser e não-ser, estar e não-estar, no mundo entre as coisas. "a aventura de buscar onde não foi buscado/a tentativa de afirmar em si o não firmado/viu no meio da mata o que não se havia visto/o caminho a ser seguido onde nada era seguido." Aqui é o típico caso do caminho do sem-caminho, do ser que não sabe claramente onde ir, seguir... procurar e firmar o que não foi procurado, firmado. Essa a condição a que se resume a vida do próprio poeta, na sua luta inglória com os signos. A busca da voz única, a infinitude dos objetos, os movimentos do tempo, o espírito que quer, prefigura, desanima e repercute. Gênio das imagens inusitadas, o poeta é o arquiteto de catedrais em meio aos ímpios. "o gênio arquiteto das imagens/ergueu a catedral em meio aos ímpios".

Logo mais, em Barba de anteontem camisa amarrotada, o poeta sentencia que a grandeza e miséria andam sempre de mãos dadas, como elementos contrários que se encontram nos extremos para enriquecer a vida. Vida "esta é a arte, esta visão do mundo/grandeza e miséria nós de mãos dadas". O nós remetem aos conluios, aos elementos complexos, diferentes, unidos, conciliados numa mesma estrutura, assim como é o próprio Helenos em sua urdidura de signos.

Numa poética assim de opostos trançados como cipós-fios no tempo, difícil ao mais compenetrado exegeta, arrancar daquele território/espaço, as fibras orgânicas, os tecidos claros de significação. Tudo translude e transluz, na poesia de Helenos, iludindo assim o olho que vê, em pleno favor da criação livre do poeta, que não restringiu o ímpeto diante do desafio que se impôs: dizer o dito retornado, a voz das pedras antigas de Grécia e Roma, nos condutos, órgãos projetivos de sua visão e raça: "mas o tempo não dá tréguas/embaixo da terra outras idéias/brotaram de sementes antigas/dizendo:retornamos retornaremos".

O Mauro Faccioni Filho é poeta que faz realmente brotar de sementes antigas muitas idéias novas, e a poesia rigorosa de linguagem.

O domínio da língua e as projeções do sujeito/criador, são de fácil visibilidade na obra, formada a estrutura poética com a máxima intensidade, labor, estética.

Em Uma jaula, poema-vanguarda, dá pra se dizer, o poeta abre a linguagem contemporânea livre, de pleno rigor imagético, síntese e precisão semântica: "uma jaula: o trio dos tigres tristes/quer ser mas sempre falha/circo aberto:/sílaba interna da palavra/que ao picadeiro se espalha."

Não tenho dúvidas quanto ao poeta alardear suas imagens com a fúria dos destrambelhados. Esses os necessários no orbe da poesia. Loucos de todo gênero, poetas inventores de linguagem na mais perfeita afirmação poundiana, contra os beletristas e diluidores. Em Helenos, há o fanopéico, melopéico e logopéico, transmixados todos no ímpeto do dizer que acelera o batimento cardíaco, ilude, prestidigita o conhecimento dito e transita os muitos tempos no tempo. De Grécia antiga com suas lutas fratrícidas passamos ao contemporâneo livre. Homero versado de Pound, Whitman, Fernado Pessoa, vozes da modernidade, crescidas no vento.

Lembrando Walt Whitman, na biografia escrita por Paul Zweig, também agora vemos em Do rio interminável/Piso exato sobre teu passo, algo de metempsicose, de passos que passam sobre os próprios passos. No poema de Whitman eram os pós (corpo do poeta morto) que aderiam sob a sola da bota do outro no tempo. No caso de Helenos, na voz plural de Mauro F. Filho é: "piso exato sobre teu passo,/sobre a marca gasta mas rígida/caminhando em um só caminho/que o teu passo fez e o meu refaz".

O poeta dança com as imagens, palavras, sentenças, em Ele teve sua época de belo, adentra a seara do estético. O estético que se confunde com a própria essência da poesia, o lustro/brilho da linguagem que ao mesmo tempo nucleariza a significação e se faz conteúdo: "o belo nunca é passado/mas o sonho borrado e turvo/numa noite do futuro". O belo como a encarnação do sonho no futuro, o sonho que nunca é de vir claro, divisado nas particularidades, mas denso e sujo, turvo e complexo, como certos signos.

Poesia, é sim, processo de auto-conhecimento. As linguagens induzindo o sujeito no caminho do sem-caminho. Pedras que vão se identificando. Imagens, rostos, vertigens, na velocidade do tempo. O conhecimento do nada-ser. O salto repentino no abismo: "para descobrir o que temos no umbígo/eu não sou você, nem ele, ninguém/resto de esperança que não digo/não vamos? Então vou só/descer é tão fácil que não ligo".

Em Descobri após os trinta anos, o poeta destina, desatina, a que as palavras igualem, aspirem ao labirinto. O labirito é o poema. A vocação teleológica da palavra, que nunca deve trazer uma só face chapada, mas de forma cubista transfigurar muitos sentidos. "olhando ao lado resta a literatura/solitária próxima, eis a dor/mas a um poema que nada tem/senão prosa, palavras igualem/aspirem ao labirinto...".

Quase ao final do livro em Nossa decadência começou, é de se matar o que não morreu, calar-se: recolher o ímpeto selvagem da criação. Decadência, a voz retornada pra dentro. O NADA prevalecido de nada sobre todas as coisas. Essa a plena decadência, que é um não-fazer, não-sentir, não-pensar, onde o discurso trunca e se recolhe. "onde houve uma alegria, secou/nasceu uma fonte salgada/que para o mar não deu/melhor é calar a boca/matar o que não morreu".

Noutro poema, o tempo, o tirano implacável, aquele que corre pra trás e não sabíamos, comparece em sua horrível indiferença. O tempo, indiferente ao homem, sua luta e seus caminhos. "cruzamos os mesmos caminhos/luta triste e sem glória/a nós o tempo desconhece".

Em Como já estamos pálidos e perdidos, o poeta refaz imagens de um mundo exterior mezobucólico: cavalos no campo, plantações, tudo a que guarde o tempo eterno na lembrança. Tudo o que é apenas sombra e passagem. Passam na vida, os homens, as coisas, os objetos, na social indiferença do tempo.

No poema Não era nada e perguntou, a filopoética de Mauro F. Filho se estabelece nathuralmente, belíssima no clima criado do encontro do homem/poeta consigo mesmo na imagem refletida no espelho. Poesia com filosofia, aliás algo de muito a ver com a Grécia, e a origem da própria linguagem (palavras) que no seu existir dependem da significação, (o conceito além da imagem fônica) que se confunde com importante objeto/função da filosofia, que é criar conceitos, significar, entender, ampliar, o significado/entendimento da vida e das coisas.

Reflexo do reflexo no espelho. Quem sou? Conquista – espaço – conhecido e desconhecido – a aventura humana no mundo dos signos. Um dos mais belos poemas do livro, o cunho filosófico do objeto conhecido, não vem com ranço de tese acadêmica, mas com os elementos indispensáveis ao processo do conhecimento: sujeito x objeto. "não era nada e perguntou/ao espelho, quem sou/reflexo do reflexo sobre/lâmina da água ou gelo..."

Correrá o rio interminável, correrá com as palavras aptas a angariar o mundo. "haverá um broto alheio e estranho/que guardaremos na memória feito o momento fugaz/de um gesto, um lance/um íntimo/e tu dirás:é o ponto/de tua anônima alegria". Muitos brotos alheios e estranhos haverão de ser encontrados pelos caminhos, como a poesia desse Mauro Faccioni Filho, extratos tirados da raiz da raça, vertidos dos labirintos da imaginação criadora.

Os poemas de Helenos, como cinéticas aparições, invadem a mente do leitor, num movimento que não é próprio dos livros de poesia, mas de filmes. Filmes que o Mauro Faccioni Filho provavelmente realizará no futuro do futuro do Brasil, na condição de poeta pleno que é.
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Fonte:
Artigo de Jairo Batista Pereira. In http://www.tanto.com.br/Jairobatistapereira-maurofaccioni.htm

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