sábado, 2 de novembro de 2019

Luiz Poeta (O Homem Importante)


O homem importante chega e os aplausos explodem no grande teatro. Os aplausos estavam preparados para o homem importante e os espaços entre as mãos separadas fechar-se-iam a cada palavra bonita ou idiota que o homem importante proferisse.

O homem importante começou a discursar e cada sílaba ecoava mais grave e musical que a outra.

Os aplausos espocavam e o homem importante prosseguia entusiasmado com suas próprias palavras, que tornavam-se brados e seus brados tornavam-se explosões emotivas e suas emoções atraiam outras emoções.

Abruptamente, entretanto, uma voz soou mais alto que a mais alta voz do homem importante: era a voz de um homem sem importância.

Alguém o interrompeu, outro censurou-o, mais um xingou-o - o homem sem importância continuou a falar.

O homem importante silenciou, sorriu seu riso irônico como se não se importasse com o homem sem importância; os outros, ensaiados, riram com ele. Mas o homem sem importância continuava e suas palavras sem crédito atravessaram os ouvidos feitos para ouvir sem sensibilidade, entretanto o ouvir deixou, paulatinamente, de ser fisiológico para ser gradativamente metafísico.

O homem sem importância falava e agora eram suas sílabas que se tornavam vibrantes, sonoras... e eram suas frases que inundavam todos os espaços auriculares do teatro.

Os ruídos alheios foram sumindo a cada sussurro subordinado à síncope do estupor.

O homem importante afundava-se na soberba poltrona reclinável reservada para sua importância e as palavras do homem sem importância perfuravam-lhe os tímpanos e a pele gelada, suada e pálida.

O homem importante quis interromper, mas seus argumentos arranhavam-lhe a garganta e seus dedos trêmulos e indecisos impossibilitavam-no de gesticular.

O homem sem importância falava e suas palavras feias pela sua própria condição de homem sem importância eram compreendidas por todos que o cercavam e que, repentinamente, perceberam-se também homens igualmente "desimportantes".

Um aplauso ecoou na carona de uma das frases emitidas pelo homem sem importância; outro juntou-se ao primeiro, mais outro, outro mais... todo o teatro explodiu freneticamente na unanimidade da compreensão e da aceitação, e o homem sem importância tomou-se impetuosamente importante e continuou a falar, a gritar, a bradar coisas que todos entendiam.

O homem que "era importante" sumiu na escuridão das galerias e bastidores do teatro e de si mesmo porque, agora, ele não era mais importante; sua roupa importada já não era importante, suas parábolas e paráfrases copiadas não eram importantes; não era importante o fio de ouro que tinha em um dos caninos... suas palavras debilitaram-se na reação espontânea de cada um dos presentes; tomaram-se indigentes nas marquises de sua amarga solidão silenciosa... sua gravata de seda, suas abotoaduras de cristal, seu relógio Cartier, seu documentos microfilmados, suas teorias decoradas previamente aos discursos, nada disso importava mais.

O outro indivíduo, "o ex-homem sem importância" não mais precisava falar, porque as palavras saídas dele fizeram-se de todas as bocas e o seu nome e sua imagem sem nome elevaram-se no ar e se propagaram como oxigênio purificado.

Quando o teatro esvaziou-se, uma vassoura movida por dois braços sem importância empurraram para a lata de lixo, o impecável discurso do homem... Importante.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 104


Vinicius de Moraes (A Arca de Noé)


Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pelo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre - "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.

Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.

Francisco José Pessoa (Se eu fosse…)


Um Malba Tahan, calcularia em segundos as horas de alegria que a vida nos dá.

Um Einstein, criaria um antídoto para entibiar a bomba que certo dia flamejou o céu de Hiroshima.

Um Alexandre, o grande, teria conquistado o cotação do incrédulo, fazendo-o crer no Grande Arquiteto.

Um Ataúlfo Alves, no meu arrependimento, diria como ele disse: aquilo sim, é que era mulher.

Um Graham Bell, teria inventado um telefone que, pudesse eu, sentir o odor dos teus lábios, e que minhas frases ouvisse maviosas.

Um Braille, transportaria os dedos para uma zona do cérebro.

Um Barnard, só transplantaria coração de um homem bom para um homem de bem.

Um Bill Gates, tornaria virtual a violência que envolve os povos.

Um Karl Marx, repensaria nos seus propósitos, pois, minha mulher é só minha.

Um Pedro, teria registrado a Igreja para alguém não tomar posse.

Um Santos Dumont, não me contentaria em dar só uma voltinha em torno da Torre Eiffel.

Uma Iemanjá, ordenaria que suas sereias retirassem suas escamas para nosso bel-prazer.

Um Fernando, nunca queria ter Cardoso como sobrenome.

O sol, tiraria umas férias para o deleite dos enamorados.

A lua, tiraria umas férias para não aumentar a população chinesa.

Um Salomão, eu seria um sábio e teria trezentas mulheres... acorda, Pessoinha!

Fonte:
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.
Livro enviado pelo autor.

Cecim Calixto (Cajado de Sonetos) II


DOIS AMORES
( Ao trovador A. A. de Assis)

Vou postergar toda ventura minha
E dedicar-me, inteiramente, à trova.
Toda obsessão que no passado eu tinha
Deixou meu senso e suportou a prova.

Mas, por amá-lo o deixarei na linha
E semi-aberta vou manter a cova.
E sei que o irmão, com todo afeto, aninha
No relicário sua irmã mais nova.

Os quatro versos me darão a glória
De pela frente penetrar na história,
Levando ao colo primorosa filha.

E no esplendor da fama em seu coreto,
Verei passar a trova e o irmão soneto
De braços dados pela nova trilha.

FIDELIDADE

Ao me deitar um doce aroma sinto
Que se desprende do lençol vetusto.
Ao velho amigo, tudo a mais consinto,
Pois fez de mim um ser humano justo.

Mantenho-o limpo e com rigor distinto,
Dou-lhe aparência de servente augusto,
Tanto me vela que eu até pressinto
Certa promessa de elevado custo.

Leito vazio... companheira ausente...
O possessivo, sei, jamais consente
Estranha fêmea se deitar na cama.

Se por acaso, ingenuamente aceito,
Ele de pronto desarruma o leito
Na injusta ausência da primeira dama.

ÚLTIMO DESEJO

Quando eu morrer quero caixão de pobre,
Sem adereço, sem jargão de luto.
Não quero tampa de madeira nobre
E nem legenda de mortal tributo.

A terra roxa que o defunto cobre
Será por certo, meu final reduto.
E na capela, que o sineiro dobre
O sino agudo, só por um minuto.

Carro de luxo para o meu transporte;
Vileza certa pela minha morte;
Versão perversa repudiada um dia.

Mas quero sim a musa ao meu redor,
A declamar sonetos meus de cor
Na solidão da minha tumba fria.

FRUSTRADA TENTAÇÃO
A honestidade justifica a luta,
Não vou ceder-lhe o cobiçado espaço.
E não me afeta essa trivial conduta
Na exposição do seu perfil devasso.

Mentira existe - carcomida astuta. -
Fidelidade eu sei fazer e faço.
Meu coração não me propõe permuta
E outro carinho, com prazer, rechaço.

Do meu enlace, ante o Senhor legado,
O anel ostenta este cristão honrado
De cuja cama um só perfume exala.

Não me atormente, cortesã vulgar,
Não vou quebrar o que jurei no altar:
Ser dela sempre e eternamente amá-la.

REVIVESCÊNCIA

A verve explode no quintal da mente,
Replanta a flor que o menestrel almeja.
No espaço surge a floração nascente
Num colorido que a emoção corteja.

A natureza tudo aplaude e sente
Quanto lirismo o trovador planeja,
No sentimento de espalhar semente
Se enche de orgulho e na doação sobeja.

Cuida da messe em devoção constante,
Escreve e lê sem nunca achar bastante
Raros sonetos que em sua alma abriga.

Eis o recado ao escritor moderno:
Que busque a luz do parnasiano eterno
Na revivência da canção antiga.

CORAÇÃO MATERNO

A vida dela se partiu ao meio
Por um amor que glorifica a gente.
Faz tanto bem ao coração alheio
E aquece o meu com afeição ardente.

Acolhe o pobre sem nenhum receio,
Tranquila atende a quem se diz carente.
Seu cofre santo de bondade cheio
Doa saúde ao sofredor doente.

Consolo e amparo é tudo que ela dá
Para os carentes que passam por lá
No desespero de comer um pão.

Ela no seio tem, do leite, a fonte
Para a criança que o destino afronte
E todo arrimo ao desprezado ancião.

SACERDÓCIO

Veementemente eu agradeço a graça
Da convivência fraternal, bendita!
Além de tudo, sem nenhuma jaça,
Na minha casa a paz perene habita.

Bendigo e muito a exuberante raça
Que a venturança ao santo Ser credita,
E o meu caráter manda que eu refaça
O nobre gesto que a emoção agita.

Visito o pobre assim preciso
Para ensinar-lhe o singular sorriso
Que eu aprendi na festival igreja.

No cumprimento de afagar alguém,
Minha missão inclui doar também
Sem permitir que a mão esquerda veja!

Fonte:
Cecim Calixto. Flores do meu cajado: sonetos. Curitiba: Juruá, 2015.
Livro enviado por Vania Ennes.

Carolina Ramos (Conto Natalino)


– Papai Noel não existe!

— Existe, sim! Já disse que existe!

— Deixa disso, vô. Se Pai Noel existisse, eu "tava" assim de presentes! E o que é que eu ganho todo o ano?! — Nada de nada!

O velho engoliu em seco. Verdade! Todo final de ano, era sempre a mesma coisa. Um bruto remorso, como bola de gude das grandes, vinha rolando, rolando e embocava, certinho no seu coração. Remorso de tanta coisa... principalmente, das visitas ao bar do Maneco, à tardinha. Juntasse o que deixava por lá, e, talvez a bola cobiçada pelo neto estivesse ao alcance do seu bolso. Mas, o amor próprio logo arranjava jeito de dividir a culpa. Era isso: — Por que tinha o neto de ser complicado?! Não pedia uma bola qualquer, não! Tinha que ser uma bola fabulosamente colorida! E colorida com todas as cores do arco-íris! Sem faltar nenhuma! Que bobeira! Lá isso existia? Talvez fosse mais fácil encontrar na rua o bom velhinho de barbas brancas comandando o seu trenó de renas, do que achar aquela bola maluca! Maluco era o neto! Onde se viu?

— Queria todas as cores numa bola só, para, num chute, riscar no céu o mais lindo arco-íris e, correndo, cruzá-lo, em seguida, só para ver se do lado de lá havia, realmente, uma vida melhor!

— Tá loco, seu! — para um sonho impossível, só mesmo um possível desinteresse! E era o que acontecia todos os anos. Depois do Natal é que o desaponto do garoto lhe pesava no coração.

Neste ano, até que o vô andara alerta. Vasculhara todos os cantos e não vira bola alguma semelhante à sonhada pelo neto. Até a roubá-la se dispusera, caso a encontrasse. As sobras no bolso, não eram bem sobras e, sim, carências. Faltava tanto para isto; faltava, outro tanto para aquilo. Sobras que poderiam ser o princípio de tudo, mas, não davam para nada.

Coçou a barba encardida. Parou no barzinho do Maneco. Se as sobras não davam para nada, uma paradinha a mais ou a menos, não alteraria o orçamento familiar. Família pequena. Ele e o neto. E o garoto não passava fome nunca. A vizinhança era pobre, mas, sempre restava algo para o guri de olhos negros, brilhantes, pernas finas e ligeiras. E as sobras de um neto chegavam para fartar o fastio de um velho vô.

Na véspera do Natal, o velho, barba encardida, alargou seu giro pelas redondezas. Terra de contrastes! Suntuosos casarões esbanjando luxo pelas portas e janelas. Não longe dali, velhos cortiços e casebres empilhados nas favelas amparavam-se uns aos outros para não beijarem o chão. Chão esse, terra essa, que merecia mesmo ser beijada. Beijada com amor. Beijada como rosto de mãe que tudo dá e nada pede. Os filhos, sim, ingratos ou tolos, tendo tudo à mão, preferiam a miséria.

Parou de filosofar à sua moda, frente a um casarão ostensivo:

— Céus! Que festival de luzes! O largo portal entreaberto convidava. Descuido, talvez. O velho esgueirou-se, contornando o prédio.

A escalada não foi difícil. Não era tão velho assim. A pinga é que lhe pesava feio nas pemas! Ninguém por perto. Todos ocupados. O espírito do Natal borbulhando nas taças. Em algum lugar daquela casa, haveria um Menino entre palhas e presentes. Onde?

No terraço superior, forçou a porta. Com jeito, cedeu. Fácil!

Para vencer a penumbra, apertou os olhos ao invadir o quarto.

Um espelho refletiu-lhe a imagem. Atrás de si, um leito. A decoração não mentia. Quarto de criança. E dois olhos de criança, negros como os do neto, seguiam-lhe atentamente os movimentos.

A mão pequenina apagou a luz de cabeceira. Voz frágil quebrou o silêncio:

— Pai Noel, você enxerga mesmo no escuro?!

O velho pasmou. Pai Noel? Ele?! E por que não?! Era a saída,..

Não... não, garoto… deixa essa luzinha acesa… sempre ajuda... sabes, eu já sou muito velhinho...

— Cadê a sua roupa vermelha, Pai Noel?

— O calor… É… o calor brasileiro… quem aguenta?! Fui obrigado a trocar de roupa ou não poderia entregar os brinquedos.

— E os brinquedos? Pai Noel? Onde estão?

— Tudo entregue. Tudinho!

— Então… o que é que você veio fazer aqui?!

Pai Noel pensou rápido: — Bem, o negócio é o seguinte: Todas as crianças deste mundo já ganharam presentes. Mas, faltou unzinho só. Um guri, assim da tua idade. Obediente, bonzinho... que também merece ganhar alguma coisa. E não tenho nada... nada mesmo, para dar a ele. Como és um menino bom... com certeza já ganhaste muitos presentes, não é verdade? Vim pedir a tua ajuda. Pode ser? Eu só quero um presentinho à toa... qualquer coisinha... aquilo que menos te agrade. Tá?

O garoto ouvia iluminado: — Pai Noel, abra aquele armário. Pegue aquela bola linda que você me trouxe no ano passado. Está novinha! Sabe, eu não gosto muito dela. Ela sempre foge de mim... rolando pra longe...

Só então o velho notou as botas ortopédicas, encostadas ao leito.

Sentiu as lágrimas afogarem a imagem do menino triste. Enxugou-as com a barba encardida. Abriu o armário. Exultou! Lá estava a bola mais bonita que jamais vira! Todas as cores do arco-íris, sem faltar uma sequer e muita bem casadas! O sonho do neto! Beijou-a sonoramente. Ao ouvir passos, despediu-se apressado:

~ Tchau... menino bonzinho... Obrigado! Sara logo que, no ano que vem, Pai Noel vai te trazer a bola do mundo de presente!

Por um instante, o olhar tristonho da criança, rodeada de mimos, mas, tremendamente solitária, trouxe-lhe à memória a lembrança de um certo Menino, de quase dois mil anos, esquecido entre palhas, em plena noite de Natal!

Na rua, o velho coração batia apressado... leve... leve... nem mesmo o bar do Maneco logrou alterar-lhe o ritmo. Em casa, enfatizava:

— Eu não te disse que Pai Noel existe? Taí, garoto teimoso, olha o teu sapato... olha!

Os olhos do neto brilhavam mais do que a Estrela de Belém! A custo, conseguiu balbuciar: - A bola... a bola que eu queria!... como é que ele adivinhou?! Ah!?, vô, agora eu sei que Pai Noel existe! Existe, sim! Desta vez eu nem pedi nada, mas, ele adivinhou direitinho o que eu queria!

Triunfante, o coração do velho deu um pinote e piscou, maroto, para o próprio dono.

"Pai Noel" de barba encardida, sorria feliz... Feliz como nunca, imaginando o arco-íris, mais lindo do mundo que um garoto de olhos negros, pernas finas e ligeiras, iria riscar no céu... logo... logo...

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Isabel Furini (A Rosa Vaidosa)


Malba Tahan (Uma Lenda sobre a Beleza)


No livro sagrado, que os sábios intitulam "O Lótus da Lei Perfeita", encontrarás, meu amigo, depois da décima página, uma lenda esquecida pelos homens, apesar de estudada por sete profetas. Refiro-me à Lenda da Beleza que venceu o Tédio e conquistou a Vida.

Certa vez, por um triste capricho da Fatalidade, o poder do mundo foi cair nas mãos odientas da Vulgaridade.

- Que fez a Vulgaridade ao subir ao trono? Resolveu destruir e aniquilar a sua perigosa rival - a Beleza.

Chamando o Tédio, seu servo predileto, disse-lhe a execrável soberana:

- Detesto a Beleza! Quero fazê-la desaparecer da face da terra. Tens ordem para pendê-la e matá-la de qualquer modo.

O tédio respondeu:

- Escuto e obedeço, senhora! Mas, afinal, como é a Beleza? Como poderei encontrá-la, se não a conheço?

- Ora, nada mais simples - tornou a Vulgaridade. - Interroga um poeta qualquer e logo saberás como é a Beleza.

Partiu o Tédio. Encontrando um poeta interpelou-o:

- Como é a Beleza?

Sem hesitar, respondeu o poeta:

- Ainda ignoras? A Beleza é loura, de olhos azuis da cor do céu; a sua pele é clara e rosada, as suas mãos...

- Basta! Tudo o mais que disseres seria fastidioso e inútil. Já sei como é a Beleza! Vou descobri-la por mais oculta que esteja.

E o Tédio partiu em busca da Beleza...

Depois de muito caminhar, chegou ao país de Moab, para além do grande deserto. Um camponês repousava sob uma árvore.

- Terás visto, por aqui - perguntou o Tédio - a Beleza que procuro?

- Queres descobrir a Beleza! - exclamou o camponês. - Ei-la precisamente ali, ó forasteiro!

E apontou na direção de uma jovem que se encaminhava para a ponte, levando ao ombro um pequeno cântaro.

O Tédio procurou certificar-se. A graciosa rapariga era morena, de olhos verdes e cabelos castanhos como as filhas de Judá! Mas como diferia da que fora descrita pelo poeta! Não, não podia ser a Beleza!

- A Beleza fugiu para a China! - informou um peregrino.

Seguiu o Tédio para a China e indagou de um rico mandarim que soltava papagaios de seda:

- Senhor! Teria a Beleza aparecido em vossa terra?

- Apareceu, sim - replicou, alegre, o mandarim. - Ei-la!

E com o seu dedo de unha longa e angulada, apontou para uma rapariga ocupada em fabricar lanternas de papel.

O escravo da Vulgaridade preparou-se para executar a ordem que recebera. Enganara-se, porém, o informante. A jovem que o mandarim indicara era pálida, esguia, tinha os olhos amendoados, os cabelos negros e ondulados. Não! aquela não podia ser a Beleza!

O Tédio deixou o país dos chineses e foi em busca de outros climas. Diante dele a Beleza fugia sempre, ocultando-se astuciosamente. Todo o seu esforço tornou-se inútil. Não conseguiu encontrar e destruir a Beleza!
________________________
E o livro admirável "O Lótus da Lei Perfeita" - ensina com sua eterna e incomparável sabedoria:

- Eis por que a Beleza floresce e domina, sob aspectos tão diversos, quando a observamos, nos inconquistáveis recantos e países do mundo. Aqui é morena e tem olhos negros, mais adiante é loura, de claros olhos de anil. Aqui é viva e alegre, para, além, surgir sentimental e terna!

É que a Beleza, para fugir do mal do Tédio e ao perigo da Vulgaridade, varia sempre e sem cessar.

    
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

Manuel Du Bocage (Sonetos) III


XVI

Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a noite escura e feia;
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado:

Só eu velo, só eu, pedindo à sorte
Que o fio, com que está minh'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte:

Consola-me este horror, esta tristeza;
Porque a meus olhos se afigura a morte
No silêncio total da Natureza.

XVII

Oh, tranças, de que Amor prisões me tece,
Oh, mãos de neve, que regeis meu fado!
Oh tesouro! oh mistério! oh par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Oh ledos olhos, cuja luz parece
Tênue raio de sol! oh gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse !

Oh! Lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira !

Oh perfeições! Oh dons encantadores!
De quem sóis?... Sois de Vênus? - é mentira
Sois de Marília, sois de meus amores.

XVIII
 
Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera , a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:

Varrendo os ares o sutil nordeste
Os torna azuis : as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E torna o fresco Tejo a cor celeste;

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

XIX
 
Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes, e aos amores,
Hoje serei feliz! - longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo,
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores,
Hei de enfim possuir: porém segredo!

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o pai dos numes :

Cale-se o caso a Jove onipresente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

XX
 
Temo que a minha ausência e desventura
Vão na tua alma, docemente acesa ,
Apoucando os excessos da firmeza.
Rebatendo os assaltos da ternura :

Temo que a tua singular candura
Leve o tempo fugaz, nas asas presa
Que é quase sempre o vício da beleza,
Gênio imutável, condição perjura:

Temo! E se o fado meu, fado inimigo
Confirmar impiamente este receio ,
Espectro perseguidor, que anda comigo,

Com rosto, alguma vez de mágoa cheio ,
Recorda-te de mim, dize contigo :
“era fiel, amava-me e deixei-o"

XXI
 
Enquanto o sábio arraiga o pensamento
Nos fenômenos teus, oh Natureza
Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa
Volve o sutil geométrico instrumento:

Enquanto, alçando a mais o entendimento,
Estuda os vastos céus, e com certeza
Reconhece dos astros a grandeza,
A distância, o lugar, e o movimento:

Enquanto o sábio, enfim, mais sabiamente,
Se remonta nas asas do sentido
À corte do Senhor onipresente:

Eu louco, cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, ó Jônia, a mente:
Do mais, e de mim mesmo ando esquecido...

XXII

O corvo grasnador e o mocho feio
O sapo berrador e a rã molesta,
São meus únicos sócios na floresta,
Onde carpindo estou, de angústia cheio:

Perdi todo o prazer, todo o recreio…
Ah, malfadado amor, paixão funesta!
Urselina perdi, nada me resta,
Madre terra! Agasalha-me em teu seio;

Da víbora mordaz permite, oh Sorte,
Que nos matos aspérrimos que piso
As plantas me envenene o tênue corte!

Ah! Que é das graças? Que é do paraíso?
A minh'alma onde está? Quem logra... oh Morte,
Quem logra de Urselina o doce riso?

Fonte:
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Soneto e outros poemas. São Paulo: FTD, 1994.

Monteiro Lobato (Um Homem Honesto)


— EXCELENTE CRIATURA! Dali não vem mal ao mundo. E honesto, ah! Honesto como não existe outro — era o que todos diziam do João Pereira.

João Pereira trabalhava em repartição pública. Estivera a princípio num tabelionato e depois no comércio como caixeiro do empório Ao Imperador dos Gêneros.

Deixou o empório por discordância com a técnica comercial do imperante, que toda se resumia no velhíssimo lema: gato por lebre. E deixou o cartório por não conseguir aumentar com extras o lucro legal do honradíssimo tabelião. Atinha-se ao regimento de custas, o ingênuo, como se aquilo fora a tábua da lei de Moisés, coisa sagrada.

Na repartição vegetava já há dez anos sem conseguir nunca mover passo à frente. Ninguém se empenhava por ele, e ele, por honestidade, não orgulho, era incapaz de recorrer aos expedientes com tanta eficácia empregados pelos colegas na luta pela promoção.

— Quero subir por merecimento, legalmente, honestamente! — costumava dizer, provocando risinhos piedosos nos lábios dos que “sabem o que é a vida”.

João Pereira casara cedo, por amor — não compreendia outra forma de casamento — e já tinha duas filhas mocetonas. Como fossem sobremaneira curtos os seus vencimentos, a pequena família remediava-se com a renda complementar dos trabalhos caseiros. Dona Maricota fazia doces; as meninas faziam crochê — e lá empurravam a pulso o carrinho da vida.

Viviam felizes. Felizes, sim! Nenhuma ambição os atormentava e o ser feliz reside menos na riqueza do que nessa discreta conformidade dos humildes.

— Haja saúde que vai tudo muito bem — era o mote de João Pereira e dos seus.

Mas veio um telegrama...

Nos lares humildes telegrama é acontecimento de monta, anunciador certo de desgraça. Quando o estafeta bate na porta e entrega o papelucho verde, os corações tumultuam violentos.

— Que será, santo Deus?

Não anunciava desgraça aquele. Um tio de João Pereira, residente no interior, convidava-o a servir de padrinho no casamento da filha. Era distinção inesperada e Pereira, agradecido, foi. E muito naturalmente foi de segunda classe, porque nunca viajara de primeira, nem podia.

Bem recebido, apesar de sua roupa preta fora da moda, funcionou gravemente de testemunha, disse aos nubentes as chalaças do uso, comeu os doces da festa, beijou a afilhada e no dia seguinte se fez de volta. Acompanharam-no à estação o tio e os noivos, amáveis e contentes; mas protestaram indignados ao vê-lo meter a maleta num carro de segunda.

— Não admitimos!... Tem que ir de primeira.

— Mas se já comprei o bilhete de volta...

— É o de menos — contraveio o tio. — Mais vale um gosto do que quatro vinténs. Pago a diferença. Tinha graça!...

E comprou-lhe bilhete de primeira, sacudindo a cabeça:

— Este João...

João Honesto, assim forçado, pela primeira vez na vida embarcou em vagão de luxo, e o conforto do Pullman, mal o trem partiu, levou-o a meditar sobre as desigualdades humanas. A conclusão foi dolorosa. Verificou que é a pobreza o maior de todos os crimes, ou, pelo menos, o mais severa e implacavelmente punido.

Aqui, por exemplo, neste vagão dos ricos, refletia ele: poltronas de couro, boas molas no truck, asseio meticuloso, janelas amplas, criado às ordens. Tudo pelo melhor. Já nos carros dos pobres é o reverso, demonstrando-se o propósito de castigar com requinte de crueldade o crime de pobreza dos que neles embarcam. Nada de molas nos trucks para que o rodar áspero, solavancado, faça padecer a carne humilde. Nos bancos de tábua, tudo reto e anguloso, sem sequer um boleio que favoreça o repouso das nádegas. Bancos feitos de tabuinhas estreitas, separadas entre si de modo a martirizar o corpo. O espaldar — uma tábua a prumo — vai só até meia altura, negando assim a esmolinha dum apoio à triste cabeça do “sentado”. Bancos, em suma, que parecem estudados pacientemente por grandes técnicos da judiaria com o fim de obter o mínimo de comodidades no máximo de possibilidades torturantes. As janelas sem vidraças, só de venezianas, dir-se-iam ajeitadas ao duplo fim de impedir o recreio da vista e canalizar para dentro todo o pó de fora. Nada de lavatórios: o pobre deve ser mantido na sujeira. Água para beber? Vá ter sede na casa do senhor seu sogro!

João sorriu. Veio-lhe à ideia lindo “melhoramento” escapo à sagacidade dos técnicos: encanar para dentro dos vagões de segunda a fumaça quente da locomotiva.

— Incrível não terem ainda pensado nisso!...

Lembrou-se depois dos teatros, e viu que eram a mesma coisa. As torrinhas são construídas de jeito a manter bem viva na consciência do espectador a sua odiosa condição social.

— És pobre? Toma! Aguenta a dor de espinha do banco sem espaldar nos trens e nos teatros resigna-te a não ver nem ouvir o que vai no palco.

João Pereira ainda filosofava estas desconsoladoras filosofias quando o trem chegou. Desembarcaram todos — à rica, pacotes e malas por mãos de solícitos carregadores. Só ele conduzia a sua, pequenina mala barata de papelão a fingir couro.

Saiu. Na rua, porém...

— Diário Popular, Plateia...

... lembrou-se dum jornal comprado em caminho e que deixara no carro. Não vale nada um jornal lido? Vale, sim, e tanto que Pereira voltou depressa a buscá-lo. Sempre é um bocado a mais de papel na casa. Ao penetrar no Pullman vazio tropeçou num pacote largado no chão.

— Não sou eu só o esquecido! — refletiu Pereira a sorrir, apanhando-o.

A curiosidade não é privilégio das mulheres. João apalpou o pacote, cheirou-o e por fim rasgou de leve um canto do invólucro.

— Dinheiro!

Era dinheiro, muito dinheiro, um pacotão de dinheiro!

Pereira sentiu um tremelique de alma e corou. Se o vissem naquele momento, sozinho no carro, com o pacote a queimar-lhe as mãos... “Pega o larápio!” Esqueceu do jornal lido e partiu incontinenti à procura do chefe da estação.

— Dá licença?

O chefe interrompeu o que fazia e olhou-o com displicência.

— Encontrei num carro do expresso este pacote de dinheiro.

À mágica voz de dinheiro o chefe perfilou-se e, arregalando os olhos num dos bons assombros da sua vida, exclamou pateticamente:

— Dinheiro?!...

— Sim, dinheiro — confirmou João. — Num carro do expresso. Eu voltava de Himenópolis, e ao desembarcar...

— Deixe ver, deixe ver...

João depôs sobre a mesa o pacote. Com os óculos erguidos para a testa, o chefe desfez o amarrilho, desembrulhou o bolo e assombrado viu que era na verdade dinheiro, muito dinheiro, um dinheirão!

Contou-o, com dedos comovidos. Pasmou. Encarou a fito o homem sobrenatural.

— Trezentos e sessenta contos!

Piscou. Abriu a boca. Depois, erguendo-se, disse em tom sincero, espichando-lhe a mão:

— Quero ter a honra de apertar a mão do homem mais honesto que ainda topei na vida. O senhor é a própria honestidade sob forma humana. Toque!

João apertou-lha humildemente e também a de outros auxiliares que se haviam aproximado.

— O seu caso — continuou o chefe — marcará época. Há trinta anos que sirvo nesta companhia e nunca tive conhecimento de coisa idêntica. Dinheiro perdido é dinheiro sumido. Só não é assim quando o encontra um... como é o seu nome?

— João Pereira, para o servir.

— Um João Pereira, o Honrado. Toque de novo!

João saiu nadando em delícias. A virtude tem suas recompensas, deixem falar, e a consciência dum ato como aquele cria na alma inefável estado de êxtase. João sentia-se muito mais feliz do que se tivera no bolso, suas para sempre, aquelas três centenas de contos.

Em casa narrou o fato à mulher, minuciosamente, sem todavia indicar o quantum achado.

— Fez muito bem — aprovou a esposa. — Pobres, mas honrados. Um nome limpo vale mais do que um saco de dinheiro. Eu sempre o digo às meninas e puxo o exemplo deste nosso vizinho da esquerda, que está rico, mas sujo como um porco.

João abraçou-a comovido e tudo teria ficado por ali se o demônio não viesse espicaçar a curiosidade da honrada mulher. Dona Maricota, depois do abraço, interpelou-o:

— Mas quanto havia no pacote?

— Trezentos e sessenta contos.

A mulher piscou seis vezes, como se jogada de areia nos olhos.

— Quan... quan... quanto?

— Tre-zen-tos e ses-sen-ta!

Dona Maricota continuou a piscar por vários segundos. Em seguida arregalou os olhos e abriu a boca. A palavra dinheiro nunca lhe sugerira a ideia de contos. Pobre que era, dinheiro significava-lhe cem, duzentos, no máximo quinhentos mil-réis. Ao ouvir a história do pacote imaginou logo que se trataria aí duns centos de mil-réis apenas. Quando, porém, soube que a soma atingia a vertigem de trezentos e sessenta contos, sofreu o maior abalo de sua existência. Esteve uns momentos estarrecida, com as ideias fora do lugar. Depois, voltando a si de salto, avançou para o marido num acesso de cólera histérica, agarrou-o pelo colarinho, sacudiu-o nervosamente.

— Idiota! Trezentos e sessenta contos não se entregam nem à mão de Deus Padre! Idiota! Idiota!... Idioooota...

E caiu numa cadeira, tomada de choro convulso. João pasmou. Seria possível que morasse tantos anos com aquela criatura e ainda lhe não conhecesse a alma a fundo? Tentou explicar-lhe que seria absurdo variar de proceder só porque variava a quantia; que tanto é ladrão quem furta um conto como quem furta mil; que a moral...

Mas a mulher o interrompeu com outra série de “idiotas” esganiçados, histéricos, e retirou-se para o quarto, descabelando-se, louca de desespero.

As filhas estavam na rua; quando voltaram e souberam do caso, puseram-se incontinenti ao lado da mãe, furiosíssimas contra a tal honestidade que lhes roubava uma fortuna.

— Você, papai...

João quis impor a sua autoridade paterna. Ralhou e fê-las ver quão indecoroso era pensarem de semelhante maneira. Foi pior. As meninas riram-se, escarninhas, e deram de suspirar com o pensamento posto na vida de regalos que teriam se o pai possuísse melhor cabeça.

— Automóvel, um bangalô em Higienópolis, meias de seda...

— ... com baguetes...

— ... chapéus de Mme. Lucille, vestido de tafetá...

— Tafetá? Seda lamée!...

— Meninas! — esbravejou Pereira. — Eu não admito!

Elas sorriram com ironia e retiraram-se da sala, murmurando com desprezo.

— Coitado! Até dá dó!

Aquele nunca imaginado desrespeito magoou-o ainda mais do que a repulsa da mulher. Pois quê?! Ter aquela recompensa uma vida inteira de sacrifícios norteados no culto severo da honra? Insultos da esposa, censura e sarcasmo das filhas? Teria, acaso, errado? Verificou que sim. Errara num ponto. Devia ter entregado o dinheiro em segredo, de modo que ninguém viesse a ter notícia do incidente...

Os jornais do dia seguinte trouxeram notas sobre o grande acontecimento. Louvaram com calor aquele “gesto raro, nobilíssimo, denunciador das finas qualidades morais que alicerçam o caráter do nosso povo”.

A mulher leu a notícia em voz alta, por ocasião do almoço, e como não houvesse sobremesa disse à filha:

— Leva, Candoca, leva este elogio ao armazém e vê se nos compra com ele meio quilo de marmelada...

João encarou-a com infinita tristeza. Não disse palavra. Largou o prato, ergueu-se, tomou o chapéu e saiu.

Na repartição consolou-se. Receberam-no com parabéns e louvores.

— O teu ato é daqueles que nobilizam a espécie humana — disse, dando-lhe a mão, um companheiro. — Toque.

Pereira apertou-lha, mas já sem comoção nenhuma, preferindo no íntimo que não lhe falassem naquilo.

Estavam todos curiosos de saber como fora a coisa e rodearam-no.

— Conta por miúdo a história, João.

— Muito simples — respondeu ele com secura. — Encontrei um pacote de dinheiro que não era meu e entreguei-o, aí está.

— Ao dono?

— Não. A um chefe, a um chefe lá...

— Muito bem, muito bem. Mas escuta: não devias ter entregado o dinheiro antes de saber a quem pertencia.

— Perfeitamente — acudiu outro. — Antes de saber a quem pertencia e antes que o dono reclamasse...

— ... e provasse — pro-vas-se, entendes? — que era dele! — concluiu um terceiro.

João irritou-se.

— Mas que é que têm vocês com isso? Fiz o que a minha consciência ordenava e pronto! Não compreendo essa meia honestidade que vocês preconizam, ora bolas!

— Não se abespinhe, amigo. Estamos dando nossa opinião sobre um fato público que os jornais noticiaram. Você hoje é um caso — e os casos debatem-se.

O chefe de seção entrou nesse momento. A palestra cessou. Cada qual foi para sua mesa e João absorveu-se no trabalho, de cara amarrada e coração pungido.

À noite, na cama, já mais conformada, dona Maricota voltou ao assunto.

— Você foi precipitado, João. Não devia ter tanta pressa em entregar o pacote. Por que não o trouxe primeiro aqui? Eu queria ao menos ver, pegar...

— Que ideia! “Ver, pegar”...

— Já contenta uma pé rapada como eu, que nunca enxergou pelega de quinhentos. Trezentos e sessenta contos!...

— Não suspire assim, Maricota! Basta a cena de ontem...

— Impossível. É mais forte do que eu...

— Mas, venha cá, Maricota, fale sinceramente, fale de coração: acha mesmo que fiz mal procedendo honestamente?

— Acho que você devia ter trazido o dinheiro e devia consultar-me. Guardávamos o pacote e esperávamos que o dono o reclamasse — e provasse — pro-vas-se que era dele...

— Dava na mesma. Esse dinheiro nunca seria meu.

— Ficava sendo, é boa! Mas, olhe, João, você nunca pensou bem. Você não tem boa cabeça. É por isso que vivemos toda a vida esta vidinha miserável, comendo o pão que o diabo amassou...

— “Vidinha miserável!”... Sempre fomos felizes, nunca percebemos que éramos pobres...

— Sim, mas percebo-o agora, porque só agora nos surgiu a ocasião de enriquecer. Foi uma sorte grande que Deus nos mandou.

— “Deus... ”

— Deus, sim, e você o ofendeu afastando-a com o pé. Poderíamos estar ricos, fazendo caridade, beneficiando os doentes... Quanta coisa! Mas a tal honestidade...

— “A tal honestidade!...”

— Sim, sim! Tudo tem conta na vida, homem! Ladrão é quem furta um; quem pega mil é barão, você bem sabe. Veja os seus companheiros. O Nunes, que começou com você no cartório, já ronca automóvel e tem casa.

— Mas é um gatuno!

— Gatuno, nada! O Claraboia, esse já tem fábrica de chapéus. O seu Miguel — até quem, meu Deus! — comprou outro dia um terrenão em Vila Mariana.

— Mas é um passador de nota falsa, mulher!

— Passador de nota falsa, nada! Tem boa cabeça, é o que é. Não vai na onda. Não é um trouxa como você…

E não teve mais arranjo a vida do homem honrado. Adeus, paz! Adeus, concórdia! Adeus, humildade! A casa tornou-se-lhe um perfeito inferno. Só se ouviam suspiros, palavras duras. João perdeu a esposa. Impossível reconhecer na meiga companheira de outrora a criatura amarga, irredutível de ideias, que a visão dos trezentos e sessenta contos produzira.

E aquele coro que com ela faziam as meninas, sempre irônicas, sarcásticas...

— O vestido da Climene custou quinhentos mil-réis. Quando teremos um assim!

— Pois, olhe, às vezes a gente acha na rua vestidos assim, não um, mas centenas...

— Que adianta? Acha, mas desacha...

E suspiros.

Também na repartição foi-se-lhe o sossego. Todos os dias torturavam-no com alusões e indiretas irônicas.

Certa vez um dos colegas disse logo ao entrar:

— Sabem? Encontrei na rua um lindo broche de brilhantes.

— E levaste-o logo ao chefe, digo, ao Gabinete dos Objetos Achados...

— Não sou nenhum trouxa! Levei-o, sim, ao prego. Deu-me trezentos e sessenta mil-réis — e desde já vos convido a todos para uma vasta farra no domingo próximo.

— Vai também, seu Pereira?

O mártir não respondeu, fingindo-se absorto no trabalho.

— Não dá a honra... É um homem honeeeesto... Raça privilegiada, superior, que não se mistura, que não liga... Pois vamos nós, beber à beça, beber o broche inteirinho! Nem todos nascem com vocação para santo do calendário.

E o pior foi que desde o malfadado encontro do dinheiro João Pereira entrou a decair socialmente. Parentes e conhecidos deram de fazer pouco caso do “trouxa”. Se alguém lhe lembrava o nome para algum negócio, era fatal o sorrisinho de piedade.

— Não serve, o João não serve. É um coitado...

Convenceram-se todos de que João Pereira não era “um homem do seu tempo”. O segredo de todas as vitórias está em ser um homem do seu tempo...

Seis meses depois o descalabro da casa era completo. Perdida a alegria de outrora, dona Maricota azedara de gênio. Vivia num desânimo, lambona, descuidada dos afazeres domésticos, sempre aos suspiros.

— Para que lutar? Nunca sairemos disto... As ocasiões não aparecem duas vezes e quem deixa de agarrá-las pelos cabelos está perdido.

Aquele desleixo agravou a situação financeira da casa. Todos os encargos recaíam agora sobre os ombros do chefe, cujo ordenado não aumentava. João enojou-se da vida e perdeu o ânimo de vivê-la até o fim. Desejou a morte e acabou pensando no suicídio. Só a morte poria termo àquele martírio de todos os momentos, forte demais para uma alma bem formada como a sua.

Um dia o proprietário do prédio suspendeu o aluguel. Dona Maricota deu a notícia ao marido, cheia de indiferença.

— Esteve cá o homem da casa e disse que do próximo mês em diante são mais cinquenta...

— ?!...

— Mais cinquenta mil-réis, sim, ali na ficha! Ou, então, olho da rua!

— Mas é uma exploração miserável! — exclamou Pereira. — A casa é um pardieiro e nós não podemos, positivamente não podemos...

— Pois é. E quando uns diabos destes perdem pacotes — porque você bem sabe que só eles possuem pacotes para perder —, ainda aparece quem lhos restitua... Você está vendo agora como eles formam os tais pacotes. Arrancando o pão da boca duns miseráveis como nós — dos honestos...

— Pelo amor de Deus, Maricota, não me fale mais assim que sou capaz duma loucura!...

— Está arrependido? Está convencido de que foi tolo? Pois quando encontrar outro pacote faça o que todos fariam: meta-o no bolso. Quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão.

Estavam à mesa, sozinhos, tomando o magro café da noite.

— E você ainda não sabe de uma coisa — continuou ela depois duma pausa, como indecisa se contaria ou não.

— Que é?

— Disse-me hoje a Ligiazinha que você anda por aí de apelido às costas...

— Quê?

— João Trouxa! Ninguém diz mais Pereira...

O mártir ergueu-se, lançado por violento impulso interno.

— Basta! — exclamou num tom de desvario que assustou a mulher, e largando de chofre a xícara retirou-se para o quarto precipitadamente.

Dona Maricota, ressabiada, susteve a sua caneca a meio caminho da boca. E assim ficou, suspensa, até que tombou para trás, estarrecida.

Reboara no quarto um tiro — o tiro que matou o último homem honesto…

Fonte:
Monteiro Lobato. O Macaco que se fez Homem.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Gilson Faustino Maia (Poema em Décimas: O Poeta)


Você conhece o poeta,
aquele que canta em versos
as belezas do Universo
e que de forma discreta,
fala da vida secreta
dos seus ais, dos seus amores?
De seu mundo de esplendores?
Ele está em toda parte,
canta com garra e com arte,
sua fé e seus louvores.

Está na terra e no ar,
está na morte e na vida,
no olhar da mulher querida,
em seu viver, seu sonhar
e no desejo de amar.
Canta o mar com seu furor,
os desencontros do amor,
florestas, aves em festas,
madrugadas e serestas
e as mágoas do trovador.

A lua e sua beleza.
Canta a paz, tão desejada,
o amor que ficou na estrada,
as forças da natureza
e do sol, a realeza.
Canta a vida, tão sofrida,
sua pobreza bandida,
sua ternura no olhar.
Porém quem irá cantar
sua eterna despedida?

Fonte:
Poema enviado pelo poeta

Aparecidos Raimundo de Souza (Bizarro)


OITO E MEIA DA MANHÃ.

Dona Cecília está sentada confortavelmente na enorme mesa da sala tomando seu desjejum. A campainha toca. De má vontade se levanta. Caminha a passos lerdos devido à idade e alcança o hall que antecede a grande sala de estar. Estica o corpo. Na ponta dos pés, espia pelo buraquinho do olho mágico. Vê um homem de costas. Esse é um dos muitos, ou melhor, o principal defeito que os desconhecidos, de um modo geral, fazem questão de carregar. Ao baterem na porta de alguém (principalmente em prédios de apartamentos, onde não se conta com serviços de portaria), ao invés de permanecerem com a cara virada para o olho mágico, a fim de serem prontamente reconhecidos, optam por se distraírem mirando um ponto qualquer, ao acaso. Geralmente escolhem os pés, como a se certificarem se os sapatos não saíram correndo.

Dona Cecília fica um instante, quieta, imaginando que o sujeito logo desistirá. Volta à mesa. Renova o café. A campainha volta a tocar. Desta feita, três vezes consecutivas. Furiosa, a sessentona retorna ao hall. Todavia, não se dispõe a perder tempo perscrutando o corredor. Destranca e abre de vez. Ao fazê-lo, contudo, solta um grito medonho, ao tempo que bate a porta estrepitosamente na cara do inesperado visitante. Rosilda, a empregada, vem da cozinha, às carreiras. Atrás dela, acode também Nancy, a sobrinha e a filhinha Ciane, de oito anos. Rosilda se benze ao ver a velhota à beira de um ataque de nervos.

— Que foi dona Cecília? Que bicho lhe mordeu?

As duas amparam a anciã e a carregam para o quarto.

— Por Deus! — quer saber Rosilda. — O que foi que aconteceu?

Nancy igualmente curiosa, segura carinhosamente a mão da espantada e boquiaberta velhinha.

— Que diabo fez a senhora se assustar tanto assim?

Como dona Cecília perdera a voz momentaneamente, a jovem refaz os passos da tia. Volta à sala e escancara a porta, de supetão. Agarrada a sua saia, está a espevitada Ciane, tomada igualmente pela curiosidade de saber o que arriou a idosa a cair cheia de medo e pavor. O sujeito parado no umbral se condensa e compõem a figura de um cidadão vestido impecavelmente. Usa terno preto, camisa branca e gravata marrom, combinando com os sapatos. Na mão esquerda uma pilha enorme de livros.

— Pois não, senhor?

— Om ia, enhorita — diz a visita com a voz fanhosa. — Eu ome é Eporace. Ou endedor ambuante e íblias agradas.

— O que? Como!?

Nessa hora, e só nessa hora, Nancy percebe que o infeliz não tem nariz. Como se momentaneamente uma agulha rombuda estivesse perfurando seu coração, a bela dá um passo atrás, acometida de um medo infundado, mas tão forte, que o impulso imediato não é outro senão o de bater a porta com toda força na fuça do infeliz. Quando um ser humano não tem um olho, a coisa complica um pouco, ou melhor, complica muitíssimo. Sem orelha, passa. Com um ouvido só, engana. Sem um braço, ou perna, idem. Sem os dois, vexa, oprime, acanha, embora as pessoas olhem de soslaio, ficando inteiramente penalizadas. No fim, se acaba aceitando. Contudo, um rosto feio, de homem, e ainda por cima, sem o nariz, é de deixar qualquer filho de Deus assustado. A bem da verdade, assustado seria pouco. Assustadíssissimo, ou qualquer outro qualificativo ou coisa parecida, cairia de excelente tamanho.

Ciane, todavia, se adianta às intenções da mãe e aquiesce com ela, envolta num sorriso infantil repleto da mais pura inocência.

— Mãezinha, atende ele. Coitado, não tem nariz!

Nancy fica estática. Alguns segundos se queda paralisada. Sem nenhum tipo de ação. Rosilda chega de novo, bisbilhotando. Por pouco, ao pregar os olhos no cidadão bem ali a alguns passos dela, não segue o mesmo caminho da patroa, tendo um piripaque súbito e fulminante. Atordoada, volta, aos gritos, no passo que veio e some no fim do corredor que acessa os aposentos de dona Cecília, não sem antes fechar atrás de si à porta a chave.

Enquanto isso, na sala Nancy se recobra do susto. Ou pelo menos tenta.

— O senhor não quer entrar?

— Uito obriado.

— Pode repetir o que disse antes e me explicar a que veio?

O desnarigado coloca sobre uma mesinha de centro os volumes que carrega. Nancy lhe indica o sofá.

— Por favor, tome assento.

A figura extravagante obedece. Fala.

— Ou endedor e Íblias Agradas — diz a guisa de explicação. – Ostaria e icar om um eemplar ara e ajuar? Ez eais — completa numa cortesia quase diplomática.

Nancy não consegue entender uma palavra sequer. Ciane, esperta e arisca, socorre a mãe e a tira de um embaraço prestes a tomar corpo e forma.

— Mamãe, o tio vende Bíblias Sagradas.

— É!?

— Ele falou que cada livro custa dez reais. O nome dele é Leporace.

O coitado olha para a menina visivelmente contrafeito, porém, com ternura incontida. Sorri um sorriso feio e deformado, mas franco e verdadeiro. Em seguida desvia o rosto para a mãe. Balança a cabeça de modo a confirmar as palavras da miúda.

— Arotinha eserta. Enza Eus!

Sem saber o que responder, a moça encara a filha.

— O tio falou que sou esperta. Disse mais: Benza Deus!

Nancy chacoalha a cabeça feita vaquinha de presépio.

— Compra, mãe. É livro de Jesus.

— Como é que você sabe?

— Minha professora, na escola, outro dia, falou sobre isso. A senhora compra?

Tanto a jovenzinha insiste que Nancy, condoída e compadecida do estado lastimável do vendedor, acaba adquirindo dois exemplares.

— Tome, um é seu. Este outro dê a Rosilda.

Apanha a bolsa. Tira o dinheiro e estende ao rapaz.

— Aqui está. Aceita um café?

— E ão or inômodo...

Nancy vai até a cozinha e retorna com uma bandeja. O café é servido. Ao terminar, o vendedor retira de um bolso interno do paletó um maço de panfletos. Puxa um e estende a guria. De um lado, está impressa a oração do Pai Nosso, do outro, os Dez Mandamentos.

— Rá ocê! Embrança o io...

O homem feio termina o café em silêncio. Faz uma referência com a cabeça, em agradecimento. Então se levanta, passa a mão nos livros. Acena um adeus silencioso a Ciane. Vira as costas e ganha o corredor.

Fonte:
SOUZA, Aparecido Raimundo de. Havia uma ponte lá na fronteira. São Paulo: Ed. Sucesso, 2012.

Teresinka Pereira (Poemas Recolhidos) III


A IMPORTÂNCIA DA ANDORINHA

Alguém disse que uma andorinha só
pode fazer o verão,
além de outras coisas,
sem o truque dos sonhos.
E até mesmo sem o pedaço do céu
que nos abriga pela tarde.

A andorinha em questão,
se faz palavra de calor,
rosa de verão, esperança
cotidiana de transitar
sobre a vida,
sobre as esperas
e a ansiedade.

Uma andorinha só, que
se enlouquece e de repente
volta ao sendeiro de onde
partiu: caminho de aurora,
coração de mel, repetida
negação de nosso ateísmo.

DE MAIOR IMPORTÂNCIA

Decidi que hoje não trabalho:
vou só viver!

Declaro que meu testemunho
desta semana vai ser
minha liberação
desta fatalidade
de estar presente no planeta.

Hoje descobri que
tenho séculos marcados
nos meus genes e que
meu polimorfismo
é vão mas autêntico.

Não me surpreende
que hoje me sinta
mais importante
que o pôr do sol.

ESTOU SÓ

Vivo na alternativa
para não me assustar
com a realidade presente.

Vivo o apocalipse
como um animal selvagem
que finge de morto
para enganar o inimigo
ameaçador.

Vivo com o coração vazio
com medo de amar
o próprio paraíso do amor.

Nada quero ganhar
para nada perder
no diamante da noite.

Minha língua é volúvel:
digo palavras de pedra
e depois faço silêncio
para ouvir o vento.

ESPERANÇA

Na senda de teu amor
busquei meu doce céu,
meus verdes bosques
e água pura.

Os mais lindos prazeres
desfrutei em teu carinho.

Que fazer agora
que meu inocente passo
se distanciou de ti
e que tudo se vê tão triste...

De nossa paz brotou
uma dura sombra
e na poesia cresce o pranto...

Talvez no sábio tempo futuro
haja ainda uma faísca
de esperança para o amor!

NÃO VIVEMOS

Não vivemos, só morremos.
Isso nos dizem na escola,
na igreja e na família.
Dizem que a morte é bela,
mas a mim me parece sórdido
que os vivos dependam
das mortes dos heróis
para seguir vivendo
sua própria morte.

A primavera vem a meio passo
e morre antes da última flor.
A luz do dia é linda,
mas é durante a noite
que nos aliviamos
de nossa tristeza de viver.

O sol é mais humilde que a flor
e os sonhos são
muito mais eloquentes
que as vitórias do amor.

É uma total alucinação viver
sem um sonho puro porque
cada manhã a luz aberta
nos rouba do tempo
e do ébrio segredo da vida.

NOSSA REALIDADE

É necessário ser verdadeiros
até mesmo nos sorrisos,
nas palavras com as quais
cumprimentamos e nas que
pomos nos versos.

Os rastros imprevistos
não valem para salvar
nossa altaneira conveniência,
nem as esperanças servem
para salvar as difíceis distâncias.

É necessário cortar
todos os voos
de intermináveis quimeras,
multiplicar os avanços
da cotidiana tristeza
e o silêncio no qual
a tropeços caminhamos sós
rendidos à nossa simples
realidade.

OUTRO POEMA

Meu teclado, entre sombras,
acostumado que está à amargura,
tem soberbas cicatrizes.

Entretanto vou pensando sempre
nas profundas paixões
que produzem a morte ébria,
calada e desnuda, quando ataca
a um anjo na solidão.

Tenho meu peito ferido
com sangrenta violência:
harpas clandestinas me roubaram
além das alegrias e tristezas,
meu hábito de perpétuo espanto.

SE VOCÊ NÃO ESTÁ...

E agora que eu quero
recordar seus olhos,
onde estão?

Que cor de vivacidade
positivista os vestem hoje?

E quando quero romper
a palavra e o costume,
que inútil me sinto
se você não está?

Homens como você
não agarram o tempo
com as mãos ocupadas
na fogueira do calendário...

Por isso, me admiro
que me consideres
e não te esqueças de
regressar à nostalgia
desta tarde cor de cinza
para sufocar os outros ídolos
de minha paciente ternura.

Fonte:
Poemas enviados pela poetisa

Carlos Drummond de Andrade (A Visita Inesperada)


A empregada correu na frente, para avisar:

— Me desculpe, madame, mas a campainha tocou e mal eu fui abrindo a porta, essa madame aí foi entrando e dizendo que precisava falar com o doutor.

Atrás vinha uma senhora de porte altaneiro, que se plantou diante da mesa onde jantavam quatro pessoas e disse:

— Boa noite. Vim aqui buscar meu marido.

Os comensais entreolharam-se, em conferência muda de espantos que não encontravam expressão verbal, nem mesmo um oh!

A dona da casa, refazendo-se, quebrou o silêncio:

— Não quer sentar-se?

— Obrigada. Não pretendo me demorar nesta casa.

E voltando-se para um dos homens sentados:

— Agenor, vamos embora?

Agenor, sem levantar o rosto, respondeu:

— Estou jantando.

— Peça licença para interromper o jantar e vamos para casa.

— Estou jantando, já disse, e não costumo interromper minhas refeições.

— O lugar de você fazer refeições é a nossa casa, e não me consta que esta seja a nossa casa.

— Com licença, Heleninha — disse o outro homem. — Agora me lembrei que tenho de visitar um doente no Grajaú antes das dez. Vamos embora, Teresa?

— Não, Euclides — disse a dona da casa. — Prefiro que vocês fiquem. Não vejo nenhum inconveniente em que este assunto seja tratado em mesa-redonda, tanto mais quando Teresa é minha irmã e você é meu cunhado. E então, Agenor?

— Gosto de jantar tranquilo — respondeu Agenor. — Além do mais, não acho correto que pessoas estranhas entrem em domicílio alheio sem serem convidadas.

— Perdão, Agenor, essa pessoa estranha é sua mulher legítima, e a pessoa em cuja casa você está jantando é que é realmente um elemento estranho à nossa sociedade conjugal — objetou a recém-chegada.

— E se o diálogo fosse desenvolvido no salão, depois do jantar? — propôs Heleninha, ríspida.

— É mesmo — aprovou Teresa. — Você não acha, Lucrécia, que tudo pode ser conversado daqui a pouco? Estamos quase acabando.

Lucrécia transigiu:

— Bem, eu espero quinze minutos, não mais.

— Nesse caso, aceita um café? — sugeriu Heleninha, com um meio sorriso de circunstância (ou de vitória prévia?).

A invasora pensou um instante para responder:

— Aceito.

O dr. Euclides levantou-se e ofereceu-lhe uma cadeira, que Lucrécia, antes de sentar-se, recuou um pouco, a significar que absolutamente não participaria da mesa da amante de seu marido.

Voltando o silêncio, coube a Teresa realimentar a conversa, dizendo para a irmã:

— Heleninha, este seu Bianco é espetacular. Um nu tão sensual, e ao mesmo tempo tão casto.

— Pois eu ainda gosto mais dos trigais do Bianco, todo aquele esplendor da terra, que ilumina a parede em redor — disse o dr. Euclides.

— Se é Bianco, é sempre bom — comentou Agenor, saindo do mutismo em que mergulhara após a última estocada de sua mulher.

Entraram a falar de pintura, em sobremesa lenta.

— Aprecio os seus conhecimentos em matéria de arte, Agenor, mas não podia andar mais depressa com essa mousse de chocolate que está no seu prato? — agrediu outra vez Lucrécia.

Agenor continuou brincando com o talher na orla do prato, enquanto discorria sobre o fim da arte conceitual.

— Está se esgotando o tempo regulamentar — continuou ela — e eu não saio daqui sem você.

— Vamos tomar o café na sala — atalhou Heleninha, um pouco nervosa.

Levantaram-se todos.

— O meu cliente não pode esperar, o estado dele não é bom — disse Euclides. — Você vai permitir que eu me retire com Teresa.

— Não, querido, você e Teresa vão ficar aqui. O cliente inclusive terá vida mais longa, e é falta de educação se despedir logo depois da comida — objetou Heleninha.

Dirigiram-se todos para o salão.

— Muito bem — disse Heleninha, sentando-se como os demais, enquanto se servia café. — Agora podemos examinar calmamente a situação.

— Concordei em tomar café mas não concordei em examinar nenhuma situação — ressalvou Lucrécia. — Aliás, ela é muito clara. Agenor é meu marido e eu vim buscá-lo, simplesmente.

— Que é que você diz a isso? — perguntou Heleninha, virando-se para Agenor.

— Não preciso de guia para me levar a essa ou àquela parte — respondeu ele, olhando para o teto.

— Talvez precise, Agenor. Você saiu de casa às sete e meia da manhã, prometendo voltar para o almoço, e até agora. Todos os dias a mesma coisa. Concluo daí que lhe faz falta alguém para reconduzir você ao lar conjugal.

— Sou maior de vinte e um, tenho minhas pernas.

— Eu sei, ninguém está negando isso.

— Quando me sinto bem num lugar, satisfeito, relaxado, prefiro ficar mais tempo nele.

— Até certo ponto é razoável, meu caro. Mas se você se sentir bem no Regine’s, por exemplo, será que vai passar o resto da vida lá?

Heleninha atalhou:

— Dada a natureza do diálogo, não seria melhor vocês ficarem à vontade, sem estarmos presentes? Nós iremos lá para dentro, enquanto vocês conversam.

— Não. É ótimo que você esteja presente — disse Lucrécia — porque você é exatamente o motivo feminino pelo qual Agenor não para mais em casa. Quanto a Euclides e Teresa, até é bom que eles fiquem sabendo, se é que não sabem.

— Você está me responsabilizando pelo fato de seu marido não parar em casa?

— Claro, queridinha. Não é aqui que ele janta praticamente de segunda a domingo? E quando não janta aqui, não é com você que ele janta fora de casa? Com você que ele vai ao cinema, ao teatro, a Cabo Frio, passeia de lancha, faz não sei mais o quê?

— Admito que nós fazemos juntos uma porção de programas sociais, mas você também me fará a fineza de admitir que ele não faz nada obrigado, faz porque quer, porque gosta de fazer. Eu não administro Agenor.

— É possível. Em todo caso, e sem querer aprofundar esse ponto, convido Agenor a sair comigo para passar uns tempos em nossa casa.

— Estou bem aqui — respondeu Agenor, examinando atentamente as unhas.

— Você pode ir, eu vou mais tarde.

— Procure ser gentil, meu bem. Se não quer que sua mulher o acompanhe, pelo menos acompanhe sua mulher até a casa. Parece que ainda estamos casados.

— Parece — confirmou Agenor. — Você disse a palavra certa. Parece, mas não é verdade.

— Como? No civil, no religioso, você põe em dúvida?

— Os papéis, não. Mas a realidade atrás dos papéis. Eu me sinto solteiro.

— Escute aqui, Lucrécia — disse Teresa. — Não quero me meter na vida de vocês, mas quem sabe se um desquite não pegava bem? No meu caso deu certo, não foi, Euclides?

— É — confirmou Euclides. — No meu também. Nosso casamento vai navegando em mar azul.

— Agradeço o seu conselho, Teresa — disse Lucrécia. — Mas desquite não é vitamina C, que se receita para todo mundo. Eu não quero me desquitar de Agenor.

— Está vendo? — exclamou Agenor, com um gesto desalentado, de mãos abertas, na direção de Heleninha.

— Então, permita que eu também meta a colher no assunto, embora não seja do meu feitio — aparteou Euclides. — Se você não quer o desquite é porque lhe tem amor. Se lhe tem amor, procure reconquistá-lo, ou aceite-o como ele é.

Heleninha repeliu a lição, antes que Lucrécia o fizesse:

— Essa não, Euclides. Ele é quem tem de decidir. Vamos, Agenor, não fique com essa cara de habitante de outro planeta, que não tem nada com a gente.

— Querem saber de uma coisa? — bradou Agenor. — Vou-me embora, mas não é para casa. Vou sozinho, recuso companhia. Não aceito discussão coletiva dos assuntos de minha vida particular. Ciao para todos.

Levantou-se e ia sair, quando as duas mulheres o travaram pelo braço:

— Não, Agenor, você vai é comigo, que sou sua mulher.

— Agenor, você não vai sem decidir esta parada — disse Heleninha. — Se você sair, não precisa mais voltar. Exijo que fique e resolva de uma vez por todas esta situação.

— Com que direito você estabelece restrições ao livre-arbítrio de meu marido? — protestou Lucrécia. — Ele quer sair, eu também quero. Vou sair com ele, e está resolvida a situação.

Agenor continuava irritado:

— Se vocês começam a brigar, eu desapareço e ninguém mais terá notícias minhas. Sumo! Viro fumaça!

— Nãããão! — exclamaram as litigantes em uníssono.

— Viro sim! Chega de competição em torno da minha pessoa!

Heleninha, por sua vez, estranhou:

— Que é isso, Agenor? Então você me coloca em nível de competição com Lucrécia? Por acaso eu fui à sua casa tirar você dos braços dela? Pois bem, pode sair, não serei eu que implore a você a graça de ficar comigo.

— Não é isso — respondeu Agenor —, eu não quis ofender você, eu estou nervoso, eu…

— Viu? — disse Lucrécia. — Viu o que você fez com ele? Agenor, um homem tão calmo, tão forte, de repente sua estrutura psicológica desmorona diante dos ataques desferidos por você, que não o compreende. Ninguém resiste à incompreensão.

— Quem fala em incompreensão, se a presença de Agenor em minha casa prova justamente que ele não é compreendido em casa de você?

— Quer um tranquilizante, nego? — propôs Teresa docemente, dirigindo-se a Agenor, que, com a cabeça, respondeu: sim.

— Primeiro vamos tratar do nervoso de Agenor, depois vocês discutem — disse Euclides, lembrando-se da sua condição de médico.

As duas calaram-se.

Com as mãos na cabeça, e a cabeça baixa, Agenor virara estátua.

— Acho melhor pôr ponto final nesta discussão — disse Lucrécia.

— Também acho — concordou Heleninha.

Uma brisa de paz circulou pelo salão.

— Você fuma? — perguntou Lucrécia, estendendo o maço de cigarros a Heleninha.

— Aceito — respondeu ela. E acrescentou: — Obrigada.

Teresa e Euclides acenderam seus cigarros. O fumo tornou o ambiente ainda mais apaziguador.

Ingerido o tranquilizante, Agenor deixou-se estar em serena passividade. Ninguém ousava perturbar-lhe o repouso.

— Sabem da última do Lulu Blake? — indagou Euclides. — Tocou fogo na mansão da Isolda Schnitz para exorcizar um lobisomem. Que não era lobisomem, era o motorista da Isolda, que fazia barulho de madrugada para assustar o Lulu.

— Lulu é muito impulsivo — comentou Lucrécia. — Uma ocasião, na piscina do Copa…

— É, eu me lembro — confirmou Heleninha. — Atirou n’água, com vestido e tudo, a duquesa de Armenonville, que dissera para ele: “Vous êtes un drôle de pantin, monsieur”.

Entraram a recordar demasias de temperamento de Lulu Blake, nas quais Agenor não parecia interessado. Guardava silêncio nobre e distante, de olhos cerrados.

— Não fale alto, Euclides — ponderou Heleninha. — Assim você acorda Agenor.

— Isso mesmo — apoiou Lucrécia. — Vamos falar baixinho.

Mas Agenor abriu espontaneamente os olhos, já recuperado, e todos se felicitaram pela sua reação pronta.

— Desculpem o incômodo que lhes dei — disse ele calmamente. — Não dormi a noite passada, com esse calor, e necessito invariavelmente de oito horas de sono para manter o equilíbrio.

— Incômodo nenhum, ora — disseram todos, expressamente ou pela fisionomia.

— Quantas horas são?

— Passa um quarto de meia-noite.

— Vamos embora, Lucrécia?

— Vamos, meu bem.

— Cuide bem dele, Lucrécia — recomendou Heleninha. — Você volta amanhã?

— Fique tranquila — prometeu Lucrécia.

— Volto — prometeu Agenor.

— Depois a gente resolve tudo — disse Heleninha.

— Tá — disse Lucrécia.

Ciao. Ciao. Ciao. Despediram-se cordialmente.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Jorge Fregadolli (Minha Namorada… Maringá)


Ó Maringá… terra amada,
canto tuas mil riquezas.
És a bela flor alada
nos voos, trazes surpresas.

Maringá nasceu na mata,
o seu ninho, um denso verde,
nas noites, teu céu é prata,
ao sol, bonito ouro-verde.

O café, tua riqueza,
tens história não distante,
deu-te um mundo de certeza,
veio a geada castigante.

Outros rumos tu tomaste,
recomeço por inteiro;
e para trás não deixaste
com a garra do pioneiro.

Eras tão linda, menina,
em dez de maio, nasceste.
Aos setenta anos, divina…
os desafios venceste.

Não és mais a caboclinha
de outrora, vês, Maringá?
Tens o garbo de rainha,
que te aplaude o Paraná.

Teus progressos, que pujantes,
seguem direções distintas.
Há esferas conflitantes,
com as nuanças das tintas.

Louvo seu templo sagrado,
nosso ícone, a Catedral.
A Mãe, gesto idolatrado,
de puro amor filial.

Nasceste para ser bonita,
ó querida Maringá.
Exibes graça infinita
nas filhas que Deus te dá.

Terra de gente de fibra.
Maringá urbe garbosa,
tem alma sensível, vibra.
Que cidade glamorosa!

És a Cidade Canção,
de povo gentil, feliz,
que, de alegre coração,
que no cantar te bendiz.

É filha de Maringá
a querida Academia,
orgulho do Paraná…
um canteiro de poesia!

Belas praças… avenidas,
desfilam-se arranha-céus…
são riquezas incontidas
sob o azul de belos véus.

Projetos e mais paixão…
escolas, saúde e arte –
conquistas do coração,
que do homem a luta é parte.

A medicina, altaneira,
modelo de prontidão,
abre caminho, é ligeira,
conquista espaço, atenção.

O engenho da linha férrea
é progresso, admiração.
Trilhos debaixo da terra
gorjeiam linda canção.

Gigantesco aeroporto
leva Maringá ao mundo;
uma conquista e conforto
de progresso tão fecundo.

O comércio, com lampejos
atende a todo querer,
desde o pequeno desejo
até mais alto poder.

É o Parque do Japão
uma lembrança constante,
vida, beleza, e emoção
de um recanto bem distante.

Maringá, hoje, faz anos,
quero mesmo te abraçar
ao declarar-me que te amo!
Para sempre vou te amar!

Fonte:
Poema enviado pelo autor.

Contos e Lendas do Mundo (África: Kigbo e o Espírito do Mato)

Kigbo, que quer dizer «homem teimoso», tinha um nome que lhe assentava às mil maravilhas, pois um homem teimoso é aquele que não descansa enquanto não leva a sua avante. Segundo um mito dos lorubas, a teimosia de Kigbo é que foi a fonte de todos os seus males.

Kigbo e sua mulher, Dolapo, eram ambos jovens e tinham vivido com os pais até casarem. Isso significava que não possuíam terras próprias. Quando chegou a altura de os aldeões prepararem os campos para o plantio, o pai de Kigbo foi a casa do filho para falar com ele.

 - Tens uma mulher bonita e um filho esplêndido, chegou pois a altura de cuidares deles - disse. - Procuraremos um lugar fora da aldeia, limparemos o terreno e faremos dele a tua plantação particular.

 - Não quero - respondeu Kigbo.

 - Não queres? - admirou-se o pai. - Mas tu precisas de cultivar alimentos para ti e para a tua família. Agora és independente, Kigbo. Nem os teus pais nem os da Dolapo têm obrigação de sustentar-vos.

- O que eu quis dizer é que não quero arranjar um terreno nos arredores da aldeia, pois já está quase tudo tomado e, portanto, só conseguiríamos dispor de terra suficiente para um campo pequeno.

 - Mas tu só precisas de um campo pequeno - advertiu-o o pai. Há terra suficiente para todos.

 - Quero fazer uma plantação no mato - disse Kigbo.

 - No mato? - exclamou o pai, ficando de boca aberta. - Que perfeita loucura! Ninguém cultiva aí. O mato fica longe de casa e é perigoso!

 - Não ligo à distância e é exatamente porque ninguém cultiva lá que poderei desbravar um campo do tamanho que quiser - explicou Kigbo, sorrindo.

 - E o perigo... - lembrou-lhe o pai. Kigbo fitou o pai e respondeu:

 - Tu mesmo me puseste o nome de teimoso. Nada me fará mudar de ideias.

 Foi assim que Kigbo se pôs a caminho do mato por sua conta e risco. Começava a desbravar a terra quando um grupo de espíritos apareceu.

 - Nós somos os espíritos do mato - disseram. - Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 - Preparo um bocado de terra para plantar o meu milho - respondeu Kigbo teimosamente.

 Não queria permitir que um grupo de espíritos alterasse os seus planos.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então os espíritos, em vez de expulsarem Kigbo, começaram a ajudá-lo na sua tarefa, daí que, passado pouco tempo, uma ampla clareira estava desbravada.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. A seguir, sem ao menos um «obrigado», voltou de novo para a aldeia.

Ao chegar a casa, encontrou o pai à sua espera, tendo a seu lado Dolapo.

- Estava muito preocupado contigo - disse-lhe o pai. - Receei que os espíritos te tivessem apanhado e feito coisas terríveis.

- Coisas terríveis? - riu-se Kigbo. - Quando comecei a dar conta de uns arbustos, eles apareceram e até ajudaram. O trabalho ficou feito num instante... Amanhã voltarei lá para revolver a terra.

- Será que não aprendeste nada comigo, grande teimoso? Já te avisei de que o mato é um sítio terrível, e que os espíritos não são para brincadeiras.

Quando, na manhã seguinte, Kigbo voltou, levando consigo um saco de milho, o grupo de espíritos do mato apareceu de novo.

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

- Remexo o solo para plantar as minhas sementes - respondeu Kigbo.

- Nós somos os espíritos do mato - repetiram. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Kigbo começou então a lavrar a terra, antes coberta de mato, e os espíritos ajudaram. Num instante, o solo ficou preparado para ser semeado. A seguir, Kigbo tirou do saco uma mão-cheia de grãos, que começou a espalhar.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o coro. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E começaram a semear. Depressa o trabalho estava terminado.

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. Depois, uma vez mais sem agradecer, voltou para a aldeia.

O tempo passou e as estações mudaram. Depois do tempo de semear veio o de colher e Kigbo continuou a viver, à sua maneira egoísta e teimosa, sem se preocupar minimamente com os outros.

Todos os outros aldeões podiam vigiar facilmente as suas pequenas plantações, mesmo na orla da aldeia, para acompanhar o crescimento do milho. Kigbo, no entanto, era obrigado a percorrer uma grande distância até à beira do mato onde desbravara o seu campo de cultivo. Mas achava que valera a pena. Via-se, a perder de vista, um mar de milho a brilhar ao sol.

Kigbo pensava: «As pessoas acham que sou teimoso, mas vejam o que eu consegui com a minha esperteza. Todos têm plantações pequenas e precisam de trabalhar duramente nelas. Eu tenho este campo enorme e aqueles espíritos tolos fizeram a maior parte do trabalho duro por mim. Espero que me ajudem quando o milho estiver maduro e pronto a colher!»

O orgulho que Kigbo sentia no seu milho dourado era tão grande que resolveu ir buscar a mulher e o filho para o verem. Voltou então à aldeia.

Dolapo, entretanto, sentia remorsos.

«Kigbo pode ser teimoso», pensou, «mas é meu marido e eu amo-o... e, quando trabalha, faz com grande empenho.»

Resolveu então ir até lá para ver com os seus próprios olhos. Devem ter tomado caminhos diferentes, pois não se cruzaram. Quando, por fim, Dolapo chegou à plantação, não viu Kigbo em lado nenhum.

 Fora uma grande caminhada e Dolapo aborreceu-se com a teimosia dele. Porque não desbravara ele um campo mais pequeno perto da aldeia?

O filho de Dolapo começou a chorar.

- Tens fome, pequenino? - perguntou-lhe ela. - Não posso dar-te este milho, pois ainda não amadureceu.

Porém, como o filho não se calava, Dolapo arrancou uma maçaroca de milho - apesar de ainda não estar madura - e deu-lha a comer.

Nesse preciso momento, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

E, antes de Dolapo perceber o que estava a acontecer, os espíritos do mato cortaram as maçarocas de todo o milho. Não tardou que o solo ficasse juncado de maçarocas de milho verdes, estando assim irremediavelmente perdida toda a safra!

- Que foi que fizemos?! - exclamou Dolapo.

Sentou-se a chorar, e os seus queixumes, junto com os do bebé que também começara a fazer o mesmo, soaram tão alto que chegaram aos ouvidos de Kigbo, que ia a caminho de casa. Este ficou com uma cara preocupada.

- Este choro parece-me da Dolapo e do bebê - disse, cada vez mais receoso. - E vem do mato!

Voltou para trás e correu o mais depressa que pôde para a sua plantação. Que estaria Dolapo a fazer ali com o seu filho? O mato era um sítio muito perigoso. Quando lá chegou, ficou horrorizado perante o panorama com que deparou. Não havia uma única maçaroca de pé. A plantação ficara reduzida a um mar de hastes secas, sem qualquer préstimo!

- Que aconteceu? - perguntou Kigbo, embasbacado.

- O nosso filho chorava com fome, de modo que eu arranquei uma maçaroca e dei-lha - explicou-lhe a mulher.

- Criança estúpida! - gritou Kigbo, fazendo, em seguida, algo de terrível. Enraivecido, agarrou no menino e sacudiu-o.

Antes de ter tempo para se aperceber das consequências do seu ato, o grupo de espíritos apareceu e disse:

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Então, antes de Kigbo poder detê-los, começaram todos a sacudir a pobre criança da mesma maneira.

Kigbo sentiu-se culpado e furioso com o que acontecera. Era horrível tratar alguém - sobretudo uma criança - daquela maneira, porém tentou convencer-se de que a culpa fora de Dolapo.

- Olha o que me obrigaste a fazer! - exclamou, cometendo novo erro, pois esbofeteou a mulher.

- Nós somos os espíritos do mato - disse o grupo, mais uma vez. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Depois começaram todos a dar bofetadas em Dolapo. Kigbo, dando-se conta de quão teimoso e louco fora, bateu com os punhos na cabeça.

- Que estúpido fui! - queixou-se. - Porque não ouvi o meu pai?

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo, virando-se para ele. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

Começaram então a bater em Kigbo.

- Esta terra pertence-nos - repetiam, sem que ele percebesse uma palavra por causa das pancadas.
_____________________________
Esta lenda tem muitos fins. Um deles conta que Kigbo e Dolapo fugiram do mato levando o filho com eles e que o grande teimoso aprendeu a lição. Outro diz que os três foram mortos pelos espíritos. Um terceiro relata que Kigbo morreu nas mãos dos espíritos, mas Dolapo e o filho escaparam com vida.

Seja qual for o fim que tiveram, o certo é que o pai de Kigbo tinha razão. O mato é um lugar perigoso e não se pode brincar com os espíritos... por muito prestáveis que estes se possam mostrar ao princípio.


Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

Apollo Taborda França (O Corvo)


do clássico de Edgard Allan Poe (EUA)
À meia-noite, sombria,
Eu triste, lendo manuais. . .
Ouvi sons de quem batia,
Para entrar em meus umbrais.
— Isto posto e nada mais!

Foi num pérfido dezembro,
Na saudade de Lenora…
Sinto bem, como me lembro,
Pela morte ela se fora.
— Para mim não volta mais!

Nesta lúgubre noitada,
Está alguém que pede abrigo…
A livrar-se da nortada,
Ou de um atroz inimigo.
— Penso nisso e nada mais!

Inseguro, ponderei,
Quem bate tenha paciência...
Quase em sono atendo à lei
Do refúgio, na insistência.
— Porta aberta e nada mais!

Perquiri lá fora além,
Tudo escuro, ânsia e medo…
Nem de Lenora, também.
Pra abrandar meu acre enredo.
— Só silêncio e nada mais!

Novamente o grave ruído
Faz vibrar os meus vitrais,,.
Mais plangente que um gemido,
Desses ermos sepulcrais.
— É o vento e nada mais!

Abro a janela, de chofre,
Entra um vulto, me observa...
Um Corvo, odor de enxofre,
Vem, pousa em minha Minerva.
— Fica ali e nada mais!

Surpreendido com a figura,
Esqueço as dores morais...
Qual seu nome, ó negrura
Dos tempos bem ancestrais?
— Disse o Corvo: "Nunca mais!"

Nunca ouvi falar um corvo,
Nem qualquer outro animal…
Grande enigma absorvo,
Pois, que foge ao racional,
— Crocitando: "Nunca mais!"

E não disse uma outra cousa,
Nem uma pena moveu...
Até amigos vão-se à lousa,
E você, volta ao museu?
— A resposta: "Nunca mais!"

Sempre iguais, duas palavras,
Aprendeu não sei de quem..,
Termos de doridas lavras
Do seu dono que é ninguém.
— Sempre o nunca: "Nunca mais!"

Perturbado, na cadeira,
Fui mudando a posição...
Será a frase derradeira,
Ou há nisso uma intenção?
— Expressando: "Nunca mais!"

Olhar duro, penetrante,
Me angustiava no coxim...
Ela ausente, eu hesitante,
Nunca sofri nada assim.
— Suportando o "Nunca mais!"

Ar difuso, perfumado
Qual incenso celestial…
Penso nela, sou coitado,
Não a esqueço é meu ritual,
— Grasna o Corvo: "Nunca mais!"

Satanás ou ave preta,
Tlins quebrados de cristais…
Há um bálsamo, não treta,
Pra findar estes meus ais?
— Ouço a saga: "Nunca mais!"

Profeta ou fero bruxo,
Pelo Deus que é dos mortais...
Volta ela, num refluxo,
Dessas hostes abismais?
— Geme o Corvo: "Nunca mais!"

Nos separe a sua fala,
Vai-te às trevas infernais…
Não o quero em minha sala,
Sumam lembranças que tais.
— Implacável: "Nunca mais!"

Segue a noite, densa e nua,
Suas sombras são punhais…
Ave-diabo continua
Desafiando os meus ideais.
— Libertar-me… nunca mais!

(Curitiba-PR, 12.10.1988)
Fonte:
Apollo Taborda França. 10 Grande Temas (clássicos) da Literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.