sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Soares Bulcão (Trovas para Pensar)


Não te dês ao pessimismo,
Por mais que a dor te requeira,
Se o mal te empurra no abismo,
Deus te segura na beira.

Felicidade provém
De uma verdade, só uma:
Dar tudo quanto se tem,
Sem pedir coisa nenhuma.

Tua dádiva é mais bela,
Conforme razão concisa,
Se te colocas com ela
No lugar de quem precisa.

Prazer comprado no mundo
Por alheio sofrimento
É como cheque sem fundo
Na hora do pagamento.

Quem perde a fé no futuro
Vive de sonhos plebeus...
A própria flor no monturo
Lembra um sorriso de Deus.
~ * ~ * ~ * ~ * ~
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Versos Verdes (Parte 1)


GABRYELE MAIA DA SILVA
São Luís / MA


Natureza, grandes belezas

No céu, na terra ou no mar
Com a natureza quero estar
Observando as maravilhas do seu luar

Junto com o sol nascendo
Trazendo alegria para o nosso olhar
Quero com os bichos brincar

A biodiversidade posso captar
E nas suas belezas posso navegar
Nas tuas florestas posso andar
E com seu pulmão posso respirar

Trazendo vida ao nosso coração
Sem cobrar nenhum tostão
Essa é a nossa relação

Se você ficar conosco
Vamos viver um tempão
Juntos numa só emoção

IVAN JOSE VIANA BARBOSA
CANDÓI / PR

Pássaro

Pássaro amigo meu é
Amigo dele sou
Ele canta e me encanta
Com sua cantiga durmo
E sonho
Noite após noite
Acordo e ele está lá ...
Me desejando Bom Dia!

LUCIANA OLIVEIRA
JABOATÃO DOS GUARARAPES / PE

O verde da natureza

O verde da natureza,
das folhas e das frutas que não estão maduras.
O verde da natureza
que está sempre nas matas na redondeza
na esquina da natureza no espaço da mãe natureza.
O alegre cabelo das árvores,
o brilho do modesto que tem.
Os pássaros cantando alegres no galho de folhas verdes
os bichos ouvindo a linda canção na sua casinha de barro
enfeitada de verde claro e escuro
e com lindas flores coloridas.

PAULA GIOVANA PEREIRA DOS SANTOS
CAÇAPAVA DO SUL / RS

Joaninha valente

Sou uma joaninha,
Que vivo na figueira.
Sou feliz porque
As meninas cuidam de mim.
Me chamam joaninha valente,
Eu fico tão contente.
Fui viver em outra figueira,
Mas lá, meninas não havia.
Aprendi...
Não troco mais de morada.

VILMAR WIEDERGRÜN
SANTA ROSA / RS

Rio sem alma

Rio que cheira a esgoto
Que traz a sujeira do mundo
Que muda de cor
Ora marrom, ora preto
Seus saltos são em vão
Não irão despoluí-lo.
Rio que vaga solitário
Que desce sem esperança
Cadê seus peixes?
Dentro de você não há ninguém
Nem uma vida a lhe povoar
Rio frio, sem graça,
Sem oxigênio
Onde tudo desce,
Onde ninguém sobe.
Ah, rio das mil cores,
Continuará descendo
Mais morto que vivo.
Será que vai resistir
Tendo o mundo contra você?
Assim como está
Será sempre um rio,
Mas sem alma.

VERÔNICA VINCENZA
ÁGUAS CLARAS / DF

O clamor verde

Eu quero a natureza de volta
A tiraram de mim, e isso me revolta!
Quero os pássaros, quero a mata, eu quero ar puro
E tudo isso não é capricho, eu juro

É o meu direito de cidadã
E de todos nós, estejamos aqui ou em Pontaporã
Quero tudo limpo e sem demora
Quero a natureza viva, já está na hora!

Cansei de esperar tanto descaso
Vejam como está o clima e como o rio está raso
Não quero saber de ganância
O que dá aos políticos relevância

Só sei que isso tem de ser feito
Por Presidente, Ministro, Prefeito
E todos nós temos dever de ajudar
A replantar o verde de nosso lugar

Pois sem ele, não viveremos mais
E não vai adiantar culpar os nossos pais
É hoje que devemos nos mexer
E plantar os frutos que queremos colher

Resgatar a natureza é o que faremos
Aqui, Ali, em todos os lugares estaremos
E o verde começará a brotar
Junte-se a nós e venha ajudar!

VALDIRENE DE ASSUNÇÃO PEREIRA
CAÇAPAVA DO SUL / RS

A árvore da vida

Nela vejo os frutos,
Nascerem como se fossem duradouros
Amizades amadurecerem
E ficarem com um sabor todo especial.
Alguns apodrecem e caem.
Em outros fica o prazer, no sabor de quem os saboreou.
Uns enfeitam, uma mesa deixam bela,
A árvore da vida, mostra suas folhas bem vistosas,
Como se fossem lugares,
Lugares por onde passamos que ficam pra sempre,
Outros caem de nossa memória.
Em suas flores está toda beleza da vida,
Sua pureza e sua alegria.
No seu caule a dureza,
Dos desencontros,
Dos desamores,
Das incertezas,
Das decepções,
Das magoas,
Dos desafetos,
Das desilusões,
Na sua raiz está a prova,
Que temos pra onde ir, um solo firme para pisar.
Uma certeza de um retornar,
Uma nova esperança para surgir,
Mostrando-nos que onde há vida,
Sempre restará uma esperança.

SÉRGIO RIBEIRO BORSOI JR
NITERÓI / RJ

Verde

Criou noite... alegrias.
Verdejantes sintonias.
Fizeram-se notas... melodias
Cantou-se tudo que se
podia.

Verdes foram aqueles
dias quem não lembra,
deveria.

Verdes eram as borboletas,
puras voavam e repousavam.
Verdes sombras que faziam
se tornando obsoletas.

O verde veio pra ficar
E as outras cores cativar.
Do escuro e tarde noite,
Surge o sol a verdejar.
-
Fonte:
Versos Verdes. RJ: Câmara Brasileira dos Jovens Escritores, 2010.

Ernani Maller (Livro de Poemas)


ESTÃO POR AÍ

As dores que eu causei estão por aí
Os corpos que eu amei estão por aí
As magoas que eu não guardei
Os sonhos que não encontrei
Feridas das qual só eu sei estão por aí

Os ventos que levam segredos estão por aí
Canções de ninar nossos medos estão por aí
O dia repleto de azul
Saudades em bando pro sul
Distantes do meu olho nu estão por aí

Os prantos desperdiçados estão por aí
As súplicas dos desesperados estão por aí
Os lábios repletos de sim
Os corpos que esperam por mim
Colombinas sem seus Arlequins estão por aí

A PALAVRA

A palavra é a matéria prima do escritor,
ela é maleável, sujeita-se aos caprichos do criador.
Mas também se impõem,
em sua ampla diversidade de interpretações.
A palavra morre, cai em desuso, mas também ressuscita.
Idiomas se extinguem,
levando consigo não somente palavras, mas formas de pensar.
Palavras que adjetivam o belo, como: a flôr, a borboleta
e principalmente a mulher.
São obrigatóriamente poéticas, assim como o é,
a palavra que da nome à “lembrança triste”,
um previlégio do idioma português: saudade.
Ao contrário da fotografia, que é o que se vê,
a palavra, é o que se imaginar ser,
ela da campo ao pensamento, asas à imaginação.
Na descrição de uma cena, cada leitor,
com suas experiências de vida, imaginará sua própria cena,
isso torna a palavra infinita, sem limites.
Pela palavra passa o conhecimento, a sabedoria, a erudição.
Sem a palavra não seriamos diferentes dos animais.
Ela distingue povos, classes socias,
profissionais liberais, com seus mais variados discursos,
é o poder das palavras, as palavras do poder.
Quantos livros? Quantos poetas? Quantas religiões?
Filosofia, história, tudo baseado na palavra,
que o ser humano manipula, em um inesgotável quebra-cabeça.
Através da palavra, o ser humano vai se forjando, vai se recriando,
portanto, não acredite se alguêm lhe disser:
“palavras são palavras, nada mais do que palavras”.

SABERÁS QUE É NATAL

Assim que brotar
A lua dos pinheiros crispantes
Assim que soar
Um sino distante

Com cantigas singelas
De inocência angelical
Mesmo que não te digam
Saberás que é natal

Assim que a gota salgada
Correr tua face tranquila
Assim que dor
Se fizer arrependida

Mesmo que sol não venha
E que o desgosto seja fatal
Porém, pela paz devastadora
Saberás que é natal

Mesmo que o silêncio vitalício
Lhe ensurdeça por fim
Que o deserto da alma
Encubra teu jardim

Poderás soluçar
Num sorriso passional
Mas com toda confiança
Saberás que é natal

DEUSA DA SENSUALIDADE

Eu sou carmim de sol que deita no poente
Brilho de estrela cadente
Lua velha na sertão

Nebulosa a fervilhar em noite silente
Olho de água corrente
Que se arrasta no porão

Sou a verdade que arrebenta em qualquer cara
Pau-de-fogo, pau-de-arara
A voar na imensidão

Sou liberdade de um grito incontido
Dos passos do perseguido,
Sou o norte e a razão

Sou a que tem malemolência de serpente
Pra colher estrela cadente
No azul do teu olhar

Sou a que chora amando contra a corrente
Se eu sou tão indecente
É pra poder te despertar

BRIGA DE FOICE

Pode me torturar
Me rasgar
Me bater
Pode me ferir a dente
Me botar corrente
Pois eu sei sofrer

Pode me tratar a berro
Pois eu sou de ferro
Vou até o fim
Pode me ferir a boca
Por que isso é sopa
Lindo querubim

Mas quando cair a noite
Vai ter briga de foice
Pois não quero ver
Você virar de lado
Dizer que está cansado
Sem me enlouquecer

Se não sou eu
Quem te trata a berro
Tu terás que ser de ferro
Para me satisfazer
-
Fontes:
http://musistoria.blogspot.com/
http://www.recantodasletras.com.br/sonetos/2698861

Ernani Maller (Na Porta do Hospício)


Tocou a campainha da garagem do hospício e o guarda foi atender, abriu uma pequena uma janela que mostrava apenas parte do seu rosto no meio do grande portão de ferro, um senhor de meia-idade aparentando muita tristeza perguntou:

_ É aqui que é o hospício?

_ É sim. - Respondeu o guarda.

_ Eu vim me internar.

_ Quem mandou o senhor?

_ Ninguém, eu vim por minha conta, eu “tô” maluco.

_ Mas hoje é domingo, e só está o médico de plantão, ele só atende os pacientes que já estão internados, o senhor tem que voltar amanhã as dez da manhã e falar com o doutor Renato.

_ Mas caso de emergência, esse médico que está aí, não atende?

_ Atender ele atende, mas o seu caso não é de emergência.

_ Como não?

_ Caso de emergência é quando chega em camisa de força.

_ E onde eu consigo essa tal camisa de força?

_ Eu não sei não, é o pessoal da ambulância que tem.

_ Será que eu não posso dormir aqui para amanhã eu falar com o doutor? Eu sei que ele vai me internar mesmo.

_ Não pode não, o senhor tem que voltar amanhã. Mas eu trabalho aqui há duas semanas e já tenho alguma experiência, posso lhe adiantar uma coisa.

_ O quê? _ Perguntou o candidato a paciente.

_ O senhor não está maluco, não.

_ Como é que você sabe?

_ Eu sei por que o senhor afirma que está maluco, não é?

_ É.

_ Então? Quem está maluco, não sabe que está maluco, portanto, se senhor acha que está maluco, é porque o senhor não está maluco.

_ Tem certeza?

_ Tenho.

_ Então o que eu faço com essa tristeza, essa angústia no meu peito e essa vontade de chorar?

_ O senhor vai pra casa, toma um copo de água com açúcar, senta quietinho num canto, que isso passa.

_ Sério?

_ Sério.

_ Então tá bom, muito obrigado.

_ De nada.

Deve ter dado certo, o homem nunca mais voltou.

Fonte:
Livro de Ouro do Conto Brasileiro Contemporâneo. RJ: Câmara Brasileira dos Jovens Escritores, Junho de 2011.

Cornélio Pires (Trovas de Casa)


De nada vale rancor.
Quando a justiça se atrasa,
Seja lá que conta for,
Pagamos dentro de casa.

Não guardes antipatia.
Paz é luz de vida sã.
Inimigo de hoje em dia –
Parente nosso amanhã.

Teu filho, roga, de fato,
Ensino claro e seguro,
Nele põe o teu retrato
Em marcha para o futuro.

Família – escola que traz,
Com muitas lições de vez,
Todo o bem que a gente faz
E todo o mal que se fez.

Casar reclama cuidado
Na escolha da companhia,
Doido é quem faz de noivado
Um jogo de loteria.
~ * ~ * ~ * ~ * ~
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Vicência Jaguaribe (A Madrugada Nunca Está Sozinha)


A madrugada nunca está sozinha. Há sempre um bêbedo retardatário, sentado na calçada ou deitado num banco da praça. Um pequeno fazendeiro, que inicia a ordenha. Um padeiro, que encosta a bicicleta e mergulha no calor aromoso e reconfortante da padaria. Um insone, que, cansado da batalha com Morfeu, abandona a rede e abre a janela. Um poeta, que, depois de apelar às musas durante toda a noite, acaba produzindo um verso de pé quebrado. O amante, que sai sorrateiramente dos braços de um amor proibido, mergulha na semiescuridão de uma rua qualquer e caminha colado ao muro, para passar despercebido. Mas há, principalmente, o homem triste, que sai do cemitério, onde passou a noite sentado no túmulo da amada.

Ninguém mais se admira daquelas visitas noturnas. Ele sai de casa por volta das vinte e duas horas, com a caixa do violino na mão. Abre o portão, fechado apenas com uma corrente, e aproxima-se do túmulo com certa dificuldade. A cidade cresceu, o número de óbitos aumentou, e o cemitério, único, não tem como acolher aqueles corpos abandonados pelo sopro do espírito. Deposita a caixa na laje e dela retira o instrumento. Por quase uma hora os moradores das imediações ouvem o lamento comovente, que paira sobre as sepulturas e é dispersado pelo vento. Há o intervalo de uma meia hora, e novamente se ouvem os acordes chorosos, que penetram pelo mármore dos túmulos e pelas rachaduras do cimento das sepulturas mais humildes. E novamente o intervalo e, mais uma vez, o som do violino, até que a madrugada se anuncia, e o homem triste vai para casa.

Esse ritual repete-se há dez anos, desde que a mulher, a única que ele amou em toda a sua vida, morreu dando à luz o primeiro filho. O sepultamento fora pela manhã e à noite lá estava ele, seguindo para o cemitério, abraçado à caixa do violino. Foi um escândalo na cidadezinha, que via nas visitas noturnas do viúvo uma prática meio satânica. Mas ele não dava ouvido aos comentários maldosos, e os habitantes daquele recanto do mundo tiveram que acostumar-se, e incorporar a prática esquisita na rotina da cidade.

Durante o dia, o viúvo levava uma vida quase normal. Trabalhava, fazia crescer os negócios, cuidava do filho, conversava com os amigos. Mas sempre com o semblante meio anuviado e uma aura de tristeza que ele procurava suavizar, com a educação e a fineza que sempre o caracterizaram. As moças da cidade já haviam perdido as esperanças de puxá-lo para dentro da vida, e passaram a tratá-lo com o respeito e a distância cerimoniosa com que tratavam as autoridades do lugar.

Na madrugada em que se deu o ocorrido, chovia, como poucas vezes chovera naquela região. Relâmpagos clareavam a escuridão, e raios ziguezagueavam pelo céu para logo em seguida se lançarem em algum ponto da terra. Não se viu quando o viúvo se dirigiu ao cemitério, porque chovia desde o final da tarde e ninguém se aventurava a pôr a cabeça do lado de fora. Mas na hora de sempre, envolto em uma capa plástica, com a qual protegia o violino, ele abriu o largo portão da necrópole, e penetrou no território da morte. Aproximou-se do túmulo da esposa e, protegido por uma das colunas de mármore, começou a tocar o Concerto para Violino em Ré Maior Opus 3/9, de Vivaldi, predileto da amada, cujos acordes tristes se misturavam com a cavalgada enlouquecida dos trovões. A claridade de um relâmpago o encandeou, e instintivamente ele fechou os olhos. Foi o momento exato em que um raio lançou-se sobre o túmulo, cavando uma fenda larga e profunda na laje de mármore. Por entre as nuvens, que já se iam dispersando, podia-se se ver os primeiros clarões da madrugada.

O zelador do cemitério apavorou-se ao aproximar-se do túmulo, e nem viu o violino queimado em parte e caído sobre um dos batentes que dava acesso à sepultura. Observou a fenda que se fizera na pedra tumular – uma fenda larga, que apartara a pedra em duas. Olhou pela abertura e teve a impressão de ver um corpo dentro da gaveta. Correu à casa do viúvo, mas a empregada informou que, apesar da chuva, ele saíra com o violino na hora de costume e ainda não voltara.

O delegado, chamado pela família, mandou remover a pedra de mármore, dividida em dois pedaços. Apanhou o instrumento musical, no qual o zelador não havia tocado, e esperou. Lá dentro, por cima da urna funerária da esposa, cuja madeira se conservava intacta, jazia o corpo sem vida do dono do violino.

Fonte:
Vicência Jaguaribe. Ancoragem em Porto Aberto. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2010.

Milton da Cruz (Inscrições da Vida)


Coração, dirige o leme
Que te regula o dever,
Quem a si próprio se teme,
Nada mais tem a temer.

Herói!... Herói com vantagem
Tem esta clara expressão:
Procede com mais coragem
Contra o próprio coração.

Se vais falar, fala em paz
Do bem que ampare ou que preste;
Jamais te arrependerás
Daquilo que não disseste.

Para quem dá com prazer
E servo, espontâneo assim,
A gratidão deve ser
Um pagamento sem fim.

Olha a vida tal e qual
No fundo que a vida tem,
Há bem que surge por mal
E há mal que surge por bem.

Na consciência tranqüila
Há duas glórias sem nome:
A luta que nos burila,
O pranto que nos consome.

Segue sempre, alma abatida,
Larga o cansaço infecundo;
Quanto mais alta a subida,
Mais ampla a visão do mundo..
~ * ~ * ~ * ~ * ~
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Lendas e Contos Populares do Paraná (O diabo de Capanema/ O petiço/A coruja/ Quaresma/ Leitoa mateira/ Serpente da figueira/Saga da Caetana)


CAPANEMA
O diabo de Capanema


Certa feita, um carroceiro gritava com seus bois, fatigados pela carga excessiva de toras de peroba. Era ajudado por seu filho, que chicoteava grosseiramente os animais, não avaliando que era impossível os bois saírem do local, um lamacento buraco. Os bois respiravam aos sufocos, largando uma saliva espumosa pela boca, enquanto o homem esbravejava.

Aos urros e berros ecoantes, com blasfêmias de todas as espécies e contra as divindades, os animais se contorciam de um lado para outro, sem o efeito esperado que o carro pudesse ser removido dali. O homem recorreu a todos os santos e demônios; por fim, gritou: “talvez quem pudesse nos ajudar, só mesmo o diabo!”. E o seu santo, naquela hora, passou a ser o demônio, já que não resolveram nada os demais santificados. Que surgisse, então, o demônio. Para resolver uma situação que se encontrava sem remédio.

Repentinamente, ouviu-se um barulho, com grande claridade e um pouco de fumaça. Lá estava “ele” sobre as toras amarradas na carroça atolada, lançava pela boca e olhos uma lasciva chama avermelhada e observava o carroceiro atônito. O carroceiro pôs suas mãos no bolso à procura de um rosário e encontrou somente fumo de rolo. Tentou se lembrar dos seus santos e recitava até orações nunca ouvidas! Mas nada resolvera. Ele, o diabo, continuava ali, sentado e indiferente ao homem que tentava agora se lembrar dos santos e dos desafios que fizera anteriormente contra a divina providência. Enquanto isso, como por encanto os bois lentamente saíram da lama e caminhavam com o peso, como que ajudados por alguma força diferente, invisível.

Essa história se espalhou pelo lugar. E o Diabo de Capanema permaneceu no folclore do lugar. Até hoje, alguns fazem troça, outros ignoram, os demais comentam com dedicação e curioso interesse. E foi assim que aconteceu; a figura ilusória e persistente na imaginação de muitos ficou, vagando por longos tempos.

CARAMBEÍ
O petiço


Contam os antigos que na casa de Aart Jan de Geus havia um petiço, um cavalo pequeno, bem cabeçudo, tão cabeçudo quanto seis burros cabeçudos juntos, mas domado igual a um cavalo de circo. Após a ordenha, os rapazes colocavam as latas de leite em cima de uma carroça sem cocheiro e o petiço as levava direto para a fábrica de queijos, manobrava para frente e para trás, até que a parte traseira da carroça se encostasse na porta.

Então, o rapaz, que era queijeiro naquela época, esvaziava as latas, enchia-as com soro e colocava-as novamente na carroça e falava: “huuu”! Depois disso, o cavalinho fazia sua corrida de volta para casa, até o chiqueiro, onde fazia as manobras e encostava a parte traseira da carroça nas tinas de soro.

Conta-se que, se por acaso, demorassem em atendê-lo, o “excelentíssimo” sozinho se livrava das rédeas e ia fazer uma “boquinha” no pasto, relinchando e olhando para trás, como se assim chamasse a atenção dos rapazes por tê-lo deixado esperar tanto tempo.

IPIRANGA
A lenda da coruja


Há muito tempo atrás havia um armazém em Avencal, tendo como proprietários um casal. Todas as noites ouviam barulhos no armazém e no dia seguinte ele amanhecia todo bagunçado, com doces e sabão comidos. Numa certa noite, o casal criou coragem, pegou o lampião de querosene e foi até o armazém ver o que acontecia. Encontraram uma enorme coruja, do tamanho de uma pessoa, comendo doces e sabão, que, ao ver o casal, transformou-se em uma mulher, uma conhecida vizinha deles.

Então, perguntaram o que estava acontecendo e ela respondeu que se transformava em coruja porque havia casado de branco sem merecer e se o casal não contasse para ninguém, ela nunca mais voltaria a incomodá-los.

MALLET
Histórias de quaresma


O período de quaresma é conhecido popularmente como um tempo em que acontecem fenômenos extraordinários, como é o caso do lobisomem, meio homem, meio cachorro. Algumas pessoas que viveram o fato que passamos a relatar, ainda vivem.

Uma família de imigrantes poloneses, vindos da região dominada pela Áustria, veio fixar-se em Mallet e trouxe para cá sua modalidade de trabalho, o ramo de açougue. É a família Kolosowski. O senhor Kolosowski criava gado bovino para leite e corte, bem como suínos. Guardava em latas o produto dos suínos, a banha; e também estocava latas vazias. Na sua casa havia dois bons cachorros, que guardavam a propriedade e o açougue.

Numa sexta-feira de quaresma, a família já estava dormindo quando se ouviu um barulho estrondoso de latas vazias e os cachorros latiam desesperados, como se estivessem atacando alguém, mas com desespero ou medo. O dono da casa saiu na varanda e avistou no pátio um homenzinho esquisito e perguntou:

– O que você está fazendo aí? O que você quer aqui?

A criatura respondeu-lhe com um palavrão. Então o senhor Kolosowski pegou uma ripa de cerca e a esposa um galho de pessegueiro e o expulsaram para a estrada, fecharam o portão, encostando-o com um vigote. Os cachorros pareciam pedir do pátio proteção ao patrão.

Entraram em casa e quando viram pela janela, lá estava o homenzinho no pátio, novamente. Entrou sem abrir o portão. Colocaram-no para fora do pátio outra vez. O seu corpo não estava mais coberto por pêlos, pois a crença é que quando o lobisomem é mordido por cachorro, os pêlos desaparecem.

No dia seguinte pela manhã o senhor Kolosowski e seus irmãos foram à estação ferroviária para despachar a carga de banha. Qual não foi o susto, quando viram o homenzinho sentado no banco da praça Getúlio Vargas, provavelmente aguardando o trem.

Ele estava todo machucado pelas mordidas dos cachorros, deduziram então que ele era o lobisomem. Este fato ocorreu em meados de 1940.

MAMBORÊ
Lenda da leitoa mateira


Em tempos remotos, Mamborê era a principal região extrativista de erva-mate da região; quem tomava conta das plantações eram os porcos, pois não havia o costume de criá-los em regime fechado.

Diz a lenda que em torno a um grande pé de erva-mate, os mateiros se reuniam para celebrar a colheita. Nesta festa de confraternização, estimulavam-se as amizades e a fraternidade, que os mantinham unidos até o próximo ano. Com o tempo esta tradição foi se extinguindo e a festa deixou de acontecer. Com isso, a produção deixou de ser farta, as amizades entre mateiros já não eram tão estreitas e as intrigas entre produtores já eram constantes.

Uma leitoa, que sempre acompanhava as festividades, percebeu o caos que estava para acontecer e, em um ato de solidariedade, pediu para a mãe-natureza que tudo voltasse a ser como antes, nem que ela tivesse que sacrificar a sua própria vida.

E assim ocorreu. Em meio às discussões e atritos entre produtores, escutou-se um grande estrondo, como um raio que caíra na proximidade de um grande pé de erva-mate. Todos correram para ver e encontraram um grande banquete, no qual o prato principal era a leitoa. Todos, então, compreenderam que as tradições e as amizades estavam sendo trocadas pelos sentimentos de ganância e materialismo.

Esta festividade durou por décadas, advinda da lenda da leitoa mateira. E até hoje, a comunidade se reúne para saborear a leitoa mateira, com o intuito de promover as amizades e a fraternidade.

MATINHOS
Serpente da figueira


Há muitos anos atrás no canal do Milone (mil homens) no bairro Tabuleiro, existia um pé de figueira, na qual vivia uma serpente; era o caminho que as pessoas usavam para ir ao balneário Caiobá. Segundo contam, a serpente não deixava ninguém passar, assombrando-as. Hoje a figueira não existe mais, mas as pessoas contam que a serpente continua assombrando os moradores.

MATINHOS
A saga da Caetana


Contam que Caetana Paranhos, professora, hoje nome de escola municipal, morava em Caiobá e vinha a cavalo todas as manhãs reger aulas em Matinhos. Ela trabalhava na escola, onde hoje é a Câmara Municipal. Caetana retornava à noitinha para casa. Lá pelos idos de 1900, existiam muitas onças na região. Próximo a um córrego, numa noite de luar uma onça acometeu a montaria de Caetana junto aos rochedos, num lugar no extremo sul de Caiobá. Quando Caetana caiu desfalecida e a onça ia atacá-la o cavalo gritou “Caetana” e a onça fugiu.

Dizem que Caetana na linguagem dos animais significa onça. Até hoje contam que tempos depois alguns alunos ainda viam o cavalo da mestra, circulando pela região. No local existe uma estátua do cavalo.

Fonte:
Renato Augusto Carneiro Jr. (coordenador). Lendas e Contos Populares do Paraná. 21. ed. Curitiba : Secretaria de Estado da Cultura , 2005. (Cadernos Paraná da Gente 3).

J. G. de Araújo Jorge (Quatro Damas) 3a. Parte


" APORTAR... "

Você chegou, pequena e humilde
como quem pede proteção
e nada tem a dar...

E hoje, em teus braços, sou eu que me recolho
como um barco cansado de tormentas
feliz da praia calma onde pôde aportar…

" AS SEIS FACES... "

Quando te encontro e observo que ficaste mais linda
e soltaste os cabelos para me agradar,
e me entregas os lábios num beijo leve e morno como a aragem,
e tranças os teus dedos em meus dedos, e me olhas
como no dia em que te tirei para dançar pela primeira vez,
é que percebo que continuas
a namorada.

Quando te preocupas com o tempo porque vou sair,
e recomendas detalhes como se me visse criança,
e repreendes a minha falta depois que as visitas se foram,
e endireitas a minha gravata, e escolhes a minha camisa,
e me fazes trocar os sapatos que não combinam;

quando surpreende o meu cansaço, e me enlaças,
e recosta a minha cabeça em teu colo,
e me dás conselhos como se eu pudesse segui-los,
é que descubro que há em ti, para mim, até mesmo
um pouco de mãe.

Quando te consomes muito mais com as minhas preocupações
e advinhas meus pensamentos, me prevines contra falsos amigos,
e te empenhas em partilhar também minha luta;

e economizas, como se com isso poupasses minhas forças,
e, sem querer, com uma palavra, desvendas uma solução
tão próxima e tão evidente, mas que meus olhos não percebiam;
quando à noite , na sombra, sem tocarmos os corpos,
conversamos, esquecidos, como dois amigos numa encruzilhada,
é que compreendo que tu és
a companheira.

Quando chego, e ao abrir a porta, estás à espera
com tua felicidade que me envolve e me aconchega,
e tirar da minha mão a pesada pasta de couro,
e me entregas os lábios (úmidos e trêmulos);

quando te encontro depois, em todos os detalhes cotidianos
e prosaicos, que fazem o melhor da vida:
minha toalha de banho no lugar; meus chinelos no seu canto;
minha roupa limpa sobre a cama; aquela jarra com flores arrumada;
aquela mesa posta, com seus talheres brilhando;
aquele odor de refeição que é o perfume do lar;
quando te vejo, leve e diligente, a circular pela casa
que consideras teu Reino, teu Mundo, teu Universo;
sei que tu és então
a esposa.

Quando à noite, de tarde, ou de manhã, (é um momento imprevisto
e nunca marcado) sinto que precisas de mim, que te faço falta,
como do ar, ou da água, de alimento, ou de vida,
e te encontro ao meu lado sempre irrevelada, e te dispo,
e se desencontraram as mãos e nossos corpos
e subitamente nos jogamos, como banhistas
contra o mar, contra as ondas, o mar desconhecido
as ondas que afogam e arrastam,
e de súbito estamos salvos na areia, como náufragos, és
a amante.

Quando te encontro ao meu lado, deitada numa nuvem
a acompanhar outras nuvens preguiçosas e itinenrantes
no céu do coração;

quando te pões a falar como crianças nas brincadeiras
em diminutivos, em “faz-de-contas” de pura imaginação,
e de ti restou apenas o contato dos nossos corpos, que
[permaneceu em nós
entretanto distante, imaterial, a planar
como aquela gaivota na vaga luz da tarde que se esvai;
quando estirados na areia, cansados, mas felizes,
já podemos conversar, eu diria nesta hora que tu és
simplesmente
a irmã.

Quando penso em ti, e te sei tantas, no milagre da multiplicação
do amor,
recolho-me a ti, como pássaro às ramagens, onde encontra
a sombra, o ninho, o balanço, o fruto, - o impulso
para o vôo.

E amo, e trabalho, e sonho, e canto.

" ASTRONAUTA "

Já foste o mapa-mundi
de meus desejos,
percorri-te em todas as direções

Agora,
veste-te, meu amor...
Não adianta continuares
bela... e nua...

Meu destino é a lua…

" AVISO "

Por que não te vais ? Por que não segues
teu caminho, sem acidentes,
e teimas em me querer ?

Hei de vingar em ti, também, a culpa que não tens
meu desespero e meu abandono,
o que a Vida me fez sofrer...

" BAILADO "

Gestação. O sonho Nasce...
O palco é um ventre.

Não eram estátuas
eram mil formas vivas na multiplicidade da beleza
e do ritmo,
nos instantâneos
de cada momento...

Os pássaros perderam as asas
mas o vôo permaneceu
no firmamento...
O canto fez-se harmonia
no plástico silêncio
do movimento

O palco
era um pensamento…

" BASTA VOCÊ "

Por Você
que encontro e veio,
- que é como um sonho bom que eu sonho
e em vão desejo,
só porque a tenho ao meu lado)
em nome dos meus olhos:
- Obrigado !

Obrigado, por Você!

Basta você ser Você. Para que mais?
E por essa alegria que Você me dá,
por essa estranha felicidade, inexplicável,
que me faz ser feliz sem saber bem por que,
só por isto, e por tudo isto, eu lhe agradeço,

pois o destino achou que vez por outra
mereço
ver Você!

Basta Você ser Você. Basta, por um segundo
sentir a sua mão na minha mão,
tão pouco, pensarão!)
- e, entretanto, para mim é tanta coisa, um mundo
encantado...

Mesmo sem nada me dar, Você já está-se dando
com a sua presença,
e isto é quase tudo para quem não pode, como eu,
senão
sonhar acordado!

Sim, porque tudo, já se vê,
tudo: seria Você!

"HISTÓRIA"

Eras a Musa
eu, o poeta...

Aconteceu naquele instante
em que, displicente,
me estendeste a mão dizendo adeus
- como que diz até logo, -
e eu tive a impressão de que subitamente,
minha vida era uma nova Pompéia
que submergia em lavas para os séculos.

Agora
revendo as provas dos velhos poemas
que me queimaram,
te desenterro estátua irreconhecível
entre cinzas e palavras,
lembranças de um mundo em que fomos personagens,
e em que hoje, és história,
e eu, - arqueólogo.

Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Quatro Damas. 1. ed. 1964.

Nilto Maciel (O Bom Selvagem) 4a. Parte, final


CAÇADOR

Eu havia me prometido não interromper este relato por coisa nenhuma deste mundo, apesar de ter deixado inconclusa a tradução da História do Brasil. Nestes últimos dias, porém, me vi obrigado a descumprir a promessa, para atender o compromisso assumido com padre Tonelli. E trabalhei mais algumas páginas da tradução: Venceslau Brás, gripe espanhola, Delfim Moreira, Epitácio Pessoa.

O caso da porta, no entanto, não me saía da cabeça e joguei de lado outra vez presidentes e misérias do Brasil. E cá estou às voltas com os meus pretéritos dissabores.

Quero deixar registrados também os motivos por que fugi do convívio dos brancos e procurei me tornar índio. Sim, nunca fui integralmente índio, porque cedo me afastaram de meu povo bororo e tentaram fazer de mim um europeu. Não sei com que intenções. Talvez para provarem que índio pode se tornar gente, cristão, humano.

Realmente, os longos anos vividos junto aos padres, afora o tempo de Paris e Roma, me transformaram. Durante muito tempo acreditei fosse melhor ser branco do que índio. Preferia café com pão a araxicu, bife de vaca a tatu, galinha a tamanduá. Mil vezes casa com banheiro, sofá e cama à cabana de palha.

Não sou cachorro, porém, e nunca fui escravo. Meus pais e avós em tempo algum lamberam os pés de ninguém. Jamais se viram enxotados da casa de alguém.

E quem era aquele estrangeiro para me afrontar e humilhar? Talvez tivesse sido em sua terra um reles criado de bispo. Quem era aquele padreco para me bater a porta na cara? Algum descendente de servo dos Medici. Quem era aquele branco analfabeto para me negar acesso à casa da Missão, se eu poderia lhe ensinar o abc de sua língua natural e da minha? Quem era aquele europeu para me negar uma xícara de café? Ora, eu poderia lhe dar lições tanto de culinária europeia como de cerâmica chinesa ou marajó. Lições de etiqueta e agricultura. Falar de astecas e espanhóis.

A partir daquele instante o mundo dos brancos não mais existia para mim, apesar de hoje estar convencido de que também o mundo dos índios não me pertence. Sou um homem sem sentido.

Eu não sentia ódio, porque padre Grottanelli apenas simbolizava o mundo dos meus enganadores. Não queria vingar-me de nada, porque a porta que ele fechou representava o muro que ergueram diante de mim. Não pensei em guerrear, porque havia o caminho de volta, onde não existiam ódios nem portas. E voltei para minha cabana, minha família, minha terra, embora já nada me pertencesse. E não vou mais adubar esta terra, pois agora só planto solidão na tumba dos meus avós.

Deixei crescer os cabelos, joguei fora os trapos da moda europeia, fui ser caçador. Esqueci Deus e as orações, Paris e boulevards, batinas e missais, disposto a nunca mais ver um padre ou um branco qualquer. Acreditei de novo nos bope, demônios que moram nos jatobás, nas grandes árvores e nas pedras. Acreditei nos castigos que nos trazem o sol e a lua. Na transformação dos índios, após a morte, em arara, gavião ou dourado.

Já é tarde e Aroia me chama a dormir. Não, quem me chama é Lucina Álvares. Sua voz é áspera. Aroia nunca me chamava, como se sua voz fosse feita de silêncio.

Que tolices estou escrevendo! Pareço até um rapazinho apaixonado. Como aquele que vivia em Paris e escrevia versos, há mais de vinte anos.

É hora de dormir. E nada de sonhos, senhor Daniel. Amanhã é dia de mentir a padre Tonelli, de alegar dores de cabeça, cansaço, caçada. Ou de falar da República no outro caderno.

Por hoje basta.

LAVRADOR

A vida de caçador daria alimento para mim, Aroia e nossos filhos. E também fama, destaque entre os demais. Para ser bom caçador, além de muita caça, é preciso destreza e força física. Porém, já vivíamos desde muito tempo encurralados pelos brancos. Para onde corríamos, encontrávamos cercas e homens armados. E eu, criado no meio dos brancos desde menino, não desenvolvi os músculos. Comparado aos índios do mato, eu parecia uma criança.

Nem sei como suportei os três primeiros meses de caçada. Logo no primeiro dia voltei para casa quase morto. Também não podia ser para menos: os outros levavam vida sexual moderada e eu não perdia oportunidade de estar com as mulheres do Boqueirão. Diante de uma onça eu tremia, enquanto outros as enfrentavam e venciam.

Tudo me era desfavorável. Meus companheiros, alguns muito mais velhos do que eu, falavam e riam com todos os dentes, alvos e fortes, feito pérolas. Eu, porém, contava com a língua os poucos que me sobraram. E recordava a comida quente dos brancos, o açúcar, etc.

Todos me olhavam com desprezo, como se eu fosse doente ou velho, entre brancos. Porque eu mal lhes servia de companhia e parecia estar no mato apenas para carregar as armas.

Passado o período das caçadas, voltei-me para a agricultura e nunca mais empunhei um arco. Mesmo assim, não consegui ainda habituar-me a esta vida dura. Nossa vida tem sido de muita fome. Lucina parece uma velha e os meninos seguem meus passos. Já aprenderam a rezar e soletrar, vivem aos pés dos padres e suas barrigas crescem desordenadamente. Vivem doentes e tristes, como se a vida estivesse atolada em pântanos. E eu sou um cativo de minha tristeza, o tempo todo parado, a pensar, sonolento.

Meus irmãos bororo me têm como estranho, quando não me chamam de orgulhoso e besta, por saber ler e escrever, ter sido professor e meteorologista, ter vivido na Europa, saber tanto e não conseguir olhar de frente para uma onça.

Aos poucos fui me arredando de todos e hoje me refugio no passado e na solidão. Aprendi a ser assim só, vendo os outros em companhia. Este caderno mesmo é o resultado disso. Pretexto e solução. Se aprendi a escrever, escrevo. Até quando aguentarei isto, não sei.

Viver assim é possível?

ESCRITOR

Lá atrás da capela e entre os olhinhos amarelos do céu, surge a lua para falar aos homens de solidão. E eu, que só quero falar a mim mesmo, escuto a sua voz.

De uns tempos para cá tenho passado horas a fio entregue aos pensamentos, inerte, sem rumo. Que fiz da minha vida e dos sonhos mais bonitos? O tempo os carregou para debaixo da terra.

Os bororo me chamam de incapaz, os brancos de preguiçoso. De fato, não consegui adaptar-me ao meu mundo de origem e fracassei como índio. O porte franzino, as mãos pequenas e finas, os dentes perdidos, tudo me afasta do ideal de caçador, de homem forte, de bororo. Resta-me voltar aos brancos, à cultura que me emprestaram.

Não me adianta, porém, ler e falar francês, italiano, inglês, espanhol. Os brasileiros mal falam o português! Se eu tivesse recursos, voltaria à Europa. Lá poderia dedicar-me ao magistério, por exemplo. Ou a publicar histórias de meu povo. La legende du homme avec cerf seria a primeira delas. Agradaria a muitos europeus.

Esta vidinha aqui no Boqueirão não tem mais sentido para mim. Quando eu saio, a minha sombra me acompanha e faz o que eu faço. E segue os meus passos. Se me dá vontade de voltar para casa, minha sombra me arrasta para as quatro paredes de minha casa.

Não passarei nunca de um índio que aprendeu línguas, viveu entre europeus, traduziu a Bíblia e a História do Brasil para o bororo e se tornou conhecido como o professor Daniel.

Aos 36 anos não é mais possível sonhar mais. No entanto, canta dentro de mim o velho sino da Missão para lembrar que existo. Canta enquanto me espanto da vida e me esquivo da morte.

Mas é preciso criar os filhos, dar um ponto final a este relato, concluir a tradução da História do Brasil e acreditar nas mudanças sociais prometidas pelo novo Presidente da República.

Talvez volte a ser professor. Há sempre o que transmitir aos outros. Pelo menos aprendem a ler e escrever. E passam a ver o mundo com mais clareza. Afinal de contas, tristezas não pagam dívidas, como diz o povo.

Quero também escrever mais. Narrar minha viagem à Europa, contar minhas experiências. Talvez assim deixe de lado essa tristeza idiota. Não posso e não devo viver assim. Se não sirvo para caçador ou agricultor, servirei para professor, meteorologista, escritor.

Um dia todos me entenderão e respeitarão. Basta que eu mesmo me entenda e me respeite.

Fonte:
Nilto Maciel. Vasto Abismo. Brasília: Ed. Códice, 1998.

Souza Lobo (Trovas da Gente)


Põe mais serviço na estrada;
Toda amargura que vem
Respeita a vida ocupada
No santo labor do bem.

Terrível sentença é
(Mais fácil de perceber):
Quem perdeu a própria fé
Nada mais tem a perder.

Se quereres viver contente
No doce clima da paz,
Nunca dês um passo à frente
Deixando culpas atrás.

Sorriso, às vezes, na vida,
Mesmo na festa mais louca,
É uma lágrima comprida
Paralisada na boca.

Felicidade mais pura
Eu sei onde é que se asila,
Reside calma e segura
Na consciência tranqüila.


~ * ~ * ~ * ~ * ~
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 444)

FAROL DA BARRA/SALVADOR-BA


Uma Trova de Ademar

Uma carícia envolvente,
quando no peito se inflama,
transforma-se em chama ardente
no coração de quem ama!
–ADEMAR MACEDO/RN–

Uma Trova Nacional

Meu viver nunca é tristonho,
do mar, copiando a investida,
eu jogo espumas de sonho,
por sobre as pedras da vida!
–CAROLINA RAMOS/SP–

Uma Trova Potiguar


Já cansado dos cansaços
das lutas do dia a dia,
vou buscar força nos braços
da deusa-mãe da poesia.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Chego ao fim... E, em meu inverno,
percebo a grande ironia:
fiz desta vida um inferno
e era calma o que eu queria...
–NYDIA IAGGI MARTINS/RJ–

Uma Trova Premiada


2011 - UBT-Natal/RN
Tema: SORTE - M/H


Teu futuro não desvende
num trevo de quatro folhas,
pois a sorte só depende
de tuas próprias escolhas!...
–DOMITILLA BORGES BELTRAME/SP–

Simplesmente Poesia


M O T E :
Quem consola o choro alheio,
não tem tempo de chorar.


GLOSA :
–RODRIGUES NETO/RN–

Sofre também aperreio;
sente a mesma dor vivida
de quem sente a dor sentida,
quem consola o choro alheio.
A tristeza é seu recheio,
revelada em seu olhar;
faz tudo pra suportar
sem exibir aflição
quem consola a dor do irmão
não tem tempo de chorar.

Estrofe do Dia

Quem perdoa o próximo está abrindo
o caminho pra casa do senhor,
mas aquele que age com furor
vai abaixo e termina sucumbindo;
o perdão é um sentimento lindo
que transborda do peito e é capaz
de deixar para aquele que assim faz
uma vaga no céu já garantida;
bote a luz do perdão em sua vida
que a treva do ódio se desfaz.
CARLOS AIRES/PE–

Soneto do Dia

Faces da Lua
–DIVENEI BOSELI/SP–


Um dia, sem medir as consequências
– não fiz por evitar – talvez não pude –
cedi se cogitar de outra atitude,
meu corpo a um caçador de experiências.

E o grão das corrompidas inocências
pousado no meu ventre – um ataúde –
imerso em águas turvas de um açude,
passou a irradiar resplandecências...

E as fases pontuais de nove luas
puseram na semente as faces suas,
gerando a criatura conflitante

que, sendo meu rebento, não é minha!
Plebeia, tem requintes da rainha:
às vezes lua cheia... outras, minguante...
-
Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Alberto)


Alberto tinha seis anos. Era filho de um jardineiro. Via seu pai e seus irmãos ativos e laboriosos, plantar árvores e fazer sementeiras, que nasciam, cresciam e davam fruto. Tinha visto um único feijão produzir cem feijões e muitas vezes mais, e de uma talhada de batata nascerem quarenta batatas magníficas; sabia que a terra pagava com juros exorbitantes o que lhe emprestavam. Um dia achou uma libra no quarto do pai, e foi enterrá-la imediatamente no seu jardinzinho.

– Há-de nascer uma árvore, dizia ele consigo, que dará libras como uma cerejeira dá cerejas e irei entregá-las ao papá, que ficará muito contente.

Todas as manhãs ia ver se a libra tinha nascido, mas não rebentava nada. Entretanto o pai procurava a libra por toda a parte. Por fim perguntou ao Albertinho se a tinha visto.

– Vi, papá; achei-a e fui semeá-la.

– Gomo, semeá-la? doido! julgas talvez que vai nascer como uma couve?

– Mas, papá, ouvi dizer que o ouro se encontrava na terra.

– É verdade, mas não nasce como as sementes; o ouro não tem vida.

Desenterrou-se a libra, e Alberto foi castigado por dispor do que lhe não pertencia.

Há, contudo, meus filhos, uma maneira de semear o ouro, fazendo-lhe produzir os mais belos frutos que existem no mundo. Quereis saber como é? dando-o aos pobres. Faz-se no Paraíso a colheita desta sementeira.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Irmão de Pinóquio – VI – Miragens


Enquanto lá na floresta Pedrinho pensava no melhor meio de vingar-se da boneca, Narizinho resolvia dar um passeio pelo pomar. Costumava fazer isso nas tardes agradáveis, sempre em companhia da sua companheira. Naquele dia, porém, Emília fez luxo.

— Não posso hoje — disse mostrando o cavalinho. – Estou ensinando o ABC a este analfabeto, que anda com vontade de ler a história do Pégaso, do Bucéfalo, do cavalo de Tróia e outras “cavalências” célebres.

Narizinho não gostava de passear só, por isso correu os olhos pela sala em procura de algum outro companheiro. Só viu o triste irmão de Pinóquio, que Pedrinho havia jogado para cima do armário.

— Coitado! — exclamou. — Porque é feio como o Diogo e morto como um defunto, ninguém faz conta dele. Vou levá-lo comigo.

Talvez que os ares do ribeirão lhe façam bem.

Pescou-o de cima do armário com o cabo da vassoura e lá se foi com ele ao pomar, rumo do ribeirão, onde havia aquele velho pé de ingá de enormes raízes de fora. Sentou-se na “sua raiz” (havia outra de Pedrinho e outra do Visconde), recostou a cabeça no tronco e cerrou os olhos, porque o mundo ficava três vezes mais bonito quando cerrava os olhos. De todos os lugares que ela conhecia era aquele o mais gostado. Fora ali que vira pela primeira vez o príncipe das Águas Claras, e era ali que costumava pensar na vida, resolver seus problemazinhos e sonhar castelos.

O sol ia descambando no horizonte (“horizonte” era o nome do morro atrás do qual o sol costumava esconder-se) e seus últimos raios vinham brincar de acende-e-apaga brilhinhos na correnteza. Volta e meia um lambari prateava o ar com um pulo.

De repente Narizinho ouviu um bocejo — ahhh! Olhou... Era Faz-de-conta que se espreguiçava, como quem sai de um longo sono.

Achando aquilo a coisa mais natural do mundo, a menina apenas disse:

— Ora graças! eu tinha certeza de que os ares do ribeirão fariam você mudar.

— Eu sou sempre o mesmo — respondeu o boneco. — Não mudei. Não mudo nunca. Quem muda são vocês, criaturas humanas. Você mudou, Narizinho.

— Como isso? — exclamou a menina franzindo a testa. – Estou no que sempre fui...

— Parece. Tanto mudou que está entendendo a minha linguagem e vai ver coisa que sempre existiu neste sítio e no entanto você nunca viu. Olhe lá!

A menina olhou para onde ele apontava e realmente viu um bando de lindas criaturas, envoltas em véus de finíssima tule, dançando por entre as árvores do pomar. No meio delas estava um ente estranho, de orelhas bicudas como as de Mefistófeles, dois chifrinhos na testa e cauda de bode. Soprava músicas numa flauta de Pã, isto é, numa flauta feita de canudos incões, tal qual a casa de barro que umas vespas chamadas “Nhá Inacinhas” haviam feito na parede do fundo da casa de dona Benta.

— Oh! — exclamou a menina recordando-se. — Ainda ontem vi num dos livros de vovó uma gravura com uma cena igualzinha a esta. São as ninfas do bosque e o homem é um fauno.

Apesar de ter falado baixo, as dançarinas ouviram aquelas palavras e, não se sabe por que, fugiram numa corrida louca em todas as direções. O fauno até deixou cair a sua flauta.

— É minha agora! — gritou Narizinho correndo a apanhá-la.

— Ganhei uma flauta de Pã!...

Mas, ai! Agarrou a flauta com tanta força que a moeu, porque era de barro e estava cheia de vespas, que voaram numa grande aflição atrás das ninfas. Só ficou uma, presa entre o polegar e o fura bolos da menina.

— Que vespa esquisita! — exclamou ela, examinando atentamente a prisioneira. — Parece uma velhinha coroca.

— Hein? — murmurou Faz-de-conta chegando e olhando. – Estou reconhecendo esta vespa. Quando o tronco de pau de que fiz parte era árvore viva, cheia de flores cada mês de setembro, muitas vezes a vi lá em nossos galhos. Desconfio que é uma fadazinha disfarçada em vespa.

— Se é fada — disse a menina duvidando — por que não fugiu com as outras e deixou que eu a pegasse?

— Porque queria conversar com você — respondeu a vespa.

A menina arregalou os olhos tomada de grande alegria.

— É fada mesmo, Faz-de-conta! E das que falam, porque há umas que só fazem tlim, tlim, tlim, como aquela fada Sininho que gostava de Peter Pan. Que pena Pedrinho e Emília não estarem aqui. Vão ficar danados de eu ter visto fadas antes deles.

A vespa-fada contou-lhe sua vida desde que nasceu e disse que já de muitos anos andava a correr mundo atrás de um alfinete mágico sem o qual não poderia ser, bem, bem, bem, fada das que podem tudo e viram uma coisa noutra. Esse alfinete era uma varinha de condão das mais poderosas, que andava perdida entre os mortais. Ao ouvir aquilo o coração da menina pulou dentro do peito. Lembrou-se logo do alfinete que tia Nastácia havia dado à boneca e imaginou que talvez fosse o tal alfinete mágico. Para certificar-se indagou...

— Não era um alfinete de pombinha carijó?

— Isso mesmo! Como sabe? — exclamou a fada, admiradíssima.

Narizinho viu que havia feito asneira dizendo aquilo, pois a vespa poderia tomar o alfinete da boneca, impedindo-a de vir a ser uma famosa fada de pano — coisa que nunca existiu. Quis remendar a imprudência e disse:

— Sonhei. Sonhei a noite passada com um alfinete assim, isto é, mais ou menos assim. Não era de pombinha, não, agora me lembro. Era de galo ou bicho parecido. Como a senhora sabe, os sonhos são sempre atrapalhados.

— Mais atrapalhadas são as mentiras de nariz arrebitado! — disse a vespa, fugindo da mão da menina e indo pousar num galho de árvore. — Estou vendo que você sabe onde está o alfinete e não quer me contar.

Faz-de-conta chegou-se ao ouvido da menina e cochichou:

— Não caia nessa! Não conte! Você lá sabe se ela merece? Com fadas é preciso muita cautela, porque se algumas são anjos de bondade, outras são más como bruxas.

— Estou ouvindo tudo! — disse a vespa lá do galho. — E para castigo vou dar uma ferroada bem venenosa na ponta do nariz dessa menina má. Esperem aí!...

E começou a inchar, a inchar, até ficar do tamanho duma enorme aranha caranguejeira. E arreganhou os terríveis ferrões e lançou-se contra a menina.

— Acuda, Faz-de-conta! — berrou Narizinho fechando os olhos.

Ela sabia que o melhor meio de escapar dos grandes perigos era fechar os olhos, bem fechados, como a gente faz nos sonhos quando sonha que está caindo num precipício.

De um pulo Faz-de-conta colocou-se entre a vespa e a menina, pronto para sacrificar a vida em sua defesa. O boneco era feio, mas tinha a alma heróica. E como estivesse desarmado, puxou do prego que prendia sua cabeça ao corpo, como quem puxa duma espada e investiu contra a vespa. Ao fazer isso, porém, sua cabeça caiu por terra, rolou morro abaixo e foi mergulhar — tchibum! — no ribeirão.

A vespa assustou-se ao ver tão estranha criatura avançar para ela de prego em punho e sem cabeça. Assustou-se e — zunn! – desapareceu no ar...

— Pronto? — perguntou a menina sempre de olhos fechados.

Ninguém respondeu.

— Ela ainda está aí? — perguntou de novo.

Ninguém respondeu.

Narizinho foi então entreabrindo os olhos, com muito medo, e afinal abriu-os de todo. Mas deu um grito de horror, ao ver o boneco na sua frente, de prego na mão e sem cabeça.

— Que é isso, Faz-de-conta? Que fim levou sua cabeça?

O boneco está claro que nada respondeu. Só tinha boca e ouvidos na cabeça e como a cabeça rolara morro abaixo não podia ouvi-la nem responder.

— E agora? — disse consigo a menina. — Este lugar me parece muito perigoso, e sem auxílio de Faz-de-conta podem me acontecer grandes desgraças. Se ao menos houvesse aqui por perto alguma casinha...

Olhou em redor e viu não muito longe uma fumaça. “Deve ser casa”, pensou, e correu para lá. Era casa, sim, a mais linda casa que ela viu em toda a sua vida, com trepadeiras na frente e duas janelas de venezianas verdinhas.

A menina bateu — toc, toc, toc...

— Entre quem é! — gritou de lá dentro uma voz.

Narizinho abriu e entrou e deu um grito de alegria.

— Capinha! Que felicidade encontrar-te aqui!

— E a minha felicidade de receber tua visita ainda é maior, Narizinho! Há quanto tempo te espero!...

Abraçaram-se e beijaram-se e ficaram de mãos presas e os olhos postos uma na outra. Era ali a casa da Menina da Capinha Vermelha, cuja avó havia sido devorada pelo lobo. Capinha já tinha estado no sítio de dona Benta no dia da recepção dos príncipes encantados e ficara gostando muito de Narizinho e Emília, tendo-as convidado para virem passar uns dias com ela.

— Mas por que não me avisaste da tua visita, Narizinho ?

— É que cheguei aqui por acaso. Vi-me só na floresta, depois que meu guia perdeu a cabeça, e não sei o que seria de mim se não fosse a fumacinha de tua casa, que vi de longe. E vim correndo, mas sem saber quem morava aqui.

Narizinho contou então tudo o que lhe havia acontecido e a terrível desgraça que sucedera a Faz-de-conta.

— Que coincidência! — exclamou Capinha. — Não faz minutos eu estava tomando banho no ribeirão e um objeto, feito castanha de caju veio rolando pela água abaixo até esbarrar em mim. Peguei-o, olhei e vi que era uma cabeça, com boca, nariz e tudo. Quem sabe se não é a cabeça de Faz-de-conta? Está guardada no bolso do meu avental.

Foi lá dentro e trouxe a cabeça.

— É essa mesma! — exclamou Narizinho satisfeitíssima daquele inesperado e feliz desenlace. — Vou consertar o meu João, já, já.

Foi um instante. Em meio minuto a cabeça do boneco estava outra vez no lugar e ele em condições de falar e contar tudo o que acontecera enquanto a menina estivera de olhos fechados. Quando Faz-de-conta concluiu a narrativa, Capinha suspirou e disse:

— Quem me dera ter um companheiro leal e valente como este! Vivo tão sozinha nestas solidões...

Narizinho prometeu que viria visitá-la sempre que pudesse.

— E não deixe de trazer a Emília. Gostei muito dela.

Narizinho contou-lhe, então, em grande segredo para que alguma vespa escondida por ali não pudesse ouvir, que a boneca estava na posse do alfinete de pombinha, que era uma vara de condão e poderia, portanto, de um momento para outro, virar uma poderosa fada — e uma fada que nunca existiu no mundo: a Fada de Pano.

— Pois ela que se transforme e apareça por aqui para brincarmos de virar.

Nisto surgiu João Faz-de-conta, que tinha saído para o terreiro a fim de refrescar a cabeça. Vinha muito alegre, dizendo:

— Adivinhem quem passou por aqui! Peter Pan. Conversou comigo meio minuto e lá se foi, voando, para a Terra do Nunca, onde mora. Disse que qualquer dia aparece no sítio de dona Benta para brincar com Pedrinho.

— Que pena não ter portado um minuto para tomar café conosco! — exclamou Capinha. — Ele sempre me visita e gosto muito dele.

Narizinho, que já conhecia Peter Pan, fez várias perguntas a respeito desse extraordinário “menino que jamais quis ser gente grande” e de sua inseparável companheira, a fada Sininho. E ainda estava a ouvir histórias dele, quando Faz-de-conta deu um berro de desespero, apontando para a estranha figura que acabava de pular a cerca do quintal com uma enorme faca de matar mulher na mão.

— Feche os olhos, Narizinho! — gritou ele. — Barba Azul vem vindo!...

A menina, para salvar-se fechou os olhos com quanta força teve...
––––––––––––––
Continua… VII – O Alfinete

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Paraná em Trovas Collection - 37 - Marita França (Curitiba)


Sandra Castiel (Os Mistérios da Cachoeira de Samuel)

Ao longo de minha vida e de minha profissão, já ouvi histórias referentes às diversas regiões do Brasil. Porém, tão ricas como as nossas não há. A selva amazônica é guardiã de mistérios impressionantes. Não é à toa que seus antigos habitantes traziam à ponta da língua uma boa história, verdadeira para quem a contava. Como amante de mistérios e genuína amazônida, creio em todas.

Nos dias de hoje, grande parte da população da Amazônia vive distanciada da natureza. Isso não acontecia no passado. A floresta e os seres que nela habitam faziam parte de nossa vida. A natureza exuberante – árvores gigantescas, animais exóticos, igarapés caudalosos e banhos de rio – era o cotidiano das pessoas, e isso se traduzia no respeito que todos, crianças e adultos, nutriam por esse universo.

Cenário presente na nossa infância era a cachoeira do Samuel. Sempre que o Madeira baixava, na estação seca, formava-se uma agradável praia de água doce, um paraíso para os banhistas. Porém era preciso muito cuidado, pois aquelas águas eram traiçoeiras e misteriosas.

Lembro-me de uma amiga de minha mãe que se livrou do afogamento pela ação providencial de um caboclo da região que se encontrava no local. Mais tarde, em nossa sala, contava a história toda, ainda em estado de choque. Segundo ela, quando começou a entrar na água, uma voz soprou em seu ouvido: - Não entra! – Mas ela achou que era impressão, não deu importância ao fato e avançou praia adentro. De repente, faltou-lhe o chão e, quando estava afundando, tornou a escutar a voz sussurrando: - Bem feito! Eu não avisei?

Nenhuma história envolvendo a cachoeira de Samuel é tão impressionante como a contada por uma de minhas irmãs mais velhas, protagonista de um episódio fantástico. Ela devia ter uns quatro, cinco anos de idade, e era uma criança muito inocente. Minha mãe foi com uma amiga e os filhos de ambas passar o dia em Samuel. Enquanto as mães conversavam sentadas na faixa de areia, as crianças divertiam-se à beira d’água, na parte mais rasa, pulando, virando cambalhota, enfim, essas coisas de criança. Foi assim que Leninha, sem se dar conta do perigo e sem que os outros notassem, afastou-se do grupo, alguns metros longe da beira.

Quando quis voltar, não conseguiu: uma forte correnteza a empurrara rapidamente para longe, mais longe, cada vez mais. Então começou a afundar. Seu corpo vinha rapidamente à tona conforme o movimento da corrente, subindo e descendo. Numa das subidas viu à sua frente, boiando, uma grande cabeleira negra espalhada na superfície da água, como se alguém estivesse emergindo das profundezas. Desesperada, já engolindo água, Leninha agarrou-se aos cabelos e sentiu que eram firmes como um tronco de árvore. Percebeu também que eles a puxavam na direção contrária à correnteza. Segurando os misteriosos cabelos com as duas mãos, a menina foi levada vagarosamente até onde podia ficar de pé e chegar em segurança à praia onde estava o grupo de crianças.

Assim que saiu da água, Leninha avistou, poucos passos à sua frente, de costas, a dona dos longos cabelos. Era uma mulher morena e corpulenta. Trazia no torso nu e em ambos os braços belos enfeites de contas e penas. Na cabeça, a vasta e molhada cabeleira negra. A mulher voltou-se e sorriu para a criança, que lhe retribuiu o sorriso. A índia misteriosa caminhou uns três metros e desapareceu diante dos olhos de Leninha, que, inocentemente, correu para perto da mãe.

Minha irmã jamais esqueceu a cabocla dos longos cabelos que a salvou da morte nas águas turvas da cachoeira do Samuel. Seria ela a representação feminina da Cachoeira? Jamais saberemos.

Assim é nossa Amazônia: frondosa e caudalosa, cheia de mistérios…
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Sobre a Autora:
Sandra Maria Castiel Fernandes é natural de Porto Velho. Possui formação em Letras. É professora de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Infantil. Pós-graduada em Língua Portuguesa e Metodologia do Ensino Superior. Mestre em Educação. Pesquisadora na área da Educação Especial e em temas que envolvem a história de Rondônia. Sandra Castiel possui três livros publicados: dois sobre a história de Rondônia e um sobre teatro infantil; quatro artigos em revistas especializadas em Educação e dois livros em andamento. Escreve e dirige peças de teatro infantil. Gosta de escrever crônicas literárias. Sandra Castiel é membro efetivo da Academia de Letras de Rondônia, cadeira n. 36, cujo patrono é seu antigo professor, Enos Eduardo Lins.

Fonte:
Texto publicado no jornal eletrônico Gente de Opinião em 03/12/2011. Disponivel em Debates Culturais