quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 5


Alexandre Fernandes          
(Alexandre José de Seixas Fernandes)
(Rio Grande/RS, 24 de julho de 1863 – Salvador/Bahia – 30 de março de 1907 )

" CORAÇÃO DE MULHER "

Vira o rosto se eu passo; e entretanto,
seu olhar a seguir meu vulto fica.
Que me estima, de certo não indica,
porque parece que me odeia tanto!

Se um dia não me vê, ligeiro espanto
quando me avista o seu olhar explica;
e, nessa alternativa, mortifica
minha alma, escravizada a seu encanto.

As vezes, eu também, rapidamente,
volto meu rosto, finjo, indiferente,
nem pensar que ela vive neste mundo.

Mas, vejo, de revés, que ela me segue,
que o seu olhar ansioso me persegue ...
Coração de mulher, como és profundo!
=====================

Alphonsus de Guimaraens
Afonso Henriques da Costa Guimarães
(Ouro Preto/MG, 24 de julho de 1870 – Mariana/MG, 15 de julho de 1921 )

" AO POENTE "
            
Ficávamos sonhando horas inteiras,
com os olhos cheios de visões piedosas:
éramos duas virginais palmeiras,
abrindo ao céu as palmas silenciosas.

As nossas almas, brancas, forasteiras,
no éter sublime alavam-se radiosas,
ao redor de nós dois, quantas roseiras...
O áureo poente coroava-nos de rosas.

Era um arpejo de harpa todo o espaço;
mirava-a longamente, traço a traço,
no seu fulgor de arcanjo proibido.

Surgia a lua, além, toda de cera ...
Ai como suave então me parecera
a voz do amor que eu nunca tinha ouvido.

" SONETO "
                                                           
Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

" SONETO XIX "
                                                           
Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. .
" E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"
====================

Alphonsus de Guimarães Filho
(Afonso Henriques de Guimarães Filho)
(Mariana/MG, 3 de junho de 1918 – Rio de Janeiro/RJ – 28 de agosto de 2008)

"SONETOS DA AUSÊNCIA XII "
                                                        
Não te desejo mais pela amargura
nem pelas alegrias inconstantes:
quero beijar nas tuas mãos distantes
o amor que me alivia e transfigura.

Quero, sonhando a adolescência pura
no teu corpo febril, das mãos amantes,
colher nos ventos tudo quanto dantes
ambicionara em sedes de loucura.

Quero o teu riso, o teu silêncio, a graça
do teu vestido ao vento, o andar sereno
de ave marinha pelas madrugadas.

Quero colher em ti o que não passa
e pulsa em mim como o teu leve aceno
na distância impossível das estradas.

"SONETOS DA AUSÊNCIA XLII "
                                                           
O doce amor. As doces mãos da amada.
Seu corpo branco como luz macia
e a matinal pureza. e a graça e a fria
carícia da leve madrugada...

A rua humilde. A paz desta pousada.
A trepadeira, o alpendre... E, todo dia,
os risos das crianças, a alegria
descendo, clara, sobre a minha estrada.

Depois, a noite os sonhos dominando,
vozes veladas... Confissões a medo...
Gestos de quem parou na despedida

e há de ficar, por seu pesar, chorando,
vivendo o adeus que é como o seu segredo,
o adeus que encerra em si a própria vida.

Fonte:
J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963

Francisco Marques “Chico dos Bonecos” (Andarilhos)


Andava pela estrada, sozinho. Um sol de rachar e os dois andando, sem parar. E andando, resolvidos, iam os três desenxabidos. Os quatro não andavam à toa: buscavam uma terra boa.

Com os pés doendo de tanto andar, os cinco pararam para descansar.

E os seis se deitaram, dormiram, sonharam...

No meio da noite, os sete acordaram e se arrepiaram.

Dezesseis olhos arregalados, brilhando, viram o rio iluminado, o chão iluminado.

Cavando a terra, dezoito mãos traziam, com a respiração ofegante, dezenas de pedrinhas brilhantes.

Depois de muito cavar, contar e reunir, os dez começaram a discutir.

O centro da discussão era este: onze andarilhos podem suportar tantos brilhos?

Uma dúzia de idéias diferentes, uma ou outra interessante, mas nenhuma idéia brilhante.

Com as palavras doendo de tanto falar, os treze resolveram si-len-ci-ar. 

Deitados, silenciosos, os catorze buscavam uma nova rima, quando olharam para cima...

Boquiabertos, ao som de quinze admirações, descobriram estrelas cadentes, candentes em grandes porções e proporções.

E aquelas dezesseis imaginações tropeçaram nas mesmas conclusões...

"As pedras são farelos de estrelas", dezessete vezes pensaram e dezessete vozes exclamaram.

E declararam os dezoito andarilhos, acostumados a vagar de déu em déu: "Essa terra tem parentesco com o céu."

E dezenove caminheiros decidiram fincar o pé e se estabelecer: "De agora em diante, aqui vamos morar, aqui vamos viver."

Vinte vezes festejavam. Quando uma voz desfestejou: "Continuarei caminhando. Adeus. Já vou."

E este que se foi, ligeirinho!, posso dizer apenas que ele...
Andava pela estrada, sozinho.

Fonte:
Revista Nova Escola

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 761)



Uma Trova de Ademar  

Hoje na terceira idade, 
eu, de amores já vazio, 
voltei ao mar da saudade 
para ancorar meu navio. 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

O que mais queres, querida, 
se já te dei tudo, enfim? 
Até minha própria vida 
não pertence mais a mim. 
–Clênio Borges/RS– 

Uma Trova Potiguar  

Muitos serão invejados, 
poucos serão aplaudidos; 
vivendo são criticados,
morrendo são esquecidos.
–Prof. Maia/RN– 

Uma Trova Premiada  

2004   :   Petrópolis/RJ 
Tema   :   ÁGUA   :   1º Lugar. 

Nessas manhãs de invernadas, 
o orvalho, na rosa nua, 
põe gotas d'água roladas 
dos olhos triste da lua!.. 
–Hermoclydes S. Franco/RJ– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Esta saudade infinita 
do amor que a gente viveu, 
é a mensagem mais bonita, 
que o meu passado escreveu!... 
–Aloísio Alves da Costa/CE– 

U m a P o e s i a  

Não esqueçamos jamais 
que a meta de nossa vida, 
é trilharmos nossa estrada 
com a fé, então, devida, 
para, ao céu, então, chegarmos, 
depois da missão cumprida! 
Gislaine Canalles/SC– 

Soneto do Dia  

L U Z
–Divenei Boseli/SP– 

Se a vida fosse apenas um brinquedo 
e o medo fosse apenas ilusão, 
se o amor fosse despido de segredo 
e a dedo se encolhesse uma emoção, 

se a voz tivesse a força de um torpedo, 
a pena fosse um traço de união 
e as deusas, num telúrico bruxedo, 
tornassem verdadeira a compreensão, 

seriam não apenas operárias 
da indústria, do comércio e mesmo agrárias 
as tochas geradoras dessa luz 

que eu penso poder ver quando a mulher 
dispensa “Cirineus” e, como quer, 
carrega sem ajuda a própria cruz!

Machado de Assis (José de Alencar: Iracema)


A ESCOLA poética, chamada escola americana, teve sempre adversários, o que não importa dizer que houvesse controvérsia pública. A discussão literária no nosso país é uma espécie de steeple-chase, que se organiza de quando em quando; fora disso a discussão trava-se no gabinete, na rua, e nas salas. Não passa daí. em nos parece que se deva chamar escola ao movimento que atraiu as musas nacionais para o tesouro das tradições indígenas. Escola ou não, a verdade é que muita gente viu na poesia americana uma aberração selvagem, uma distração sem graça, nem gravidade Até certo ponto tinha razão: muitos poetas, entendendo mal a musa de Gonçalves Dias, e não podendo entrar no fundo do sentimento e das idéias, limitaram-se a tirar os seus elementos poético do vocabulário indígena; rimaram as palavras, e não passaram adiante; os adversários, assustados corri a poesia desses tais, confundiram no mesmo desdém os criadores e os imitadores, e cuidaram desacreditar a idéia fulminando os intérpretes incapazes.

Erravam decerto: se a história e os costumes indianos inspiraram poetas como José Basílio, Gonçalves Dias, e Magalhães, é que se podia tirar dali criações originais, inspirações novas. Que importava a invasão da turbamulta? A poesia deixa de ser a misteriosa linguagem dos espíritos, só porque alguns maus rimadores foram assentar-se ao sopé do Parnaso? O mesmo se dá corri a poesia americana. Havia também outro motivo para condená-la: supunham os críticos que a vida indígena seria, de futuro, a tela exclusiva da poesia brasileira, e nisso erravam também, pois não podia entrar na idéia dos criadores, obrigar a musa nacional a ir buscar todas as suas inspirações no estudo das crônicas e da língua primitiva. Esse estudo era um dos modos de exercer a poesia nacional; mas, fora dele, não está aí a própria natureza, opulenta, fulgurante, vivaz, atraindo os olhos dos poetas, e produzindo páginas como as de Porto Alegre e Bernardo Guimarães?

Felizmente, o tempo vai esclarecendo os ânimos; a poesia dos caboclos está completamente nobilitada os rimadores de palavras já não podem conseguir o descrédito da idéia, que venceu com o autor de "I-Juca-Pirama", e acaba de vencer com o autor de Iracema. É deste livro que vamos falar hoje aos nossos leitores. 

As tradições Indígenas encerram motivos para epopéias e para, églogas; podem inspirar os seus Homeros e os seus Teócritos. Há aí lutas gigantescas, audazes capitães, ilíadas sepultadas no esquecimento; o amor, a amizade, os costumes domésticos tendo a simples natureza Dor teatro, oferecem à musa lírica, páginas deliciosas de sentimento e de originalidade. A mesma pena que escreveu "IJucaPirama" traçou o lindo monólogo de "Marabá"; o aspecto do índio Kobé e a figura poética de Lindóia são filhos da mesma cabeça; as duas partes dos Natchez
resumem do mesmo modo a dupla inspiração da fonte indígena. O poeta tem muito para escolher nessas ruínas já exploradas, mas não completamente conhecidas. O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heróicas, nem cabos de guerra; se há aí algum episódio, nesse sentido, se alguma vez troa nos vales do Ceará a pocema da guerra, nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente votado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores. e dos seus infortúnios. Estamos certos de que não falta ao autor de Iracema energia e vigor para a pintura dos vultos heróicos e das paixões guerreiras; lrapuã e Poti a esse respeito são irrepreensíveis; o poema de que o autor nos fala deve surgir à luz, e então veremos como a sua musa emboca a tuba épica; este livro, porém, limita-se a falar do sentimento, vê-se que não pretende sair fora do coração.

Estudando profundamente a língua e os costumes dos selvagens, obrigou-nos o autor a entrar mais ao fundo da poesia americana; entendia ele, e entendia bem, que a poesia americana não estava completamente achada; que era preciso prevenir-se contra um anacronismo moral, que consiste em dar idéias modernas e civilizadas aos filhos incultos da floresta. O intuito era acertado; não conhecemos a língua indígena; não podemos afirmar se o autor pôde realizar as suas promessas, no que respeita à linguagem da sociedade indiana, às suas idéias, às suas imagens; mas a verdade é que relemos atentamente o livro do Sr. José de Alencar, e o efeito que ele nos causa é exatamente o mesmo a que o autor entende que se deve destinar ao poeta americano; tudo ali nos parece primitivo; a ingenuidade dos sentimentos, o pitoresco da linguagem, tudo, até a parte narrativa do livro, que nem parece obra de um poeta moderno, mas uma história de bardo indígena, contada aos irmãos, à porta da cabana, aos últimos raios do sol que se entristece. A conclusão a tirar daqui é que o autor houve-se nisto com uma ciência e uma consciência, para as quais todos os louvores são poucos. 

A fundação do Ceará, os amores de Iracema e Martim, o ódio de duas nações adversárias, eis o assunto do livro. Há um argumento histórico, sacado das crônicas, mas esse é apenas a tela que serve Ido poeta; o resto é obra da imaginação. Sem perder de vista os dados colhidos nas velhas crônicas, criou o autor uma ação interessante, episódios originais, e mais que tudo, a figura bela e poética de Iracema. Apesar do valor histórico de alguns personagens, com Martim e Poti (o célebre Camarão, da guerra holandesa), a maior soma de interesse concentra-se na deliciosa filha de Araken. A pena do cantor d'O Guarani é feliz nas criações femininas; as mulheres dos seus livros trazem sempre um cunho de originalidade, de delicadeza, e de graça, que se nos gravam logo na memória e no coração. Iracema e da mesma família. Em poucas palavras descreve o poeta a beleza física daquela Diana selvagem.

Uma frase imaginosa e concisa, a um tempo, exprime tudo. A beleza moral vem depois, com o andar dos sucessos: a filha do pajé, espécie de vestal indígena, vigia do segredo da jurema, é um complexo de graças e de paixão, de beleza e de sensibilidade, de casta reserva e de amorosa dedicação. Realça-lhe a beleza nativa a poderosa paixão do amor selvagem, do amor que procede da virgindade da natureza, participa da independência dos bosques, cresce na solidão, alenta-se do ar agreste da montanha. 

Casta, reservada, na missão sagrada que lhe impõe a religião do seu país, nem por isso Iracema resiste à invasão de um sentimento novo para ela, e que transforma a vestal em mulher. Não resiste, nem indaga; desde que os olhos de Martim se trocaram com os seus, a moça curvou a cabeça àquela doce escravidão. Se o amante a abandonasse, a selvagem iria morrer de desgosto e de saudade, no fundo do bosque, mas não oporia ao volúvel mancebo nem uma súplica nem uma ameaça. Pronta a sacrificar-se por ele, não pediria a mínima compensação do
sacrifício. Não pressente o leitor, através da nossa frase inculta e sensabor, uma criação profundamente verdadeira? Não se vê na figura de Iracema, uma perfeita combinação do sentimento humano com a educação selvagem? Eis o que é Iracema, criatura copiada da natureza, idealizada pela arte, mostrando através da rusticidade dos costumes, uma alma própria para amar e para sentir.

Iracema é tabajara; entre a sua nação e a nação potiguara há um ódio de séculos; Martim, aliado dos potiguaras, andando erradio, entra no seio dos tabajaras, onde é acolhido com a franqueza própria de uma sociedade primitiva; é estrangeiro, é sagrado; a hospitalidade selvagem é descrita pelo autor com cores simples e vivas. O europeu abriga-se na cabana de Araken, onde a solicitude de Iracema prepara-lhe algumas horas de folgada ventura.

O leitor vê despontar o amor de Iracema ao contacto do homem civilizado. Que simplicidade, e que interesse! Martim cede a pouco e pouco à influência invencível
daquela amorosa solicitude. Um dia lembra-lhe a pátria e sente-se tomado de saudade: — "Uma noiva te espera?" pergunta Iracema.

O silêncio é a resposta do moço. A virgem não censura, nem suplica; dobra a cabeça sobre a espádua, diz o autor, como a tenra planta da carnaúba, quando a chuva peneira na várzea.

Desculpe o autor se desfolhamos por este modo a sua obra; não escolhemos belezas, onde as belezas sobram, trazemos ao papel estes traços que nos parecem caracterizar a sua heroína, e indicar ao leitor, ainda que remotamente, a beleza da filha de Araken. Heroína, dissemos, e o é decerto, naquela divina resignação. Uma noite, no seio da cabana, a virgem de Tupã torna-se esposa de Martim; cena delicadamente escrita, que o leitor adivinha, sem ver. Desde então Iracema dispôs de si; a sua sorte está ligada à de Martim; o ciúme de Irapuã e a presença de Poti, precipitam tudo; Poti e Martim devem partir para a terra dos potiguaras; Iracema os conduz, como uma companheira de via-em. A esposa de Martim abandona tudo, o lar a família, os irmãos, tudo para ir perecer ou ser feliz com o esposo. Não é o exílio, para ela o exílio seria ficar ausente do esposo, no meio dos seus. Todavia, essa resolução suprema custa-lhe sempre, não arrependimento, mas tristeza e vergonha, no dia em que após uma batalha entre as duas nações rivais, Iracema vê o chão coalhado de sangue dos seus irmãos. Se esse espetáculo não a comovesse, ia-se a simpatia que ela nos inspira; mas o autor teve em conta que era preciso interessá-la, pelo contraste da voz do sangue e da voz do coração.

Daí em diante a vida de Iracema é uma sucessão de delícias, até que uma circunstância fatal vem pôr termo aos seus jovens anos. A esposa de Martim concebe um filho. Que doce alegria não banha a fronte da jovem mãe! Iracema vai dar conta a Martim daquela boa nova; há uma cena igual nos Natchez; seja-nos lícito compará-la à do poeta brasileiro.

Quando Renê, diz o poeta dos Natchez, teve certeza de que Celuta trazia um filho no seio, acercou-se dela com santo respeito, e abraçou-a delicadamente para não machucá-la. "Esposa, disse ele, o céu abençoou as tuas entranhas."

A cena é bela, decerto; é Chateaubriand quem fala; mas a cena de Iracema aos nossos olhos é mais feliz. A selvagem cearense aparece aos olhos de Martim, adornada de flores de maniva, trava da mão dele, e diz-lhe:

— Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu filho.

— Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo.

Ajoelhou ali, e cingindo-a com os braços, beijou o ventre fecundo da esposa.

Vê-se a beleza deste movimento, no meio da natureza viva, diante de uma filha da floresta. O autor conhece os segredos de despertar a nossa comoção por estes meios simples, naturais, e belos. Que melhor adoração queria a maternidade feliz, do que aquele beijo casto e eloqüente? Mas tudo passa; Martim sente-se tomado de nostalgia; lembram-lhe os seus e a pátria; a selvagem do Ceará, como a selvagem da Luisiana, começa então a sentir a sua perdida felicidade. Nada mais tocante do que essa longa saudade, chorada no ermo, pela filha de Araken, mãe desgraçada, esposa infeliz que viu um dia partir o esposo, e só chegou a vê-lo de novo, quando a morte já voltava para ela os seus olhos lânguidos e tristes.

Poucas são as personagens que compõem este drama da solidão, mas os sentimentos que as movem, a ação que se desenvolve entre elas, é cheia de vida, de interesse, e de verdade.

Araken é a solenidade da velhice contrastando com a beleza agreste de Iracema: um patriarca do deserto, ensinando aos moços os conselhos da prudência e da sabedoria. Quando lrapuã, ardendo em ciúme pela filha do pajé, faz romper os seus ódios contra os potiguaras, cujo aliado era Martim, Araken opõe-lhe a serenidade da palavra, a calma da razão. Irapuã e os episódios da guerra fazem destaque no meio do quadro sentimental que é o fundo do livro; são capítulos traçados com muito vigor, o que dá novo realce ao robusto talento do poeta.

Irapuã é o ciúme e o valor marcial; Araken a austera sabedoria dos anos; Iracema o amor. No meio destes caracteres distintos e animados, a amizade é simbolizada em Poti. Entre os indígenas a amizade não era este sentimento, que à força de civilizar-se tornou-se raro; nascia da simpatia das almas, avivava-se com o perigo, repousava na abnegação reciproca; Poti e Martim, são os dois amigos da lenda, votados à mútua estima e ao mútuo sacrifício.

A aliança os uniu; o contacto fundiu-lhes as almas; todavia, a afeição de Poti difere da de Martim, como o estado selvagem do estado civilizado; sem deixarem de ser igualmente amigos, há em cada um deles um traço característico que corresponde à origem de ambos; a afeição de Poti tem a expressão ingênua, franca, decidida; Martim não sabe ter aquela simplicidade selvagem.

Martim e Poti sobrevivem à catástrofe de Iracema, depois de enterrá-la ao pé de um coqueiro; o pai desventurado toma o filho órfão de mãe, e arreda-se da praia cearense. Umedecem-se os olhos ante este desenlace triste e doloroso, e fecha-se o livro, dominado ainda por uma profunda impressão.

Contar todos os episódios desta lenda interessante seria tentar um resumo impossível; basta-nos afirmar que os há, em grande numero, traçados por mão hábil, e todos ligados ao assunto principal. O mesmo diremos de alguns personagens secundários, como Caubi e Andira, um, jovem guerreiro, outro, guerreiro ancião, modelados pelo mesmo padrão a que devemos Poti e Araken.

O estilo do livro e como a linguagem daqueles povos: imagens e idéias, agrestes e pitorescas, respirando ainda as auras da montanha, cintilam nas cento e cinqüenta páginas da Iracema. Há, sem dúvida, superabundância de imagens, e o autor com uma rara consciência literária, é o primeiro a reconhecer esse defeito. O autor emendará, sem dúvida a obra, empregando neste ponto uma conveniente
sobriedade. O excesso, porém, se pede a revisão da obra, prova em favor da poesia americana, confirmando ao mesmo tempo o talento original e fecundo do autor. Do valor das imagens e das comparações, só se pode julgar lendo o livro, e para ele enviamos os leitores estudiosos. 

Tal é o livro do Sr. José de Alencar, fruto do estudo, e da meditação, escrito com sentimento e consciência. Quem o ler uma vez, voltará muitas mais a ele, para ouvir em linguagem animada e sentida, a história melancólica da virgem dos lábios de mel. Há de viver este livro, tem em si as forças que resistem ao tempo, e dão plena fiança do futuro. É também um modelo para o cultivo da poesia americana, que, mercê de Deus há de avigorar-se com obras de tão superior quilate. Que o autor de Iracema não esmoreça, mesmo a despeito da indiferença pública; o seu
nome literário escreve-se hoje com letras cintilantes: Mãe, O Guarani, Diva, Lucíola, e tantas outras; o Brasil tem o direito de pedir-lhe que Iracema não seja o ponto final. 

Espera-se dele outros poemas em prosa. Poema lhe chamamos a este, sem curar de saber se é antes uma lenda, se um romance: o futuro chamar-lhe-á obra-prima.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Paulo Vinheiro (Tremor)


Uma dose a mais, a última, a primeira do dia
 Um deslizar constante para onde não sei
 O quente e macio gesto do adeus demorado
 A sangria e o cheiro do mato cortado
 A chuva e uma tristeza que não sacia

 Descer a serra se faz fácil e rápido
 O destino não há, mas a vontade de se ir
 Assim, embriagado, mergulhado no fim
 De mim nem haverá lembranças
 Por certo não haveria de haver

O sonho de se sentir acordado
 A percepção de ser diferente
 Sinto o tempo encolhendo, vacilante
 Abro a porta de meus olhos
 E mudo as cores do espectro

Trocando as pernas pelas ruas
 Como quem anda, à toa, achando
 Já não sou mais o que pensei
 Isto é, não sei nada de mim
 Hoje ando mais tonto que ontem


Feliz e aceitando tudo que não entendo
 Abraço outros bêbados como fui e sou
 Acreditamos num mesmo deus
 Lutamos as mesmas guerras
 Somos imbecilmente apaixonados

O que me embriaga é de outra natureza
 Minha natureza foi a das choças
 Hoje não sei mais, por mais que busque
 O que anda por dentro é morno
 Acredito no que a maioria quer
 E não sei mais o que quero… de mim

Fonte:
http://entrementes.com.br/2012/11/tremor-27112012/

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 13 de maio: A Arte Conversar


Estou hoje com bem pouca disposição para escrever.

Conversemos

A conversa é uma das coisas mais agradáveis e mais úteis que existe no mundo.

A princípio conversava-se para distrair e passar o tempo mas atualmente a conversa deixou de ser um simples devaneio do espírito.

Dizia Esopo que a palavra é a melhor, e também a pior coisa que Deus deu ao homem.

Ora, para fazer valer este dom, é preciso saber conversar, é preciso estudar profundamente todos os recursos da palavra.

A conversa, portanto, pode ser uma arte, uma ciência, uma profissão mesmo.

Há, porém, diversas maneiras de conversar. Conversa-se a dois, en tête-à-tête; e palestra-se com muitas pessoas, en causerie.

A causerie é uma verdadeira arte como a pintura, como a música, como a escultura. A palavra é um instrumento, um cinzel, um craion que traça mil arabescos, que desenha baixos-relevos e tece mil harmonias de sons e de formas.

Na causerie o espírito é uma borboleta de asas douradas que adeja sobre as idéias e sobre os pensamentos, que suga-lhes o mel e o perfume, que esvoaça em ziguezague até que adormece na sua crisálida.

A imaginação é um prisma brilhante, que reflete todas as dores, que decompõe os menores átomos de luz, que faz cintilar um raio do pensamento por cada uma de suas facetas diáfanas.

A conversa a dois, ao contrário, é fria e calculada como uma ciência: tem alguma coisa das matemáticas, e muito da estratégia militar.

Por isso, quando ela não é um cálculo de álgebra ou a resolução de um problema, torna-se ordinariamente um duelo e um combate.

Assim, quando virdes dois amigos, dois velhos camaradas, que conversam intimamente e a sós, ficai certo que estão calculando algebricamente o proveito que podem tirar um do outro, e resolvendo praticamente o grande problema da amizade clássica dos tempos antigos.

Se forem dois namorados em tête-à-tête, que estiverem a desfazer-se em ternuras e meiguices, requebrando os olhos e afinando o mais doce sorriso, podeis ter a certeza que ou zombam um do outro, ou buscam uma incógnita que não existe neste mundo – a fidelidade.

Em outras ocasiões, a conversa a dois torna-se, como dissemos, uma perfeita estratégia militar, um combate.

A palavra transforma-se então numa espécie de zuavo pronto ao ataque. Os olhos são duas sentinelas, dois ajudantes-de-campo postos de observação nalguma eminência próxima.

O olhar faz as vezes de espião que se quer introduzir na praça inimiga. A confidência é uma falsa sortida; o sorriso é uma verdadeira cilada.

Isto sucede freqüentemente em política e em diplomacia.

Um ministério, aliás bem conceituado no país, e que se sente cheio de prestígio, vê-se incomodado por uma pequena oposição nas câmaras, e recorre à conversa.

Como faziam os exércitos antigos, como fez Roma e Alba, em vez de uma batalha campal, acha mais prudente e mais humano apelar para o juízo de Deus, e decidir a vitória pelo combate dos Horácios e dos Curiáceos.

Novo Horácio, separa os inimigos por uma ruse de guerre e combate, isto é, conversa com cada um dos inimigos.

Ora, todos nós sabemos, desde o tempo em que traduzimos Tito Lívio, que um Curiácio não é para se medir com um Horácio; por conseguinte, o resultado da conversa é sabido com antecedência.

Instâncias de uma parte, confidências da outra, protestos, acusações, queixas e promessas, tudo de mistura, eis em resumo os elementos de uma conversa ministerial e parlamentar.

De ordinário, esta conversa começa friamente. Caminham lado a lado, mas guardando uma certa distância. Nota-se na fisionomia alguma reserva, uma indecisão mesmo. As palavras trocam-se lentamente, e como que medidas e pesadas.

São os primeiros passos, os botes preliminares de dois jogadores de florete.

Dentro em pouco tempo, há um pequeno arranhão, faz-se sangue. Os homens tomam fogo, falam ao mesmo tempo, gesticulam desesperadamente, e medem o assoalho a passos largos e desencontrados.

Depois de procelosa tempestade,
Sombras de oposição que leva o vento,
Traz a pasta serena claridade
Esperança de voto e salvamento. 
(Camões)

A conversa chega ao seu terceiro período, à sua última fase. Passeiam então braço a braço, ou sentam-se nalgum canto, risonhos, contentes, satisfeitos, como dois amigos que se encontram ao cabo de uma longa ausência, como dois amantes que se abraçam depois de pequeno arrufo.

Desde que começou a ter voga este gênero de conversa governativa, ou política, imediatamente certos espíritos metódicos e sistemáticos trataram de classificar por ela as diversas espécies de oposicionistas ou descontentes.

Assim, há hoje três classes distintas de oposicionistas: 1.ª) dos que já conversaram; 2.ª) dos que querem conversas; 3.ª) dos que não admitem conversa.

Esta última classe dizem que é das mais pobres, e com toda a razão. É preciso ser-se bem misantropo e anti-social para fugir a uma conversa tão amável e de tão grande interesse.

Não vão tomar à má parte esta expressão. Quando eu disse que a conversa ministerial é de grande interesse, foi no sentido de ser instrutiva e de deleitar o espírito, deixando impressões agradáveis.

Mas, voltando ao nosso assunto, é inegável a influência benéfica que exerce a conversa sobre a alma do homem civilizado.

Nos primeiros dias da sessão da câmara, como ainda há pouco se tinha conversado, a chapa ministerial da comissão de resposta à fala do trono sofreu um échec.

Porém neste dia mesmo conversou-se. O ministério tem neste ponto uma grande vantagem: é um senhor que conversa por seis bocas.

O resultado foi que a coisa tomou outro caminho, e entrou nos seus eixos.

Dizem, é verdade, que a nomeação dos Srs. Ferraz e Assis Rocha para as comissões de fazenda e justiça civil foi uma verdadeira derrota.

Não creio; estou mesmo convencido que o ministério desejou de coração que duas inteligências distintas, como são estes senhores, fossem aproveitadas, cada uma na sua especialidade.

E tanto isto é assim, tanto essas veleidades de oposição não tomam aspecto sério, que a resposta à falta do trono apresentada ontem mostra a inteira adesão que presta a câmara à política do governo e à marcha da administração.

Felizmente estamos no tempo das ironias; e não se me dá de crer que a câmara é capaz de aprovar aquela resposta, e pouco depois declarar-se em oposição aberta.

E nisto não fazia mais do que seguir o exemplo dos ministros que prometem, protestam, dão palavra, e amanhã nem se lembram do que disseram na véspera.

Ora, não vejo porque a câmara não aproveitará das lições dos seus mestres, ainda mesmo que seja para dar-lhes lição.

Terá medo de dissolução? Acreditará num boato que por aí espalham certos visionários?

Custa-me a crer. O tempo em que os ministérios dissolviam as câmaras já passou; agora estamos no tempo em que as câmaras é que hão de dissolver os ministérios.

Outrora, quando os deputados vinham por sua vontade, com toda a pressa, o ministério os mandava embora.

Atualmente, que é preciso que o governo mande buscar os deputados, é natural que estes mandem embora o ministério.

É a regra do mundo. Depois da ação vem a reação.

Aqui vejo-me obrigado a abrir um parêntese, e a trocar a minha pena de folhetinista por uma pena qualquer de escritor de artigos de fundo.

Não brinquem, o negócio é muito sério.

Vou escrever uma tirada política.

A situação atual apresenta um aspecto muito grave, e que pode ter grandes conseqüências para o país.

Chegamos talvez a esse momento decisivo em que os sentimentos políticos, por muito tempo adormecidos, vão novamente reaparecer e tomar um grande impulso.

No meio do indiferentismo e do marasmo em que se sepultavam os antigos partidos políticos, começam a fermentar algumas idéias, algumas aspirações, que talvez sejam o germe de um novo partido.

Os princípios desapareceram; as opiniões se confundem, as convicções vacilam, e os homens não se entendem, porque falta o pensamento superior, a idéia capital, que deve traçar a marcha do governo.

A política e a administração, deixando de ser um sistema, reduziram-se apenas a uma série de fatos que não são conseqüência de nenhum princípio, e que derivam apenas das circunstâncias e das necessidades do momento.

A conciliação apresentada como programa pelo ministério atual ficou sem realização.

Foi apenas um meio transitório a que se recorreu quando sentiu-se a necessidade de criar esperanças, que foram depois iludidas.

Todos os sintomas, pois, indicam que o organismo político, em que esteve o país, começa a fazer crise. Deste caos de opiniões, de idéias, de teorias, de convicções mortas e de opiniões que se vão criando, há de necessariamente sair um elemento novo, uma combinação de princípios que deve formar um grande partido.

Quais devem ser as tendências e as bases fundamentais dessa nova política? Quais serão as idéias, as reformas e os melhoramentos que constituirão o seu programa de governo?

É difícil, é quase impossível dize-lo; mas parece-me que a conciliação, que o ministério não conseguiu realizar nos homens, se há de operar nesta confusão de idéias extremas que deve formar o novo partido.

Há certos fatos necessários, que não dependem da vontade humana, e que entretanto podem ser dirigidos e modificados por ela.

Na época atual, o aparecimento de um partido filho das antigas facções políticas que dividiram o país, é uma necessidade, é uma conseqüência fatal do estado de coisas.

Cumpria, pois, que os homens eminentes que podem de alguma maneira imprimir a sua vontade nos acontecimentos tomassem a iniciativa, e, criando os elementos desse novo partido, lhe dessem uma influência benéfica e salutar.

Há no nosso país, há no seio da representação nacional, há nas altas posições administrativas homens que deviam incumbir-se dessa missão e levantar a bandeira, em torno da qual se agrupariam imediatamente todos os espíritos que hoje vacilam, todas as aspirações que agora vão nascendo.

Iniciado na tribuna, sustentado pela imprensa, acolhido pela opinião geral, esse novo pensamento, essa nova profissão de fé ficaria conhecida pelo país inteiro

A política não seria mais uma simples luta de interesses individuais, uma oposição de certos homens. A influência e o prestígio dos grandes nomes tornar-se-ia então um verdadeiro pronunciamento de idéias e princípios.

Todos esperam com ansiedade a discussão do parlamento; todos aguardam o momento decisivo de uma demonstração clara e expressa.

Se nem um desses homens de quem há pouco falamos tomar a iniciativa, então, perdida a fé que inspiram os nomes conhecidos no país, não haverá remédio senão caminhar sem eles.

Os homens novos, que não têm comprometimentos nem precedentes, trabalharão como simples soldados. Algum dia acharão um chefe; e, se não acharem, criá-lo-ão.

Os melhores generais foram soldados.

Já era tempo.

Vem de novo, minha boa pena de folhetinista, vamos conversar sobre bailes e teatros, sobre essas coisas agradáveis que não custam a escrever, e que brincam e sorriem sobre o papel, despertando tanta recordação mimosa.

Lembra-te do Cassino?

O lindo baile já não é aquela brilhante reunião de outros tempos, onde se viam agrupadas como flores de uma grinalda todas as moças bonitas desta terra.

Tudo passa; algumas daquelas flores, levadas pelas brisas do mar, lá se foram perfumar outros salões; muitas brilham aos raios de outro sol, e poucas ainda aí vão talvez ultimamente para sentirem as reminiscências de tempos passados.

É verdade que lá de vez em quando nesta grinalda já quase murcha desabrocha uma nova flor, que faz esquecer um momento todo o passado. 

Nessa última noite era uma flor do Brasil que, depois de ter brilhado entre as pálidas anêmonas de Portugal, entre os alvos lírios da França, entre os suaves miosótis da Alemanha, veio de novo aquecer-se aos raios do sol da pátria, e perfumar as belas noites de nossa terra.

Se vísseis como ela se balouçava docemente sobre a haste delicada, e se reclinava com tanta graça como para deixar cair as pérolas de orvalho e fragrância que destilavam do seu seio delicado!

No meio de um baile tudo é fascinação e magia.

Tocava a valsa, e a flor se transformava em sílfide, em lutin, em fada ligeira que deslizava docemente, roçando apenas a terra com a ponta de um pezinho mimoso, calçado com o mais feiticeiro dos sapatinhos de cetim branco.

Um bonito pé é o verdadeiro condão de um a bela mulher.

Nem me falem em mão, em olhos, em cabelos, à vista de um lindo pezinho que brinca sob a orla de um elegante vestido, que coqueteia voluptuosamente, ora escondendo-se, ora mostrando-se a furto.

Se eu me quisesse entender sobre a superioridade de um pé, ia longe; não haveria papel que me bastasse.

Apareceu também no Cassino uma bela roseira, coberta de flores, em torno da qual os colibris adejavam a ver se colhiam um sorriso ou uma palavra meiga e terna.

Mas a roseira só tinha espinhos para os que se chegavam a ela: os estames delicados guardavam o pólen dourado do seu seio para lança-lo talvez às brisas das margens do Reno ou do Mondego.

Depois do Cassino, o fato mais notável da crônica dos salões foi o benefício da Raquel Agostini com a representação da ópera Semíramis.

A Casaloni caricaturou outra vez o papel de Arsace. O elegante e ardente guerreiro da Babilônia desapareceu naquele porte sem nobreza, naqueles gestos sem expressão, naquela frieza de caráter,

Por outro lado, a beneficiada teria feito um verdadeiro benefício ao público se tivesse cortado do seu programa uma célebre ária do Roberto do Diabo e uma polca de invenção moderna que foi dançada pelo corpo de baile.

O Ginásio Dramático continua em progresso. A concorrência nestas últimas récitas tem sido numerosa; e o salão começa a ser freqüentado pelas melhores famílias e por muita gente da sociedade.

Por isso já esperava eu. Coloquei aquela pequena empresa sob a proteção das minhas amáveis leitoras; embora o meu valimento seja nenhum,eu sabia que, por amor da arte, elas não o deixariam de olhar com bons olhos para esse seu protegido.

Ce que femme veut, Dieu le veut. Se as minhas belas leitoras quiserem, em pouco tempo o Ginásio será um excelente teatro, e poderá criar artistas novos e dar-nos bem horas de agradável passatempo.

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.