terça-feira, 7 de setembro de 2021

Flávio Roberto Stefani (Querência de Trovas) = 4

Amizade é copo d'água
que abranda a sede da gente,
sufocando toda mágoa
num copo d'água somente.
= = = = = = = = = = =

Ante à guerra que destrói
e torna escuro o horizonte,
tem mais valor quem constrói,
em vez de muro, uma ponte!
= = = = = = = = = = =

Atravessando as aguadas,
num gesto de amor profundo,
cada ponte une as estradas
na grande aldeia do mundo.
= = = = = = = = = = =

A vergonha foi demais
no casório da velhinha:
a velha queria mais
e mais o velho não tinha...
= = = = = = = = = = =

Brinquedos bons eu não tinha,
mas sabia achar maneira,
e com latas de sardinha,
eu tinha uma frota inteira.
= = = = = = = = = = =

Brinquedos de guerra, não,
pois quem brinca de matar,
amanhã - de arma na mão
vai matar para brincar!
= = = = = = = = = = =

Caiu a casa do gato
da madame 'socialite',
depois ela viu um rato
desfilando no seu 'site'...
= = = = = = = = = = =

Calor escaldante. O povo,
vendo a nuvem lá no fundo
começa a oração de novo
pra que chova em todo o mundo.
= = = = = = = = = = =

Como é bom ter, na varanda,
uma rede colorida:
dormir se o cérebro manda,
acordar, se manda a vida.
= = = = = = = = = = =

Como era bela a inocência,
e a gente, ansiosa, queria
ser grande, sem ter ciência
que a inocência morreria!.,.
= = = = = = = = = = =

É pelo trator da crença
que nossa mente, fugaz,
vai sentindo a diferença
no arado grande da paz.
= = = = = = = = = = =

Esses que picham murais,
e casas, postes, escombros,
pedem amor aos seus pais
que, alheios, dão-lhes os ombros.
= = = = = = = = = = =

Liberdade, um passarinho
que outrora andava demais,
hoje não acha o caminho
e, às vezes, nem voa mais!
= = = = = = = = = = =

Na sociedade mais rica,
preguiça é 'doença rara'
que o médico diagnostica
somente olhando na cara.
= = = = = = = = = = =

No balcão do botequim,
o bebum tenta falar,
mas gasta todo o latim...
e não consegue explicar...
= = = = = = = = = = =

O barulho na cozinha
denunciou mais um duelo:
o gordo atrás da sardinha,
o esposa atrás do chinelo...
= = = = = = = = = = =

O sabonete caiu
e o desespero da Bruna,
não foi tanto o que ela viu,
mas o drama da coluna...
= = = = = = = = = = =

Passa a noite no batuque,
mas, na volta, muda o tom:
ele, atrás de um novo truque,
mas ela, atrás do batom...
= = = = = = = = = = =

Razão maior, nesta vida,
é não dar vez à razão
e a todo irmão dar guarida
com os braços do coração
= = = = = = = = = = =

Ser pai, moderno e presente,
que o filho acompanhe e cresça,
não é ficar simplesmente
passando a mão na cabeça!...
= = = = = = = = = = =

Tirando cristãos e ateus
do seu sossego profundo,
o vento é o braço de Deus
mexendo as asas do mundo!
= = = = = = = = = = =

Um vazio cresce na alma
quando a amizade termina.
- E como se a praia calma
explodisse feito mina!
= = = = = = = = = = =

Vence as dores do seu dia,
que passa feito comboio,
quem faz da sabedoria
sua bengala de apoio!
= = = = = = = = = = =

Vendo a grave situação,
o padre ao casório vem,
e aproveita a ocasião
para o batismo também…

Fonte:
Flávio Roberto Stefani. Novas andanças e outros poemas.
Cachoeirinha/RS: Agência TextoCerto, 2013.

Aparecido Raimundo de Souza (Rapidinhas) 1


URUCUBACA


-Por não cumprir os prazos de lei, o advogado do réu, coitado, foi xingado da cabeça aos pés, na porta do fórum...

- Ué! Por quem?

- Pelos familiares do sujeito que estava em cana. Parece que o infeliz não conseguiu o alvará de soltura.

- Que coisa horrível! Mas diga lá: o pessoal xingava o doutor de quê?

- De “reulaxado”.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PATÉTICO

- Diga água. Água...

-...

- Água, água... Á G U A...

-...

- Água, água, fale. ÁGUA. A DE AMORA, G, DE GUARANÁ, U DE UVA, A DE
ANTONIO. Fale, infeliz.

-...

- Vou repetir novamente. Á...

Entra a enfermeira com uma papeleta nas mãos e chama a atenção do médico recém formado, enquanto lhe exibe o prontuário do paciente:

- Não adianta doutor. Esse aí é surdo-mudo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CENA URBANA III

- Achei gozado, outro dia, uma mãe querendo dar água pra filhinha!

- E o que havia de gozado nesse gesto tão lindo?

- A criança era pequena e o bebedouro maior que ela.

- E...?

- A idiota da mãe achou mais cômodo deitar o bebedouro até a boca da criança que suspendê-la, no colo, à altura da torneirinha.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. O vulto da sombra estranha. SP: Ed. Sucesso, 2009. E-book.

Estante de Livros (Arthur C. Clarke, Arthur Conan Doyle e Artur da Távola)


Arthur C. Clarke
Luz da Terra


As personagens de LUZ DA TERRA brotam do fantástico, ao mesmo tempo em que se mostram crivadas pela mesma sensibilidade que tem caracterizado os homens através dos séculos. Tudo isso vertido em uma linguagem rica em símbolos que carregam em si mesmos a medida substancial do comportamento do homem do futuro perante a vida, o qual já tem sob seu domínio o sistema solar. Neste livro, Arthur C. Clarke lança suas personagens em uma era, separada da nossa por dois séculos. Dominando o Sistema Solar, mundos hostis à sua constituição física, o homem ainda se vê preso ao seu próprio invólucro e vencido por ele. E é justamente esta ambivalência humana, paradoxal na sua constante reincidência, que serve de plataforma de onde se projetam ações e reações mescladas, conscientes ou inconscientemente, de medo, ansiedade, vigor e aniquilamento.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Arthur Conan Doyle
A Nuvem da Morte


Segundo livro do ciclo do professor Challenger, este romance se demonstra um verdadeiro precursor da mais pura ficção científica, com a aniquilação de qualquer forma de vida na terra após a passagem pelo éter de uma nuvem venenosa. O professor Challenger, o protagonista desta aventura, consegue sobreviver com mais alguns companheiros que conhecera durante uma viagem à América do Sul em busca do Mundo Perdido: depois de livrar-se engenhosamente dos efeitos venenosos da nuvem, explora uma Inglaterra deserta à cata de sobreviventes. Acabará encontrando algum?
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Artur da Távola
A Mulher É Amar

Em plena maturidade e invejável juventude interior, o autor, de rara e conhecida sensibilidade, vem prestar seu tributo à mulher; rendendo homenagens ao amor, à doçura da vida e fazendo nossos corações baterem mais forte, acelerados... Talvez vocês ainda duvidem, mas certos poetas e escritores, como é o caso de Artur da Távola, costumam emprestar seu brilho às estrelas. São crônicas que falam sobre o lado sensual da mulher, o sombrio e o mágico, o sedutor e o intelectual, a mulher guerreira e moderna, temas que farão você levitar ao tomar contato com esta incrível aventura para o mais profundo e misterioso da alma feminina.

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Versejando 74

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) – 31 –

Na minha cabeça correm rios de pensares. Surgem deltas. E os estuários. Sínteses de ideias, pensamentos, certezas, indagações, dúvidas, eternas reticências...

A sina e a sanha parecem vir de longe, lá das primeiras incursões no reino da palavra.

Esta senhora da comunicação ajudou e foi ajudada a instigar a curiosidade - rio que caminha e encaminha veredas de crescimento e sucesso.

A menos que se cultive o desvelo e o interesse nas diligências, não haverá evolução intelectual como, por consequência, também material. E se tudo começa no diletantismo, a busca constante fará do nosso cérebro uma verdadeira usina de ideias, de ideais, de idealismo.

Dizem que a curiosidade mata. Sempre vi que o interesse e a bisbilhotice são aquela grande vela que alumia, incendeia, produz calor e ascenção na vida.

Meu estoque de velas!

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 6 –

A dor que o teu peito invade
muitas vezes, tão voraz,
pode até ser de saudade,
ou só carência de paz.
= = = = = = = = = = =

A gota d'água preciosa
que da torneira extravasa,
pode tornar-se onerosa
ao faltar em nossa casa.
= = = = = = = = = = =

As águas brotam das fontes
seguem rumos diferentes,
sulcam novos horizontes
sem deixar de ser 'correntes'.
= = = = = = = = = = =

À vida, podes dizer:
que ao viver falta emoção.
Mas nada deves fazer
no furor da comoção.
= = = = = = = = = = =

Cenas de fraternidade
são de curta permanência,
porém as de atrocidade,
se repetem com frequência.
= = = = = = = = = = =

Com a proteção de Deus
que jamais nos deixa a sós,
busquemos juntar os 'eus'
pra fundi-los num só 'nós'.
= = = = = = = = = = =

Dentre as pedras do caminho
pode uma planta crescer,
se tratada com carinho
dá o fruto após florescer.
= = = = = = = = = = =

Diz o doente, sem dor,
vendo afastar-se o ataúde,
muito obrigado, 'doutor'!
Por devolver-me a saúde...
= = = = = = = = = = =

Dos caminhos percorridos
com afinco, pelos pais,
também podem ser seguidos
pelos filhos e alguém mais.
= = = = = = = = = = =

Esta vida é muito breve
para não ser respeitada,
destrui-la. quem se atreve,
não tem outra a ser trocada.
= = = = = = = = = = =

Faz frio e nos descampados,
surge à noite a alva geada,
são cristais esparramados,
pelas mãos da madrugada.
= = = = = = = = = = =

Imigrantes, fostes bravos,
audazes e sonhadores,
senhores e nunca escravos,
de ideais, desbravadores.
= = = = = = = = = = =

Não deixes que pelos dedos
deslize a felicidade.
Mas desvela seus segredos,
vive-a com profundidade...
= = = = = = = = = = =

Não tem presente melhor
que a mão firme de um amigo,
quando surge, ao derredor,
some a sombra do perigo.
= = = = = = = = = = =

Nas linhas da vida, leio,
essências tão sapienciais,
são lições, nas quais enleio,
meus passos existenciais.
= = = = = = = = = = =

Na vida, ninguém acabe,
refém de falsos projetos,
mas mostre a todos que sabe,
transformá-los em concretos.
= = = = = = = = = = =

Nos arbustos do presente
Inda a ave canta e se aninha,
busca um amanhã decente
no calor que ontem não tinha.
= = = = = = = = = = =

Nunca invejes quem trabalha
faze o mesmo, se puderes,
vencerás qualquer muralha
e obterás o que mais queres.
= = = = = = = = = = =

O pecador segue impune
se achando imune ao pecado,
julga errado e por ciúme
pune sem ser condenado.
= = = = = = = = = = =

O sino do campanário
quando toca nos ensina,
tal hino num relicário
ecoando a voz divina.
= = = = = = = = = = =

Para a queda em pleno ar
há um paraquedas normal,
pode na ausência levar,
a um acidente fatal.
= = = = = = = = = = =

Parcas nuvens, fim de tarde,
remanso crepuscular,
folhas secas, facho que arde,
sob o universo estelar.
= = = = = = = = = = =

Quando o pobre se lamenta
demonstra a sorte faltar
e a esperança que alimenta
é não mais se lamentar.
= = = = = = = = = = =

Se algo não lhe traz saudade
de um ontem pouco distante,
sem qualquer temeridade,
é porque não foi marcante.
= = = = = = = = = = =

Se a vida for pouco doce
e ás vezes, demais azeda,
mesmo que amarga não fosse
enfrente-a, vença e não ceda.
= = = = = = = = = = =

Se a tristeza, a paz estanca,
tendo o pranto como herança,
faz do sorriso a alavanca
e mude a dor em bonança.
= = = = = = = = = = =

Tão breve a vida transcorre
sob as leis da natureza,
dá o fruto à planta que morre
não sem tirar-lhe a beleza.
= = = = = = = = = = =

Triste, a dor n'alma se apruma
aniquila o pensamento.
se alegre, não resta alguma,
cicatriz do sofrimento.
= = = = = = = = = = =

Uma luz, meu ser invade
e ilumina os passos meus,
sua luminosidade
faz-me ver a mão de Deus.
= = = = = = = = = = =

Verte à velhice, a saudade,
das semeaduras de outrora,
são chuvas que à mocidade
regam as plantas do agora.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Santa Antônia de Maringá

Ganhei dois presentes ao mesmo tempo: um livro muito bonito – “Pétalas da vida”, e a alegria de ver que a autora é uma vizinha nossa muito querida – Dona Cida (Aparecida Capristo de Oliveira), professora aposentada, paulista de Tupã, residente em Maringá há 40 anos. São 427 páginas contendo crônicas, poemas e registros diversos à moda de diário. Gostei muito, especialmente dos vários textos em que Dona Cida fala de uma pessoa extremamente generosa e encantadora – Dona Antônia Lunardelli Ramalho.

Eu já havia até iniciado uma coleta de dados para escrever sobre Dona Antônia, mas agora ficou bem mais fácil. Basta transcrever alguns trechos do livro de Dona Cida e a crônica estará pronta. Aliás, nem será preciso entrar em detalhes, visto que Dona Antônia foi uma personagem superconhecida, vista e havida como uma santa mulher.

Santa sim. Santa Antônia de Maringá. Presente diariamente na Catedral como ministra da Eucaristia. Presente sobretudo no coração dos pobres que todas as noites recebiam o “sopão da Dona Antônia”, além de cobertores, medicamentos, carinho, muito carinho.

Para isso contava com uma equipe de colaboradores e doadores. Mas quando surgia uma dificuldade maior ela pedia ajuda a Santo Antônio, a quem docemente chamava de Toninho. “Dá um jeito aí, Toninho”. E a solução de pronto aparecia.

Dona Cida recorda seus momentos finais: “Despertamos entrando num pesadelo. Nossa querida Antônia estava doente. Hospital, tensões, choro, comoção na paróquia, comoção na arquidiocese, comoção entre os amigos e companheiros de trabalho, comoção geral.

“Teríamos que ser fortes. Sentimos que Deus a queria de volta. No dia 26 de outubro (2017) tivemos que dela nos despedir. Quanto amor distribuído. Era incansável. Não sabia dizer ‘não’. Deixou um legado de bons exemplos, palavras e dignidade. Seus amigos não a esquecerão. Vamos continuar o trabalho. Nós nos uniremos na batalha. Ela vive. Só voltou para o Pai. Deixou um rastro de santa”.

Todos sabemos que um processo de beatificação e canonização demanda longo tempo e complexa documentação. Porém Dona Antônia, bem antes de ser levada para a eterna graça, já se tornara santa no coração de quantos a conheceram. Santa Antônia de Maringá.

Dona Cida resume tudo num belo poema: “Compará-la a que santo? Ela imita todos, porque santa é. Alimentar famintos? Ela faz. Agasalhar no frio? Ela faz. Curar feridas? Ela faz. Rezar pelos doentes? Ela faz. Levar o Corpo de Deus aos acamados? Ela faz. Tirar o pão da própria mesa para servir um pedinte? Ela faz. Inclinar-se diante de injúrias? Ela faz. Perdoar ofensas? Ela faz. Derramar-se em sacrifícios? Ela faz. O que não faz? Faz tudo, porque santa é”.

Santa Antônia de Maringá. Continue aí de cima a ajudar os seus pobrinhos. E mande uma bênção para todos nós. Amamos demais a senhora.
=======================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 24-6-2021

Fonte:
Texto enviado pelo autor

domingo, 5 de setembro de 2021

Arquivo Spina 48: Zezé de Deus

 

Sammis Reachers (A Inimiga Pública)

Cristiano é a figura da serenidade. Ô cara tranquilo. Mas, claro, sem ser bobo.

Num belo dia de sol assanhado, conduzindo ônibus da linha 62 (Sta.  Bárbara x Charitas), veículo lotado, nosso pacato Cris para a viatura na altura do bairro Vila Ipiranga, para o embarque e    desembarque de passageiros. Isso antes de serem construídas a pista seletiva e as estações na Alameda São Boaventura.

Após observar que o último passageiro a embarcar já estava a bordo da nave, Cris apertou o botão que fechava a porta traseira e partiu com o veículo. Mas ao olhar novamente para o retrovisor da direita, percebeu um vulto pulando para dentro, no exato momento em que a porta se fechava. O cobrador imediatamente bateu a moeda na roleta, no código de "abrir a porta". O braço da pessoa ficara agarrado!

Se você é motorista, ou rodoviário de qualquer função, ou mesmo uma pessoa de bom senso, sabe que há um limite do campo de visão que o espelho retrovisor abarca. Assim, se uma pessoa está fora deste campo de visão, e ao ver a porta do ônibus aberta, corre em direção a mesma e pula sem maior aviso, é imensa a chance de acontecer de ela ser 'fechada' na porta. Essa é mesmo uma das maiores causas de acidente nos coletivos.

E foi exatamente isso que a passageira, uma mulher, fez. Por sorte, houve tempo de o ônibus parar e abrir a porta sem que a mulher se ferisse. Após entrar e passar na roleta,    a cidadã nada falou. Nem um pio.

Simplesmente tomou fôlego e foi esgueirando-se naquele ônibus cheio até chegar à parte da frente. Ao chegar próxima ao motorista, ah!, aí ela soltou o verbo.

– "Seu filho da $#%@, seu cor&%, seu %&@$#! Queria me matar seu desgraçado! Precisa aprender a trabalhar, seu @&#$@! - gritava a mulher, cansando os pulmões.

O problema é que a explosão de fúria da mulher parecia não ter fim. O tempo passava e ela, mesmo após o motorista ter-se desculpado e explicado do perigo do que ele fizera, e que ela sequer estava no ponto quando ele parara, continuava gritando, para desespero de Cristiano e dos passageiros, assustados e já irritados com aquele berreiro, que parecia fazer aumentar o calor daquele dia escaldante.

Cansado de ouvir, nosso Cristiano, sempre tranquilo, mas agora falando bem alto, no tom da senhora, fez uso da palavra:

– Senhora, estou trabalhando desde as oito da manhã, e o INIMIGO já enviou três pessoas, três pessoas para tirar a minha paz. Este veículo está lotado e eu preciso de atenção para conduzir essas vidas em segurança. A senhora é a quarta pessoa que o INIMIGO enviou?

Ao ouvirem tal coisa, alguns passageiros resolveram 'comprar o barulho' do sofrido Cristiano, Foi quando um deles começou a chamar:

– Inimiga! Inimiga! Cale a boca aí, sua capeta!

Diversos outros passageiros, fazendo coro, começaram a gritar, ritmadamente:

– Inimiga! Inimiga! Diaba! Inimiga!

A mulher, agora desnorteada, fechou a matraca e não sabia onde enfiar a cara. A única solução em que pensou foi descer do ônibus, no primeiro ponto que viu.

Enquanto descia, o coro dentro daquela viatura lotada continuava, numa mistura de raiva e gozação, parecendo uma torcida organizada:

– Vai embora, inimiga!

– Vai infernizar seu marido, megera!

– Vai a pé, diabo!

Pobre cidadã, sentiu na pele o que é ser uma inimiga pública…

Fonte:
Ron Letta (Sammis Reachers). Rodorisos: histórias hilariantes do 
dia-a-dia dos Rodoviários.
São Gonçalo: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Solange Colombara (Cristais Poéticos) 2

AMOR EM POESIA


Foi entorpecedor.
O ar encheu-se
De um encantamento
Como se uma fada,
Com sua varinha de condão,
Pincelasse doses de
Pequenas estrelas cadentes.

Poucos minutos apenas.
Minutos que se tornaram
Eternos,
Seu frescor inundou minh'alma,
Meu corpo; flutuei...
Passeei entre as nuvens,
Para novamente
Sentir aquele instante.
Nossas peles em êxtase.

Seu gosto
Ficou tatuado em mim.
Você, nós,
Champanhe
E meu batom carmim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DESAPEGO DA ALMA

Desfazendo vínculos existentes,
Vindos talvez de outras dimensões,
Finalmente livre dos grilhões
Presos à alma,
Grito com toda força
Que ainda há em meus pulmões.
Me ouço por todo o vale.
Permaneço inerte, totalmente só.
Após várias batalhas internas
Em busca da paz,
Me sinto aliviada,
Dona da minha voz.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

DOR

É apenas decepção...
Que o tempo se incumbirá de esquecer.
Deixando um pequeno vazio
Em meu coração.

É apenas tristeza...
Que o tempo carregará consigo.
E sempre haverá alguém oferecendo flores
Com leveza e delicadeza.

É apenas amar...
Levará tempo...
Mas ele saberá como essa chuva dissipar.
Restando somente um brilho a menos
Em meu olhar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

REFLEXÕES

Já passei por alguns invernos...
Alguns amenos
Outros nem tanto.
Os verões
Alegres e coloridos
Se fazem presentes ainda
E meu coração agradece diariamente
Poetizando todo esse encanto.
Os outonos...
Através de sua melancolia
Levam para longe
Um pouco do meu sofrer...
E meu coração agradece diariamente
Poetizando todo meu viver.
Ela chegou...
Como sempre
Preenchendo minhas lacunas
Com carinho e maestria.
Às vezes
Penso que sou
Primavera todos os dias.
E meu coração agradece.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

SEU SEMBLANTE

Sozinha
Sinto sua sensibilidade,
Sentimentos sofríveis,
Sensações...
Semblante sofrido,
Seu sorriso sossegado
Seduz, satisfaz,
Suavemente sutil, sagaz...
Sonho seus sonhos saciar.
Somos saudade
Somos serenidade
Somos sacanagem.
Sou seu sol
Sou sua.

Fonte:
Solange Colombara. Meus momentos de hiato. SP: Areia Dourada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Contos e Lendas do Paraná - 4 (Campo Mourão: A lenda do profeta)


A história que vou lhes contar aconteceu há muito tempo atrás. Guarapuava ainda era um lugarejo, cercado por fazendas em toda a extensão geográfica que vai do rio Piquiri ao Ivaí e Corumbataí. Conta-se que por volta de 1850 o tráfico de escravos negros, embora proibido, era praticado vergonhosamente. Com a emancipação política do Paraná, em 1853, iniciou-se a marcha para o progresso do Estado. Entre os anos de 1856 a 1858, o todo dos índios Kaingang, no vale do Piquiri, foi cruelmente atacado e destruído. A partir dessa data, tropeiros paranaenses começaram as suas passagens pelos campos de Guarapuava e, bem mais tarde, pelo picadão que unia Guarapuava ao Mato Grosso do Sul, sendo Campo Mourão o local de repouso para os peões e as tropas.

Contam os moradores da região de Guarapuava, Pitanga e Campo Mourão, que naquela época prevalecia a lei do mais forte; havia muitas chacinas e emboscadas, pois a ganância era muito grande. Pela região sempre aparecia um senhor idoso, longas barbas brancas, sandálias de couro nos pés, um lenço na cabeça, roupas maltrapilhas, um autêntico andarilho. Homem de poucas palavras, porém de sábias ações, era apenas conhecido como João Maria de Agostinho, “o profeta”. Chamavam-no de São João Maria, o santo profeta que curava pestes, doenças e até domesticava animais ferozes e cobras venenosas.

O incrível é que ele sempre aparecia na hora e no lugar onde estavam precisando.

Nada se sabia dele. Só que realizava milagres. Dizem que passou por um olho d’água do Jordão, em Guarapuava, e que até hoje aquela água tem poder de cura para os que têm fé.

Todo mundo queria encontrar e falar com o tal profeta. A fonte virou um verdadeiro local de romeiros que ficavam de molho nas águas e no próprio barro e afirmavam que eram curados. Por onde o monge passava, falava de Jesus e plantava uma cruz. Ensinava sobre o amor, a fé e a caridade para com o próximo. Também ensinava a utilizar ervas caseiras e dizia que até a água pura curava, se a pessoa tivesse fé em Deus, não nele. Sempre ressaltava isso.

Também passou por Campo Mourão e dizem que aqui havia muitas cobras venenosas. Quando aparecia alguma cobra na propriedade era só pensar no profeta e ele aparecia. Ele ia até o local e conversava com a cobra, ordenando que ela e toda a sua prole sumissem dali. Em seguida a essa ordem, fazia uma oração e nunca mais aparecia cobras naquele local.

Em uma ocasião apareceu uma velha beata que começou a tirar vantagens em nome do profeta. Fazia bolinhas de barro e as vendia como pílulas milagrosas de São João Maria, dizendo que curavam todos os males. Era só engolir com um pouco de água e se livrar dos vermes, febres e outras doenças. Um dia, essa senhora adoeceu gravemente, porém nem médicos, nem as pílulas milagrosas conseguiam curá-la. No leito de morte, gritava:

– Perdoe-me profeta, a minha ganância foi maior que minha fé.

Ao anoitecer, ela faleceu. Dizem que o profeta passou a noite sentado num tosco banquinho, próximo à tarimba onde a morta era velada. Cabeça baixa, pernas cruzadas, sem pronunciar uma só palavra.

Quando o cortejo saiu para o sepultamento, ele gritou:

– O amor, a fé e a caridade não têm preço. Jesus Cristo foi exemplo disso. Deu sua vida por nós. Vão em paz. Quando precisarem, basta invocá-lo, que ele está sempre perto de vocês.

A partir daquele dia, nunca mais ninguém viu, ou ouviu falar sobre o profeta, que era sempre o mesmo, com as mesmas roupas e sandálias.

Fonte:
texto de Edina C. Simionato, in Renato Augusto Carneiro Jr (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná.
Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005.

Estante de Livros (Os Carrascos, de José Fausto Toloy)

José Fausto Toloy, médico e escritor. Possui obras publicadas como: "No Final do Arco-íris", editora Caravelas, 2a edição; "O Livro que Ninguém Lia", Amazon Digital 2015. Publicou artigos no Jornal Látrico, incluindo contos e poesias. 
 
Escreveu, produziu e atuou nas peças teatrais: "Zequinha, o Trombadinha" e "O Poeta e o Mundo das Drogas". Amante da Literatura desde muito jovem, possui um acervo de mais de 3 mil livros e incontáveis leituras ao longo da vida. Pactua admiração e amizade com grandes nomes das letras nacionais, como Loyola, Pellegrini, Lygia e Antônio Torres.

O romance “Os Carrascos”, retrata a realidade brasileira pelo viés da violência pela violência. Desta forma o juiz Pedrozo forma uma confraria de justiceiros da qual fazem parte o religioso, o militar, o político e um banqueiro; debalde tentativas onde o Estado de direito soçobra. De tempos em tempos decidem pelo destino tétrico de monstros genocidas: pelo quarto cavaleiro do apocalipse, o anjo da MORTE! Neste thriller de suspense por vezes o feitiço se volta contra o feiticeiro.

NOTA DO AUTOR

Na interessante aventura de viver, por vezes nos deparamos com o inusitado, o surpreendente, até o bizarro. Numa dessas circunstâncias, quando médico-residente em São Paulo no início dos anos de 1980, na lanchonete defronte ao hospital, deparo-me com um mendigo que pedia esmola, e que de algum    modo chamou-me a atenção. No diálogo, depois de comer o lanche esfomeado, em seguida contou-me como virara aquele "trapo humano": de professor de Português, Literatura e de Inglês, língua que falava fluentemente, bravateou uma estória, que me pareceu mais fantasiosa que real, de que fora tenente numa confraria de justiceiros, que nominava como Death Penalty International, radicalmente contra os direitos humanos. O relato e estórias deste livro, foram inspirados em parte nesta    conversa, cujo título    OS CARRASCOS, ele dizia como "The Hangmen". Desta forma, os personagens são todos ficcionais; inspirados nos fatos supracitados sem nenhum compromisso com a realidade, fruto apenas de recriações artísticas do autor e, ratifico, sem nenhuma relação com acontecimentos ou pessoas reais. Além do mais, radicalismos extremos e genocidas dessa natureza, não coadunam com o pensamento do autor.
José Fausto Toloy

Trecho do Livro (pags. 36, 37)

Nem quero pensar mais nessa maldita que me seduziu e me custou tantos dissabores. Como o mundo dá muitas voltas estava agora ele naquela de justiceiro, tentando limpar o mundo do "trash"- dos bandidos, como se isso fosse possível... lembrou-se não sei porquê do juiz Falcone, aquele da Itália que colocou os grandes e ricos mafiosos na cadeia, mas acabou assassinado barbaramente na explosão de um carro junto com a esposa. Como viver era perigoso, lembra-se também de Faulkner; "entre a dor e o nada, escolho a dor". Se Deus existe, mas, existiria mesmo? "Se não existe então tudo era permitido"do Dostoiévski... a vida não seria tão sórdida e absurda.., do absurdo deveria brotar a esperança? E todos aqueles big bosses? Eliminados pela organização, seria limpar mesmo o lixo. mas, outros seriam colocados no lugar e assim, numa corrente eterna imutável... o homem, o maior predata da Natureza, esse macaco que não deu certo, continuaria cometendo atrocidades, genocídio em nome do quê? Tendo como pano de fundo a religião, filosofias, ideologias?

Uma brisa fresca de fim de tarde entra pela janela do carro, já se afastando da megalópole, mais quinze minutos e chegaria ao destino: aquela reunião bimestral, em que decidiriam a sorte de mais um estorvo que deveria ser eliminado, apagado, sumariamente, extirpado do convívio social como um tumor maligno, Pensando bem, o Dr. Ifigênio não faria falta nenhuma, além do mais, era corno manso. Enfim, talvez o Maquiavel tinha razão e o fim pode justificar os meios.

O Livro está disponível à venda na Amazon.

Fonte:
J. Fausto Toloy. Os Carrascos. 2018.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 4 de setembro de 2021

Adega de Versos 43: Wellington Vicente

 

Carolina Ramos (Palavras)

As coisas não iam bem! Ambos reconheciam. Impaciências... Irrelevâncias... Descontentamento de ambos os lados. E sem palavras justificativas!

Dois computadores, na mesma sala, colocavam o casal de costas um para o outro, alimentando o mutismo.

Foi quando, quase que simultaneamente, as duas telas receberam o mesmo artigo esclarecedor: - "Como salvar um Casamento".

Dupla leitura... silenciosa e ponderada e sem qualquer comentário de ambos os lados.

Contudo, as palavras sábias daquele artigo bem-intencionado, digitadas às pressas por mãos femininas, foram parar sob o travesseiro dele enquanto o inverso também aconteceu,

Aquele duplo e inspirado convite para uma conversa de caráter afetivo foi recebido pelo casal como oportuno e caído do céu.

Assim, quando a noite chamou o par ao leito, ambos encontraram sob os respectivos travesseiros aquela mesma mensagem sábia e conciliadora, que, embora não adivinhassem, alguma inspirada e santa alma simultaneamente enviara para os dois computadores.

A cumplicidade de um sorriso apagou a luz... e o renascer de sentimentos esquecidos por aqueles dois corações dispensou palavras! O casamento estava salvo!

Bruxas ou Fadas - ou, quem sabe. Santas? - duas sogras, unidas, podem conseguir milagres... quando, ostensivamente, a felicidade dos filhos periga. E, se depender de um simples empurrãozinho... não poupam nenhum esforço para que esse milagre aconteça.

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). 
Santos/SP: publicado pela Editora Mônica Petroni Mathias, 2021. 
Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Fabiano Wanderley (Glosas) – 3

ALEXANDRE, O PINGO DE OURO,
TRAZ NO SOLO, A POESIA.


A música é o seu tesouro,
pelo dom que Deus lhe deu
e o próprio mundo acolheu
Alexandre, o pingo de ouro.

Ele é um grande ancoradouro
onde aporta, melodia,
os solfejos, a harmonia,
a maestria, afinal;
com requinte instrumental,
traz no solo, a poesia!

(Ao grande amigo, o instrumentista Alexandre Moreira)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

COZINHEI, À LUZ DE VELA,
A CABEÇA DA CIOBA.

Vez por outra, a gente apela,
mas, conforme a ocasião,
não tendo iluminação,
cozinhei, à luz de vela.

Pus o peixe na panela,
com semente de algaroba,
com vagens de mangiroba,
carreguei, no condimento
e deixei pra cozimento,
a cabeça da cioba.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NÃO POSSO VENCER A MORTE
MAS, IREI DE MÁ VONTADE


Mesmo que eu não a suporte,
não escapo, não tem jeito,
para tal, sou imperfeito,
não posso vencer a morte.

Não adianta ser forte,
mas, com toda honestidade,
com toda sinceridade
que existe dentro de mim,
terei por certo o meu fim,
mas, irei de má vontade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

NEM TODA GRAÇA SE ALCANÇA
NEM TODA PROMESSA É JURA.


Nem todo jovem é criança,
nem todo brilhar é de ouro,
nem todo achado é tesouro,
nem toda graça se alcança.

Nem todo animal se amansa,
nem toda paz é segura,
nem toda flor tem candura,
nem toda morte é destino,
nem todo alto é divino,
nem toda promessa é jura.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

OBRIGADO, MEU SENHOR,
POR CONSERVAR MEU SORRIR.


Vivo a vida, com amor,
na amizade, na harmonia,
sinto paz, muita alegria,
obrigado, meu Senhor.

Não permita em mim a dor,
nem outro mal, que há de vir,
comanda o meu existir,
perdoa os pecados meus,
muito obrigado, ó meu Deus,
por conservar, meu sorrir.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O QUE ERA UMA COISA BOA,
TORNOU-SE UMA COISA RUIM.


Quanta gente, hoje, atraiçoa
seu antigo e grande amor,
transformando em desamor,
o que era uma coisa boa.

Não mude de casa à toa,
reflita, não haja assim,
pois, irá sofrer enfim,
a dor de uma desventura,
ao ver que a sua aventura,
tornou-se uma coisa ruim.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Arthur de Azevedo (O Último Palpite)

O caso que vou narrar não é inventado; passou-se, não há muito tempo, no bairro do Engenho Velho.

Havia ali uma família que se deixou dominar pelo jogo do bicho, a ponto de não pensar em outra coisa. Desde pela manhã até à noite havia naquela casa dois assuntos exclusivos de todas as conversas: o bicho que tinha dado e o bicho que ia dar.

O chefe da família era um cardíaco, e quero crer que foram as emoções do jogo que o atiraram na cama para nunca mais se levantar.

Momentos antes de morrer, o pobre homem, cercado pela mulher e os filhos, acenou como se quisesse dizer alguma coisa. A senhora debruçou-se sobre ele, e o moribundo, fazendo um esforço supremo, proferiu estas palavras:

- Joga tudo no cachorro!

Cinco minutos depois exalava o último suspiro.

A viúva, na ocasião em que, debulhada em lágrimas, dava as necessárias ordens para o enterro, lembrou-se, por pegar em dinheiro, da recomendação do defunto; chamou o copeiro e disse-lhe:

- José, vai jogar dez mil-réis no cachorro. Não creio que dê, porque ainda anteontem deu, mas devo respeitar o último palpite do meu marido. É um palpite sagrado!

Toda a vizinhança soube da coisa, e não houve bicho careta que não jogasse no cachorro. Os bicheiros do bairro levaram um tiro, porque efetivamente foi o cachorro que deu.

Quando vieram trazer os duzentos mil-réis à viúva, ainda não tinha saído de casa o cadáver do marido.

Ela ficou desesperada, e, abraçando o caixão, exclamou entre lágrimas, com grande espanto das pessoas presentes:

- Perdoa, Manuel, perdoa! Tu me disseste que jogasse tudo no cachorro, e eu joguei apenas dez mil-réis! Agora vejo que estavas inspirado pela bondade divina, e querias deixar tua família amparada!. . . Recebi apenas duzentos mil-réis! Perdoa Manuel, perdoa!

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários. Disponível no Domínio Público.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Varal de Trovas n. 521

 

Humberto de Campos (O Leilão)

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou, alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no meio de um sono agitado:

- Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!

Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa, sacudindo-a, com força:

- Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!

- Hein? Hein? Que é? Que é que tem? - exclamou a moça, despertando, espantada, esfregando os olhos com as mãos.

- Estás com pesadelo? - indagou o marido.

- Não! Era um sonho... Por que?

- Estavas para aí fazendo leilão...

- Ahn! - exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. - Uma extravagância... uma tolice...

- Conta! Quero saber o que era! - pediu o esposo; enciumado.

- Não vale a pena, Alfredo!

- Conta! - exigiu o Otelo.

D. Belita agasalhou a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a narrar, de olhos fechados:

- Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um conto e duzentos quando tu me despertaste.

Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio, essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:

- Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...

Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:

- E eu, não estava lá, não?

- Você? Não vi.

- Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?

D. Belita sorriu, e, esfregando os olhos:

- Você?

E com desprezo, rindo:

- Como você havia lá às dúzias, a cinquenta mil réis, e ninguém queria!

E virou-se para o outro lado, roncando...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 
Publicado originalmente em 1925.

Mário Quintana em Prosa e Verso – 17 –

 Espelho Mágico I

DA OBSERVAÇÃO

Não te irrites, por mais que te fizerem...
Estuda, a frio, o coração alheio.
Farás, assim, do mal que eles te querem,
Teu mais amável e sutil recreio...

DO ESTILO

Fere de leve a frase...
E esquece...
Nada
Convém que se repita...
Só em linguagem amorosa agrada
A mesma coisa cem mil vezes dita.

DAS BELAS FRASES

Frases felizes... Frases encantadas...
Ó festa dos ouvidos!
Sempre há tolices muito bem ornadas...
Como há pacóvios bem vestidos.

DO CUIDADO DA FORMA

Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amalga, enrija. pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
Arredondado e liso como um bule!

DOS MUNDOS

Deus criou este mundo. O homem, todavia,
Entrou a desconfiar, cogitabundo...
Decerto não gostou lá muito do que via...
E foi logo inventando o outro mundo.

DAS CORCUNDAS


As costas de Polichinelo arrasas
Só porque fogem das comuns medidas?
Olha! Quem sabe não serão as asas
De um Anjo, sob as vestes escondidas...

DAS UTOPIAS


Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

DOS MILAGRES

O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagre é acreditarem nisso tudo!

DAS ILUSÕES

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!

DOS NOSSOS MALES


A nós nos bastem nossos próprios ais,
Que a ninguém sua cruz é pequenina.
Por pior que seja a situação da China,
Os nossos calos doem muito mais...

DA ETERNA PROCURA

Só o desejo inquieto, que não passa,
Faz o encanto da coisa desejada...
E terminamos desdenhando a caça
Pela doida aventura da caçada.

DO PRANTO

Não tentes consolar o desgraçado
Que chora amargamente a sorte má.
Se o tirares por fim do seu estado,
Que outra consolação lhe restará?

DO SABOR DAS COISAS

Por mais raro que seja, ou mais antigo,
Só um vinho é deveras excelente:
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo...

DOS SISTEMAS

Já trazes, ao nascer, tua filosofia.
As razões? Essas vêm posteriormente,
Tal como escolhes, na chapelaria,
A forma que mais te assente...

DO EXERCÍCIO DA FILOSOFIA
 
Como o burrico mourejando a nora,
A mente humana sempre as mesmas voltas dá...
Tolice alguma nos ocorrerá
Que não a tenha dito um sábio grego outrora...

Fonte:
Mário Quintana. Espelho Mágico. 
Publicado originalmente em 1951.

Rachel de Queiroz (Cabeça-Rosilha)

Esporte sertanejo que vai rareando são as brigas de touro. De primeiro, ainda me lembro, esperavam-se meses pelo encontro de dois campeões. Havia brigas — quando os touros eram de briga mesmo — que varavam dias seguidos. Na fazenda Junco havia um touro preto, por nome Carnaúba, que era capaz de lutar três noites com três dias e mais até, se lhe dessem tempo para beber. E podia mudar o adversário, ele é que não mudava, olho de fogo, a venta chamejante, a perna fina, a aspa aguda, preto como o Cão, valente como o anjo Gabriel. Depois de velho, talvez caduco, ficou tão feroz que não podia passar mulher nem menino por perto dele, à distância de menos de vinte braças. Por isso foi pego à força bruta, laçado ao mourão, reduzido a chamurro. Só assim o venceram, mas ainda rosnava. Acabou vendido a uns tangerinos.

No Junco também teve o touro Xuíte, que, como o nome está dizendo, era de raça taurina, o pescoço um tronco, mas as armas curtas, valente que era doido e de gênio ruim. Um dia atacou um trem que diminuía a marcha para entrar nas agulhas. O maquinista de começo riu, pensando que o touro velho ia se estrepar todo, ao se chocar com a máquina; e, para debochar mais, soltou um jato de vapor quente. O Xuíte aí se enfezou, meteu o chifre naqueles canos de cobre que correm pela barriga da locomotiva, arrancou tudo, como quem arranca serpentina num carro de carnaval. A máquina rodou mais um pouquinho, foi gemendo, estacando e parou mesmo, ali, em cima das agulhas. Então quem teve medo foi o maquinista, com a locomotiva enguiçada e o touro bravo em redor, cismado, furioso.

Na fazenda Califórnia, que era de minha avó, se conta muita história de touro. Tem, por exemplo, o caso da briga de dois tourinhos, um chamado Caçote e o outro com nome ainda mais besta — chamavam o touro de Banana. Mas nome não é documento, porque esses dois touros pegaram uma briga que começou no sangradouro do açude e continuou, hora atrás de hora; e quando se viu, os dois já estavam para as bandas do cemitério, a uns quinhentos metros além; justo ao pé da casa do Ferreiro Velho, que era vizinho mesmo do campo-santo.

O Ferreiro Velho já dormia, deitado numa rede atravessada na sala. Quando deu fé, a porta vinha abaixo num estrondo. Mal teve ele tempo de saltar no chão: era o touro Caçote que entrava de costas, lascou a rede no meio como se fosse papel, e o outro touro pegado com ele, e assim atravessaram a casa, quebrando pote, fogão e tudo. Foram bater no quintal, arrasaram o jirau dos coentros e só saíram dali, derrubando a cerca, a poder do ferrão dos homens.

Foi também na Califórnia que sucedeu outro caso de touro, e essa é uma história bonita. O touro Cabeça-Rosilha era dono do curral fazia anos quando, de repente, lhe apareceu um tourinho novo, vindo de fazenda vizinha, não se sabia qual. O nome dele também não era certo — Cachalote ou Chamalote, parece; só sei que era azeitão-escuro com o lombo branco, muito bonito e fogoso e com uma natureza tão danada que logo se botou ao velho Cabeça-Rosilha, como se fosse um veterano igual a ele.

Pegada a briga, depressa se viu que o Cabeça-Rosilha não era mais o que fora dantes. Senão, teria acabado com a vida do tal Cachalote, logo na primeira noite. Mas qual, amanheceu o dia e a briga ainda estava rendendo. As vacas saíram para o pasto, os dois ficaram brigando. Tinham quebrado a porteira e saído para o pátio, o chão já estava todo riscado de regos fundos só de eles cavarem a terra; e havia tanto mata-pasto acamado por onde eles pisavam que era aquele balseiro, como se por ali houvesse passado uma enchente.

A cabeça do Cachalote estava coberta de um beiju preto de sangue; e nas costas do Cabeça-Rosilha viam-se os lanhos que o outro lhe abrira no couro com as aspas finas.

De vez em quando eles paravam um pouco, como se escutassem o gongo, recuavam, tomavam fôlego; mas daí a um instante recomeçavam o gaiteado, cada um insultando o outro como podia. O urro do Cabeça-Rosilha era fundo, grave como um ronco de onça; o do Cachalote era mais franzino e mais rouco — que o canto do galo novo não se assemelha ao clarim do galo velho. E outra vez se encontravam e as armas se chocavam umas nas outras e até parecia que tiravam fogo.

O povo já tinha perdido a conta de quanto tempo durava a briga quando de repente os touros cruzaram as armas, entrançando os chifres. Não se viu como foi aquilo, só sei que se escutou um estalo, como um pau quebrado; e o Cabeça-Rosilha recuou, com um berro — estava com o chifre esquerdo arrancado. Arrancado mesmo, ficando só o sabugo.

O Cachalote ainda quis atacar, mas o touro velho pela primeira vez negou combate. Igual a um novilhote que apanha a sua primeira surra dum touro criado, recuou, recuou, bruscamente deu meia-volta, desceu ligeiro em procura do riacho do sangradouro e foi sumir na caatinga.

Isso aconteceu pelo começo do inverno, no mês de fevereiro. Todo o resto do tempo de chuva ninguém soube notícias do velho Cabeça-Rosilha, escondido na sua vergonha. Chegou o verão, as águas da caatinga secaram, mas em vão se esperou que ele viesse beber no açude, junto com o resto do gado. Os donos deram o touro velho por morto, decerto de alguma bicheira arruinada, no sabugo do chifre.

Os vaqueiros ficaram botando sentido para ver se levantavam urubus, contudo nenhum sinal apareceu.

Findou o verão, passaram Finados, as festas de Natal e Ano-bom. Começou a chover em janeiro. O Cachalote era agora o dono do curral. Não tinha quem se metesse com ele, acho que a história da derrota do Cabeça-Rosilha se espalhara entre os pretendentes.

Mas quando veio o começo do mês de fevereiro, um ano contado depois da grande briga, certa tarde estava já o gado recolhido ao curral, o Cachalote malhado no enxuto, remoendo, muito soberbo — escutou-se de repente, lá no alto do rio velho, um gaiteado conhecido.

Ninguém acreditava. Teve quem pensasse em assombração, visagem do touro morto. Mas que morto nem nada. Era mesmo o Cabeça-Rosilha que voltara vivo, depois do seu retiro de um ano. Fora se esconder na Serra Azul, bebia não se sabe onde, enquanto o sabugo encourava; e ele o ia afiando pacientemente nas cascas de pau, até o botar duro como ferro, mais duro que o próprio chifre.

O gaiteado foi crescendo, ficando perto. E então se viu o Cabeça-Rosilha se mostrar de corpo inteiro, bem no cabeço do alto. Reforçado, lustroso e com os chifres polidos que era ver duas espadas.

No curral, o Cachalote se levantou, como se não acreditasse. Afinal respondeu com o seu gaiteado novo, grosso, soprando e cavando. Ligeiro, parando só para dar os seus urros de desafio e raspar o chão com tanta força que a terra voava a duas braças de altura, o Cabeça-Rosilha se aproximava. Parece até que caprichava em voltar no mesmo chouto com que saíra — então corrido e sangrento, agora limpo e sedento de briga.

Cada um dos brutos de um lado da porteira, não esperaram que ninguém a abrisse. Meteram os ombros, voou pau para todo lado, e foi de novo dentro do curral que a briga começou.

Dessa vez, porém, não virou a noite até o outro dia. Ainda bem não havia escurecido direito, de repente se ouviu um urro de touro apanhado. Era o Cabeça-Rosilha que tinha levantado nas armas o Cachalote, como se levantasse um gato; ergueu nos ares aquelas quarenta arrobas de touro vivo e arremessou tudo por cima da cerca.

Foi aí que o Cachalote berrou como bezerro, levantou-se trôpego — e dessa vez foi ele que desceu o riacho, correndo, e sumiu no mato, dentro da noite escura.

Também, depois desse dia, nunca mais Cabeça-Rosilha o viu.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. 
RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

Estante de Livros (O Garatuja, de José de Alencar)


Uma das obras-primas menos conhecidas de Alencar, a novela O Garatuja, escrita no esteio de grande polêmica entre a Igreja Católica e a Maçonaria, mostra como o país, no que dizia respeito a arenga entre o poder eclesiástico e o poder civil, não evoluíra em nada em duzentos anos de história. Saiu publicada junto com outras duas histórias breves, A Alma do Lázaro e O Ermitão da Glória.

Em 1848, com 19 anos, José de Alencar apresentava os primeiros sintomas de tuberculose. A doença obrigou-o a retornar da faculdade de Olinda para o Rio de Janeiro. Trazia na mala, o esboço de duas novelas escritas em Pernambuco, "mas que só seriam publicadas, com alguns retoques, cerca de 25 anos depois, enfeixados em um único volume, intitulado Alfarrábios. As duas histórias, [...] falavam de personagens atormentados pela solidão e apartados da vida em sociedade. [...] Se as duas histórias, com enredos tão bizarros, ainda revelavam certa dívida do aspirante a escritor em relação aos dramalhões lidos na infância, uma coisa também era evidente [...] revelam muito da personalidade de seu próprio criador."

O romance transcorre na “leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em meados do século XVIII (1659), quando a cidade sequer era capital, e tem por pano de fundo um conflito entre a Igreja (mais especificamente, o prelado Doutor Manuel de Sousa e Almada) e a administração colonial que resulta na excomunhão do ouvidor, gerando um grande alvoroço. O personagem central, Ivo do Val, é um enjeitado, “filho de criação” da “donzela recatada” Rosalina das Neves, que o teria “achado uma noite à porta da casa, onde morava então com sua família”, mas segundo as más línguas – das quais a mais ferina era da Pôncia, que gostava de “espreitar por detrás da rótula o que ia pela rua, para enredar os vizinhos e falar mal da vida alheia” – “fruto dos amores da donzela com um alferes”. Ivo recebe a alcunha de Garatuja devido à mania, como um precursor dos grafiteiros atuais, de “trocar as pernas pelas ruas de São Sebastião, e riscar toda a parede que lhe caía debaixo do carvão”.

Ivo torna-se aprendiz do pintor de casas Belmiro Crespo, onde “passava o melhor de seu tempo, a ajudar os vários misteres da pintura, no que se foi tornando perito”. Um belo dia, achando-se numa encruzilhada na área que hoje corresponde à Lapa, “apareceu-lhe em frente uma menina que vinha pelo caminho da Carioca [...] com os cabelos ao vento, e a saia rocegada por causa do orvalho”, chamada Marta. Ao vê-lo, Marta assusta-se (“ – Senhora mãe, um caipora!”). Ela é filha do tabelião Sebastião Ferreira Freire, dono de cartório. Atraído pela menina (“Tudo lhe servia de pretexto para [...] fincar-se horas e horas, como um mastro de Natal, em frente à porta do tabelião”), desenha um Cupido “brincalhão e gentil [...] em ação de brandir uma seta, cuja ponta embebia na luz de uma estrela radiante em céu azul, para cravar um coração caído por terra”.

Rosalina, cujo sonho era ver o filho "adotivo" admitido no cartório de Sebastião, confundindo o Cupido com o Menino Jesus, decide levar a imagem a Romana Mência, uma devota perdida por tudo quanto era santo e coisa de beatice, que era sogra do tabelião. Depois disso, Rosalina leva Ivo à casa da velha Romana, onde naquela noite rezava-se a novena. “Colocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Marta, oculto sob o capuz da mantilha.”

O rapaz acaba sendo admitido no cartório. Um dia, ao escrever um edital que começava por M., inicial de Marta, enfeitou a letra com tantos “emblemas de amor” – anjinhos, flores, colibris – que foi mandado embora do cartório. Mas continuava se encontrando furtivamente com Marta.

Uns minoritas (religiosos da Ordem de São Francisco) fâmulos do prelado Almada perturbam a vida da família do tabelião, e Ivo prega-lhes peças. O tabelião queixa-se ao Ouvidor Geral, que abre uma devassa. No dia em que o ouvidor partiria em viagem ao Espírito Santo, o prelado, em represália, excomunga-o em público com toda a solenidade do latim: te excommunicamus... O ouvidor leva o caso (“grave atentado cometido contra a majestade de El-Rei, nosso senhor, e sua autoridade que a todos nós fiéis súditos, cumpre defender”) ao Senado da Câmara.

Ivo organiza um motim de estudantes e em plena noite a população, desperta por um sino e atraída por um clarão ao Rossio do Carmo (atual Praça XV), depara, no alto do pelourinho, como uma alegoria ou caricatura que debochava do prelado e da fradaria, pintada por Ivo.

A população está revoltada com as arbitrariedades do prelado e, para apaziguá-la, um moleque e um caboclo acabam servindo de bodes expiatórios para as estripulias dos minoritas. O tabelião flagra Ivo surrupiando um beijo de Marta e leva o casal ao cartório para casá-los. A condição: que Ivo abandone a pintura.

"Desenha-se, portanto, em O Garatuja, a cidade colonial de São Sebastião, com figuras reais e inventadas, exibindo costumes, trajes, modismos de linguagem, amores, encontros e revolução. Nesta volta ao passado, em fatos e linguagem, a leitura torna-se a aventura de reconhecer o Rio de hoje no referenciado, do século XVII, procurando sacudir o 'mofo literário' e entender, sobretudo, a imagem da cidade e de seu povo.”

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 2

 

Renato Benvindo Frata (Soneto de Despedida)

No Soneto de Despedida, Vinícius de Morais cantou a lua e a mulher amada. Ambas nuas, uma no céu e outra na terra, igualmente formosas a mexer com a sua alma irrequieta como são as de quem ama. Mulher e lua, portanto, serviram de inspiração e o fizeram suar em gotas gigantes o sentimento a que se dá o nome amor.
 
Sua inspiração boêmia fê-lo "o poetinha do Brasil", na acepção mais carinhosa do termo; e nos legou frases, poemas e canções lindas extraídas - como ele próprio confessou do seu âmago anestesiado pelo fumo e uísque.

O verbo despedir, de certa forma, soa tristeza: tanto na sua forma transitiva direta que significa "terminar unilateralmente", como adeus, não quero mais, ou para mim basta!, ou como enquanto verbo pronominal quando alguém diz palavras de despedida no momento da sua saída: -"vou-me embora... pra Pasárgada" como o disse Bandeira, numa alusão a um suposto amigo que o esperava.
 
Quando se termina algo é sinal que chegou o fim; e, como fim a conclusão de qualquer coisa, daí o questionamento; o fim existe?
Ouso dizer que materialmente sim, como o construtor quando acaba de vez um trabalho, ou o artista quando dá a última pincelada de tinta em seu quadro. Mas, no sentido imaterial, é possível afirmar que o fim existe?
 
Cora Coralina versejou que "o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher." Acreditando nesse conceito, quando se tem o que colher não aconteceu o fim propriamente dito, mas apenas e tão somente uma leve parada. Um repouso para ganhar força e continuar como faz a flor que morre para deixar a semente, mas não antes de atrair com seu perfume abelhas, borboletas e passarinhos com o propósito de deixar que misturem o androceu com o gineceu que carrega em seu seio e possibilitam a fecundação, e de distribuir sua continuidade pela natureza através do pólen que os insetos e animais (e o próprio vento) arrastam em seus corpos, pernas, bicos e do vai e vem das brisas.
 
Sábio como a flor que renasce em cada semente, Vinícius com seu Soneto de Despedida não se despediu; apenas engoliu mais um copo e mais outros, fumou uma série de carteiras de cigarro que lhe alimentavam a inspiração e, depois a cada intervalo, curado dos porres, retornou a compor novos sonetos, a ruminar novos versos, trovas e cantigas a várias e diferentes musas terrenas, porque sua alma de poeta era tão volátil quanto a nuvem passageira que apenas rabisca momentaneamente o céu na sua passagem sem lhe deixar marcas perenes.
 
Aliás, a nuvem não deixa nem um traço em sua passagem, pois o dia seguinte será sempre outro dia, cuja noite envergará no céu a mesma e linda lua de sempre, em qualquer das fases, com o mesmo poder de atração e sedução a retirar dos amantes palavras torneadas pela paixão e gestadas pelo entusiasmo. E de colocá-las no papel para o deleite de todos como o fez o "poetinha".

Fonte:
Renato Benvindo Prata. Azarinho e o caga-fogo. 
Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXVII

“CAMINHO A TEU LADO MUDO”

 
Caminho a teu lado mudo
Sentes-me, vês-me alheado...
Perguntas: Sim... Não... Não sei...
Tenho saudades de tudo...
Até, porque está passado,
Do próprio mal que passei.

Sim, hoje é um dia feliz.
Será, não será, por certo
Num princípio não sei que
Há um sentido que me diz
Que isto — o céu longe e nós perto
É só a sombra do que é...

E lembro-me em meia-amargura
Do passado, do distante,
E tudo me é solidão...
Que fui nessa morte escura?
Quem sou neste morto instante?
Não perguntes... Tudo é vão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“CANSADO ATÉ OS DEUSES QUE NÃO SÃO”
 
Cansado até os deuses que não são...
Ideais, sonhos... Como o sol é real
E na objetiva coisa universal
Não há o meu coração...
Eu ergo a mão.

Olho-a de vis, e o que ela é não sou eu.
Entre mim e o que sou há a escuridão.
Mas o que são isto a terra e o céu?

Houvesse ao menos, visto que a verdade
É falsa, qualquer coisa verdadeira
De outra maneira
Que a impossível  certeza ou realidade.

Houvesse ao menos, som o sol do mundo,
Qualquer  postiça realidade não
O eterno abismo sem fundo,
Crível talvez, mas tenho coração.

Mas não há nada, salvo tudo sem mim.
Crível por fora da razão, mas sem
Que a razão acordasse e visse bem;
Real com o coração, inda que...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“CANTA ONDE NADA EXISTE”
 
Canta onde nada existe
O rouxinol para seu bem,
Ouço-o, cismo, fico triste
E a minha tristeza também.

Janela aberta, para onde
Campos de não haver são
O onde a dríade se esconde
Sem ser imaginação.

Quem me dera que a poesia
Fosse mais do que a escrever!
Canta agora a cotovia
Sem se lembrar de viver…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

CEIFEIRA
 
Mas não, é abstrata, é uma ave
De som volteando no ar do ar,
E a alma canta sem entrave
Pois que o canto é que faz cantar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“CHEGUEI À JANELA”
 
Cheguei à janela,
Porque ouvi cantar.
É um cego e a guitarra
Que estão a chorar.

Ambos fazem pena,
São uma coisa só
Que anda pelo mundo
A fazer ter dó.

Eu também sou um cego
Cantando na estrada,
A estrada é maior
E não peço nada.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

“CHOVE. QUE FIZ EU DA VIDA?”
 
Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, estou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!

Fernando Sabino (Sem tirar patente)

Estou convencido de que errei de profissão, ao escolher a literatura. O que eu sou mesmo é inventor. E um grande inventor. Com o auxílio de minha filha Mariana, que rima com bacana, inventei o telefone portátil, a televisão de bolso, o rádio de pulso e a bicicleta voadora. Só não inventei o pó de pirlimpimpim.

Antes que esta crônica entre em colapso, num delírio de paranoia, e eu me diga inventor da luz elétrica e Pai da Aviação (embora não negue que tenha parte na invenção do zepelim), deixa eu dizer que minha inventiva não voa a tais alturas, nem sustento ter-me chamado Edson, Marconi ou Santos Dumont, noutras encarnações.

Apenas lamento que invenções um pouco menos espetaculares, como as que citei, custem tanto a ser produzidas.

Outras já o foram, antecipando-se à patente que delas eu deveria ter tirado. Há anos, por exemplo, que amaldiçoo essa invenção diabólica usada para tirar cópia, chamada papel carbono: amarrota-se com facilidade, suja a ponta dos dedos e as demais folhas de papel em branco, resiste ao uso da borracha, acaba produzindo cópias manchadas ou ilegíveis. Não se falando na sua intolerável propensão a colocar-se invertida entre as folhas de papel, produzindo ao fim uma belíssima cópia, mas para ser lida ao espelho, nas costas do original. Sempre desejei que existisse um carbono resistente, com tinta indelével como a das próprias fitas de máquina.

Pois finalmente aqui está o carbono de plástico, que dá cópias iguais ao original, e que alguém chamado Burroughs patenteou antes de mim, sob o n.° 876.854.

Em compensação, e ainda nos domínios da máquina de escrever, continuo esperando que industrializem o dispositivo que inventei para corrigir no papel os erros datilográficos. Um espertinho quis se antecipar e me apareceu no mercado com uma tirinha de papel carbono branco, do tamanho de um band-aid (extraordinária invenção!), a ser inserida entre a fita e o papel, para apagar as letras erradas, batendo-as novamente.

O processo, em si, é correto, mas minha invenção é melhor. E aqui a ofereço gratuitamente ao primeiro aventureiro que quiser lançar mão dela, o tal Burroughs, por exemplo: a própria fita da máquina deveria ter uma faixa de tinta branca, sobre a qual reescreveríamos o que deve ser apagado.

Outras invenções me fazem ferver a cuca, e vivo encafifado pelo fato de não virem logo à luz do dia. As que me inspiram os objetos de dar corda, como os antigos fonógrafos, por exemplo: se existem relógios e brinquedos de corda, por que não podem existir, baseados em igual sistema, motores de verdade, até mesmo de automóvel?

Antes que acabe descobrindo o moto-contínuo, detenho-me diante daquele menino da anedota, que dizia aos pais ter descoberto numa loja de antiguidades uma vitrola maravilhosa, que funcionava sem corrente elétrica, sem pilha, sem nada.

E está certo o diabo do menino. Nada mais prático foi até hoje inventado, para resolver o problema infernal de um automóvel com bateria descarregada, que aquele ferro torto com o qual se punha antigamente o motor em funcionamento, e que se chamava manícula. Manícula! Com nome tão fabuloso, só podia ser mesmo uma grande invenção.

Outras grandes invenções, como a caneta esferográfica, o saca-rolhas de ar comprimido ou a sandália japonesa, enchem-me de inveja por não terem nascido antes de minha poderosa imaginação criadora. Tão poderosa, que já concebeu a simbiose do bidê e do vaso sanitário, com chuveirinho regulável, e descobriu que a serra de pão é o melhor instrumento para descascar abacaxi.

Não se falando no aperfeiçoamento introduzido numa das mais prodigiosas criações de nosso tempo, que reconheço não ter sido minha, e a cujo inventor rendo aqui minhas homenagens: o fecho eclair. Para ser perfeito, sem risco de enguiçar a todo momento ou, quando na roupa, beliscar a pele do freguês, não deveria ser de dentes de metal, mas de trilhos de plásticos fechados sob pressão. Quando vi pela primeira e única vez a moderna versão que inventei, no fecho de uma pasta que a Varig me deu, entre as lembranças que costuma oferecer aos seus passageiros em viagem internacional, maravilhado exclamei: o que é a Natureza! E vi reafirmada a minha crença no progresso da Humanidade.

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Estante de Livros (Livros de André Vianco)

A CASA


Em A Casa você encontrará quatro pessoas com os corações atormentados em busca de perdão. Aprenderá que o perdão é o sentimento mais nobre em nosso caráter e tão poderoso que poderá unir os que estão do lado de cá com os que já foram para o lado de lá.. Descubra um romance delicioso, afetivo, que trata de sentimentos e vida após a morte.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O CAMINHO DO POÇO DAS LÁGRIMAS

Jonas viajava com os filhos Ingrid e Bosco por uma estrada escura. De repente os três adormecem e, quando acordam, depois de muitos sonhos agitados, se dão conta de que estão em um vasto campo verde. O carro em que viajavam desapareceu e a única saída daquele campo é um caminho formado por pedras justapostas... é O Caminho do Poço das Lágrimas. Mas para onde os levará esse caminho? Que mistérios e perigos os esperam?

Em seu 13º romance o escritor André Vianco aventura-se através de uma fábula gótica moderna. O Caminho do Poço das Lágrimas é um livro ilustrado, cheio de metáforas, que leva a reflexões acerca da morte, da maneira como levamos a vida nos dias de hoje.

O livro nasceu depois do autor ter se dedicado durante três anos às histórias de terror, envolvendo vampiros. Há algum tempo seus leitores vinham dizendo que estavam com saudades de livros como A Casa por isso, quando a ideia para essa fábula surgiu, ele não conseguiu fazer mais nada direito, até que finalmente a colocou no papel:

"A ideia para escrever O Caminho do Poço das Lágrimas nasceu de uma história de ninar que eu inventei para as minhas filhas. Durante muito tempo essa história ficou remoendo em minha mente, ela se apoderou de mim de uma maneira que eu precisei parar tudo para dar vida a ela.", explica André Vianco.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O SENHOR DA CHUVA

Um anjo perseguido, para não ser destruído, possui o corpo de um ser humano igualmente agonizante. Assim, o anjo quebra uma regra sagrada que dá aos demônios o direito de evocarem uma guerra desigual que poderá desencadear a destruição de todos os anjos de luz da Terra. Agora, os dois exércitos estão furiosos, transformando as tranquilas pastagens de Belo Verde num funesto campo de batalha onde espadas parecem chamas e olhos parecem brasa. Esta misteriosa aventura sobrenatural estará repleta de batalhas no mundo dos anjos, vampiros... e demônios.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

André Ferreira da Silva, conhecido pelo pseudônimo André Vianco, nasceu em São Paulo, em 1975, mas foi criado em Osasco. É um romancista, roteirista e diretor de cinema e de televisão brasileiro. Especializado em literatura de terror, sobrenatural, de baixa fantasia e vampiresca, alcançou a fama em 1999 com o romance Os Sete, tornando-se um best-seller.

De acordo com dados de 2016, seus livros já venderam mais de um milhão de exemplares. Em 2018 foi considerado, junto a Max Mallmann, Raphael Draccon e Eduardo Spohr, como um dos principais autores brasileiros de fantasia do século XXI. Começou a carreira trabalhando como redator para o departamento de jornalismo da Rádio Jovem Pan, e também tinha um emprego de meio-período em uma empresa de cartões de crédito. Publicou por conta própria seu romance de estreia, O Senhor da Chuva, em 1998.

Publicou, com uma tiragem de mil cópias, aquele que se tornaria seu primeiro best-seller, Os Sete, em 1999. Os Sete foi seguido por Sétimo e pela trilogia O Turno da Noite, e pela prequela em quadrinhos Vampiros do Rio Douro, em dois volumes. Depois de publicar os thrillers sobrenaturais A Casa e Sementes no Gelo em 2002, voltou à ficção vampiresca com Bento em 2003, primeiro livro da série O Vampiro-Rei; foi seguido por A Bruxa Tereza (2004) e Cantarzo (2005), e pela série de prequelas As Crônicas do Fim do Mundo – a primeira parte, A Noite Maldita, foi lançada em 2013; a segunda, À Deriva, foi anunciada por Vianco em seu site oficial em fevereiro de 2019. Em 2010, lançou O Caso Laura, que saiu no ano seguinte, e a série de livros infantis Meus Queridos Monstrinhos, que desde 2014 já tem três volumes. Em 2015 lançou Estrela da Manhã. Em 2016 publicou seu primeiro romance de ficção científica, Dartana. Publicou seu 17. romance (e 23. obra literária como um todo), Penumbra, 2017.