sexta-feira, 19 de junho de 2020

Gustavo Barroso (O Batizado)


Entre as várias anedotas de caráter regionalista, que correm pelo sertão, ouvi, quando menino, centenas de vezes a seguinte:

Um vaqueiro foi à cidade de Quixeramobim, batizar uma filha de meses. Quando o padre lhe perguntou, junto à pia, qual o nome da menina, respondeu sem pestanejar, diante do espanto da assistência:

- Onça!

O sacerdote sacudiu a cabeça, pôs-lhe carinhosamente a mão no ombro, e disse-lhe que aquele nome era de um bicho feroz e não ficava bem numa criança, que, quando ficasse moça, seria alvo de risotas e chalaças, por causa do seu apelido.

- Mas eu quero! insistiu o vaqueiro.

O religioso fez outras considerações, a fim de demovê-lo, e terminou perguntando:

- Já viu alguém com nome de fera?

O matuto retorquiu, embatucando-o:

- E o Santo Padre não se chama Leão? Por que minha filha não se pode chamar Onça?

Esta historieta, que parece autóctone, é simplesmente a variante de um reconto peninsular europeu. Pode-se encontrá-la em outras regiões da América e em outra língua. Eu a li no curioso livro do grande escritor peruano Ricardo Palma - Mis últimas tradiciones:

"Tratava-se de cristianizar a um menino, e antes de leva-lo ao batismo, o cura apontava, na sacristia, os dados que consignaria mais tarde no livro paroquial.

- Que nome poremos ao menino?

- Por mim - contestou o pai, - ponha-lhe você Tigre.

- Não pode ser - arguiu o pároco.

- Pois então, ponha-lhe você Búfalo ou Rinoceronte.

- Tampouco pode ser! Esses são nomes de animais e não de cristãos.

- Não enrole, padre! Como o Papa se chama Leão?"

Esse pequeno conto, europeu de nascença, deu, entretanto, origem a um que é a expressão mais perfeita do espírito sertanejo do Nordeste. Vejamo-lo:

Ao perguntar-lhe o padre que nome queria pôr ao filho, já nos braços da madrinha, ao pé da pia, um vaqueiro lhe respondeu:

- Não sei bem, não, senhor; mas desejava um nome grande e bonito, um nome de encher a boca.

- Alexandre? lembrou o vigário.

- Não, senhor.

- Napoleão?

- Não serve, não, senhor.

- Heliodoro?

- Também não serve, seu padre.

- Então que nome há de ser?

O vaqueiro hesitou instantes e, depois, torturando nas mãos a aba do chapéu:

- Seu vigário, eu quero um nome que encha a boca da gente, um nome, assim como este, que ouvi outro dia: Amancebado!

Fonte:
Gustavo Barroso. O sertão e o mundo. RJ: Livraria Leite Ribeiro, 1923.
Obs.: A parte do conto peruano na versão original no livro de Gustavo Barroso está em castelhano, versão para o português por José Feldman.

Lóla Prata (Poetrix)


Surgiu em 1999 com a publicação do livro TRIX- Poemetos Tropi-kais, de Goulart Gomes, premiado com Menção Especial pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores - RJ, em 2000.

Terceto com título, com no máximo 30 sílabas métricas, criado por Goulart Gomes, de Salvador BA, em 1999. Com título. Rimas opcionais.

Diz Ana Maria de Souza Mello:

- Dou a mão à palmatória, muitos dos meus pretensos haicais são na verdade poetrix. Gosto de títulos, de rimas, de metáforas e retratos urbanos, encaixa muito bem no conceito de poetrix.

No poetrix as metáforas estão presentes e o poetrixta, transmite uma mensagem o mais completa possível, com o menor número de palavras.

Para mim poetrix é a alma, o coração, a essência de um poema grandão. Um poema que o poeta não escreveu e talvez nunca escreverá, mas se quisesse diria tudo girando em torno daquele terceto. Quando leio qualquer poema, o significado posso dizer em um poetrix.

Bom, todos os iniciantes em qualquer atividade cometem erros e com eles evoluem; não estou livre, assim apresento meus primeiros poetrix e aconselho; não tema, faça os seus.


Ana Maria de Souza Mello
CONSOLO

tenha certeza
as dificuldades da vida
serão tua fortaleza
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
JURAMENTO

na saúde e
na doença, ou até
a primeira desavença
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
BEIJO

beijo molhado
paixão e loucura
de um coração enamorado
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
ROMANCE ACABADO

beijo distraído
cumpre a rotina
de um amor perdido
- - - - - –

Ana Maria de Souza Mello
CASAMENTO

a aliança apertada
no dedo mostra
uma imagem na alma calada
- - - - - –

Lóla Prata
FERMENTO

Levede a alma o que vale a pena
e torne leve como pena
a pena de abandonar esta vida.
- - - - - –

Lóla Prata
SERENIDADE

Navego no silêncio dos corpos
sobre as ondas de desamor
e nas marolas de esperança.
- - - - - –

Lóla Prata
POESIA I

O jogral se inflama
e a lágrima se derrama
quando o coração derrete.
- - - - - –

Lóla Prata
MIGUEL

Um amado trovador
de verdes olhos faiscantes
salpica flores dentro de mim...
- - - - - –

Goulart Gomes
A VIDA É BELA

assim me diz o destino:
antes viver, velho
que morrer, menino
- - - - - –

Goulart Gomes
DOIS PRA LÁ

na pista ou na cozinha
mulheres bonitas
não dançam sozinhas
- - - - - –

Goulart Gomes
CISMA NO PARAÍSO

entre um e outro escarro:
– a muié é clone do home?
– o home é clone do barro?
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
VINICIUS

que seja infinito
a gota que nos lava
o eco daquele gemido
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
CECÍLIA

nem alegre nem triste: rosa
o verso que nos sustenta
a poesia resiste, e a prosa
- - - - - –

Goulart Gomes
POETRIX AOS MESTRES:
AUGUSTO

toma poeta, esta caneta, e corta,
que o pergaminho sangra azul;
nossa arte é nossa aorta
- - - - - –

Goulart Gomes
DE BAIXO

apaguem o dragão
calem a esfinge
o que vem de baixo, atinge
- - - - - –

Álvaro Posselt
PURIFICAÇÃO

A vida tem essa pressa
Mesmo sem pecar
a gente se confessa
- - - - - –

Álvaro Posselt
PORTABILIDADE

A vida é duradoura
Pra falar com Deus
só com outra operadora
- - - - - –

Álvaro Posselt
UM TERÇO DE CULPA

com prosa não me meto
quando quero confessar
eu rezo um terceto

Fontes:
Lóla Prata. E eu sei fazer versos? Bragança Paulista/SP: ABR, 2011.
Poetrix de Goulart Gomes obtido em: Goulart Gomes. Minimal. Salvador/BA: Copygraf, 2007.
Poetrix de Álvaro Posselt obtido em: Goulart Gomes (org.). 501 Poetrix para ler antes do amanhecer. Lauro de Freitas/BA: Livro.com, 2011.

Os três livros foram enviados pelos respectivos autores.

Astúria Vasconcelos (Vinte Minutos)


Com a semana lotada, conseguiu vinte minutos para ir ao supermercado, no início da noite de sexta, no fim de semana do dia dos pais. Teve dificuldade para encontrar uma vaga que não fosse no fim do mundo. Para conseguir um carrinho de andar duplo, dos pequenos, esboçou rosnar a uma mulher com olheiras iguais às suas.

Em frente a uma pilha de pepinos, enxergou a fila do pão, maior que a de um show de rock internacional, porém com gente que não sorria nem estava com sua turma de amigos. Desistiu de encarar, foi aos pães de sanduíche industrializados, enriquecidos com ferro e zero por cento de adição dessas gorduras que matam.

Passou reto pelo freezer de bebidas geladas e desviou perigosamente dos que portavam sacos de carvão e bandejas de carne. Tomou o rumo oposto aos carrinhos com bebês e suas mães jovens, com a pele e a cintura intacta, e seus pais igualmente lindos, de barba estilosa e desenhada, plantados no meio do corredor, com todo o tempo do mundo. Fingiu não conhecer a colega de trabalho, pois além do assunto infame, não podia atrasar.

O pit stop final, no corredor de guloseimas, foi o que a intrigou. Duas funcionárias contavam a vida uma à outra, a revelia da urgência dos clientes e do patrão. Tentou alcançar a bolacha preferida do filho, com recheio de chocolate, mas o carrinho de abastecimento onde as duas se apoiavam, sorridentes, estava estacionado em frente. Empurrou, pediu ajuda à funcionária, que não a ouviu, ocupada relatando o novo amor.

- Ele me ajuda a criar, busca na escolinha, dá banho, brinca com ele, meu filho até chama de pai.

- Que bacana, tem que ser assim mesmo, afinal pai é quem cria, né.

Ficou com inveja daquelas duas, primeiro por estarem calmas no olho do furacão. Segundo, por uma delas ter um bom companheiro, algo que ela própria não conseguia por mais que tentasse. Sem refletir, invadiu a conversa:

- Se o pai é quem cria, então geralmente o pai é a mãe.

Recebeu o sorriso cúmplice das funcionárias e foi-se, decidida, em prol da dieta dos filhos, sem o tal biscoito, para a fila do caixa. Pois se o pai é a mãe, e se a mãe tem que ser também o pai, acabou-se hoje mesmo o lanche com bolacha recheada, nada saudável e fora dos limites do seu orçamento doméstico de mãe solo. Foi a única a sorrir durante a demora da fila, seu dia dos pães (pai+mãe) seria fenomenal.

Fonte:
Ebook Dia dos Pais. Editora Metamorfose. Disponível em Escrita Criativa

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 296


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Baile Pé no Chão


Sempre que revejo algum daqueles filmões que mostram como era a vida no velho oeste norte-americano, vem-me à memória a Maringá pioneira das duas primeiras décadas – anos 1940 e 1950. Pouco mais que um vilarejo cercado de matas e cafezais por todos os lados. Gente vinda das mais diferentes origens, misturando costumes, sotaques, projetos de vida.

Naquele cenário rústico viviam as primeiras esperançosas famílias da comunidade nascente. Mas o que faziam aqui os valentes desbravadores, além de dar duro na roça ou no comércio em busca de oportunidades para garantir o pé-de-meia?

Havia uns três cinemas que exibiam fitas novas cada noite, havia uma estação de rádio com animados programas de auditório, havia alguns bares e sorveterias.

Havia até onde dançar: o Aero Clube, um espaçoso salão de madeira, que ficava na Avenida São Paulo, ao lado do bosque que futuramente viria a ser o Parque do Ingá. Bem ali onde está hoje o supermercado Mufato Gourmet.

Tinha matinê dançante todo domingo à tarde e “baile oficial” uma vez por mês. A música era costumeiramente da orquestra do Penha ou do Britinho e seus Cometas, mas em ocasiões especiais, como os bailes de debutantes, vinha orquestra de fora, como a de Nélson de Tupã ou a de Severino Araújo, do Rio de Janeiro. As moças iam de vestido chique e os moços de terno e gravata, coisa fina. Os advogados promoviam ali o Baile do Rubi. As escolas as festas de formatura. Muitos dos primeiros casamentos entre jovens maringaenses resultaram do namoro iniciado ao som de um bolero dançado de rosto colado no velho e bom Aero.

O problema era quando chovia. Como não havia nenhuma rua asfaltada ou calçada na cidade e o barro era farto e grudento, homens e mulheres iam para o baile com os pés no chão, levando os sapatos numa sacola. Chegando ao clube, entravam por um portão lateral. No fundo do salão, junto às quadras de basquete e vôlei, havia um tanque comprido, onde todos lavavam os pés antes de colocar os calçados para entrar na pista de dança.

Nos dias secos era um pouco diferente. O pessoal chegava com os sapatos nos pés, mas levando na sola a poeira vermelha das ruas. Daí que várias vezes durante a noite o baile era interrompido para que os funcionários jogassem água no salão a fim de baixar o pó. O legal era que ninguém reclamava. Era o jeito de ser da vida pioneira e todo mundo se adaptava.

O Aero Clube e seu vizinho Grêmio dos Comerciários foram os pontos de encontro, festa e namoro da população local até a virada dos anos 1950 para a década de 1960. Nesses dois salões se reuniam democraticamente todas as faixas da sociedade. A mudança começou a partir da criação de outros clubes, mais modernos, mais completos, e por isso também mais caros: Maringá Clube, Country, Hípica, Olímpico. O pioneirismo acabou ali, dando lugar à formação de uma grande aglomeração urbana igual a tantas outras.

(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 11-6-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

IV Concurso de Trovas de São José dos Campos/SP (Trovas Premiadas)


HOMENAGEM A POETISA MARIA DIVA FONTES RICO

 

Língua Portuguesa – Tema: Violino



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VENCEDORES (por ordem alfabética)
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01.
EDMAR JAPIASSÚ MAIA
Miguel Pereira/RJ

Tons de violinos e de harpas,
solando nossas canções,
expelem do amor as farpas
que ferem os corações...
- - - - - -

02.
FLÁVIO LEVY
Campinas/SP

Só quando em meu ombro encostas
neste momento divino,
que ouço músicas compostas
por mestres do violino.
- - - - - -

03.
JAQUELINE MACHADO
Cachoeira do Sul/RS

O ressonar do violino,
nos anunciando o Natal,
é sinal que Deus-Menino,
vai levando todo o mal!
- - - - - -

04.
JORGE RIBEIRO MARQUES
Rio de Janeiro/RJ

Ao ouvir o teu violino
Perco o rumo  e a razão,
Suas cordas, bento destino,
Prendem forte o coração.
- - - - - -

O5.
JOSÉ ALMIR LOURES
Astolfo Dutra/MG

Da despedida da gente,
a lembrança que me resta,
é um violino plangente,
dizendo-me: - fim de festa.
- - - - - -

06.
JOSÉ MANUEL VELOSO GALVÃO
São Paulo/SP

Tuas cordas, dor sentida,
sei que choram, Violino...
Dor, em tons de despedida,
que há na pauta do Destino.
- - - - - -

07.
MARIA HELENA URURAHY CAMPOS DA FONSECA
Angra dos Reis/RJ

Tão longe, triste, soava
aquele som cristalino...
Era a saudade, chorava,
nas cordas do violino.
- - - - - -
                          
08.
MARÍLIA OLIVEIRA
Porto Alegre/RS

Tomba a árvore... Eis o impasse:
(quão singular seu destino)
seu corpo, ao morrer, renasce
no corpo de um violino.
- - - - - -

09.
MAX REIS
Belém/PA

Arco de crina o destino
nunca me fez a vontade.
Tira do meu violino
uma canção de saudade.
- - - - - –

10.
MESSIAS DA ROCHA
Juiz de Fora/MG

Num concerto imaginário,
o sabiá na alvorada
é um violino solitário
na orquestra da passarada.
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Idioma Espanhol – Tema: Violino

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VENCEDORES
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DELIA ESTHER FERNÁNDEZ CABO
Santa Lucía/Uruguay

El violín yace a la espera
de los brazos de María
que alzó en letras la bandera
del amor y la hidalguía.
- - - - - -


LIBIA BEATRIZ CARCIOFETTI
Santiago del Estero/Argentina

Cada cuerda del violín
es un pájaro que canta,
la leyenda es del crespín
que se ahoga en mi garganta...


FRANCISCO JAVIER LÓPEZ NARANJO
Apía, Risaralda/Colombia

El concierto de un violín,
cual la vida, ríe y llora.
Es canto de un serafín
o del caído que implora.
- - - - - -


VENANCIO CASTILLO
Caracas/Venezuela

Cuando vibran los sonidos
de tu mágico violín
acarician mis sentidos
en un éxtasis sin fin.
- - - - - –


SUSANA ANGÉLICA ORDEN
Buenos Aires/Argentina

El violín está tocando
la más bella melodía
y las almas van danzando,
al compás de su armonía.
- - - - - -


LUIS ENRIQUE FERNÁNDEZ RUIZ
Chiapas/México

Con mi traje de Arlequín
y un tricornio en la cabeza,
ejecutando un violín
elimino la tristeza.
- - - - - -


VICTORIO PEDRO CHA BANCHERO
Solís de Mataojo/Uruguay

Suena un violín armonioso
en el dulce atardecer;
hechicero  prodigioso,
colma mi alma de placer.
- - - - - -


SERGIO MEZA CARRASCO
Chillán/Chile

Orquesta la vida toca
el violín hace su entrada,
del universo es su boca
de los ángeles su espada.
- - - - - -


PASCUAL CLEMENTE TOLEDO
Chiapas/México

No temas, que sepa al fin
que busco discreto el llanto,
en las venas de un violín,
que asimila mi quebranto.
- - - - - -

10º
ADELINA DIAZ ROLDAN
Santiago del Estero/Argentina

En mi pago cuando suena
de un violín, la melodía,
la gente olvida su pena
¡ Y la troca en alegría !

Os nossos agradecimentos aos senhores trovadores, coordenadores e julgadores; sem ao quais, este concurso não teria o sucesso que teve.
Que Deus Continue a abençoar a nossa amizade.
Maria Inez Fontes Ricco (MIFORI)
Presidente da União Brasileira de Trovadores
Seção de São José dos Campos – SP – Brasil.

Fonte:
Resultado enviado por MIFORI

Aparecido Raimundo de Souza (Baile a Caráter)


O Valadares foi convidado pelos amigos da faculdade, para ir a um baile a fantasias que seria realizado naquele final de semana, numa pequena cidade perto de onde morava. Da sua casa, até o evento, precisaria pegar a rodovia e andar uns duzentos quilômetros. Assim pensando, achou por bem usar uma fantasia diferente, algo que, a seu modo de pensar, abafaria os colegas, fazendo com que todos olhassem para ele com um misto de admiração e espanto, notadamente as garotas. Na sexta-feira, foi ao shopping e alugou, numa loja especializada, algo sensacional. Uma fantasia do demônio. No dia aprazado, se vestiu, ou melhor, se fantasiou de diabo, com rabo, chifre, tridente, capa preta e tudo o que  tinha direito o senhor das profundezas. Totalmente transformado, pegou seu carro por volta das dezoito horas e se pôs a caminho.

Como não conhecia bem o pequeno patrimônio onde a sua turma realizava o folguedo, e depois de rodar uns oitenta quilômetros, chegou a um cruzamento onde, além da BR principal, duas outras estradas  secundárias se abriam para diferentes direções.  Sem placas de indicação, assinalando onde se achava, ou por qual trilho se embrenhar, resolveu pegar a via de terra à direita. Menos de meio quilômetro, avistou, algumas luzes, certamente de residências.  À medida que se aproximava, frenteou com uma torre de antena de  transmissão de telefonia. Sorriu, faceiro. De repente, estava indo para o lugar certo, ou até já houvesse chegado. Deu de cara com uma comunidade pequena, onde se contava uma dúzia de casas ladeadas por uma única avenida principal toda paralelepipedeada. Parou o carro e resolveu pedir informações.

Aconteceu que, naquela hora, quase oito e pouco da noite, todos os  habitantes assistiam a missa de domingo, com exceção de alguns gatos pingados,  a maioria moradores sem teto que dormiam na pracinha e no coreto em frente a uma pequena paróquia. Valadares abordou uns três ou quatro casaiszinhos de namorados, entretanto, nenhum (talvez levados pela sua aparência macabra) soube, ou se prestou a indicar o vilarejo que buscava. Não lhe restou alternativa, se vendo obrigado a ingressar na igreja. De longe, enquanto caminhava para ela, percebeu que a peça religiosa estava superlotada. De fato, não se enganara. Nos sábados e domingos, o vigário costumava sair da rotina, se estendendo um pouco além, no sermão, visando, claro, o desfecho da liturgia, quando os coroinhas passariam as sacolas para a recolha das ofertas, que se tornavam gordas em face de um número de fiéis que se deslocavam de localidades às mais diversas, e também dos sítios e fazendas que abundavam àquelas redondezas.

Entretanto, o inesperado tomou forma gigantesca. Quando Valadares adentrou pela porta principal, com suas botas rangendo de modo esquisito, os presentes, ao olharem para trás, deram com a visão asselvajada da besta dos quintos em carne e osso. Literalmente o pacato culto religioso se transformou num “reboliço dos infernos”. Como num abrir e fechar de olhos, caiu sobre a paz acolhedora daquelas pessoas humildes, uma espécie de premonição, como se Deus tivesse anunciado o fim do mundo num Apocalipse  abrupto.

Por conta desse imprevisto, uma parte da igreja saiu correndo pelas laterais, outra fração quebrou os vidros e pulou pelas janelas. Uma terceira corrente de amedrontados se debandou para a sacristia, fugindo pelos fundos. Mesmo norte, as beatas e os acólitos, não esperaram para ver o que viria pela frente. Igualmente tomadas pôr idêntico pânico, e no mais completo desespero, derrubaram, no furdunço, uma imagem de São Jorge com seu cavalo e tudo o que estava sendo restaurado dentro da sacristia. A barafunda se fez tão forte e pesada, tão densa e sem noção, que o dragão que se via fustigado pela lança do santo guerreiro, tratou de dar no pé, voltando, às pressas, para os confins da Capadócia.  

Loucura total. Em questão de segundos, meio do pandemônio, restou o padre rezando e tremendo pior que caniço ao sabor da ventania, metido dentro da casinha do confessionário. “O diabo”, sem entender bulhufas, se aproximou do aterrorizado sacerdote.  O sujeito, coitado, sem saída, se urinando todo e, aos prantos, as mãos em atitude de prece  e, claro, não vendo escapatória para a sua desdita, olhou para o “capiroto”  e implorou:

- Não me leve não, seu Capeta! Pelo amor do Pai Eterno... Tenha piedade desta pobre e humilde alma. Todo mundo aqui, o senhor pode perguntar... Todo mundo aqui está de prova que eu sou o único que defende o senhor.          

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 295


Antonio Roberto de Paula (Mary Ingá)



Minha cidade ficou chique. Está falando inglês, espanhol, italiano e alemão. Meu povo está nas colunas sociais, bate pernas para o exterior, dirige carros importados e toma banhos de mar e de lojas. Minha cidade está se achando. Meu povo sabe receber como ninguém, tem etiqueta, abre as portas das mansões nos domínios da zona sul para a leva de emergentes.

Minha cidade tem pose e posse. Minha cidade está podendo. A moda de São Paulo, Nova York e Paris já desfila por aqui. Ternos italianos, sapatos de cromo alemão, cuecas francesas, camisetas e tênis de marca. Vestidos das passarelas também esvoaçam por aqui. Meu povo tem poder, influência e dinheiro.

Meu povo faz lipo, peeling e aplicações de botox. Está magro, bonito e esticado. Meu povo está sarado e elegante. Meu povo é fino, tem classe, anda ereto. Tem cartão de crédito para comprar e .se tratar. Minha cidade é quase Dallas, como a colunável dizia depois de surtos américo-megalomaníacos.

E como o meu povo está comendo bem! O povo da minha cidade come diversificado e sofisticado. Aqui ou em qualquer outra capital. Rapidinho. É só entrar no avião. Vupt e meu povo já chegou em outro céu forrado de arranha-céus para comer, beber, dormir, festejar. Como meu povo circula com desenvoltura!

Como é progressista o meu povo! Minha cidade agora está no circuito dos grandes eventos artísticos e culturais. Minha cidade tem casas de espetáculos para o meu povo se divertir, adquirir conhecimento, ficar intelectualizado. Já não existe distância entre o meu povo e o resto do mundo. Minha cidade é antenadíssima com o planeta. Minha cidade, que já não é tão minha, que já foi tão nossa, entrou no ritmo da globalização.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

Fernando Sabino (O Dia da Caça)

 
A caçada estava marcada para as 7 horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos  de  pé, aguardando a chegada de seu Chico Caçador.

- Seu Chico vai trazer as espingardas?

- Vai. E cachorro também.

- Cachorro? Para que cachorro?

Olhei com pena meu companheiro de aventura:

- Onde você já viu caçada sem cachorro, rapaz?

-  Ele disse que hoje vai ser só passarinho.

- Passarinho para ele é codorna, macuco, essas coisas...

Em pouco chegava seu Chico, todo animado:

-  Tudo  pronto, meninos?

De pronto só tínhamos o corpo. Seu Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas  de caça e usava um gibão de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor  saracoteava um cachorro: - O melhor perdigueiro destas redondezas.

Na varanda da fazenda, seu Chico se pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:

- Vai haver codorna no almoço para a família toda - dizia, entusiasmado.

Despedimo-nos comovidos da família e partimos através do  pasto.

Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções, procurando impressionar:

- Parou, esticou o corpo, endureceu o rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!

- Seu Chico, nós não vamos passar perto daquele touro, vamos?

- Aquele touro é uma vaca.

A vaca levantou a cabeça e ficou a olhar-nos, na expectativa.

- Por via das dúvidas, me dá aí essa espingarda.

Fomos passando com jeito perto da vaca.

- Bom-dia, disse  eu.

- Buu - respondeu ela.

Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.

- É agora! Me dá aqui a espingarda!

- Fiquem quietos – comandou seu Chico, num sussurro.

- Que foi, seu Chico? Não estou vendo nada...

        Alguma coisa deslizou como um rato por entre o capim rasteiro, levantou voo espadanando as asas.

- Fogo! Fogo!

Paulo atirou na codorna, eu atirei em seu Chico.

- Cuidado!

- Que bicho é esse?

Seu Chico suspirou, resignado:

- Era uma codorna. Não tem importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo passou tinindo no meu ouvido.

No ar ficaram apenas duas fumacinhas. Fomos andando, seu Chico carregou  novamente  nossas  espingardas. Assim que o cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o ar.

- Vira isso pra lá!

- Agora! Fogo!

Mal tínhamos tempo de ver uma coisa escura desaparecer no céu, como um disco voador.

- Assim também não vai, seu Chico. Não dá tempo...

- Me dá aqui essa espingarda. Deixa eu matar a primeira para mostrar como é que é.

Andamos o dia todo pelo pasto. Nada de caça.

- Nem ao menos uma codorninha – suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu.

- Tem dia que eu mato mais de quinze macucos.

Andando, subindo morro, saltando cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. O estômago começou a doer.

- Seu Chico, o melhor é a gente desistir. Estamos com fome.

- Hoje no jantar vocês comem perdiz. Ou eu desisto de ser caçador.

Sua honra estava em jogo. A tarde avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado  num  toco  – desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão  do  pé. Resolvi também fazer uma parada para caçar  carrapatos.  Seu  Chico  desapareceu numa dobra do terreno. De repente, pum! pum! era o caçador solitário. Teria acertado desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por ela própria.

- Cuidado, Paulo! Preveni. - Olha a vaca.

Paulo se voltou para a vaca, que já ia passando ao largo:

- Buuu! fez com desprezo.

A vaca se deteve, voltou-se nos flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:

- Foge! Foge!

Atrás de nós a terra estremecia e a vaca bufava, escavando o chão com as patas.

- Seu Chico! Socorro!

Em poucos minutos e aos saltos, escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara para trás, entretida com uma touceira de capim.

- Devo ter falado algum palavrão em língua de vaca.

Em pouco regressava seu Chico, cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:

- Errei até em anu.

Procuramos consolá-lo:

- Um dia é da caça e outro do caçador, seu Chico.

Deixou conosco as espingardas e foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos moradores. Paulo e eu  nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos demos um grito:

- Epa! Que é aquilo?

- Você viu?

Uma caça, uma caça enorme! Um gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali, surgindo lá uma cegonha?

- Cegonha nada! Uma avestruz!

Saímos como loucos em perseguição da avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.

- Socorro! berrou a avestruz.

Deu um salto e abriu fuga com suas pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!

- Pum!

- Socorro!

E a ave pernalta fugia espavorida, escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.

Pum! - trovejava a espingarda.

- Não! Não! - implorava a avestruz na sua fuga, largando penas pelo caminho.

A noite veio surpreender-nos do outro lado do morro, já às portas  da  cidade. Voltamos  para a fazenda estropiados, roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos  com alegre expectativa:

- E então? Caçaram alguma coisa?

— Com seu Chico, nem um passarinho. Mas depois que ele foi embora quase  apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz  deste tamanho...

O dono da fazenda pôs as mãos na cabeça:

- Minha siriema, que eu mandei vir da Argentina!

Imagine o susto da coitadinha!

Embarafustamo-nos pela cozinha, completamente derrotados.

- Que vamos ter hoje no jantar? perguntei à cozinheira.

- Galinha ao molho pardo.

- Já matou?

- Não.

Empunhei a espingarda com decisão e voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:

- Não faça isso! O crime não compensa.

E propôs que na manhã seguinte saíssemos para caçar borboletas.

Fonte:
Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. RJ: Sabiá, 1972.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Varal de Trovas n. 294


Alaíde Lisboa (O Espelho, a Bota e a Rosa)


Era uma vez um rei que tinha uma filha muito bonita. Muitos príncipes queriam casar-se com aquela princesa tão bonita. Dentre os príncipes, três eram belos, bons e ricos.

O rei não sabia como escolher o melhor dos três para se casar com a filha. Resolveu, então propor aos príncipes que lhe trouxessem três presentes; e o príncipe que conseguisse trazer o presente de mais valor receberia a linda princesa em casamento.

Os três príncipes aceitaram a proposta do rei e partiram.

Na primeira encruzilhada, antes de tomarem rumo, combinaram que na mesma encruzilhada se encontrariam na volta de três meses depois.

O príncipe mais velho dirigiu-se a uma antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico? Quem quer comprar um espelho mágico?

O príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

—Qual o poder do espelho mágico?

O menino respondeu:

—O espelho mágico tem o poder de refletir tudo que se passa em qualquer parte do mundo.

O príncipe comprou o espelho e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O segundo príncipe dirigiu-se a outra antiga cidade e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica? Quem quer comprar uma bota mágica?

O segundo príncipe aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da bota mágica?

O menino respondeu:

— A bota mágica tem o poder de levar a pessoa ao lugar que quiser na hora em que quiser.

O segundo príncipe comprou a bota e pensou:

— Com esse presente eu me casarei com a linda princesa.

O príncipe mais novo dirigiu-se a outra cidade, antiga também, e, por cúmulo da sorte, logo na entrada viu e ouviu um menino gritando:

— Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica? Quem quer comprar uma rosa mágica?

O príncipe mais novo aproximou-se do menino e perguntou:

— Qual é o poder da rosa mágica?

O menino respondeu:

— Essa rosa tem o poder de dar vida a quem estiver morrendo.

O príncipe mais novo comprou a rosa mágica e pensou:

— Com essa rosa mágica eu me casarei com a linda princesa.

No dia marcado, os três príncipes se encontraram na encruzilhada.

O príncipe mais velho mostrou aos outros o espelho mágico, e, como desejassem todos ver a princesa distante, o espelho refletiu, na mesma hora, no quarto do palácio, a princesa deitada, como se estivesse para morrer.

O segundo príncipe mostrou a bota que fazia viagens longas rapidamente e convidou os outros a irem com ele para o palácio. Num instante os três príncipes chegaram ao palácio do rei e rodearam a cama da linda princesa quase morta.

O príncipe mais novo aproximou do rosto da princesa a rosa mágica. Ao sentir o perfume, a princesa abriu os olhos, sentou-se e sorriu como se nunca estivesse perto da morte.

Tornou-se difícil escolher o príncipe que deveria casar-se com a princesa. Sem o espelho, sem a bota e sem a rosa, a linda princesa não viveria.

O pai deixou, então, que a filha mesma escolhesse de acordo com o seu coração. E ela escolheu o príncipe mais novo, o príncipe da rosa.

Mas havia também no palácio mais duas lindas princesinhas, sobrinhas do rei. A mais velha casou-se com o príncipe mais velho. A segunda casou-se com o segundo príncipe.

E foi linda a festa dos três casamentos.

Fonte:
Alaíde Lisboa de Oliveira. Histórias que ouvi contar. SP: Editora Peirópolis. Enviado por Leandro Bertoldo disponível em Árvore das Letras

Alaíde Lisboa (1904 – 2006)

Alaíde Lisboa de Oliveira nasce em Lambari, Minas Gerais, em 22 de abril de 1904, filha do farmacêutico João de Almeida Lisboa, político atuante e de Maria Rita Vilhena Lisboa.
Teve 13 irmãos.

Na década de 10, conclui os estudos básicos em Lambari, para continuar sua formação em Campanha (MG). Retorna a Lambari, onde leciona no curso primário.

Em 1924, com a eleição de seu pai a deputado federal, a família muda-se para o Rio de Janeiro, onde realiza estudos da reforma do ensino que lá se processava, solicitada pelo governo de Minas. Alaíde e seus irmãos, especialmente os poetas Henriqueta e José Carlos, passam a frequentar a cena cultural do Rio dos anos 20, que tinha na literatura uma forte alavanca.

Em 1934, em Belo Horizonte, Alaíde diploma-se no Curso Geral da Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico da Secretaria da Educação e Saúde Pública de MG, embrião do futuro curso superior de Pedagogia. Em 1936, casa-se com José Lourenço de Oliveira, advogado, professor e escritor, com quem teve quatro filhos. De 1937 a 1957, leciona língua portuguesa. 

O ano de 1938 marca a estreia na literatura infantil com as primeiras edições dos clássicos "A Bonequinha Preta" e "O Bonequinho Doce".  Em 1939 ela lança seu primeiro livro didático, “A Poesia no Curso Primário”, em co-autoria com Marieta Leite e Zilá Frota.

Durante a década de 1940, Alaíde Lisboa elege-se presidente da Associação dos Professores Públicos de Minas Gerais. Em 1947 eleita primeira suplente na Câmara Municipal de Belo Horizonte, assumindo o cargo em 1949, tornando-se a primeira mulher a exercer a vereança em Minas Gerais, apenas 17 anos após a conquista do voto feminino. Jornalista mais intensa desde 1948, à frente do Suplemento infanto-juvenil  “O Diário do Pequeno Polegar”, do jornal “O Diário”, de Belo Horizonte. Nessa época, lança a “Cartilha brasileira para adultos e adolescentes”.

Em 1951, leciona Didática na graduação da Faculdade de Filosofia, depois Faculdade de Educação da UFMG. Em 1954 lança “Cirandinha”. Em 1957 conclui o Doutorado em Didática na Fafich/UFMG, assume a direção do Colégio de Aplicação (cargo exercido até 1971) e lança “Mimi Fugiu” e “Meu Coração”, e “Sugestões para divulgação do ensino primário no Brasil”, pela UFMG, além de traduzir e adaptar “Simbad, o Marujo”, para a coleção “As Mil e Uma Noites”.

Em 1959, ela obtém o primeiro lugar em concurso público de cátedra da Universidade de Minas Gerais, e exerce a cátedra de Didática Geral e Especial na Faculdade de Filosofia, depois Faculdade de Educação da UFMG.

Na década de 1960, torna-se representante da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em Minas Gerais e integra o Sindicato dos Jornalistas de Minas Gerais. Em 1967 lança “Poesia na Escola” (antologia de poemas com orientação pedagógica), e em 1970 é homenageada pelo Colégio de Aplicação da UFMG, que tanta contribuição recebeu da mestra no período em que ela esteve à frente da instituição.

Em 1971, Alaíde organiza e coordena o Mestrado em Educação da UFMG, e lança o livro didático “Comunicação em Prosa e Verso”. Passa a lecionar Metodologia do Ensino Superior na pós-graduação das faculdades de Educação e Medicina da UFMG. Em 1975, ela assume o cargo de vice-diretora da Faculdade de Educação da UFMG. Em 1973, publica a tradução de “Invenção Dirigida – O Mecanismo Psicológico da Invenção”, de Edouard Claparède, pela Faculdade de Educação da UFMG em comemoração ao centenário do autor. Em 1976, sua atuação pública é reconhecida pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, que concede à educadora o título de Cidadã Belo-Horizontina.

Em 1978, lança “Nova Didática”, e no ano seguinte recebe o título de Professora Emérita da Universidade Federal de Minas Gerais.

Na década de 80 lança “Edmar – esse menino vai longe” (1981) e “Gato que te quero gato” (1988), literatura infanto-juvenil; e tem re-editados “Ensino de língua e literatura” (1983), “Meu Coração” (1984) e “O Livro Didático” (1986).

Sua extensa e produtiva atuação como escritora, pedagoga, jornalista e política é bastante reconhecida durante essa década. Foram muitas as homenagens e condecorações, entre elas a Medalha do Mérito Educacional, ofertada pela Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais (1984), a Medalha Helena Antipoff, pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (1985), a Medalha Santos Dumont, pelo Governo do Estado de Minas Gerais (1986) e a Medalha de Honra da Inconfidência Mineira, pelo Governo de Minas Gerais.

Em 1986, Alaíde é eleita membro da Academia Municipalista de Letras, e em 1988 da Academia Feminina Mineira de Letras.

Aos quase 90 anos, continua sua produção pedagógica. Em 1991, lança “Da alfabetização ao gosto pela leitura” pela Imprensa Oficial de Belo Horizonte. Em 1996 é a vez de “Impressões de Leitura”, vencedor do prêmio “Crítica e Interpretação” da União Brasileira de Escritores (1997), e “José Lourenço de Oliveira – Educador”.

Tanta atividade desperta mais homenagens: a Secretaria de Estado da Educação a homenageia com a Placa do Encontro Central de Alfabetização; o Governo de Minas, com a medalha “Centenário do Palácio da Liberdade”, a Fundação AMAE para Educação e Cultura, com a comenda “Lúcia Casassanta”; e a Federação das Indústrias de Minas Gerais, com a medalha “SESI 50 anos / Categoria Cultural”.

Em 1995 vem a consagração à sua atividade intelectual com a entrada para a Academia Mineira de Letras. São apenas quatro mulheres em quase 170 cadeiras, uma delas ocupada no passado por sua irmã, a poeta Henriqueta Lisboa.

Abre o novo milênio com o lançamento de seu livro de memórias: “Se bem me lembro...”, e recebe novas homenagens: a Medalha “Gustavo Capanema – Centenário”, pelo Governo de Minas Gerais, e a Medalha “Coronel Fulgêncio de Souza Santos”, Grau Prata, pela União do Pessoal da Policia Militar de Minas Gerais. Em 2001, a Editora Lê, de Belo Horizonte, lança novas edições de “A Bonequinha Preta”, “Ciranda”, “Cirandinha”, “Como se fosse gente”, “O Bonequinho Doce” e “Outras Fábulas”.

Em 2004, a Editora Peirópolis, de São Paulo, lança “Era uma vez um abacateiro” e “Histórias que ouvi contar”, textos selecionados do livro “Meu Coração”.

O centenário de Alaíde Lisboa vem sendo celebrado pelas mais diversas entidades, entre faculdades, escolas, bibliotecas, academias de letras e casas legislativas. Muitas delas, como a Faculdade de Educação da UFMG e a Academia Mineira de Letras, contaram com a atuação direta de Alaíde em sua vida institucional, enquanto outras se inspiraram em sua produção.

Falece em 4 de novembro de 2006, em Belo Horizonte com 102 anos.

Fonte:
http://alaidelisboa.fae.ufmg.br/conteudo.htm

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) V


MERCADO DE POESIA

Letras em púrpura
lírica destilada
em riso e pranto,
sabor de fruta fresca
e cheiro de folhas ao vento.
Sobre o balcão
os poemas são essências
de uma linguagem perdida
de tinta em silêncio.
Não pulsam,
mas ardem
enquanto o olho do poeta
no canto do mercado
parece um punhal de pedra
esperando o comprador.
****************************************

POEMA PARA CELEBRAR A VIDA
 

Nossa vida é apenas uma temporada
que brota por acaso no meio do sol.
Brincar de viver, de amar,
de gozar as cores da paisagem e a música do dia,
as ilusões de palavras ao vento,
é o nosso destino, é o nosso direito.

Suavemente vamos vivendo
se sabemos as regras deste jogo rápido e misterioso
sem preocupações de verdades ou de mentiras infinitas,
porque a felicidade só aparece uma vez,
quando sem notá-la beijamos uma boca adorada
ou apertamos a mão do melhor companheiro
antes que o frio da noite escura apague tudo
o que foi belo, amado, presente
e parecia eterno.
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POESIA, ARCO-ÍRIS DE SENTIMENTOS

A poesia pode umedecer nossa boca
e renovar a promessa do primeiro beijo.

Uma linda aquarela
com um arco-íris no horizonte,
a cor do alvorecer
ou as folhas das árvores
dançando com a brisa
aos olhos de um amante,
sem poesia não podem
produzir emoção.

O arco-íris da poesia
tem a condição com a qual
tudo ganha mais vida,
assim como as gotas de orvalho,
o sorriso da manhã
e o azulado da noite.
****************************************

TRABALHO DE POETA

Estou em uma selva de nervos.
Dizem que o estresse
vem do trabalho excessivo,
vem de dormir a manhã inteira
e de levantar-me ao meio dia
descansada e triunfante
para viver a palavra
que se detém em outros lábios.

Mas, não. O trabalho do poeta
embora seja como
um poço sem fundo,
é também como um tango
bem ou mal cantado
que padece nos círculos espaciais.

Minha dor não vem do trabalho:
ao contrário, meu trabalho
vem da dor, do verso de pedra
que faz explodir o horror
enquanto espero a vida
começar outra vez.
****************************************

UMA UTOPIA, A PAZ

A paz, o ideal romântico
pelo qual o ser humano faz a guerra,
é o bem em oposição ao ódio.

É uma utopia a paz,
porque o ser humano
é mais demônio do que anjo
e levamos dentro de nosso ser
o desejo do triunfo e da glória.

Não há vencedor sem vencido,
nem triunfo sem derrota.
O nobre não existe sem o vilão,
nem a verdade sem a imaginação.

Se a guerra, a tormenta e o ódio
são clamores de vingança e agonia,
a paz só chega com a liberdade,
o silêncio e a morte.

Enquanto os mortos descansam em sua paz,
os insaciáveis vencedores seguem seu caminho
em busca de outra avidez,
de mais sangue e de outra guerra.
- - - - - -
Fonte:
Poemas enviados pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Público Seleto)


Rego Penteado da Silva Buscapé tocou a campainha e esperou que a moça loira de olhos verdes trajada elegantemente numa blusa laranja sem mangas e sainha azul, curtinha (que divisava através da porta envidraçada) se levantasse da mesinha da recepção e acorresse atendê-lo. Tímido até dizer chega, em face de ser zarolho de nascença, não sabia explicar como chegara até ali e, pior, onde arranjara uma boa dose de coragem para enfrentar a jovem que sorria, os dentes brancos e bonitos contrastando com uns lábios maravilhosos. Sem falar na mãozinha delicada indicando, mesureira, um lugar na poltrona enorme de couro vermelho vinho:

— Bom dia, cavalheiro. Meu nome é Flávia. Queira entrar e se acomodar, por gentileza.

Ele obedeceu um pouco desconcertado e sem graça. Mas se manteve firme. Não podia simplesmente dar meia volta e correr:

— Pois não, em que posso lhe ajudar?

— Dona Flávia, é sobre o anúncio.

— O senhor veio indicado por alguém?

— Sim.

— Por quem?

— Por mim mesmo.

Flávia voltou a sorrir com o mesmo entusiasmo de antes:

— Viu nossas chamadas nos jornais?

— Nem sabia que vocês haviam colocado!

— Tudo bem. Como chegou até aqui?

Rego Penteado da Silva Buscapé apertava as mãos, nervoso. Sua tremedeira pulava como um canguru desassossegado. Logo estaria suando frio:

— Ia passando e vi a tabuleta.

— A placa?

— Isso. A placa.

— Já conhece nossos serviços?

— Não, não conheço. Gostaria que a senhora...

— Senhorita...

— Desculpe, senhorita.

— Assim está melhor. Aceitaria uma água gelada, um café ou um suco?

— Os dois primeiros. Se não for incômodo.

— Será um prazer.

Flávia se enveredou por uma porta e, minutos depois, retornou com um copo d’água e uma xícara de café, numa bandeja de aço inoxidável quadrada. Rego Penteado da Silva Buscapé virou o líquido de uma só vez. Fez o mesmo com o café. Uma espécie de choque elétrico circulava por toda a espinha. Logo se transformaria em medo gritante:

— Como é seu nome?

— Rego Penteado da Silva Buscapé. Buscapé tudo escrito junto...

— Muito bem, seu Rego Penteado. Posso lhe chamar assim...?

— Prefiro Buscapé.

— O senhor aceita mais água, outro café?

— Não, senhorita. Estou satisfeito. Com relação a como me chamar, prefiro ser tratado como Buscapé, sem o tracinho separando o Busca do pé. É menos feio. E por tudo quanto é sagrado, esqueça o seu e o senhor.

— Seu Rego, o senhor... Você quer dizer que o Buscapé é pouco usual. Acertei?

— Penso diferente da senhorita. Diria que é horrível...

— Não. Não é! Apenas um pouquinho destacado ou divorciado dos sobrenomes habituais.

— Prefiro que a senhora... Que a senhorita me chame de Buscapé. Sem o tracinho separando o Busca do pé.

— Eu poderia optar?

— Para quem?

— Não entendi!

— A senhorita falou em apitar. Vai apitar para quem?

Flávia sorriu com vontade, se desfazendo inteira em seu momento mais deslumbrante e encantador. Fora isso, irradiava felicidade por todos os poros. Soletrou vagarosamente, letra por letra (O... PE... TE... A... ERRE), fazendo biquinho: — O... P... T... A... R...

— O que é isso?

— Optar significa escolher. Posso escolher?

— Escolher o quê?

— Entre lhe chamar de Rego, de Penteado ou só de Buscapé:

— Ah, claro. E como faria tal coisa?

— Simples. Chamarei o senhor... Você de Penteado. Não cairia ou não soaria mais elegante?

— A senhorita tem razão!

— Pois bem, seu Penteado. O senhor... Você já tem uma ideia pré-determinada do que ela vai vestir?

— Senhorita Flávia, ela quem?

— Ué! A sua noiva...

— Vocês não arranjam?

— Claro que arranjamos, porém o senhor... Você ou ela, ou os dois, terão que nos informar como será o modelo. Sugiro uma listinha básica... Olhe ao seu redor. Observe que temos um vasto mostruário a inteira disposição de sua futura esposa...

Penteado coçou a cabeça. O coração, dentro do peito, batia descompassado. O suor escorria e empapava a camisa. Nessas horas, seu olho torto criava uma espécie de morcego irrequieto sobrevoando seu medo com premonições apocalípticas. 

— Para mim a garota pode ser e vir de maneira bem simples. Não faço muita questão. O que importa é o recheio, o conteúdo...

— O senhor... Você é muito espirituoso. Quer uma noiva vestida simploriamente, porém com elegância e garbo. Leve em conta que toda prometida deseja ostentar pompa, luxúria, soberba, chamar, enfim, a atenção. E aqui, meu prezado, ela se sentirá uma rainha:

— Olhe, se ela pudesse vir sem nada... Eu adoraria...

Flávia se desmanchou de novo em sorrisos de alegria e felicidade. Via naquele cliente aparentemente besta e débil de espírito, um “pato” em potencial. Bateria a meta de vendas sem fazer esforço. Quando as outras duas vendedoras chegassem do almoço, ela estaria comemorando o sucesso:

— Qual a sua idade?

— Vinte e dois anos.

— E a sua eleita?

— Eleita? Que eleita?!

— Sua namorada.

— Acho que aí pela casa dos vinte.

— Bem, toda mulher nessa idade, seu Penteado... Gosta de casar de branco, de véu e grinalda, muitas flores no altar, daminhas carregando as alianças, uma porção de padrinhos no púlpito, latinhas vazias amarradas no para-choque traseiro do carro. Essas coisinhas bobas que deixam marcas profundas para o resto da vida. O senhor... Você não irá querer decepcionar sua amada no dia mais feliz de toda a sua vida. Aliás, seu... Aliás, Penteado, saiba, de antemão, que casar com elegância e glamour, é o sonho de todas nós.

— Entendo! Senhorita Flávia, o que eu quero saber, em resumo, é o seguinte: como é que vocês arranjam...?

— O senhor... Você pode sugerir, escolher, dar palpites desde o vestido aos sapatos...

— Sei, sei. E quanto à garota?

— Que garota?

— A que vocês vão providenciar para mim?

— Pois é como eu acabei de explicar. O senhor... Você escolhe ou os dois, em conjunto, e procuram chegar a um consenso.

Penteado permaneceu um tempo olhando para uma dezena de manequins ricamente vestimentados com belos e impecáveis trajes para um cerimonial acima de qualquer suspeita, expostos com elevada suntuosidade nos fundos da peça. A caolhice parecia ter se acentuado de forma mais densa e severa:

— Dúvidas?

— Acho que sim. Eu pensei que vocês arranjassem a noiva.

— Essa é a nossa obrigação. Arranjamos a noiva da cabeça aos pés. Basta que nos diga como quer que façamos...

— Eu? Dizer?!

— Perfeitamente. Quais as suas exigências, vamos colocar assim... Quais as suas exigências?

— Veja bem, senhorita Flávia. Como expliquei logo que entrei. Estou à procura de uma moça até vinte anos, que seja da minha altura e peso. Não me incomodo se morena ou loira. Gorda ou magra. Feia ou bonita. Católica ou adventista. Macumbeira ou sem religião. De preferência sem filhos, carinhosa, meiga, que me respeite, que não me traia e, acima de tudo, que me ame. Afinal, não sei se reparou, sou estrábico do olho direito.

Flávia quase teve um treco. Ficou boquiaberta. O sangue gelou:

— Senhor... Amigo Penteado. Desculpe. Acredito estar havendo um pequeno engano aqui...

— Como, engano? O que a senhorita quer me dizer com engano?

— O senhor... Você está procurando por uma namorada?

— O tempo todo...

Flávia sorriu. Desta vez, com certa tristeza. Seu possível “pato” acabava de voar para longe de seus objetivos da depenação e da “bateção” de meta para as vendas do mês.

— Seja franca, por gentileza.

— Nós não cuidamos desse assunto.

— A propaganda ali fora fala que vocês arranjam...

— Senhor, no nosso outdoor está escrito: “ARRANJAMOS NOIVAS”, ou seja, preparamos, aprontamos, vestimos, embelezamos, as meninas para a cerimônia...

— Então, dona...

— Pelo que entendi o senhor está à cata de uma agência de matrimônio. Aqui é uma casa especializada em noivas. Repetindo, seu Penteado, ela entra aqui e sai prontinha para os braços do altar e o aconchego do futuro marido.

Rego Penteado da Silva Buscapé saltou do sofá apavorado, envergonhado e muito nervoso. A negativa dela, com relação a seus objetivos, soou definitiva, caiu por sobre sua cabeça como um fardo pesado. Seu esqueleto tremia tanto que seria capaz de urinar do modo que estava.

— Perdão, senhorita, mil desculpas...

— Não por isso. Acontece. Desculpe não poder ajudá-lo. Boa sorte.

Flávia acompanhou a criatura de volta à porta. Ao se ver sozinha, teve um acesso incontrolável de choro. Desabafou aos soluços.

— Infeliz desgraçado! Boa sorte o raio que o parta. Torto dos infernos... Por certo mereço passar por isso. Devo ter feito besteira  na missa de Santo Antônio domingo passado.

Na calçada, por sua vez, os passos apressados, Rego Penteado da Silva Buscapé se pegou arrasado e destruído. Lembrou que não respondeu sequer ao “Volte sempre e felicidades” que lhe desejou cortesmente a bela loira de olhos verdes e sainha azul curtinha. Como costuma professar a galera antenada nas coisas da modernidade, o borra botas “vazou no trecho o mais rápido que seus pés permitiram”. Se não o fizesse, morreria mil vezes de vergonha, além da que acabara de viver e sentir na pele. Sem contar que logo se deixaria abater por uma deprimência triste e alquebrada, se aquilatando, em vista disso, mais infeliz e desafortunado que o estrábico Mesrour de Voltaire.

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Texto enviado pelo autor