quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Vinicius de Moraes (Ser moderno)


Saía o Sol sobre a Terra quando Lot entrou em Zoar. Então fez o Senhor chover enxofre e fogo sobre Sodoma e Gomorra. E subverteu aquelas cidades e toda a campina, e todos os moradores das cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Lot olhou para trás e converteu-se numa estátua de sal.

O grifo é meu e o texto está no Gênese, o primeiro livro de Moisés. O episódio bíblico constitui também, provavelmente, o primeiro caso psiquiátrico de neurose do passado. A mulher de Lot fora instruída a não olhar para trás, a andar a monte com seu marido e suas duas filhas, para não perecer no castigo imposto pelo Senhor à cidade de Sodoma.

- Quem mandou se meter a fogueteira? - diria um psiquiatra moderno da escola kleiniana. Não há que olhar para o passado. O passado é a neurose. O futuro é que conta.

- Então - perguntaria eu, bronqueado - por que é que você está usando uma expressão tão fora de época como "se meter a fogueteira"?

Aí o psiquiatra me explicaria que se tratava de uma expressão usada por sua avozinha, a única pessoa que conseguiu, com muito amor e paciência, corrigi-lo do hábito de fazer pipi na cama até os dez anos; mas que as pessoas projetadas para o futuro é que são isentas de neuroses.

- Feito os cosmonautas? - indagaria eu, meio preocupado com a lavagem cerebral indispensável ao equilíbrio neuropsíquico dos invasores do Cosmos.

- É, mas ou menos... - responderia o nosso amigo, com ar de quem não quer levar a discussão adiante.

Aí... - aí, pombas, cada um iria para a casa de sua mãe, mesmo porque a conversa já estava ficando com um certo ar de crônica de Art Buchwald, como está tão em moda.

É, velhinho... Que fazer? Dar uma de moderno, sair por aí, de calça vermelha ou azul-turquesa, camisa de florzinha e corrente com medalhão ao pescoço, puxando um fumo (1) honesto, e depois ir esticar com uma percanta (2) no Varanda, pra biritar (3) umas e outras? Ou assumir a vida, a experiência, o passado?

- Escuta, bicho, você tá por fora... Falar umas e outras já saiu do ar. Não vá me dizer isso no Veloso... A turma te dá uma buzinada. O último cara que falou assim foi o Chico Buarque, morou?

- Que é que tem o Chico? Eu acho o Chico, um sujeito por dentro, um compositor todo bom, cheio de sentimento...

- Sentimentos? Mas que é isso, bicho? Que coisa mais antiga... Quem tem sentimento é guia de cego. O negócio é entrar na onda (4). Você está em outra (5). Leia Marcuse e Norman Mailer e atualize seu repertório (6). Deixe o espírito vagar. Tem que ter plá (7).

Tem que ter plá, ouviram bem? Ser moderno é achar que a história começa com os Beatles e termina com os hippies. Depois disso, não há mais nada a fazer. É ir levando, entrar em órbita (8), canear (9) por aí com umas grinfas (10) bem xués (11), que é pra não dar dor de cabeça. É o sideral (12). O negócio é muita bolinha (13), muita tia-branca (14), muito LSD ou qualquer outro psicotrópico que dê um barato (15) firme. É de lei!

Realmente, a que se pode aspirar, depois de atingir a categoria hippy? O hippy é, no fundo, tão velho e sem perspectiva quanto um embaixador que caiu na compulsória. É um jovem que pediu aposentadoria da vida, motivado, é claro, pelos mais nobres sentimentos. Tudo, menos o trabalho burguês. Amor, não a guerra. Sexo livre, ambidestro e descompromissado. Desligamento total dos laços tradicionais de família. "Familles, je vous hais; foyers clos, portes renfermées, possessions jalouses du bonheur!" (16) - como já disse André Gide, esse Marcuse avant la lettre, esse velho hippy formalista, que viu Verlaine bêbado na rua sendo apupado e maltratado por um bando de colegiais, e optou por não socorrê-lo para não intervir no curso do seu destino.

E há - importantíssimo! - o problema "acústico".

- Que é que você achou da mulher americana, Miltinho?

- Humm... Não tem som (17).

Tem que ter som, ouviram, ó mulhas? (18). Não basta ser dondoca bonérrima, ter curso de psicologia na PUC, ser aprendiz de guerrilheira ou dona de boutique, assistente social ou bandida (19), grã-fina ou grã-grossa. O negócio é o seguinte: tem que ter som. Perguntem aos músicos mais pra frente (e perdoem se esta expressão tiver sido excomungada ontem no novo Zepelim).

- O Sérgio Mendes? Ih, bicho... já deu o que tinha dar. O som já não é mais aquele, morou? Muito comercial, muito pra gringo. Não dá mais pé. Agora: você já ouviu uns garotos que estão com um conjunto de cavaquinhos e gaitas eletrônicas? Velhinho, aquilo é que é som.

Resultado: andam os músicos a experimentar, dia e noite com seus conjuntos, à cata de um som: um como aquele que conduziu Sérgio Mendes ao auge do faturamento.

- Não, ô cara, a poesia não deixa de ter sua importância na canção, se o infeliz não me vier de amor - saudade - tristeza - coração - luar. Agora: importante mesmo é o som. A letra tem que interpretar o momento presente, aproveitar das novas estruturas, das novas formas, dos novos materiais, da nova linguagem publicitária de nossa sociedade de consumo. Tem que passar sinteco no samba.

- Mas... e o Tom?

- Bem... o Tom é grande, mas já está ultrapassado. Deu uma de coroa (20). Poxa, gravar com o Sina (21), um velhunco, um tremendo matusa (22). Não, bicho, eu estou em outra...

De maneira, arcaico leitor, que o seguinte é o que se segue; e o que se segue é a realidade; e a realidade é um fato; e fato é o que eu vou lhe provar agora: para ser moderno, você tem que estar na deles. Estando com eles, está com Deus. Você tem que usar calças Lee, de preferência desbotadas e puídas nos joelhos (camisas Lacoste é pra granfunço); tem que estar por dentro de blá(23) de malandro e gíria de barbudo de Ipanema; tem que fazer a ponte Zepelim-Varanda, e de vez em quando dar uma de Degrau; tem que discutir cinema novo, e sobretudo Gláuber; tem que saber queimar-o-pé (24) e entrar no embalo-7 (25) com birita de pobre: uísque é pros Onassis da vida; ou estar a balão (26) sempre que puder, puxando seu charo (27) em companhia de uma grinfete (28) super, levando o seu (29) com aquela disponibilidade; mas também sabendo quebrar um pau (30) quando o negócio estiver mais pra fezes (com perdão do eufemismo) que pra mousse de chocolate; tem que gostar de Gal Costa (sem que isso tenha nada a ver com o fato de ela ser uma excelente cantora) e Caetano Veloso (idem para o grande compositor), e tem que achar o Chico um ótimo letrista mas um músico meio devagar; tem que considerar o Chacrinha um gênio, inteiramente dentro do contexto, que é cafono por natureza: (Isso é que é tropicalismo, morou, ô infeliz?); tem que encarar de ver em quando umas patuleiras do asfalto (31), e se mandar pra Barra no carango (32), a mil; tem que, pelo menos uma vez por ano, fundir a cuca (33) e ir misturar as estações (34) numa clínica de repouso, e fazer uma sonda (35) seguida de uma psicoterapia de apoio - dá um pé bárbaro!

É isso que você tem que fazer, execrável leitor, se quiser ser moderno. Pergunte a esse grande ator Hugo Carvana, que me forneceu muitos dos elementos que estão aqui. O resto é papo furado. Se você não estiver nessa nunca vai ser um praça-boa, uma pedra-90 (36). Senão, bicho, quando você for buscar o milho, eles já fizeram a pipoca. Em rio que tem piranha, mosquito não dá rasante. Quem se mete a avestruz tem que aguentar o ovo. Ou como diz o fotógrafo filósofo e gentleman tijuco-ipanemense Paulinho Garcez: "Ajoelhou, tem que rezar!"

* P.S. Para os que estão mais por fora que marido enganado, fiz um pequeno glossário. Se quaisquer outras dúvidas ocorrerem, consultem o jovem super ao seu lado.

E por falar nisso: pode haver nada mais velho do que o novo?

Glossário
1 - Puxando um fumo: fumando maconha;
2 - Percanta: mulher, garota que se namora;
3 - Biritar: tomar bebida alcoólica;
4 - Entrar na onda: assumir o moderno, com tudo o que ele implica;
5 - Estar em outra: ser antigo, ou quadrado;
6 - Repertório: a súmula do linguajar moderno;
7 - Plá: substrato, bossa, espírito;
8 – Entrar em órbita: embriagar-se com drogas;
9 - Canear: beber;
10 - Grinfas: mulheres, garotas do mesmo naipe;
11 - Xués: malucas;
12 - Sideral: embriaguez específica por drogas ou psicotrópicos;
13 - Bolinha: excitantes medicamentosos em pílulas;
14 - Tia-Branca: cocaína;
15 - Barato: corruptela de baratino: o mesmo que o item 12;
16 -"Familles, je vous hais; foyers clos, portes renfermées, possessions jalouses du bonheur!": "Famílias, eu vos odeio; lares fechados, portas trancadas, possessões ciumentas da felicidade";
17 - Som: musicalmente, o correspondente a plá, qualidade sonora, bossa, inventiva, expressão;
18 - Mulhas: corruptela de mulher em gíria;
19 - Bandida: mulher ou garota de vida fácil, sem chegar a ser uma prostituta: diz-se também vadia;
20 - Coroa: quarentão;
21 - Sina: Frank Sinatra;
22 – Matusa: corruptela de Matusalém; velhíssimo, ancião;
23 - Blá: papo, conversa;
24 – Queimar o pé: embriagar-se;
25 - Entrar no embalo-7: embriagar-se muito; também se diz encher a cara;
26 - Estar a balão: inebriar-se com drogas ou psicotrópicos; estar suspenso no ar;
27 - Charo: corruptela de charuto; cigarro mais grosso de maconha;
28 - Grinfete: diminutivo de grinfa (ver no 10), broto, lolita;
29 - Levando o seu: contando suas histórias, levando o seu papo;
30 - Quebrar um pau: brigar fisicamente;
31 - Patuleiras do asfalto: prostitutas perambulantes, como se vê ao longo das praias;
32 - Carango: automóvel de preferência velho;
33 - Fundir a cuca: ficar neurótico, ou muito perturbado mentalmente;
34 - Misturar as estações: idem, como se tratasse de um rádio;
35 - Fazer uma sonda: sonoterapia;
36 – Praça-boa, pedra-90: pessoa de qualidade; o mesmo que bacana.


Fonte:
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro/RJ: 31/12/1969

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 119


Francisco José Pessoa (Serra Enigmática)


Vens perfurando a terra desde o nadir, para respirar o ar puro de Guaramiranga?

Com que autoridade desalinhas o horizonte com as tuas corcovas indecisas, ora descendo humilhando-te, ora subindo orgulhando-te?

Mas, com teu orgulho ou com tua humildade, em reverência ao teu criador, propicia-me um visual místico, solar dos deuses de antão.

Minha linda e apaixonante cordilheira, onde o sol respeitosamente mergulha nas tuas misteriosas costas para dizer adeus ao dia e dar vida às estrelas, faz-te minha musa pois, enamorando-te, sinto o vento açoitar-te levando com ele meu beijo.

Estás mais cinza. Não sei no momento precisar tua cor mas, para que te dar cores, se és um caleidoscópio que muda com os passos do astro-rei, que te aquece num vespertino abraço conjugal?

Serra do hoje, do ontem, do amanhã, testemunha de gerações que outrora achavam-te incólume no buscar dos seus sustentos. Hoje, olho-te, admiro-te, e conversas comigo num diálogo mudo, quando os olhos são as letras e os sentimentos sílabas, que descrevem o que de mais belo existe em ti.

Encobre-te com um manto de névoas, na tentativa de esconder-te de mim, mas, espero pacientemente que o véu se espraie, quando poderei admirar-te, levantando o véu que te faz misteriosa.

Quantos caminhos de rios te nutrem o útero, fazendo-te mais rica e mais saudável para nós teus devastadores. São 17h30. 0 sol encabulado se esconde, rendendo-te homenagem, ó pedaço de terra abençoada.

Que da outra vez aqui vier, estejas disposta a ouvir os meus clamores, acordes maviosos capazes de fazer inveja aos mais virtuosos compositores de ópera.

Decifro-te, minha cordilheira enigmática. És a sombra do sol que se põe e o brilho das estrelas que nascem. E mais um dia se fez!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Glycínia de França Borges (Jardim de Trovas)


Agora tenho na mente,
muita coisa a realizar:
Ver a família contente
com o natal a chegar.

Amei, fui correspondida,
por muitos e muitos anos...
Que linda história de vida,
de prazer... Sem desenganos!

A vida com esperança,
mais a primavera em flor,
dão prazer, perseverança,
no todo, com muito amor!

Com os fogos e fogueiras,
festejamos São João...
São fórmulas costumeiras
de esquentar o coração!

Depois que bebe, ele corre,
a velocidade o anima...
Só vai acordar do porre
lá no "céu" ou na oficina!

Explode no firmamento
um sol de raro esplendor,
espargindo pelo vento,
eflúvios de eterno amor!

Ipês rebrilham como ouro
em Curitiba, é verdade.
Flores no chão qual tesouro
são tapetes da cidade!

Muito triste, inestimável,
foi perder o meu marido,
realmente, lamentável,
o fato de ter partido.

Nesta sugestiva data,
nosso desejo sensato:
um porvir de magnata,
ordem, progresso, de fato!

O firmamento, figuras
muito estranhas, a valer...
Parecem nas nuvens claras,
carneirinhos a correr!

Palavras, consolação,
pra saudade, não existe!
Mais que uma simples paixão,
só ao milagre resiste.

Político mafioso,
em nossa concepção
quando apático e ocioso,
é um desastre pra nação!

Saudade aquele quesito,
que nos punge, que devora...
É aquele amor infinito,
que sem piedade apavora...!

Sempre alerta no volante,
no meu trajeto diário,
com cautela, a todo instante,
vou viver… um centenário!

Fonte:
Vânia Ennes. Elo de gerações. Curitiba: InVerso, 2018
Livro enviado pela autora.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 118


Contos e Lendas do Mundo (Carajás: Um Mundo de Céus Infinitos)


Segundo a maioria dos mitos sul-americanos, os primeiros humanos eram imortais. Podiam viver para sempre. No entanto, este mito carajá conta a história de maneira diferente.

Há muito, muito tempo, os humanos não viviam à superfície da Terra, mas sim no seu interior. Quando a noite caía no lado de fora, no interior reinava o dia, e a explicação era simples: quando o Sol baixava e deixava de se ver no final de cada dia, desaparecia dentro da Terra e iluminava o seu reino subterrâneo. Depois, quando a manhã chegava, o Sol erguia-se no horizonte, saindo de dentro da Terra, e voltava para o céu.

Entre as pessoas que viviam neste mundo subterrâneo - e é preciso não esquecer que, no princípio, era aí que todas elas moravam - havia um homem chamado Kaboi, dotado de grande sabedoria.

Às vezes, quando Kaboi se deitava no seu leito à noite - no interior da Terra era noite, enquanto à superfície era dia -, ficava a escutar um canto estranho que lhe chegava de cima.

Embora os dois mundos estivessem divididos por uma espessa camada rochosa, aquele canto chegava-lhe com muita nitidez, deixando-o curioso quanto à sua origem. Nunca pensou que se tratava do canto de uma seriema, ave que vivia nas vastas planícies verdejantes da savana.

Não tinha possibilidade de saber que as próprias ervas cantavam quando o vento passava por entre elas. Verdade seja dita, ele também nada sabia acerca de ventos, pois, no interior da Terra, o ar estava parado e nunca nenhum humano vira o mundo que ficava por cima.

Certa noite, Kaboi não conseguiu aguentar mais. Resolveu seguir o som e tentar descobrir de onde vinha. Várias pessoas concordaram em acompanhá-lo; porém, os seus nomes já foram, há muito, esquecidos.

Kaboi e os seus companheiros subiram pelas paredes rochosas do mundo subterrâneo, até chegar ao lugar onde o som se ouvia com mais força.

Kaboi sentiu no rosto uma brisa suave, ele que nunca antes experimentara tal sensação. E pelas narinas entrou-lhe um odor estranho... o odor da erva da savana. Kaboi olhou para cima e avistou, mesmo por cima da sua cabeça, um buraco aberto na rocha. Deitava para um longo túnel que, por sua vez, ia dar à superfície.

Nesse preciso momento, a seriema cantou de novo e as pessoas que rodeavam Kaboi soltaram exclamações de entusiasmo.

- Tinhas razão - observou uma delas.

- Encontraste um caminho que vai dar a outro sítio! - exclamou outra.

Foi um momento de grande entusiasmo para Kaboi. Se, de fato, havia um mundo novo no lado de fora, ele ficaria para sempre conhecido como aquele que descobrira o caminho para lá chegar.

Kaboi achou que devia dizer algumas palavras para marcar aquele momento importante; porém, estava de tal maneira entusiasmado que se içou para a entrada do túnel. O pior é que não conseguiu passar, pois a abertura era demasiado pequena para a sua enorme barriga.

- Temos de abrir um túnel mais largo! - declarou alguém.

- Não vale a pena - respondeu Kaboi. - O que interessa, acima de tudo, é descobrir o que está no outro lado - salientou. - Só vos resta subir pelo túnel e partir à aventura.

Os companheiros de Kaboi percebiam bem do grande desgosto que este experimentava por não poder visitar a superfície; no entanto, achavam que as suas palavras faziam sentido e estavam todos ansiosos por partir à descoberta do que havia no exterior.

Antes de o último homem desaparecer pelo túnel acima, Kaboi pousou-lhe a mão no ombro.

– Não te esqueças de ver de onde vem o canto que costumo ouvir à noite – recomendou.

- Prometo não me esquecer - retorquiu o homem.

Os primeiros seres humanos a visitar a superfície da Terra, a que agora chamamos nossa, mal podiam crer no que os seus olhos viam. O céu azul que se estendia, a perder de vista, por cima das suas cabeças, era algo que jamais tinham imaginado. As árvores, as plantas, as aves... Tudo era novo e espantoso para eles.

- O Kaboi descobriu-nos um paraíso! - rejubilou-se um deles.

- Todos irão querer viver aqui - disse outro.

- Estou ansioso por lhe contar - acrescentou um outro.

Houve mais alguém que desejou falar; porém, a sua voz foi abafada pelo canto da seriema.

- Ah! Ah! - exclamou essa pessoa em tom triunfante, depois de a ave se afastar. - Ali está a criatura cujo canto fez com que chegássemos a este lugar maravilhoso. Temos de voltar para junto do Kaboi e contar-lhe o que vimos.

- Acho que também devemos levar conosco coisas para lhe mostrar – sugeriu o primeiro.

Todos concordaram com a ideia.

Colheram fruta, juntaram abelhas, mel e bocados de madeira seca que tiraram de uma árvore morta, subindo, em seguida, até ao lugar onde ficava o túnel que os conduziria de novo ao mundo subterrâneo.

- Kaboi, encontramos um lugar maravilhoso! - exclamou um deles.

- O teto do mundo lá de cima não é feito de pedra como o nosso, mas sim de ar azul que se estende a perder de vista - disse outro.

Não podia utilizar a palavra «céu», porque ela não existia. Nunca nenhum humano o vira, melhor dizendo, até então.

Todos desataram a falar ao mesmo tempo, ansiosos por transmitir as maravilhas com que tinham deparado.

- Calem-se - pediu Kaboi. - Temos tempo para falar de tudo isso.

- Olha o que trouxemos - disse um dos membros do grupo que partira em investigação, enquanto pousavam os frutos, abelhas, mel e madeira seca em frente do sábio Kaboi.

Kaboi pegou numa peça de fruta, cheirou-lhe a pele e deu-lhe uma dentada na polpa. O suco escorreu-lhe pelo queixo.

- Que delícia! - elogiou. - O mundo que gera delícias como esta deve ser maravilhoso.

A seguir, examinou as abelhas e o mel.

- Os insetos do mundo exterior são trabalhadores esforçados continuou, metendo depois um bocado de favos de mel na boca. - E não há dúvida de que o que produzem é doce. Não restam dúvidas de que este mundo novo é fantástico, é um mundo de abundância.

Por fim, pegou no bocado de madeira seca, que virou e revirou várias vezes entre as mãos.

- Onde é que acharam isto? - quis saber.

Um dos elementos do grupo abriu caminho até à frente.

- Encontrei isso numa árvore - explicou.

- Todas as árvores do mundo exterior são feitas de madeira como esta?

- Não - respondeu o homem. - As outras árvores estão de pé e direitas, cheias de folhagem verdejante. Essa estava deitada por terra e não tinha quaisquer folhas. Foi por isso que te trouxe um bocado da sua madeira.

Kaboi ficou com uma expressão solene.

- Não há dúvida de que o mundo lá de cima é muito belo e produz em abundância. Mas também é um mundo onde, a seu tempo, tudo morre.

Via-se, pela cara das pessoas, que estas não tinham percebido bem o significado das palavras do sábio Kaboi.

- No mundo lá de cima, tudo o que tem vida acabará por definhar e morrer - explicou ele.

- Mas aqui em baixo também morremos - contrapôs o homem que trouxera os bocados de madeira seca.

- É um tipo de morte completamente diferente - disse Kaboi. - Aqui, nós não mirramos e secamos como este bocado de madeira. Aqui, nós nascemos e vivemos durante centenas de anos, até deixarmos de existir retorquiu Kaboi. - Lá em cima as coisas nascem, vivem e vão ficando cada vez mais velhas e gastas, até morrerem. Se algum de vocês optar por viver no mundo exterior, também morrerá muito antes daqueles que, entre nós, forem suficientemente ponderados para ficar.

Gerou-se um silêncio de estupefação.

Como os nossos antepassados viviam no mundo subterrâneo não sabiam o que era a decadência, tinham muita dificuldade em compreender as palavras do sábio Kaboi. Mesmo aqueles que tinham uma vaga noção do que ele queria dizer, acharam que o preço a pagar era demasiado pequeno comparado com a possibilidade de viver naquele mundo novo tão belo.

Foi assim que muitas pessoas subiram pelo túnel e passaram a viver na superfície da Terra, onde hoje nos encontramos todos, tendo o céu límpido por cima das nossas cabeças e o chão firme debaixo dos nossos pés.

Descendemos todos desse primeiro povo que optou por essa vida nova à superfície onde, mais cedo ou mais tarde, a morte acaba por nos apanhar a todos.

Quanto a Kaboi, este continuou no subsolo, satisfeito por saber que viveria mais tempo do que os que estavam na superfície poderiam alguma vez imaginar.

Kaboi continuou a poder escutar o canto da seriema e a imaginar o aspecto que a ave teria, agora que lha tinham descrito. Mas também ouviu outros sons: o das pessoas a rir, chorar e morrer.

Fonte:
Mitos e Lendas Sul Americanas.

Cruz e Sousa (Poemas Humorísticos e Irônicos) IV


DILEMA
Ao cons. Luís Alvares dos Santos

Vai-se acentuando,
Senhores da justiça — heróis da humanidade,
O verbo tricolor da confraternidade...
E quando, em breve, quando

Raiar o grande dia
Dos largos arrebóis — batendo o preconceito...
O dia da razão, da luz e do direito
— Solene trilogia —

Quando a escravatura
Surgir da negra treva — em ondas singulares
De luz serena e pura;

Quando um poder novo
Nas almas derramar os místicos luares,
Então seremos povo!

À REVOLTA
A Cassiano César

O século é de revolta — do alto transformismo,
De Darwin, de Littré, de Spencer, de Laffite —
Quem fala, quem dá leis é o rubro niilismo
Que traz como divisa a bala-dinamite!...

Se é força, se é preciso erguer-se um evangelho,
Mais reto, que instrua — estético — mais novo
Esmaguem-se do trono os dogmas de um Velho
E lance-se outro sangue aos músculos do povo!...

O vício azinhavrado e os cérebros raquíticos,
É pô-los ao olhar dos sérios analíticos,
Na ampla, social e esplêndida vitrine!...

À frente!... — Trabalhar à luz da ideia nova!...
— Pois bem! Seja a ideia, quem lance o vício à cova,
— Pois bem! — Seja a ideia, quem gere e quem fulmine!...

ESCÁRNIO PERFUMADO

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas — isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

DECADENTES

Richepin, Rollinat! gritos sangrentos
Da carne alvoroçada de desejos,
Mosto de risos, lágrimas e beijos,
Estertores de abutres famulentos.

Desesperado frêmito dos ventos,
De harpas, sutis, fantásticos arpejos,
Clarins de guerra, e cânticos e adejos
De aves — todos os vivos elementos.

Tudo flameja e nas estrofes canta,
Estruge, zune, em borbotões levanta
Noites, luares, fulgurantes dias.

Mas nessa ideal temperatura forte
Tudo isso é triste como a flor da morte
Que brota dentro das caveiras frias...

DOENTE

As unhas perigosas da bronquite
Nas tuas carnes sensuais e moles
Não deixarão que o teu amor palpite
Nem que os olhares pelos astros roles.

É fatal a moléstia. Só permite
Que te acabes por fim e que te estioles,
Sem que em teu peito o coração se agite,
Sem que te animes, sem que te consoles.

Vai se extinguindo a polpa dessas faces...
Mas se ainda hoje em mim acreditasses,
Como no tempo virginal de outrora,

Tu curar-te-ias com pequeno esforço
Das serranias através do dorso,
Pela saúde dos vergéis afora.

Fonte:
Cruz e Souza. Poemas Humorísticos e Irônicos. MEC, Fundação Biblioteca Nacional.

Rachel de Queiróz (O Rei)


A velha Marica Lopes, moradora na fazenda de minha avó, entrava pela casa dos noventa: tinha sido rendeira célebre, mas já então os olhos gastos não lhe permitiam mais do que fazer filé de almofada, para ser tecido depois em labirinto e crivo. Um dia cheguei lá e dei com ela no terreiro, numa roda de moleques, aprendendo a jogar bola de palha, que é uma espécie de peteca feita com palha de milho. Me vendo, sentou-se no batente na porta, gorda e bufando. E como eu estranhasse aquele esporte violento na sua idade, ela me disse que “o velho paga o menino”, e então me contou a história do rei.

Era uma vez um rei que começou a reinar com três anos de idade; aos quatro anos já andava com a coroa de ouro na cabeça, governando; com doze já tinha rainha ao lado; aos vinte a barba lhe batia na cintura.

Mas no dia do vigésimo nono aniversário do rei, que todos já consideravam um velho à espera dos netos, o povo que veio tocar alvorada na porta dele, segundo o costume, viu sua majestade aparecer à janela ainda de camisola, fazer uma careta para os súditos e sair pulando amarelinha nos ladrilhos da sala, Depois deu para saltar feito macaco dos caibros para os armadores, dos armadores para as ripas, em tempo de atirar o telhado no chão. O povo abriu a boca num bué, certo de que o rei tinha ficado doido. Chamaram o bispo, padrinho dele, que nem teve tempo de botar a mitra, e veio assustado, com uma caldeirinha de água benta, exorcizar o rei; mas no que abria a boca para dizer “T’esconjuro, abrenúncio!” o rei deu uma risada, sentou-se na rede, balançou-se um pouco e explicou ao bispo:

— Não se assuste, meu padrinho, eu não estou doido. Mas hoje é dia dos meus anos e de madrugada acordei e me deu um baque no coração: quase desde a hora em que nasci me puseram neste cativeiro de reinado, e eu nunca pude ser criança nem menino. E então fiz uma jura de hoje mesmo tirar o desconto e me gozar de tudo que por culpa dos outros perdi!

Aí pediu licença e bateu palmas e quando o moleque apareceu o rei mandou buscar uma rapadura no paiol; em vez de tomar café de leite com bolo, ia tomar um chibé de rapadura. Riu-se de novo meio encabulado e explicou:

— Faz vinte e cinco anos que eu sonho e sinto esse desejo.

Depois, para não perder tempo, desarmou a rede, desatou a corda, e pôs-se a pular corda enquanto a rapadura não chegava.

O bispo chegou na janela e explicou o caso que havia. O povo até chorava, de pena do rei. E então retiraram-se todos com a banda de música, deixando o pobrezinho vadiar em paz.

Isso não é um apólogo nem nada, Foi só saudade da Marica Lopes, minha mestra no trocado de bilros e que entendia de repressões infantis sem ter nunca ouvido falar em Freud. Ontem todo o mundo estava discutindo Freud numa casa onde andei e só diziam bobagem; e aí eu me lembrei de Marica Lopes.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

IV Concurso Literário (de Contos) Cléber B. Silva (Prazo: 30 de Novembro)


REGULAMENTO

A OFICINA CULTURAL VALE DAS ARTES, com o apoio da Academia Peruibense de Letras e da TV Vale das Artes, realizará o IV CONCURSO LITERÁRIO CLÉBER B. SILVA.

PARA MORADORES NA CIDADE DE PERUÍBE:

Tema: LENDAS

Contos – apenas um texto, máximo 3 páginas, em Times New Roman, fonte 12, espaço simples.

Enviar o texto em 3 (três) vias , com PSEUDÔNIMO

Em envelope separado dentro do envelope principal, juntar breve currículo com endereço correto e completo, para:

CAIXA POSTAL 141
CEP 11750-000 – PERUÍBE, SP

Prazo para envio: Até 30 de novembro de 2019

PARA MORADORES NO ESTADO DE SÃO PAULO:

Tema: CAFÉ

Conto – apenas um texto – máximo de 3 páginas, em Times New Roman, fonte 12, espaço simples.

Enviar em 3 (três) vias, com PSEUDÔNIMO e, num envelope separado dentro do envelope principal, juntar breve currículo com endereço completo e correto, para

CAIXA POSTAL 141
CEP 11750-000 – PERUÍBE, SP

Prazo para envio: Até 30 de novembro de 2019

PARA MORADORES NOS DEMAIS ESTADOS DO BRASIL:

Tema: INDEPENDÊNCIA

Conto – apenas um texto, máximo de 3 páginas, em Times New Roman, Fonte 12, espaço simples.

Enviar em 3 (três vias), com PSEUDÔNIMO,dentro do envelope principal juntar outro envelope com breve currículo e endereço completo e correto, para

CAIXA POSTAL 141
CEP 11750-000 – PERUÍBE, SP

Prazo para envio: ATÉ 30 DE NOVEMBRO DE 2019

PREMIAÇÃO:

Serão premiados:
3 primeiros lugares
3 menções honrosas
3 menções especiais

Ao primeiro colocado em cada uma das três categorias, será conferido TROFÉU, bem como LIVROS e DIPLOMA DE PARTICIPAÇÃO

Os demais classificados receberão LIVROS e DIPLOMA DE PARTICIPAÇÃO

O resultado do Concurso será publicado em 30 de setembro de 2020

Os resultados serão obtidos a partir notas das Comissões Julgadoras, as quais serão respeitadas pelos organizadores do Concurso.

Obs: os temas são genéricos> Você pode contar uma historia acontecida quando estava num café, ou fazer um conto sobre independência financeira ou independência dos pais

Peruíbe, 10 de Julho de 2019

Ecilla Bezerra
Presidente
Oficina Cultural Vale das Artes

Fonte:
Facebook da Academia

domingo, 17 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 117


Monteiro Lobato (O Velho, o Menino e a Mulinha)


O velho chamou o filho e disse:

– Vá ao pasto, pegue a mulinha e apronte-se para irmos à cidade, que quero vendê-la.

O menino foi e trouxe a mula. Passou-lhe a raspadeira*, escovou-a e partiram os dois a pé, puxando-a pelo cabresto. Queriam que ela chegasse descansada para melhor impressionar os compradores.

De repente:

– Esta é boa! – exclamou um viajante ao avistá-los. – O animal vazio e o pobre velho a pé! Que despropósito! Será promessa, penitência ou caduquice?...

E lá se foi, a rir.

O velho achou que o viajante tinha razão e ordenou ao menino:

– Puxa a mula, meu filho. Eu vou montado e assim tapo a boca do mundo.

Tapar a boca do mundo, que bobagem! O velho compreendeu isso logo adiante, ao passar por um bando de lavadeiras ocupadas em bater roupa num córrego.

– Que graça! – exclamaram elas. – O marmanjão montado com todo o sossego e o pobre menino a pé... Há cada pai malvado por este mundo de Cristo... Credo!...

O velho danou e, sem dizer palavra, fez sinal ao filho para que subisse à garupa.

– Quero só ver o que dizem agora...

Viu logo. O Izé Biriba, estafeta do correio, cruzou com eles e exclamou:

– Que idiotas! Querem vender o animal e montam os dois de uma vez... Assim, meu velho, o que chega à cidade não é mais a mulinha; é a sombra da mulinha...

– Ele tem razão, meu filho, precisamos não judiar do animal. Eu apeio e você, que é levezinho, vai montado.

Assim fizeram, e caminharam em paz um quilômetro, até o encontro de um sujeito que tirou o chapéu e saudou o pequeno respeitosamente.

– Bom dia, príncipe!

– Por quê, príncipe? – indagou o menino.

– É boa! Porque só príncipes andam assim de lacaio à rédea...

– Lacaio, eu? – esbravejou o velho. – Que desaforo! Desce, desce, meu filho, e carreguemos o burro às costas. Talvez isto contente o mundo...

Nem assim. Um grupo de rapazes, vendo a estranha cavalgada, acudiu em tumulto, com vaias:

– Hu! Hu! Olha a trempe de três burros, dois de dois pés e um de quatro! Resta saber qual dos três é o mais burro...

– Sou eu! – replicou o velho, baixando a carga. – Sou eu, porque venho há uma hora fazendo não o que quero, mas o que quer o mundo. Daqui em diante, porém, farei o que me manda a consciência, pouco me importando que o mundo concorde ou não. Já vi que morre doido quem procura contentar toda gente...
__________________

Moral: Quem quer contentar todo mundo não contenta ninguém. Sobre todas as coisas há sempre opiniões contrárias. Um acha que é assim, outro acha que é assado. Devemos fazer o que nos parece mais certo, mais justo, mais conveniente. E para nos guiar temos a nossa razão e a nossa consciência.
_____________________
Vocabulário:
* Raspadeira – Espécie de pente de ferro usado para raspar o pelo das cavalgaduras.


Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 4 - Amizade


A amizade é um sentimento dos mais relevantes para o ser humano. Com os amigos cria-se uma rede social que propicia bem-estar, assegura saúde psíquica e até pode prolongar a vida. Pesquisas têm demonstrado que, pelo fato de se poder escolher os amigos, portanto um ato voluntário, eles têm mais influência positiva na nossa vida do que até mesmo nossos familiares, cuja convivência não se dá por escolha, mas por dever,

Amizade é sã vivência
do bom relacionamento,
e se estrutura na essência
do mais belo sentimento.
Vidal Idony Stockler - PR
 
A verdadeira amizade
é figueira milenar
que nem mesmo a tempestade
a consegue derrubar.
Pedro Grilo - RN

Guardada como fragrância,
a verdadeira amizade
não se perde na distância,
adormece na saudade.
Ângela Togeiro - MG

O amigo que nos quer bem
é aquele que, sem temor,
oculta uma dor que tem
e vem sanar nossa dor…
Ademar Macedo - RN

Amigo é um irmão de fé,
que, nas quedas dos caminhos,
discreto nos põe de pé
e diz que agimos sozinhos…
Edmar Japíassú Maia - RJ

O esplendor de uma amizade
merece grande atenção,
pois toda afetividade
nos faz bem ao coração.
Ana Maria do Nascimento - CE

A amizade é sentimento
de amor e fraternidade,
como se fosse alimento
que sustém a humanidade.
Maria Eugênia Maceira Montenegro – RN

Quem tem amigos leais
tem muito o que agradecer:
bons amigos valem mais
que o mais que se possa ter.
A. A. de Assis - PR

Uma vida de amizade
cheia de amor e carinho,
fará que toda a verdade
na terra encontre o cominho.
Paulo Amorim Cardoso - CE

Amigo é persona grata
que tem sorriso no voz
e um trato que só maltrata
quando está longe de nós!
Josafá Sobreira da Silva - RJ

Tenha amigos no caminho,
reparta risos e prantos.
Nem Deus quis viver sozinho
e criou anjos e santos.
Ildefonso de Paula - SP

Trovadores, meus irmãos
vamos viver de mãos dadas!
Onde há correntes de mãos
não há mãos acorrentadas!
José Maria Machado de Araújo - RJ


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Carlos Drummond de Andrade (Caso de Boa Ação)


Primeiro de janeiro, a moça ia passando pela avenida Atlântica, feliz de estar de vestido novo, sapato novo, namorado novo (ele ausente, mas era como se caminhassem de mãozinha dada), tudo novo, alma inclusive. Do mar vinha uma brisa que não dava para desmanchar cabelo, eram mansos recados de viagem, outras terras convidando. Não, vou ficar por aqui mesmo, vou andar toda a vida nesta calçada, pensando nele, sentindo ele, estou tão bonita neste vestido, a moça sabia que estava…

De repente, zapt, a cusparada veio lá do alto do edifício e varreu-lhe o braço direito que nem onda de ressaca. Horror, nojo, revolta: no meio das três sensações, o triste consolo de não ter sido no rosto, nem mesmo no vestido. Como limpar “aquilo” sem se sujar mais? Teve ímpeto de atravessar a rua, a praia, meter-se de ponta-cabeça no mar. Depois veio a ideia de entrar no primeiro edifício, apertar a primeira campainha, rogar em pranto à dona da casa: “Me salve desta imundice!”. Sentia-se tão desmoralizada que não teve coragem de enfrentar essa suposta dona de casa, talvez nem estivesse em casa, podia não ser uma dona, podia ser quem?

Felizmente ali estava sentado num banquinho, de transístor no ouvido, gozando a fresca, o velho porteiro. Dirigiu-se a ele como a um deus encarnado.

— Moço, será que o senhor tem aí nos fundos uma torneirinha dessas de tirar areia dos pés quando a gente volta da praia? Estou muito precisada!

O velhinho olhou-a com olhos neutros, sem afastar o rádio do ouvido, nenhuma expressão na cara. Evidentemente não queria tomar conhecimento do assunto. Tão bem calçada, que história de areia é essa?

Ela procurava esconder a pele conspurcada, mas afinal a exibiu para comover aquele gélido coração:

— Me leve à torneirinha, moço! Olhe só a porcaria!

Ele não queria perder o sossego do domingo, ou desconfiava de um golpe da desconhecida? O certo é que a fisionomia não acusou qualquer reação, até que os lábios começaram a remexer, devagar, a boca mastigando um pensamento.

— Torneirinha eu tenho, mas não serve para a senhora.

— Serve sim, uma garrafa de água serve!

— Vai ensopar seu vestido, não está direito.

— Faz mal não, que me importa o vestido, eu quero é me limpar!

Ele sacudia a cabeça, inexorável. Até que se levantou, com um gesto: “Venha cá”, e foi levando a moça pelos meandros escuros da garagem.

Apontou-lhe a pia, conforto muito maior que a torneirinha de emergência:

— A senhora espere aí.

E saiu, deixando o radiozinho à beira da pia. A moça não pôde deixar de pensar: “Fiz mau juízo dele pensando que ele fazia mau juízo de mim. Sem me conhecer, deixou o transístor ao alcance da minha mão. A coisa mais preciosa que tem, com certeza! Se eu fosse uma vigarista…”. O homem custava.

Apareceu afinal, com uma toalha limpa e um sabonete embrulhado, recomendando-lhe que esfregasse bem, não tinha pressa.

Nunca a água lhe pareceu tão boa, sabonete nenhum tão fino, a pia era um sonho. Sorriu para o velho, limpa de toda mácula.

— O senhor praticou a sua primeira ação boa do ano, sabe?

Ele sorriu também, recompensado. Ora, ora, uma nojeira dessas, quem que pode?

— Atirada talvez deste mesmo edifício…

— É capaz. A gente vê de tudo.

Gratificá-lo com dinheiro seria tão indecente quanto cuspir da janela — pensou a moça. Tirou da bolsa um maço de cigarros, pediu-lhe que aceitasse.

Não queria; para não fazer desfeita, aceitou.

— Se precisar de mim outra vez, estou às ordens.

— O quê? O senhor acha que eu vou ser cuspida outra vez, moço?

— Não é isso não, não é isso, mas a gente nunca sabe o que pode acontecer a uma senhorita!

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

Concurso Literário de Crônica “O Lado Poético da Vida” (Prazo: 28 de fevereiro de 2020)

Elaborado por Rosimeire Leal da Motta Piredda.
Com o apoio da escritora Ana  Rosenrot, editora da Revista LiteraLivre

Regulamento:

a) Aberta a todos os autores da língua portuguesa.

b) Inscrição via e-mail.

c) Prazo de envio:  A submissão das crônicas começa no dia 15 de novembro de 2019 e termina no dia 28 de fevereiro de 2020.

d) Objetivo: Estimular a reflexão e a análise.

e) Tema:  O LADO POÉTICO DA VIDA.  O autor deve refletir onde está o lado poético em sua vida, na vida das pessoas, no cotidiano, na alegria e na tristeza, explicar o que é o lado poético da vida.  Cada autor deve enviar apenas uma crônica.

OBS.: Espera-se que a crônica seja objetiva, não muito longa e que demonstre claramente, onde está o lado poético da vida.

f) Para participar, os autores devem enviar uma crônica com o título e nome do autor em fonte:  Arial, tamanho 12, papel A4, tendo a crônica um máximo de uma página e meia, para o seguinte endereço eletrônico: mottapiredda@gmail.com.

Deve ser enviado direto no corpo do e-mail, SEM ANEXOS. Escreva primeiro no Word e depois copie e cole no corpo do e-mail.

ATENÇÃO: as crônicas devem ser enviadas revisadas pelos autores

No corpo do e-mail, junto com a Crônica, deve constar:
- Título da crônica,
- Nome do autor,
- Cidade e Estado e país e
- e-mail.

Depois de analisadas, todos os autores das crônicas serão informados, sobre os textos que foram selecionados, via e-mail
 

g) Classificação de três textos: Os Três autores classificados receberão como prêmio, um Certificado e um exemplar do livro O Lado Poético da Vida, da autora Rosimeire Leal da Motta Piredda. O envio do exemplar a título de premiação será custeado pela organizadora.  

OBS.: Todos os textos participantes farão parte de um e-book gratuito. Não se paga nada para participar do e-book.

O E-book será confeccionado por Ana Rosenrot da Revista Literalivre.

Contato, mais informações e Dúvidas:  mottapiredda@gmail.com

Fonte:
Rosimeire Leal da Motta Piredda
membro correspondente da Academia de Letras de Teófilo Otoni

sábado, 16 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 116


Elisa Alderani (A Magia da Noite de Natal)


Quando era criança ninguém tinha medo de andar no escuro, e o caminho a percorrer para chegar à Igreja era bem longo. As sombras das árvores se projetavam à nossa frente, nos rodeavam e nós seguíamos tranquilamente na noite santa para ir à Missa do Galo; assim chamada aqui no Brasil, e que antigamente era celebrada à meia noite. Muitas vezes, nas vésperas do Natal já havia caído a neve, e isso tornava a noite mais silenciosa. O barulho dos passos era abafado; a paisagem linda.

Ao longe se notavam as luzes do pequeno lugarejo, no cume a Igreja, e o clima do verdadeiro do Natal, invadia os nossos corações. As últimas badaladas dos sinos, perdiam-se no ar gelado da montanha.

A gente caminhava às pressas para chegar logo, e depois da celebração, voltava cantando com a alma cheia de júbilo natalino. Havia em nosso ser a felicidade da simplicidade, da paz, da amizade, do calor da família unida, com o espírito cristão.

Os pés ficavam molhados e gelados; chegando, a mãe nos colocava perto do fogão a lenha quentinha deixado abastecido, e ainda emanava calor. Em cima dele havia as grandes panelas, com os caldos, ou com carne já quase assada para o almoço de Natal.

Lembro-me das gostosas comidas com cheiros deliciosos. As horas já haviam passado rapidamente, mas ganhávamos uma fatia de panetone e um pequeno gole de vinho doce. Depois precisávamos deitar logo, por que o Menino Jesus, se nos encontrasse acordados não deixaria presentes, mas na ansiedade era difícil pegar no sono.

Assim se foram os anos da inocência, da pureza e doçura de muitos Natais. Quando na manhã seguinte, debaixo da árvore de pinheiro verdadeiro, encontrávamos nossos presentes, talvez pobres, mas ficávamos muito felizes... logo começávamos brincar. Na cozinha quente os cheiros gostosos do café, dos doces que estavam na mesa misturavam-se com as das tangerinas penduradas na árvore. Havia este costume de pendurar frutas, balas, bombons de chocolates, enfeitados com fitas douradas. Nós escolhíamos qual comer primeiro, era uma festa! Da vidraça da cozinha podíamos ver o jardim; e a neve que havia pousado ao longo da noite, deixando nos galhos das árvores uns lindos bordados, tal qual uma branca e luminosa pintura.

Hoje, sozinha, à frente do meu pequeno presépio, das pequenas imagens antigas, que guardei daquele tempo... Jesus dorme.

A noite aqui não é silenciosa. A véspera de Natal tem outros costumes!

(crônica no jornal “A Cidade”, em 2015, parte publicada na coluna do leitor)

Fonte:
A Autora

Professor Garcia (Décimas ao Ritmo do Velho Galope à Beira-Mar) I


1
Cantando galope, ninguém me segura,
estando em meu barco, jangada ou canoa,
tragando as procelas e o vento da proa,
enfrento a sereia, seu canto e ternura,
as ondas revoltas e a noite mais pura,
as trevas mais negras, eu posso enfrentar...
Meu barco é ligeiro e no meu velejar,
banhado de prata no claro da lua,
enquanto meu barco nas ondas flutua,
eu canto galope na beira do mar!

2
Levanto bem cedo, me ponho de pé,
abraço a procela da noite sombria,
a aurora desperta e a barra do dia,
montada nas ondas, acorda a maré;
eu pego o rosário, me curvo ante a fé,
me entrego a Jesus e começo a rezar,
tenho que partir, pois preciso pescar,
foi tudo que fiz e até hoje ainda faço,
me sinto feliz quando beijo e me abraço
com o velho balanço das ondas do mar!

3
Enquanto o silêncio da noite se agita,
descanso, em meu barco, sentado na proa,
só escuto o barulho da voz da garoa
enublando a lua, no céu tão bonita;
risonha, cintila na paz infinita,
no instante em que escuto a sereia cantar,
eu giro o meu barco, começo a voltar,
com medo da noite e da velha sereia,
prefiro encalhar o meu barco na areia,
dormir sossegado na beira do mar!

4
Cruzei pantanais, muitos lagos e rio,
outros mares na vida, também já cruzei,
no campo eu lutava, na rua eu lutei,
pois essas lembranças jamais silencio;
fazer serenatas em noites de frio,
com meu violão eu sozinho a cantar,
no banco da praça, com a lua a brilhar,
bebia o sereno dos olhos da lua,
e assim que acabava a tristeza da rua,
voltava ao meu barco na beira do mar!

5
Poeta, eu aceito, num gesto bonito,
cantar as belezas que existem no mundo,
cruzar as fronteiras do mar mais profundo,
deixar minhas marcas no chão de arenito;
gravar o meu nome no duro granito,
na crista das ondas a me balançar,
convidar as musas para me beijar,
num gesto bonito, galante e decente,
na sofreguidão de uma tarde morrente,
cantando galope na beira do mar!

6
Só meu bandolim me carrega a incerteza,
nas noites que, insone, adormeço sozinho,
o dengo das cordas, seduz o meu ninho,
e o choro das notas me afasta a tristeza;
depois que desperto, eu esqueço a pobreza
do velho ranchinho e do meu caminhar,
sem luz e sem gás, como é rico o meu lar,
na simplicidade de um bom pescador.
De noite, o meu barco é uma enchente de amor,
molhado de espuma das ondas do mar!

7
Eu gravo o que vejo, na luz da retina,
dos olhos da lua e na paz das estrelas,
cantando, na praça, eu também quero vê-las,
bebendo o sereno da noite divina;
é assim que descrevo a beleza menina
e as rugas do rosto do chão potiguar,
o vento brejeiro que vem balançar
as mãos dos coqueiros de palmas abertas,
que espantam mistérios das noites desertas,
nos morros de areia da beira do mar!

8
O sopro da brisa é meu farto alimento,
e o solo da lira, meu canto infinito,
o toque do sino é meu eco e meu grito
e a minha viola é o meu pensamento;
em tudo que faço, no meu aposento,
eu sinto a ternura de um canto no ar,
respiro e medito e começo a pensar
que a vida que levo é de paz e esplendor…
Derramo alguns versos na fonte do amor
e o resto que sobra, nas águas do mar!

9
Seis horas da tarde, eu contemplo contrito,
meus lindos encantos do templo celeste,
no instante em que o sol, debruçado e sem veste,
desliga o farol que ilumina o infinito;
sem luz e calor, deixa o céu tão bonito,
que a lua sorrindo, começa a brilhar;
é a luz sem reflexo do globo solar,
brilhando outra vez, nos olhares da lua,
que linda e faceira, no espaço flutua,
molhada com os pingos das ondas do mar!

10
A lua, sem roupa, sorrindo ofegante,
provoca ciúmes na noite tão bela,
desfila sozinha a mais linda donzela,
que sempre se esconde no quarto minguante,
seu rosto bonito, de olhar flamejante,
suspira desejos de alguém conquistar,
e eu vivo sozinho tentando abraçar
os braços daquela que abraça o meu chão,
porque quem conhece o luar do sertão,
não sente saudades da beira do mar!

11
Na minha rotina, de noite eu não saio,
porque tenho medo do mal traiçoeiro,
o abraço da noite é um falso escudeiro,
vestido de preto e me vê, de soslaio;
eu fujo das trevas, veloz como um raio,
que corta o infinito na noite estelar,
e sigo as pegadas da paz do meu lar,
que é onde adormeço e desperto feliz;
se a mão que me afaga não faz cicatriz,
me puxa e me banha nas águas do mar!
______________________________

Nota do Blog:
O galope à beira-mar foi criado pelo repentista cearense José Pretinho. Conta-se que ele, após perder um duelo em martelo agalopado, foi retirar-se à beira-mar, e ali, vendo e ouvindo o marulho, imaginou o som de um galope. E fez os versos de onze sílabas (hendecassílabos), com a mesma estrutura de décima (estrofe de dez versos). Manteve o esquema rímico ABBAACCDDC usual no martelo agalopado. Uma exigência no galope à beira-mar é que o último verso sempre termine com a palavra "mar", no mínimo, sendo preferível terminar com "galope na beira do mar" (wikipedia)


Fonte:
Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (A Árvore de Natal)


Virou para trás os ponteiros do tempo. Os filhos, outra vez pequeninos… o marido, ainda cheio de vida. As festas, do fim do ano, pincelando um toque de Natal, em cada canto do casarão. Toque festivo, que atingia até mesmo as lixeiras, enfeitadas, não raro, com os cacos de aljôfar. Restos dos enfeites que os dedos afoitos deixavam escapar.

Meia noite… as meninas de camisola nova, pés descalços, lembravam anjos barrocos, a conduzir na concha das mãos, a imagem do Menino Deus, naquele sublime instante, introduzido na singeleza do presépio.

Revezavam-se os filhos. Cada ano, um era o escolhido para a honrosa missão de levar o Santo Menino até o seu leito de palhas. Com os demais, vinham os Reis Magos e os regalos.

Quatro filhos. Dois pares. Quase podia ouvir- lhes a voz afinada; coro angelical, que o tempo não conseguia apagar: "Noite Feliz!.. Noite de Paz!..."

As recordações lhe traziam de volta a imagem da árvore de Natal varrendo o chão com os galhos iluminados, enriquecidos de mimos! Uma lindeza! Lá no alto, a estrela esplendorosa, evocando aquela de Belém. Essa mesma estrela, tão usada, tinha agora em mãos e, surpreendentemente, guardava ainda resquícios do primitivo brilho. Material bom! Hoje, com pouco uso, tudo se desfazia irremediavelmente. Artimanhas do comércio, para favorecer o consumismo.

Tirou da caixa as relíquias de muitos Natais. Relíquias que o tempo se esforçava por destroçar e que ela defendia com máximo carinho. Uma verdadeira caixa de surpresas: — as guirlandas de papel laminado, as bolas de aljôfar, frágeis e multicoloridas; os castiçais minúsculos, com prendedores que os fixavam aos galhos, já em desuso, uma vez que as velinhas que os complementavam, eram agora substituídas, com vantagem, pelas lâmpadas pisca-pisca, mais práticas e mais alegres e que também ali estavam, em profusão. Os sinos, de todos os tamanhos, cobertos de purpurina prateada; sequer estava esquecido o indispensável pacote de algodão para lembrar os flocos de neve — costume tolo, ligado às origens. Tolo, sim, mas quem conseguiria imaginar um Natal sem esse toque sugestivo, ainda que tendenciosamente europeu? Ou sem a visão, também importada, do alegre e corado Papai Noel, barbas branquinhas, ainda que postiças, suando em bicas dentro da fantasia vermelha, anti-tropical? Aquele Pai Noel, sonho de todas as crianças, a sacudir as banhas no riso obrigatório, ao afagar as cabecinhas dos diabretes espremidos à sua volta, na disputa a confeitos e brinquedos. Sempre o espírito do Natal a escorregar do Presépio, para perder-se nesses descaminhos inevitáveis!

A caixa, uma vez vazia, deixava de alimentar lembranças. Na verdade, faltava o principal — a Árvore de Natal propriamente dita, que se esquecera de comprar. Tinha apenas os acessórios, que, sem os galhos do pinheiro, nada diziam.

Neste ano, a velha senhora não tivera estimulo nem entusiasmo algum que a levasse, como das vezes anteriores, à escolha de um arbusto apropriado. E para quê?! Os filhos, longe. Mais preocupados em sobreviver do que propriamente em viver. Não havia sapatos nem meias de crianças, à espera de presentes, ao pé do fogão ou da lareira artificial. Os regalos já haviam seguido, via postal, com zelosa antecedência e endereço certo. A recíproca também já lhe viera bater à porta, trazida pelo carteiro...

Tão bom, quando, coração em alvoroço, aguardava o toque de campainha de cada um. Cada filho tinha um jeito diferente de se anunciar. Era capaz de identificá-los todos. Tivera convites, sim, mas, aceitar um deles seria desprestigiar outros. Isto jamais faria!

Coração de mãe é coração de mãe, ama por igual, sem se dar o direito de escolhas. E, também, a coragem para as grandes viagens lhe fugia pelo fôlego curto, que coração materno também se desgasta de tanto amar. Resolvera ficar.

O primeiro Natal em que estaria só. Absolutamente só! Tão só quanto Deus deve sentir-Se, mercê da distância em que, na maioria das vezes, O colocam os desmandos dos filhos.

Devagarinho, como quem se deleita em criar alguma coisa, enrolou nos braços as guirlandas prateadas. Enganchou, aqui e ali, as mais belas bolas coloridas. Olhou-se no espelho, que duplicava as dimensões da sala. Sorriu, prendendo aos cabelos nevados a linda estrela, já de brilho baço como seus próprios olhos. Espiralou ao redor do corpo a fieira de lâmpadas coloridas. Deixou que os braços ornados pendessem ao longo da silhueta, levemente separados, imitando a curvatura dos galhos do pinheiro. Sentiu-se uma Árvore de Natal perfeita! Sorriu para a imagem que o espelho refletia. Se o Santo de Assis criara o primeiro presépio vivo, sem qualquer pretensão, ela animara, ou melhor, humanizara o primeiro pinheiro de Natal!

Deixou que o pranto lavasse mansamente os traços melancólicos que a solidão esboçara no cansaço do seu rosto.

Com extremo cuidado, ligou à tomada a fieira de lâmpadas adormecidas. Que as luzes completassem a sua arte improvisada.

Um estalo seco e as lampadazinhas multicoloridas esplenderam, por um segundo, com maior fulgor do que nunca! Apoteótico segundo, antes de se espatifarem, irremediavelmente, quando tombou ao chão, fulminada, aquela humana Árvore de Natal!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 115


Francisco José Pessoa (Mucuripe)


São 4h30... o sol bocejando se espreguiça com um ar de quem está indisposto para a lida. O mar do Mucuripe espelha aquele parto divino. Sob sinais de cruz e Ave-Marias mal recitadas, após uma última cusparada em terra, que traz o ranço do fumo mastigado, sai o jangadeiro a peitar pequenas ondas que teimam uma após outra roçar-se nas areias mornas daquela praia já cantada e encantada em prosa e verso.

O destino, como todo destino que se preza, só Deus sabe...

Na proa, viaja a incerteza da volta, quando o pensamento do caboclo de tez queimada se volta para a terra e vê o acenamento do filho único escanchado no colo da mãe que ora em silêncio, entregando a Deus o leme daquela teimosa e valente embarcação.

Acompanhando o caminhar do sol, sentindo-o no mudar da própria sombra que se desenha no terreiro do quintal de casa, a mulher do jangadeiro rastreia entre pensamentos sãos e orações a frágil jangada domada por um braço forte,

Depois que o sol se põe a pino e inicia seu caminho de descanso pro lado de cá da terra, a mulher esperançosa espera o marido que cedo partiu, apruma o olhar pra risca, e o pensar pra bem longe... lá pra trás dela.

Tinge-se o céu de vermelho pálido. O sol, acanhado, com cara de sono, deixa uns poucos rastros de sua luz como para que alumiar o caminho daquela jangada teimosa que, de volta, roça o peito na areia da praia encantada trazendo consigo o destino incerto da partida.

Corpos se entrelaçam à beira-mar. O chapéu do pescador sai-lhe da cabeça num respeitoso agradecimento a Deus. A pescaria rendeu e o pirão escaldado espera o cangulo para a alegria dos dois.

De braços dados, o casal segue no rumo da tapera onde o filho dorme a sono solto. A espera foi cansativa.

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) 11


Glosando A. A. de Assis

VOCÊ E SEU BRILHO!

MOTE:

Prometi-lhe, amada minha,
mil estrelas, as mais belas.
Bobagem... Você sozinha
brilha mais que todas elas!


GLOSA:
Prometi-lhe, amada minha,
meu amor, todo, lhe dar,
fazê-la a minha rainha,
para todo o sempre a amar!

Procurei, pelo infinito,
mil estrelas, as mais belas,
(e um cometa bem bonito)
pra ver você, junto delas!

Meu coração, adivinha!
Para que buscar estrelas?
Bobagem... Você sozinha
me faz, todas elas, vê-las!

Pois seu brilho é especial,
deixa luzentes sequelas,
e no espaço sideral,
brilha mais que todas elas!

Glosando Abel B. Pereira

ME ENCONTRO E ME PERCO…


MOTE:
Eu me encontro na emoção
dos meus versos - sou feliz!
Mas, me perco na canção
de versos que eu nunca fiz.


GLOSA:
Eu me encontro na emoção

sempre que estou escrevendo
e vibra o meu coração,
ver alguém, meus versos, lendo!

Navego no mar aberto
dos meus versos - sou feliz!
Pois sinto, serão, decerto
os versos que um dia quis!

Eles dão satisfação
e me trazem alegrias,
mas, me perco na canção
de outras tantas nostalgias!

No meio, então, dessa dor
achando, dela, a raiz,
chego a sentir o sabor
de versos que eu nunca fiz.

Glosando Antonio Carlos Teixeira Pinto

CAI A TARDE


MOTE:
Cai a tarde! Que tristeza!
soluça o mar… E o farol
parece uma vela acesa,
ante a agonia do Sol!


GLOSA:
Cai a tarde! Que tristeza!

se aproxima a escuridão
e o Sol, com sua beleza,
não vejo brilhar mais, não!

Neste momento Indeciso
soluça o mar… E o farol
sabe que agora é preciso
iluminar o arrebol!

Unindo-se à natureza,
o farol, numa magia,
parece uma vela acesa,
numa chama de alegria!

Segue iluminando o mar
deixa ver o caracol
querendo ao mar agradar,
ante a agonia do Sol!

Glosando Antonio Manoel Abreu Sardenberg

VOU CAMINHANDO

MOTE:
Pelas estradas da vida
vou caminhando sem fim,
em busca de uma guarida,
e alguém que goste de mim!

GLOSA:
Pelas estradas da vida
eu continuo à procura
dessa emoção tão querida,
que chamamos de ternura!

Sigo só, na escuridão,
vou caminhando sem fim,
e o meu pobre coração
já nem quer bater, assim!!

Por isso, a minha partida;
parto em busca de carinho,
em busca de uma guarida,
de uma sombra em meu caminho!

E essa busca que angustia,
quero que termine, enfim:
Quero encontrar a alegria
e alguém que goste de mim!

Glosando Arlindo Tadeu Hagen

FICA

MOTE:
Eu te imploro, por favor
não insistas nesse adeus,
se não for por meu amor,
fica pelo amor de Deus!


GLOSA:
Eu te imploro, por favor
ouve esta voz que te fala,
que sobrevêm do interior
de minha alma que não cala!

Meu amor te peço, agora,
não insistas nesse adeus,
o meu coração te adora,
quero ser os sonhos teus!

Se por meu amor não for,
se não ligares pra mim,
se não for por meu amor,
que seja por outro fim!

Escuta, sente a emoção,
dos sentidos brados meus,
te imploro de coração:
Fica pelo amor de Deus!

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXXIV. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós.  2007.

Nilto Maciel (Impossível Contar a História de Palma)


Ao regressar de Palma, passou Martinando dias e dias aborrecido. Não o incomodava ter visto os primos ainda ameninados e o tio quase igual a antes, como sempre tinha sido. Admirava-se da prodigalidade mansa daqueles adolescentes, como se o pai fosse muito rico. Todo o povo sabia da avareza do velho Augusto: até dormia na bodega, com medo de ser roubado. Nunca permitiu a presença demorada dos filhos no pequeno estabelecimento. Não fossem chupar os bombons expostos à venda. Tudo medido e pesado, para que pudessem estudar e ser gente na vida. Talvez doutores.

Depois de satisfazer a ânsia de redescoberta da terra natal, Martinando procurou o tio. Sobre a mesinha, onde guardava o dinheiro, duas carteiras de cigarro abertas, como se o tio não tivesse deixado de fumar, depois de ter ido parar num hospital, acometido pela bronquite secular. “Vim só comprar cigarro”, apressou-se a dizer, abanando a cédula na direção do comerciante.

Na verdade, Martinando se sentia cansado de tanto andar. Preferia descansar os pés, embora para ouvir as perguntas de sempre: “Como vai o Carlos? Você já se formou? E a comadre Clarice?” Havia andado muito, subindo e descendo ladeiras, no meio dos matos, percorrendo as velhas ruas, onde brincara de bola-de-meia. Tudo diferente do que tinha imaginado. Parecia uma terra estranha, tantos montes, tantos rios, tanta floresta. Nunca um passeio por aqueles campos. Sempre entre as paredes das casas da cidade. Quando muito, antes de se mudar para a capital, pequenas viagens aos sítios de parentes e aderentes situados do lado direito de quem entrava na cidade. Via tudo com olhos novos, com interesse de pesquisador. Como um médico legista diante do cadáver da própria mãe. Não, não uma visão assim tão trágica. Sentia até umas pontadas de nativismo nos olhos. Os primos nunca haviam saído de lá e faziam papel de cicerones. Davam indicações, explicavam nomes e apelidos, sérios e preocupados em servir ao primo viajado.

Martinando encontrou o livro por acaso. Porque esperava colher informações sobre a história de Palma nas pessoas mais velhas e nas construções antigas. Acompanhado de alguns primos, vasculhou grotas para saber os nomes dos sítios, dos rios e das árvores.  Depois dispensou a companhia deles e andou só pela cidade. Ora, conhecia Palma tanto quanto eles. Diante de cada prédio de aparência antiga, sobrados e casarões, parava, olhos de turista, caderno e caneta à mão.

Da fachada de um sobrado copiou o ano de 1912; na parede da frente de um casarão leu a inscrição “Solar do Capitão Pedro Vasconcelos – 1915”; e assim por diante. Aquelas informações serviriam para contar parte da história de Palma. Ultimamente não parava de sonhar com a velha cidade. Agora acreditava nos sonhos. Porque os sonhos não surgiam do acaso, mas de uma exigência objetiva do intelecto. Ora, como sonhar com aqueles prédios e aquelas inscrições, se seu intelecto não exigisse a história de Palma?

Cansado de procurar inscrições, entrou numa bodega, à toa, como poderia ter ficado num banco de praça. O bodegueiro não lhe parecia estranho, como a maioria das pessoas da cidade. Porém, não lhe sabia o nome. Aquele rosto envelhecido habitava a memória de Martinando. Aborreceu-se de novo. Não, não se sentia aborrecido com o incidente público provocado pelo bodegueiro ao avistar Caetano e gritar: “Diga a Madalena que venha pagar os quarenta cruzeiros que me deve.” Apenas desapontado. O comerciante teria feito aquilo para insultar toda a sua família. Cobrar aos gritos uma continha de nada, ora essa! Como se gritasse: “Olhe, sua família, tão numerosa e tão conceituada, compra fiado e não paga porque não pode.”

Caetano parou e se voltou para dizer: “Mamãe não tem dinheiro nenhum.” Talvez até quisesse dar melhores explicações, mas, vendo o primo, continuou a caminhada. “Então diga a ela que arranje dinheiro hoje à noite com os machos.”

Martinando teve ímpetos de se retirar e abandonar o livro. No entanto, continuou a acariciá-lo, folheá-lo, desejá-lo. Onde encontraria aquela obra raríssima, senão ali? Permaneceu. E era a lembrança desse incidente que o aborrecia. Por que não comprou o livro? Tivesse perdido a cerimônia, pedido dinheiro emprestado ao tio, e pronto. Um livro velho destinado a enrolar sabão e fumo numa bodega de interior, transformado em raridade de antiquário! E se tivesse roubado o objeto? Ora, o nome da família iria para onde com mais essa? Por que não pediu o livro ao comerciante, se se tratava apenas de papel para enrolar sabão?

Martinando se aborrecia com o destino. Por que parou naquela bodega e não noutra? Ou em todas havia livros importantes sobre o balcão, destinados a embrulhar sabão, fumo?

Pelo hábito de querer saber de que tratam os livros, folheou aquele pedaço da história de Palma, sem saber como se comportar diante de tamanho achado. Aquele livro teria respostas a todas as suas indagações históricas. Desde os primórdios de Palma. A aldeia indígena transformada em vila, depois em cidade. Tudo em detalhes. A primeira cabana, a primeira capela, o primeiro sobrado. “É para vender?” Não devia ter demonstrado tanto interesse pelo livro. O papel velho virou mercadoria de valor. Surgia o ato mercantil. “Oitenta cruzeiros. É o último exemplar.”

Numa foto, a Praça da Matriz vista de longe e do alto. Talvez de outra igreja ou de um avião. Formando um triângulo, viam-se três igrejas. Martinando não se lembrava da existência de duas delas. “Demoliram estas duas, ficou só a matriz,” explicou o bodegueiro. “Livro raro. Toda a história de Palma.”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 114



Rachel de Queiroz (Os Bondes)

    

Pode ser fantasia, papel leva tudo, diz o povo, mas das gentis novidades que os jornais prometem por obra do novo Prefeito do Rio, a que mais me entusiasma será a volta dos bondes, imagina, os bondes. Nem acredito, a tanto não chegam as minhas veleidades. Bonde circulando pela rua, a gente esperando no poste de listra branca, escalando o alto estribo, instalando-se no velho banco de madeira, abrindo o jornal e deixando o motorneiro correr, o vento nos banhando o rosto... E o dito motorneiro badalando na sua campa delém-delém! E o condutor tilintando os níqueis no nosso nariz distraído, faz favor! — e marcando as passagens na caixa sonora do teto, e a gente puxando a sineta para descer e os pingentes circunavegando os carros — não, não ouso acreditar. Bonde, o mais civilizado veículo concebido pela técnica, bonde que não esquenta, não queima óleo, não vomita fumaça, não buzina, não sai do caminho, não ultrapassa os outros, não abalroa, não agride, não vira em canal, não despenca de viaduto, não caça pedestre, não fura pneu, não quebra barra de direção, não dá tranco para acomodar a carga humana, não depende de um motorista sofrendo de psicotécnica, mas de um motorneiro pachorrento, bonde, ah, bonde, não sei o que diga em teu louvor, já que, plagiando Manuel Bandeira, por mais que te louvemos nunca te louvaremos bem!

Sim, sei que são sonhos. Mas como para Deus nada é impossível, por que não um milagre? Um anjo pode inspirar o Prefeito e ele começar, tentativamente, pondo bondinhos a correr pela periferia da cidade, subúrbios, ilhas, esses lugares cariocas mais pacíficos. Na Ilha do Governador, por exemplo, de onde tiraram os bondes foi um crime, com aquelas ruas estreitíssimas à beira- mar, onde só o bonde, preso ao trilho, circulava por elas sem risco. Depois dos ônibus, é só verem as estatísticas, morre lá mais gente atropelada do que de assalto.

E a experiência dando certo em Campo Grande, Santa Cruz — os felizardos! por que não ousar uma tentativa pelo Leblon, talvez um circular pela Lagoa, seria muito turístico. Ou, ainda melhor, uma linha Leblon-Arpoador, ao longo da praia, de onde seriam expulsos os automóveis; nos bondes, os banhistas poderiam circular até de calção molhado — devolvendo-se ao uso a venerável instituição do taioba.

Falei em taioba. Alguém já pensou que, depois de extintos os bondes de segunda classe, não existe mais maneira alguma de pobre carregar seus fardos — lavadeira a sua trouxa, mascate a sua mala, vassoureiro as suas vassouras, verdureiro a sua cesta? Que foi que botaram em substituição do bonde taioba? Nada, claro. Quem pôde, comprou a sua bicicleta ou triciclo para atravancar ainda mais o tráfego. Pobre cada dia tem menos vez.

Nos tempos de eu mocinha, em Fortaleza, era de bonde que se namorava. O primeiro sinal de interesse que o rapaz dava à moça era pagar a passagem dela. Se ela aceitava, estava começado o namoro e o galã tinha direito de vir sentar-se ao seu lado, ou pendurar no balaústre, junto, se ela ia na ponta do banco. Menina namoradeira escolhia sempre a ponta do banco, para facilitar.

Em Belo Horizonte, no bonde que, do Bar do Ponto, subia a Rua da Bahia, quando o condutor ficava quieto lá atrás, já se sabia: era o Senador Melo Viana que vinha naquele bonde e pagava a lotação inteira. Todos se viravam em procura do perfil severo do senador que lia o seu jornal; de um lado e de outro pipocavam discretos agradecimentos mineiros e o senador se mantinha impassível embora, naturalmente, gratificadíssimo.

As moças da Tijuca aqui no Rio, que vinham trabalhar na cidade, bordavam no trajeto de bonde grande parte do seu enxoval; muita velha senhora tijucana, hoje em dia, há de lembrar-se disso. As de Ipanema não sei, nunca me contaram. Mas todas essas galanterias se acabaram. Hoje, em transporte coletivo, só se escuta palavrão, resmungos e ranger de dentes.

Então, ante a dura realidade, ante os dinossauros assassinos disparados pelo asfalto, deixem-me sonhar com os bondes. Nesta cidade feroz, seria cada bonde uma ilha de segurança, de amável fraternidade, sempre cabia mais um! ai, saudades.

Nosso reino por um bonde!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

A. A. de Assis (Poemas Diversos) 2


VERSO MORTO

Aguardo o nascimento de um verso...
Mas o verso não sai,
Está vivo
chorando
na ponta de meus dedos
ansioso de luz.
Mas o verso não sai.
Meus dedos o prendem.
Egoístas.
Covardes,
Querem ficar com o meu verso
que se demorou tanto a gerar.
O papel espera.
A máquina à postos.
As teclas em linha.
Mas o verso não sai.
os dedos o prendem.
Egoístas.
Covardes.
Um verso tão pequenino.
Um nome apenas.
E os dedos o prendem.
E o verso não sai.
Morre no ventre da inspiração.
Dedos sem alma.
Egoístas.
Covardes.
Pobre verso...
Nunca mais gerarei outro igual...

TELEFONE

Alô, meu bem… é você?
Oh! Meu amor... há quanto tempo!
Sim… sim…mas com muita saudade…
… você nem imagina…

Tudo me trazendo lembranças suas:
as músicas…
A paisagem…
as noites alegres…
e o seu rostinho teimoso
levantando-se na fumaça
nascida de meu cigarro…

Anhan… em tudo, você.

Oh! meu amor… foi mesmo?
Não acredito… seria muita coincidência…
… está bem… está bem…

Hoje à noite… espere-me à janela,
vestida de branco…
e use aquele perfume
do primeiro dia de nosso amor…
Até logo, querida… outro para você…
… de estalar…

INVÍDIA

Tenho inveja daquela estrelinha
que pisca de longe
num buraquinho furado no céu.

Quisera ser como aquela estrelinha
que vive distante
sem ouvir a presença do mundo.

Esconder-me entre as outras estrelinhas
que bailam contentes
na pista feiticeira do infinito.

Brincar com as outras estrelinhas
que se namoram
nos segredos impenetráveis do universo.

Tenho inveja daquela estrelinha
que pisca de longe
num buraquinho furado no céu.
Que vive
e namora
e que baila
com muitas outras estrelinhas
na pista feiticeira do infinito…

UBINAM *

Fui buscar-te
na minha saudade
e encontrei somente o vazio.

Nos meus sonhos:
nem lá te encontrei,
que até dos meus sonhos fugiste.

Fui buscar-te
em noites de estrelas
e a noite escondeu-me o teu rosto.

Fui buscar-te nas madrugadas
e nas tardes auriluzentes.

… Não estavas na fantasia,
tampouco nas ilusões…

Fugiste,
levando
contigo
teu beijo,
teus olhos,
levando
tudo.

Fugiste,
deixando
comigo
saudade,
tristeza,
e um verso
mudo.
___________________
Nota do poeta:
* Ubinam – é uma expressão adverbial em latim. Significa "onde está?"


ALUCINAÇÃO

Um rosto vago
substancia-se
na intimidade do meu subconsciente.

Caminha ao encontro do meu beijo…
fala… ouço-lhe perfeitamente a voz…
abraça-me…
dá-me outro beijo… mais longo… mais quente…

Depois
a pouquinho e pouquinho
abstrai-se
vagamente
deixando um desejo insatisfeito
na intimidade do meu subconsciente…

SERENATA

Neblina densa
envolve um poema
nos segredos da madrugada.

Vozes do vento
quentes
confusas
sopram canções
que se perdem na serenata.

Dois vultos passeiam na praia:
mãos entrelaçadas
cabelos soltos ao beijo da brisa
tecidos leves
alvíssimos
voando…
quatro pés morenos machucando a areia
compondo os versos de um poema
feito de vozes e corpos
que cantam e dançam nos segredos da madrugada.

Uma onda egoísta
sobe à praia…
… recolhe o poema…
… afoga-o…

Fonte:
A. A. de Assis. Robson (Robson 60 anos 1959 – 2019). 2. ed. Maringá/PR: A.R. Publisher, 2019.
Livro entregue pelo autor no lançamento da edição do livro, em 8 de novembro de 2019, na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá)