quinta-feira, 19 de março de 2020

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 4


COMPLEXO
                 (À Manuel Joaquim da Silva Pinto)
  
E ele que sentia humano
libertou-se do complexo de inferioridade
e falou ao seu tempo
e à humanidade:

- eu também sei matar!... eu matarei o homem
que ameaçar a minha liberdade
e ofender o meu lar,
que ferir o meu filho
ou roubar o meu pão,
porque esse homem que eu mato é menos que um cão!
............................................................

Mas... - ( e aí, a voz lhe tremeu
e se embaçou o olhar...)
eu me sinto incapaz de matar qualquer homem
apenas
porque me mandam matar!
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CONFISSÃO

Não é que eu queira automóveis
nem apartamentos
nem mulheres alheias
e inveje os homens ricos
que nunca notaram que estão vivendo
porque nunca tiveram medo do mundo...

Não é que eu queira ter a minha mesa
a minha cama
a minha casa
a minha mulher
o meu automóvel...

Porque eu posso andar de ônibus que é o automóvel
de todo mundo,
e como na pensão da Rubina
onde pode deitar a comer
todo mundo
( ou quase todo mundo)
e eu tenho os cafés, as ruas, os bancos, os jardins
e as mulheres
de todo mundo...

Não é por nada disso, poderia ser, mas não é...
é que hoje acordei com aquela alma triste
cheia de interrogações
desejos
e segredos
da criança pobre que parou diante de uma vitrine
da casa de brinquedos…
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CONSELHO

Solta essa arma, desgraçado
deixe-a de lado!
Por que queres matar teu companheiro
se tu nem o conheces?

Não vês que ele tem filhos pequeninos
e tem mãe
e esposa
e irmãos que esperam pela sua volta ?

Solta essa arma, desgraçado, solta!

Não vês que ele trabalha como tu
honestamente
e pobre, e humildemente,
desde que nasceu?

Não vês que como tu, ele lutou em vão
e abandona o seu lar sem ter nada de seu?

Solta esta arma que tu tens na mão!

Por que queres matar teu companheiro
hoje, pelo trabalho
mais que teu companheiro: teu irmão?

Não vês que ele ergue aos céus as tuas preces?
Não vês que ele deixou também um lar?
E se nem conheces
por que razão o vais friamente matar?

Não ouça as vozes que falam de sombra
nem cometas um crime que tu não compreendes!
Não sigas as palavras dos que não te seguem
nem escutes aqueles que na paz te exploram!

Eles fazem da guerra o imenso matadouro
onde todos serão esquartejados,
porque a tua carne vale mais que ouro
para o mais torpe e vil de todos os mercados!


Solta essa arma, desgraçado,
e se queres morrer
não morras por aqueles que te chibateiam
e que não vês sequer!
Morre por um desejo bom que realizares
por um amor sublime que te fez feliz
por um sincero amigo
ou por um cão qualquer!

Não mates teu companheiro igualmente iludido
ele é também capaz de amar e de sentir
de chorar e de sofrer!

Solta essa arma, desgraçado, solta,
ou mata-te com ela se te apraz morrer!
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CREDO DA VITÓRIA
        (À Carlos Drummond de Andrade,
               Friburgo, 15 de fevereiro de 1944)

  
Cremos na Vitória porque cremos na velha China
indomável, que renasce todas
as horas e todos os dias
das cinzas dos seus mortos,
das suas agonias
e da mesma aflição,
e se multiplica no milagre do ódio e da insubmissão...

Na velha China, que descruzou as pernas sob o ventre
filosófico de Buda
e levantou a cabeça, e aparou as tranças,
e ergueu os punhos armados
num rompante de dor,
para vingar suas cidades arrasadas,
suas crianças trucidadas,
e suas mulheres violentadas pela força e pelo terror...

Na velha China pacífica de Confúcio, que aprendeu
finalmente na cartilha desapiedada
dos bombardeios cegos
a linguagem de sangue do invasor...

Cremos na Vitória, porque Londres continuará de pé
como um desafio,
ostentando as cicatrizes de suas ruínas
que parecerão iluminadas na névoa
das noites silenciosas e em "blackout"
pelo "fogo-santelmo" de um heroísmo imortal...
Da Londres que se contorceu nos incêndios crepitantes
e imunizada pelo próprio fogo emergiu das chamas alucinantes
num gesto triunfal. . .

Cremos na Vitória, porque sobre as estepes
de brancura sem fim
maculadas pelo sangue dos bárbaros
Moscou permaneceu intangível e intacta,
velando com suas torres e abóbadas
o sono imperturbável de Lênine,
e barrando a miragem com mortífero fogo!
Porque nas fábricas de Stalingrado lateja o coração
de uma Rússia invencível
que pôs em cada rua, em cada casa, em cada palmo de terra,
em cada nervo, em cada disparo,
um pedaço da alma de seu povo!

Cremos na Vitória, porque Pearl Harbour já foi vingada,
e porque o espírito de Pearl Harbour
sacudiu a América e perfilou-a como um só homem
de Sul a Norte,
- e porque Washington, Bolívar, Juarez, - Tiradentes,
nos legaram um Continente e as tradições de povos livres e indomáveis
que não temem a morte!

Cremos na Vitória, porque estão conosco,
seres de todas as raças, de todas as cores,
de todos os credos,
homens conscientes que não se deixarão trair
e conquistarão a paz e a liberdade
com as suas forças invencíveis e o seu ódio profundo!

Cremos na Vitória, - porque cremos nesse ódio sagrado
que destruirá um mundo
mistificado pelos prepotentes
construído sem justiça e sem amor,
e porque cremos naquelas forças inesgotáveis e eternas
que reconstruirão a vida, sobre bases humanas e fraternas,
ao chegar a bonança, após o temporal da dor!

Sim! cremos na Vitória!
E erguemos nossas vozes no cântico deste credo
por todas as terras e por todos os horizontes
para além de todas as fronteiras
e à frente de todas as bandeiras
numa única voz...

E cremos na Vitória, porque cremos nas crianças
que ressuscitarão como as flores nos jardins arrasados,
nas mulheres que regressarão das oficinas para os lares
nos trens que apitarão festivos pelas gares,
nos homens que voltarão das trincheiras para o mundo,
- porque cremos em Nós!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Irmãos Grimm (João, o Felizardo)


João servira ao seu amo durante sete anos e, um dia, disse-lhe:

- Meu amo, meu tempo de contrato esgotou-se; agora quero voltar para a casa de minha mãe; dai-me o meu ordenado.

O amo respondeu:

- Serviste-me fiel e honestamente; tal serviço pede igual remuneração.

E deu-lhe uma barra de ouro grossa, quase como a sua cabeça. João pegou o lenço do bolso, embrulhou o pedaço de ouro, o pôs às costas e meteu-se a caminho, rumo à casa da mãe.

Ia andando, sossegadamente, pela estrada afora, quando viu um cavaleiro alegre e pimpão, que vinha trotando sobre um brioso cavalo.

- Oh, - disse João em voz alta - como há de ser bom andar montado num cavalo! Fica-se comodamente sentado como numa cadeira, não se tropeça nas pedras, não se gasta o calçado e se avança sem mesmo dar por isso.

O cavaleiro, que ouvira o que ele dizia, parou e gritou-lhe:

- Mas, João, por que andas a pé?

- Que remédio! - respondeu João - Tenho este fardo pesado que devo levar para casa; é ouro, bem sei, mas pesa tanto que me esmaga o ombro e nem sequer posso levantar a cabeça.

- Queres saber uma coisa? - disse o cavaleiro - façamos uma troca! Eu te dou o cavalo e tu me dás o teu pedaço de ouro.

- Oh! de muito boa vontade, - disse João - mas vos previno que deveis fazer força.

O cavaleiro apeou-se bem depressa, pegou na barra de ouro e ajudou João a montar a cavalo. Meteu-lhe as rédeas na mão, recomendando-lhe:

- Se quiseres que corra como o vento, basta fazer um estalinho com a língua e gritar: hop, hop!

João estava felicíssimo em cima do cavalo e partiu a trote largo. Ao cabo de algum tempo teve a ideia de ir mais depressa. Deu um estalinho com a língua e gritou: hop, hop!

O cavalo, obediente, partiu a galope desenfreado e, num bater de olhos, João foi pelos ares, caindo dentro de um fosso à beira da estrada. O cavalo teria continuado no galope se um camponês, que vinha em sentido contrário, conduzindo uma vaca, não o agarrasse pelas rédeas.

João apalpou os membros doloridos e pôs-se de pé. Mas ficara aborrecido e disse ao camponês:

- Que belo gosto montar a cavalo, sobretudo quando se topa com um animal como este, que tropeça e atira a gente pelos ares, fazendo quase quebrar o pescoço! Nunca mais tornarei a montar a cavalo. Por falar nisso; a tua vaquinha, sim, me agrada. Pode-se ir atrás dela muito sossegado e além disso, tem-se leite, manteiga e queijo garantidos. Quanto não daria para ter uma vaca como essa!

- Ora, - disse o camponês - se te agrada tanto, poderemos trocar a minha vaca pelo teu cavalo.

João concordou todo feliz; o camponês saltou para cima do cavalo e partiu a galope. Tocando, calmamente, a vaca diante de si, João ia refletindo nas vantagens do negócio que acabava de realizar.

"Contanto que eu tenha um pedaço de pão, e decerto não me há de faltar posso, quando tiver fome, comer também um pouco de manteiga e queijo; quando tiver sede, tiro leite da minha vaca e bebo-o. Meu coraçãozinho, que podes desejar mais?"

Ao chegar a uma estalagem, parou, e julgando ter agora provisões para toda a vida, liquidou tranquilamente todo o farnel que levava para a viagem e, com os últimos vinténs que possuía, deliciou-se com um bom copo de cerveja. Em seguida, encaminhou-se rumo à aldeia de sua mãe, tocando a vaca diante de si.

Ao meio-dia, o calor tornou-se sufocante e João encontrava-se em plena charneca, onde se demoraria ainda uma hora. Sentia tanto calor e sede que até a língua se lhe pegava ao céu da boca. "Mas tenho um remédio, - pensou - vou ordenhar a minha vaca e refrescar a garganta com o bom leite."

Amarrou a vaca a um pau, e por falta de coisa melhor, quis aparar o leite com seu boné de couro; mas, por mais que puxasse e espremesse, das tetas não saiu uma só gota de leite. Como não tinha jeito para lidar com a vaca, ela zangou-se e atirou-lhe tal coice na cabeça que o fez rebolar a dez passos de distância, onde ficou estendido sem sentidos. Aí ficou um bom pedaço de tempo; felizmente, porém, chegou um carniceiro empurrando um carrinho com um leitãozinho dentro.

- Que brincadeira sem graça! - disse ele, e ajudou João a levantar-se.

João contou-lhe tudo o que havia acontecido; o carniceiro ofereceu-lhe o seu frasquinho dizendo:

- Bebe um trago, que logo te reanimarás. Aquela vaca nunca mais dará leite, já está velha e seca, boa, quando muito, para ser atrelada a uma carroça ou então para ser levada ao matadouro.

- Oh diabo, - disse João puxando os cabelos desgrenhados; - quem diria uma coisa destas! Naturalmente, seria uma grande vantagem matar o animal em casa! Quanta carne teríamos! Mas não gosto de carne de vaca, não a acho saborosa. Ah! se fosse um leitãozinho igual a esse; então, sim, seria delicioso! Sem falar nas salsichas que daria!

- Escuta, João, - disse o carniceiro; - por seres quem és e porque desejo ser-te agradável, estou disposto a trocar o meu leitão pela tua vaca.

- Que Deus te recompense tanta bondade! - disse João.

Entregou-lhe a vaca e levou o leitão, segurando-o pela corda com que estava amarrado no carrinho.

João continuou o caminho pensando em como tudo lhe ia às mil maravilhas; apenas tinha uma contrariedade e logo se remediava. Nisso, aproximou-se um rapazinho, que levava debaixo do braço um belo pato branco, muito gordo. Cumprimentaram-se desejando um bom dia e, conversa vai conversa vem, João contou-lhe as suas aventuras, gabando-se da boa sorte, e das trocas sempre tão vantajosas. O rapazinho, então, contou que levava o pato à aldeia vizinha e que estava destinado a um banquete de batizado.

- Experimente o seu peso, - disse, levantando-o pelas asas - é pesado, não acha? Também, já faz dois meses que o venho engordando com o que há de melhor! Quem tiver a sorte de meter os dentes em semelhante assado, verá a banha escorrer-lhe pelos cantos da boca.

- E' verdade, - disse João levantando o pato com uma das mãos - é um bonito animal. Mas, também, o meu leitão não é mau e tem o seu valor!

Entretanto, o rapaz olhava para todos os lados com certa precaução; depois, abanando a cabeça, disse:

- Olha, a história do teu leitão não me parece muito limpa: acabam, justamente, de roubar um ao prefeito da aldeia onde passei agora. Tenho palpite que deve ser esse que levas aí. Mandaram gente a procurá-lo por toda parte e seria uma coisa terrível se te apanhassem com ele; o menos que te aconteceria era ser metido numa prisão escura.

O pobre João ficou assustadíssimo e exclamou:

- Ah, Deus meu! Livrai-me desta desgraça! Tu que conheces a região melhor do que eu e sabes, portanto, onde esconder-te, leva o meu leitão e dá-me o teu pato.

- Arrisco-me muito com isso, - disse o rapazinho, - mas, só para te livrar de apuros, vou fazer o que me pedes.

Pegou, então, na corda e bem depressa levou o leitãozinho, desaparecendo por um atalho. O honrado João, livre dessa preocupação, continuou a caminhar rumo a casa, levando o pato debaixo do braço e ia pensando:

- Calculando bem, saí ganhando na troca. Primeiro, a carne de pato é mais fina para assado e mais saborosa que a de leitão; e com toda esta banha terei gordura por uns bons três meses e, finalmente, com as belas penas brancas farei uma boa almofada, na qual dormirei sem que seja preciso embalar-me. Santo Deus, como minha mãe vai ficar contente com tão lindo animal!

Após ter atravessado a última aldeia, antes de chegar à sua, viu um amolador parado com a sua caranguejola; a roda girava, girava e ele acompanhava-a cantando:

- Afio tesouras e rodo ligeiro;
e penduro a manta como sopra o vento...

João parou e ficou olhando o que ele estava fazendo, depois disse:

- Parece que tudo vai à medida dos teus desejos, visto que trabalhas tão alegremente!

- Oh, se vai! - respondeu o outro. - Qualquer ofício manual é ouro em barra. Um bom amolador é um homem que, quando mete a mão no bolso, sempre encontra dinheiro. Mas, onde compraste esse belo pato? Nunca vi tão bonito por aqui!

- Não o comprei, ganhei-o em troca de um leitãozinho.

- E o leitão?

- Ganhei-o em troca de uma vaca.

- E a vaca?

- Tive-a em troca de um cavalo.

- E o cavalo?

- Por aquele dei um pedaço de ouro do tamanho da minha cabeça.

- E o ouro?

- Era o pagamento que me deu meu amo por sete anos de serviço.

- Vejo que sabes te defender muito bem neste mundo; se agora chegares a ouvir todas as manhãs tinir dinheiro no bolso quando enfiares as calças, tua fortuna está feita.

- Sim, mas que devo fazer para isso? - perguntou João.

- Deves tornar-te amolador como eu; para isso é preciso, primeiro, ter a pedra de amolar; o resto vem depois. Tenho aqui uma, na verdade está um pouco gasta, mas em troca desejo apenas que me dês o teu pato; aceitas?

- Ainda me perguntas? - respondeu João. - Se, como dizes, terei sempre dinheiro no bolso, serei o homem mais feliz do mundo; que mais posso desejar?

Entregou ao amolador o pato e recebeu em troca a pedra de amolar e mais uma outra qualquer que apanhou no chão.

- Eis-te aqui mais esta bela pedra, - disse o amolador - é excelente para fazer uma bigorna e para endireitar pregos ou arranjar as ferramentas. Fica com ela e guarda-a com cuidado.

João pegou nas duas pedras e partiu muito alegre, os olhos brilhando de felicidade.

- Devo ter nascido com a camisa da felicidade, - pensava ele - pois tudo o que desejo se realiza!

No entanto, como estava caminhando desde manhã bem cedo, sentiu-se cansado; além disso a fome começava a atormentá-lo, pois já não tinha nada que comer, tendo devorado o farnel de uma só vez a fim de festejar a troca da vaca. Por fim, andava a custo e a cada instante era obrigado a descansar; as pedras pesavam tremendamente e lá consigo pensava quanto seria agradável não ter de as carregar, agora que estava tão cansado. Arrastando-se como uma lesma, conseguiu chegar até uma fonte, contente de poder refrescar a goela e descansar um pouco estendido na erva.

Não querendo estragar as pedras, colocou-as cuidadosamente à beira da fonte, bem perto dele. Depois sentou e foi abaixar-se para encher o boné de água, mas, sem querer, empurrou um pouquinho as pedras, que rolaram para dentro da água.

João, quando as viu desaparecer dentro da água, deu um pulo de alegria, depois ajoelhou-se e agradeceu a Deus, com lágrimas nos olhos, por tê-lo atendido mais essa vez, desembaraçando-o do pesado fardo sem que ele tivesse de se censurar.

- Não há ninguém neste mundo mais feliz do que eu! - exclamou.

De coração aliviado, livre de qualquer peso, saiu a correr e só parou quando chegou à choupana de sua mãe.

Fonte:
Contos de Grimm

quarta-feira, 18 de março de 2020

Varal de Trovas n. 212


Rachel de Queiroz (Turismo)


Quando somos turistas em país estrangeiro surpreende-nos bastante a atitude quase hostil dos aborígenes: afora os profissionais diretamente interessados no tráfico de visitantes — choferes, garçons, gerentes de hotel, etc. a população não gosta dos turistas, que lhes invadem a privacidade e a importunam sem contemplações, achando que têm direito a fazer tudo uma vez que estão pagando.

Já agora, o Rio, que se prepara para receber o turismo em grande escala e em proporção às suas atrações, começa a sofrer o impacto da onda invasora; e, pelo  visto, os cariocas já a ressentem. E apenas se trata do simples turismo doméstico — que os estrangeiros ainda não chegam em multidão suficiente para causar susto.

É uma graça ver a surpresa ofendida dos ipanemenhos — no seu reduto sagrado, o Castelinho! — quando lá ancoram dois, três ônibus carregados de paulistas do interior e começam a despejar sobre as areias ilustres legiões de invasores, que parecem tão estranhos corno se fossem marcianos, no meio à nudez cor de bronze dos nativos.

Vêm montes de rapazolas magricelas, de torso e canelas branquíssimos, alguns ainda calçados de sapato e meia. Despem na areia os excessos de indumento e se atiram às ondas dando gritinhos, carreirinhas, atirando água uns nos outros, numa comovedora folia infanto-juvenil.

Há as belas senhoritas das urbes interioranas, robustas moçoilas a estourar dos shorts; estas, curiosamente, quase nunca são todas brancas, ou branco-azedas, como dizem os praianos. Mas têm um ar inquieto e agressivo, e também praticam o mau modo de chegar à praia vestidas, e tranquilamente ali se despojam dos trajes urbanos, como se estivessem na intimidade dos seus quartos. Não que o striptease seja indecente — há sempre o biquíni por baixo — mas a utilização da praia para essas atividades de interior doméstico parece um sacrilégio aos seus donos habituais, que lá já chegam nus.

E há — supremo horror — as hordas de farranchos familiares — as gordas matronas, os pais barrigudinhos, a filharada indócil, as crias de casa. Como dizia um grupo de autóctones escorraçado, a subir a calçada da Montenegro, “são absolutamente coloniais, parecem ilustrações de Debret, só faltam vir numa rede carregada por dois crioulos!”.

E os farranchos se espalham com desenvoltura pelo sofisticado areal, e se desmandam em piqueniques, e trazem bacias para lavar as crianças, e comem o seu frango assado com farofa, e bebem nas suas garrafas térmicas e um deles chegou ao inimaginável: trouxe até churrasqueira, cujo aroma de carne assada, vencendo a maresia, envolveu completamente os últimos abencerragens locais que se haviam refugiado no pier do Emissário.

Por meu lado confesso que, nessa briga, estou do lado dos turistas. O sol — e a praia — são para todos, sejam eles do Leblon ou de Andrelândia. Mas o final da história não consigo prever. Ipanema será esvaziado e entregue à invasão interiorana? Ipanema reagirá, e erguerá cercas de arame, muros de cacos de garrafa, instituirá aí pelotões de vaia, equipes de depredação de ônibus alienígenas? Só o futuro o dirá. Lembro, contudo, que paulista é filho de bandeirante: onde põe a bota, ali fica. Mais fácil será que os ipanemenhos se mudem para litorais mais protegidos, que em tempo ficarão também famosos e serão, por isso, igualmente invadidos. E tudo começará de novo.

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Carlos Augusto dos Santos Pinto (Baú de Trovas)

Santa Luzia/MG, 1873 – ????, Belo Horizonte/MG

 
A gente. enquanto não ama,
da vida vive contente;
chegando, porém, Cupido,
adeus sossego da gente!
- - - - - –

A vida é sonho fugaz,
é pura e mera ilusão,
é leve pluma, que voa,
batida pelo tufão.
- - - - - -

Duas portas se escancaram,
ao partir a mocidade:
por uma foge a alegria,
pela outra entra a saudade.
- - - - - –

Lá bem longe, ao pé da serra,
minha terra, toda assim
— feita de amor e carinhos,
vive a sorrir para mim!
- - - - - –

Minha alma não mais anseia
por tuas suavidades.
Lua branca — lua cheia —
lua cheia — de saudades!...
- - - - - –

Plena, desperta a natura,
de seduções peregrinas,
quando vem, rindo, a alvorada,
pelos altos das colinas.
- - - - - –

Sem conta são minhas mágoas...
Nem pode um peito contê-las.
Para contá-las, não chegam
do firmamento as estrelas!
- - - - - –

Se por acaso, sonhando,
sonho tivermos tristonho.
vem a razão consolar-nos:
— sonhos não passam de sonho...
- - - - - –

Se recordar é viver,
— pela quimera embalado,
irei alento beber
nos sorrisos do passado.
- - - - - –

Sonhei risonho o meu fado,
sonhei loucos ideais.
De tanto sonho sonhado
guardo apenas queixas e ais.
- - - - - –

Carlos Augusto dos Santos Pinto nasceu na tradicional Fazenda do Cipó, distrito de Jaboticatubas, município de Santa Luzia/MG, a 17 de dezembro de 1873. Filho de Carlos Augusto dos Santos Pinto e D. Isabel dos Santos Ferreira. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais, no ano de 1910, pela Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais. Em 1902 casou-se com D. Maria da Conceição de Mendonça Pinto, Foi Promotor de Justiça em Queluz, Sete Lagoas e Santa Luzia. Exerceu vários cargos públicos. Publicou um livro de poesias intitulado ''Evocações e Saudades". Carlos é pai do consagrado trovador Paulo Emílio Pinto. Radicou-se em Belo Horizonte/MG.

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Arthur de Azevedo (O Viúvo)


Na véspera de partir para a Europa, o doutor Claudino, sem prever o fúnebre espetáculo de que ia ser testemunha, foi despedir-se do seu velho camarada Tertuliano.

Ao aproximar-se da casa, ouviu berreiro de crianças e mulheres, e a voz de Tertuliano, que dominava de vez em quando o alarido geral, soltando, num tom estrídulo e angustioso, esta palavra: “Xandoca.”

O doutor Claudino apressou o passo, e entrou muito aflito em casa do amigo. Havia, efetivamente, motivo para toda aquela manifestação de desespero. Tertuliano acabava de enviuvar. Havia meia hora que dona Xandoca, vítima de uma febre puerperal, fechara os olhos para nunca mais abri-los.

O corpo, vestido de seda preta, as mãos cruzadas sobre o peito, estavam colocado num canapé, na sala de visitas. À cabeceira, sobre uma pequena mesa coberta por uma toalha de rendas, duas velas de cera substituíam, aos dois lados de um crucifixo, o bom e o mau ladrão.

Tertuliano, abraçado ao cadáver, soluçava convulsivamente, e todo o seu corpo tremia como tocado por uma pilha elétrica. Os filhos, quatro crianças, a mais velha das quais teria oito anos, rodeavam-no aos gritos.

Na sala havia um contínuo fluxo e refluxo de gente que entrava e saía, pessoas da vizinhança, chorando muito, e indivíduos que, passando na rua, ouviam gritar e entravam por mera curiosidade.

O doutor Claudino estava impressionadíssimo. Caíra de sopetão no meio daquele espetáculo comovedor, e contemplava atônito o cadáver da pobre senhora que, havia quatro dias, encontrara na rua da Carioca, muito alegre, levando um filho pela mão e outro no ventre, arrastando vaidosa a sua maternidade feliz.

Tertuliano, mal que o viu, atirou-se-lhe nos braços, inundando-lhe de lágrimas a gola do casaco; o doutor Claudino estava atordoado, cego, com os vidros do pince-nez embaciados pelo pranto, que tardou, mas veio discreta, reservadamente, como um pranto que não era da família.

— Isto foi uma surpresa... uma dolorosa surpresa para mim, conseguiu dizer com a voz embargada pela comoção. Parto amanhã para a Europa, no Niger... vinha despedir-me de ti... e dela... de dona Xandoca e... vejo que... que... que…

E o doutor Claudino fez uma careta medonha para não soluçar.

— Dispõe de mim, meu velho; estou às tuas ordens, bem sabes.

— Obrigado, disse Tertuliano numa dessas intermitências que se notam nos maiores desabafos; o Rodrigo, aquele meu primo empregado no foro, já foi tratar do enterro, que é amanhã às dez horas.

Fazendo grandes esforços para reprimir a explosão das lágrimas, o viúvo contou ao doutor Claudino todos os incidentes da rápida moléstia e da morte de dona Xandoca.

— Uma coisa inexplicável! Nunca a pobre criatura teve um parto tão feliz... A parteira não esperou cinco minutos... Uma criança gorda, bonita... Está lá em cima, no sótão... hás de vê-la. De repente, uma pontinha de febre que foi aumentando, aumentando... até vir o delírio... Mandei chamar o médico... Quando o médico chegou já ela agoniza... a... va!...

E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou-se de novo ao doutor Claudino.

No dia seguinte, a cena foi dolorosíssima. Antes de se fechar o caixão, Tertuliano quis que os filhos beijassem o cadáver, medonhamente intumescido e decomposto. Ninguém reconheceria dona Xandoca, tão simpática, tão graciosa, naquele montão informe de carne pútrida.

Fecharam o caixão, mas Tertuliano agarrou-se a ele e não o queria deixar sair, gritando: — Não consinto! não quero que a levem daqui! — Foi preciso arrancá-lo à força e empurrá-lo para longe. Ele caiu e começou a escabujar no chão, soltando grandes gritos nervosos. Três senhoras caíram também com espetaculosos ataques. As crianças berravam. Choravam todos.

De volta do enterro, o Doutor Claudino, conquanto muito atarefado com a viagem, não quis deixar de fazer uma última visita a Tertuliano. Encontrou-o num estado lastimoso, sentado numa cadeira da sala de jantar, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mísero recém nascido, que a um canto da casa mamava sofregamente numa preta gorda.

— Tertuliano, adeus. Daqui a meia hora devo estar embarcado. Crê que, se pudesse, adiava a viagem para fazer-te companhia... Adeus!

O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:

— Adeus!

Às sete horas da noite o doutor Claudino, sentado na coberta do Niger, contemplando as ondas esplendidamente iluminadas pelo luar, pensava naquele olhar vago de Tertuliano, naquele adeus terrível, e pedia aos céus que o seu velho camarada não houvesse enlouquecido.

Meses depois, a exposição de Paris atordoava-o; mas de vez em quando, lá mesmo, na Galeria das Máquinas, no Palácio das Artes, ou na Torre Eiffel, voltava-lhe ao espírito a lembrança daquela cena desoladora do viúvo rodeado pelos orfãozinhos, e repercutia-lhe dentro d’alma o som daquele adeus pungente e indefinível.

Interessava-se muito por Tertuliano. Escreveu-lhe um dia, mas não obteve resposta. Pobre rapaz! viveria ainda? a sua razão teria resistido àquele embate violento?

Depois de um ano e quatro meses de ausência, o doutor Claudino voltou da Europa, e sua primeira visita foi para Tertuliano, que morava ainda na mesma casa. Mandaram-no entrar para a sala de jantar. Tertuliano estava sentado numa cadeira, sem dar acordo de si, rodeado pelos filhos, o olhar fixo no mais pequenito, que estava muito esperto, brincando no colo da preta gorda.

— Tertuliano? balbuciou o doutor Claudino.

O viúvo lançou-lhe um olhar vago, um olhar que nada exprimia; sacudiu molemente a mão, e murmurou:

— Adeus.

Depois, dir-se-ia que se fizera subitamente a luz no seu espírito embrutecido. Ele ergueu-se de um salto, gritando:

— Claudino —, e atirou-se nos braços do velho camarada, exclamando entre lágrimas:

— Ah! meu amigo! perdi minha mulher!...

— Sim, já sei, mas já tinhas tempo de estar mais consolado... Que diabo! Sê homem! Já lá se vão quatorze meses!...

— Como quatorze meses? seis dias...

— Ora essa! pois não te lembras que acompanhei o enterro de dona Xandoca?

— Ah! tu falas da Xandoca... mas há três meses casei-me com outra... a filha do Major Seabra, há seis dias estou viú... ú... vo!

E Tertuliano, prorrompendo em soluços, abraçou de novo ao doutor Claudino.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos fora de moda. Belém/PA: UNAMA.

terça-feira, 17 de março de 2020

Varal de Trovas n. 211


Fernando Sabino (A Mulher do Vizinho)


Na rua onde mora (ou morava) um conhecido e antipático General do nosso Exército, morava (ou mora) também um sueco cujos filhos passavam o dia jogando futebol com bola de meia.

Ora, às vezes acontecia cair a bola no carro do General e um dia o General acabou perdendo a paciência, pediu ao delegado do bairro para dar um jeito nos filhos do vizinho.

O delegado resolveu passar uma chamada no homem e intimou-o a comparecer à delegacia.

O sueco era tímido, meio descuidado no vestir e pelo aspecto não parecia ser um importante industrial, dono de grande fábrica de papel (ou coisa parecida), que realmente ele o era. Obedecendo à intimação recebida, compareceu em companhia da mulher à delegacia e ouviu calado tudo o que o delegado tinha a lhe dizer. O delegado tinha a lhe dizer o seguinte:

- O senhor pensa que só porque o deixaram morar neste país  pode logo ir fazendo o  que quer? Nunca ouviu falar num troço chamado autoridades constituídas? Não sabe que tem de conhecer as leis do país? Não sabe que existe uma coisa chamada Exército Brasileiro, que o senhor tem de respeitar? Que negócio é esse? Então é ir chegando assim  sem mais nem menos e fazendo o que bem entende, como se isso aqui fosse a casa da sogra? Eu ensino o senhor a cumprir a lei, ali no duro: "dura lex"! Seus filhos são uns moleques e outra vez que eu souber que andaram incomodando o General, vai tudo em cana. Morou? Sei como tratar  gringos feito o senhor.

Tudo isso com voz pausada, reclinado para trás, sob o olhar de aprovação do escrivão a um canto. O vizinho do General pediu, com delicadeza, licença para se retirar. Foi então que a mulher do vizinho do General interveio:

- Era tudo que o senhor tinha a dizer a meu marido?

O delegado apenas olhou-a, espantado com o atrevimento.

- Pois então fique sabendo que eu também sei tratar tipos como o senhor. Meu marido não é gringo nem meus filhos são moleques. Se por acaso importunaram o General, ele que viesse falar comigo, pois o senhor também está nos importunando. E fique sabendo que sou brasileira, sou prima de um Major do Exército, sobrinha de um Coronel e filha  de um General! Morou?

Estarrecido, o delegado só teve força para  engolir em seco e balbuciar humildemente:

- Da ativa, minha senhora?

E, ante a confirmação, voltou-se para o escrivão, erguendo os braços, desalentado:

- Da ativa, Motinha. Sai dessa.

Fonte:
Fernando Sabino. A Mulher do Vizinho. RJ: Record, 1976.

J. G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 3


CAMINHOS
( A Alberto Hecksher)

Lá vai o caminho à procura do horizonte
ouviu dizer
que ali naquele ponto a terra encontra o céu...

Se os caminhos pudessem compreender
a linguagem dos homens,
gritaria ao caminho para que ele ouvisse:
- para, meu irmão!
- - - - - –

CANÇÃO DO DESALENTO
( A Osório Dutra)

Já não sei se encontraremos um lugar sossegado
onde erguer nossa casa!
Um campo onde lançar as sementes que serão árvores
e serão frutos!

Já não sei se encontraremos a paz das paisagens bucólicas
onde completamos a Terra!
Já não sei se os nossos filhos poderão correr livremente
pelos caminhos.
- e não sei se vale a pena explicar aos nossos filhos  
que a terra é boa,
que o sol fecunda,
que o ar é a vida,
que as flores amam, os pássaros sonham, os homens trabalham!

Já não sei se poderemos encontrar esse recanto sossegado
para a nossa Vida,
porque a fumaça que veste de luto os horizontes não sai das chaminés
das casas felizes!

E esse ruído que ouves no solo - não é o ruído das enxadas
e dos arados
na terra dura,  
e esse canto que escutas não é canção da alegria
e da fartura!

E esses passos que pisam ritmicamente o mundo na distância
e que chegam aos teus ouvidos
como uma assombração,
tu não sabes de onde eles vêm
nem eles sabem para onde vão!
Roubam-te as enxadas, arrancam-se os sinos, levam-te os arados,
destroem-te a casa,
interrompem as pontes,
violentam os trilhos ...

Em verdade, meu irmão,
estão tintos de sangue os horizontes,
já não sei se encontraremos um lugar sossegado para a nossa  casa
e para os nossos filhos!
- - - - - –

 CANÇÃO PARA MEU FILHO

Meu filho há de ter forças para não precisar seguir
nos grandes rebanhos...

Meu filho há de amar acima de tudo a terra, a terra que lhe
          [dará o pão
a terra onde erguerá sua casa,
a terra onde seus filhos correrão,
a terra que seu pai sempre exaltou e onde repousará feliz...

Meu filho há de chamar de irmão ao seu vizinho e aos homens
         [que moram
nas terras mais distantes,
e há de ensinar aos outros homens o amor da terra,
fazendo-os ouvir a música recôndita e inorquestrável
levando-os até a beleza ignorada e intraduzível,
repartindo com eles o pão, o pão branco e macio,
brindando com a água pura a suprema paz imperturbável..

Meu filho, há de odiar por isso, todos os que destroem a terra
amaldiçoam seus frutos
e ignoram seus filhos,
e os que nunca chegarão ao céu porque nunca pisaram
na terra...

Por isso, meu filho não adorará deuses nem homens, mas a
    [água que corre da terra
e a vida que nasce da terra: o pão!

Por isso, serão seus irmãos os homens todos que trabalhem,
        [que ergam casas
que façam filhos,
e bendigam a alegria da paz no templo imensurável...

Porque eu hei de acreditar na humanidade, pela voz do meu
        [sangue redimido
em meu filho!
- - - - - –

CANTO DO TEMPO
  
A tua voz também estará no apito dos navios que vão e vêm
por todos os portos,
trocando paisagem na retina dos viajantes
e misturando destinos, raças e bandeiras!

E estará no guincho das ferragens  dos guindastes curvados
em filas, pelos cais,
como os vultos dos trapicheiros com os fardos pesados
às costas;
e estará em todas as engrenagens, em todas as máquinas,
e na protofônica orquestração metálica
dos seus êmbolos, dínamos e alavancas!

E estará no apito do trem resfolegante
varando a noite com seu vulto sinuoso
e expresso,
a cantar pelos trilhos a ária estridente
do progresso!

E no ruído fantástico de besouro irreal
que é a alma da cidade,
e na zoeira infernal, e no sonoro escarcéu,
dos motores dos aviões entoando pelo céu
o hino da velocidade

E no buzinar dos automóveis, e no apito de todos os
veículos
com as suas ferragens
nas derrapagens;
e na algazarra da cidade - que é onde o rio da vida
tem a sua foz,-
e nos gritos dos homens, dos vendeiros, dos jornaleiros
estará a tua voz!

Em meio à coral inorquestrável, beethovênica
e wagnérica,
da sinfonia da cidade dinâmica e feérica,
meio tonto, meio divino, meio atordoado,
- farás o solo inconfundível
e destacado!

Porque então tua voz será o canto do século,
tua poesia a vida do teu tempo,
e teu destino
a letra universal de um imponente hino!

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXV


Irmãos Grimm (O Doutor Sabetudo)


Houve, uma vez, um camponês chamado Camarão. Certo dia. Camarão levou um carro puxado por uma junta de bois, cheio de lenha, à cidade, e vendeu a um doutor. Enquanto recebia o dinheiro, Camarão viu que o doutor estava sentado à mesa comendo e bebendo tão bem que, de todo o coração, desejou ser doutor também. Ficou uns instantes a olhar e, depois, perguntou se não lhe seria possível tornar-se doutor.

- Oh, é muito fácil! - disse o doutor.

- Que devo fazer? - perguntou o camponês.

- Em primeiro lugar, compra um abecedário, isto é, um livro que tem um galo na capa; em segundo lugar, vende o carro e bois convertendo tudo em dinheiro; em terceiro lugar, manda pintar uma tabuleta com os seguintes dizeres: "Eu sou o doutor Sabetudo," e manda pregá-la no alto da tua porta.

O camponês executou tudo direitinho. Após ter "doutorado" um pouco, mas não muito, deu-se um furto de dinheiro na casa de um ricaço. Este ouviu falar no doutor Sabetudo, que morava em certa aldeia e que, de acordo com o próprio nome, deveria saber também que fim levara o dinheiro. Sem mais demora, o ricaço mandou atrelar o carro, seguiu para a tal aldeia, informando-se se era ele o doutor Sabetudo.

- Sim, sou eu.

Nesse caso, tinha de acompanhá-lo a fim de encontrar o dinheiro roubado.

Sim, mas a Guida, sua mulher, também tinha que ir junto. O ricaço consentiu, fez-os subir no carro e partiram todos juntos. Quando chegaram ao solar, a mesa estava posta; então o ricaço convidou o doutor Sabetudo para jantar com ele.

– Sim, disse ele, mas também a Guida, sua mulher; e com ela foi sentar-se à mesa.

Ao aparecer o primeiro criado, trazendo uma linda bandeja cheia de quitutes, o camponês deu uma cotovelada na mulher dizendo:

- Guida, esse é o primeiro; - referia-se ao primeiro prato.

Mas o criado julgou que ele dizia: este é o primeiro ladrão e, como de fato o era, assustou-se muito e lá fora disse aos seus colegas:

- O doutor sabe tudo, vamos acabar mal; ele disse que eu era o primeiro.

O companheiro não queria entrar na sala, mas não lhe foi possível eximir-se; ao apresentar-se com o prato nas mãos, o camponês deu outra cotovelada na mulher dizendo:

- Guida, esse é o segundo.

O criado começou a tremer de medo e tratou de sair logo. O mesmo aconteceu com o terceiro criado. O quarto criado teve de trazer uma terrina coberta; nisso o ricaço disse ao doutor que desse uma prova de sua arte adivinhando o que ela continha; eram camarões. O camponês olhou para a terrina muito atrapalhado, e não sabendo como sair daquela entalada, exclamou:

- Ah, pobre Camarão!

Ouvindo isso, o ricaço disse:

- Veja só, ele acertou. Então deve saber também onde está o dinheiro.

O criado, que se estava pelando de medo, fez sinal imperceptível ao camponês para que fosse lá fora um instante. Uma vez lá fora, os criados confessaram que os quatro juntos haviam roubado o dinheiro. Estavam dispostos a restituí-lo e dar-lhe uma grande quantia se ele os não denunciasse; caso contrário, lhe cortariam o pescoço.

Levaram-no até onde estava escondido o dinheiro; depois de concordar com tudo, o doutor voltou para a mesa, dizendo:

- Senhor, quero agora ver no meu livro onde está o dinheiro.

Mas o quinto criado acocorou-se num canto da lareira a fim de ouvir se o doutor sabia mais alguma coisa. O doutor abriu o abecedário, folheou-o um pouco, procurando o galo. E não o encontrando logo, disse:

- Sei que estás aqui dentro, tens de sair para fora! O criado escondido na lareira julgou que se referisse a ele; cheio de susto pulou para fora dizendo:

- Ah, esse homem sabe tudo.

O doutor Sabetudo indicou ao ricaço o lugar onde se achava o dinheiro, sem dizer, porém, quem o havia roubado; então recebeu de ambas as partes uma grande recompensa e desse dia em diante, tornou-se famoso.

Fonte:
Irmãos Grimm. Contos.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Varal de Trovas n. 210


Carlos Estevão de Oliveira (Baú de Trovas)


Ai, andorinhas serenas,
vindes, bem sei, donde venho,
pois se tendes negras penas,
penas bem negras eu tenho.
- - - - - –

As provas chovem aos molhos,
a crer ninguém me conduz...
Se tens a noite nos olhos,
de onde é que sai tanta luz?...
- - - - - –

Dizem que o amor é eterno,
e é ave de arribação:
Chega com o frio do inverno,
foge com o sol de verão...
- - - - - –

Eu amo os meus dissabores,
idolatro o meu tormento,
pois quem causa minhas dores
vale bem meu sofrimento...
- - - - - –

"Nem toda flor tem perfume",
diz o povo e diz-o bem.
Mas ter amor sem ciúme
é coisa que ninguém tem...
- - - - - –

Pobre de quem diz: “Eu tive
um sonho ardente e murchou!"
Mas ai daquele que vive
de um tempo que já passou!..,
- - - - - –

Querem que eu viva sorrindo,
desejo igual tenho eu;
mas não pode viver rindo
quem de rir já se esqueceu...
- - - - - –

Teu rosto, lírio moreno,
por teus cabelos cercado,
semelha um astro pequeno
num céu de inverno engastado.
- - - - - –

Teus olhos, meigos e lhanos,
por quem suspiros arranco,
são dois negros africanos,
escravos de um rosto branco.
- - - - - -

Um problema me consome,
mas não lhe dou solução:
como escreveste teu nome
dentro do meu coração?

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,

Carlos Estevão de Oliveira (1880 – 1946)


Carlos Estevão de Oliveira, poeta pernambucano, nasceu em Recife, no dia 30 de abril de 1880 e faleceu em junho de 1946. Foi Diretor do Museu Goeldi, em Belém do Pará. Formado em Direito pela Faculdade do Recife. Carlos Estêvão foi, no início do século, um dos pioneiros do movimento trovadoresco no Brasil, iniciado em Recife com a publicação de uma coletânea de trovas intitulada "Descantes" em 1907. Nesse livrinho estavam reunidas trovas de Adelmar Tavares, que então tinha 19 anos,  amigo pessoal de Carlos Estevão e dos que promoveram tal coletânea como Carlos Estêvão, Manoel Monteiro, Moreira Cardoso e Silveira de Carvalho. Além da publicação mencionada, existe outra pequena publicação denominada "Cantigas", contendo novas trovas do Estevão. Esta obra está registrada no "Dicionário Literário Brasileiro Ilustrado" de Raimundo Menezes.

Depois de formado em Direito em 1907, Carlos Estêvão transferiu-se para Belém em princípios de 1908. O pai, que havia morrido em 1905, era  político militante e fora muito perseguido pelo Governador de Pernambuco. Esta situação de atrito e insegurança obrigou os dois irmãos, Luis e Carlos Estêvão, a abandonarem a terra natal. Parece que Carlos Estêvão ao fixar-se no Pará já estava com um emprego público garantido pelo Governador do Pará, foi nomeado Promotor de Justiça em Alenquer.

Em 1913, Carlos foi para Belém exercer a função de segundo prefeito de Segurança Pública do Estado, equivalente a Delegado de Polícia dos dias de hoje. Em 1914 foi nomeado Consultor Jurídico da Diretoria de Obras Públicas Terras e Viação, permanecendo nessa função até ser nomeado Diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi, em 1930.

Além dessas funções de caráter oficial, Carlos Estêvão exerceu outras atividades ligadas à advocacia e ao comércio, bem como a de Fiscal de Bancos. Foi, também, um dos Diretores da Confederação das Colônias de Pescadores do Pará, entre os anos de 1930 e 1932.

Apesar disso, foi sempre um homem modesto, simples. Não tinha riqueza em moeda sonante; era honesto acima de tudo.

Carlos Estêvão morreu pobre, somente com a assistência da família, no Ceará. As suas preciosas coleções ele as doou ainda em vida para o governo de Pernambuco, que hoje as têm em exposição no Museu Estadual de Recife.

Nos últimos anos de sua vida em Belém, Carlos Estêvão morava com a esposa e a filha Lygia. Carlos Estêvão era casado com Maria Izabel Estêvão de Oliveira com quem teve três filhos

Além da cultura literária e científica de que era dotado, Carlos Estêvão possuía fina sensibilidade para a música. Conhecia bem os grandes compositores clássicos e tocava regularmente piano, tanto que, para usufruir desse deleite, havia em sua casa um desses instrumentos. Compunha também música sobre o folclore do Nordeste, das quais se destaca "Aquela canoa".
Não possuía predileção alguma pela política, tanto na Primeira República como após a Revolução de 30.

Dentre as grandes amizades de Carlos Estêvão sobressaíam os nomes do Presidente Getúlio Vargas, Magalhães Barata, D. Augusto Álvaro da Silva, na época Arcebispo Primaz da Bahia, D. Pedro de Orleans e Bragança, herdeiro do trono do Brasil, e inúmeras outras pessoas importantes como magistrados federais, ministros, militares, escritores, cientistas nacionais e estrangeiros.

Naturalista, deixou valiosos estudos inéditos sobre a fauna amazônica e a etnologia brasileira.

Desde 1930 foi um lutador ardente e realizador dos princípios na manutenção da flora e fauna em seus ambientes.

Desde muito novo, Carlos Estêvão foi um estudioso apaixonado dos índios brasileiros, Foi sempre um intransigente defensor desses povos , conheceu a fundo suas misérias e sofrimentos e em vão apelou para o bom senso dos compatriotas, em particular dos governantes da nação para que os socorressem com o mínimo necessário para evitar o    desaparecimento     irreversível    e brutal desses antigos donos da terra nativa. Quarenta anos de dedicados estudos ao problema indigenista brasileiro, notadamente sobre os índios antigos e em fase de quase desaparecimento de algumas áreas do Nordeste.

Carlos Estêvão de Oliveira viveu 37 anos no Pará. Irradiou sua simpatia por todos os cantos de Belém, transmitindo uma lição de esperança, de força de vontade, de trabalho e de confiança no futuro. Ninguém mais que Carlos Estêvão sabia impregnar-se e impregnar os circunstantes de otimismo com sua habilidade, espontaneidade e entusiasmo. Por isso deixou profundamente assinalada a sua trajetória na vida do Museu Goeldi.

Em fins de 1944 já se encontrava adoentado, e, sem mais energia. Algum tempo depois, sentindo-se mais abatido, viajou com a esposa para Fortaleza em busca de novos ares e melhoras.

Faleceu naquela cidade, a 5 de junho de 1946, tristemente esquecido e longe do calor do Pará, do Museu e dos amigos.

O jornal “Folha do Norte", de 6 de junho daquele ano, registrou: "Com o desaparecimento de Carlos Estêvão, o meio cultural e a sociedade sofrem imensa perda e o país um excelente cidadão. Seu maior desejo era morrer no Pará. Viveu pela Amazônia, mas o destino não lhe permitiu essa vontade de apaixonado pelos seus segredos".

Alguns dias depois, a Academia Brasileira de Letras prestou justa homenagem, com o elogio feito pelo seu velho amigo de faculdade, Dr. Adelmar Tavares.

Carlos Estevão faleceu como Diretor do Museu Paraense, pois o cargo era efetivo e não em comissão.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Osvaldo Rodrigues da Cunha. Talento e atitude: Estudos Biográficos do Museu Emílio Goeldi. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1989.

domingo, 15 de março de 2020

Varal de Trovas n. 209


Monteiro Lobato (Fábulas) O Automóvel e a Mosca


Um automóvel havia encalhado em certo ponto de mau caminho, num atoleiro.

– E agora?

– Agora é procurar bois na vizinhança e arrancá-lo à força viva.

Assim se fez. Arranjam os bois – uma junta.

Atrelam-na ao carro e principia a luta.

– Vamos, Malhado! Puxa, Cuitelo!

Os bois estiram os músculos num potente esforço, espicaçados pelo aguilhão.

Mas não basta. É preciso que todos, serviçais e passageiros, metam ombros à tarefa e, empurrando de cá, alçapremando de lá, ajudem o arranco dos bovinos. A mosca aparece. Assunta o caso e resolve meter o bedelho onde não é chamada. E toda aflita começa – voa daqui, pousa ali, zumbe à orelha de um, pica no focinho de outro, atormenta os bois, atrapalha os homens – a multiplicar-se de tal maneira que dá a impressão de ser não uma só, mas um enxame inteiro de moscas infernais.

O carro, afinal, saiu do atoleiro.

– Uf! Que trabalhão me deu!... – disse a mosquinha enxugando o suor da testa.
- - - - - –

– A Joana Baracho é assim – comentou Narizinho. – Lá na casa dela as irmãs fazem tudo, mas quem finge que sua é ela. Certas fábulas são retratos de pessoas.

– E isso é instintivo – tornou Dona Benta. – Lembra-se, Pedrinho, daquele jogo de futebol lá na vila? Os assistentes “torciam”, e quando a bola entrava no gol não havia um que não atribuísse o ponto à sua torcida pessoal.

Fonte:
Monteiro Lobato. Fábulas.

J. G. De Araújo Jorge (O Canto da Terra) 2


APARÊNCIAS...
    ( Ao Angelo Ruiz)
  
Aquele homem que vês, tão maltratado e rude,
olhar de boi castrado carregando a canga,
é uma pedra de raro e infinito valor...
A miséria é a sua ganga,
por isso não lhes vê a beleza interior...

Aquele outro que passa aprumado e elegante
que a riqueza do traje e do trato realça,
parecerá talvez um límpido brilhante...
... mas é uma pedra falsa...
- - - - - –

AS CHAVES...
   (À Alberto de Figueiredo)

Felizes os homens que tem as chaves
porque só encontram portas abertas...

Como podem tantos homens dormirem sossegados e felizes
de portas fechadas,
quando essas portas se fecham para tantos homens
que ficam sempre ao relento
e nunca podem entrar?

Neste mundo de tantas portas,
quando teremos cada um, a sua chave,
e a sua hora de voltar?
- - - - - –

ASAS  DO  BRASIL
   (À Força Aérea Brasileira e ao Correio Aéreo Militar )

Ei-las juntas no espaço, - asas em revoadas
cirandando na altura ou planando no azul,
desdobrando nos céus invisíveis estradas
e acordando a cantar o sono das quebradas
sob o signo estelar do Cruzeiro do Sul.

O seu canto viril é o ronco dos motores -
hino estranho e sem letra a ressoar nos céus!
Asas fortes, irmãs das asas dos condores,
herdeiras do destino dos conquistadores
que não buscam no entanto a guerra e seus troféus!

Outra é a sua missão, mais nobre e mais humana,
devassando o horizonte e procurando o além:
- seu vôo, num abraço, o mundo inteiro irmana,
e a Pátria, sob a sua sombra soberana
trabalha mais feliz sem recear ninguém.

Marcharão pelos céus como novas "bandeiras"
e fundarão cidades para além das serras,
encurtando os caminhos sobre as cordilheiras
serão vivas mensagens sempre alvissareiras
chegando ao coração das mais longínquas terras.

Ressurreição de heróis, bravos itinerantes,
missionários de credos de brasilidade,
sobrevoam as plagas verdes mais distantes
e dominando o espaço em todos os quadrantes
asseguram a eterna força da Unidade.

Asas moças da Pátria, símbolos bravios
de ímpetos juvenis e entusiasmos sagrados,
lá se vão pela altura a acompanhar os rios
e a lançar sobre a terra audazes desafios
na canção dos motores, fortes, sincopados.

Vendo-as, por esses dias de ânsias e de crises,
em formações, no azul, serenas e velozes,
penso no seu futuro e em suas diretrizes:
- agora, trabalhando em comunhão, felizes,
depois, em plena guerra, em confusão, ferozes!

Era um sonho de Paz o que sonhou Dumont
libertando-as assim, mais alto que as montanhas;
ele, o gênio imortal, humaníssimo e bom
há de ouvir do Infinito o ronco surdo e o som
dos motores batendo em pulsações estranhas.

Corações do Brasil nos rudes peitos de aço
dos aviões, que em cadência, alteiam-se no espaço,
e lá se vão nos céus, na simbolização
de um povo forte e bom que crê na Paz do mundo,
e no Amor, que no ventre azul do céu profundo
gerou as asas livres do primeiro avião!
- - - - - –

ATO DE FÉ
   ( A Sílvio Elia)

Não sei como os homens tiveram tempo de criar os deuses
vestir os santos
e erguer mil templos para a religião...

Há tanta estrela no céu!
Há tantas flores nos ramos!
Se queres ajoelhar-te... ajoelha-te e prosterna-te
ante aquela semente que brotou do chão!
- - - - - –

BRINQUEDOS
   (A Nicolau Antonio Noé)  

Ali, em frente ao grande palacete,  
nas grades de um jardim dependurados,  
como pardais nos fios descansados,  
- os molecotes da rua      
de olhos vivos,  
ficam fitando a festa dos brinquedos  
como quem olha um mundo imaginário:  

- tambores... bicicletas...aeroplanos
soldadinhos de chumbo e de madeira,
com que passam brincando a tarde inteira  
os filhos de um senhor, milionário  
      
Olhos vivos      
gulosos e distraídos,  
à alegria das crianças mais felizes  
eles riem também, ingenuamente,
- da tosca bola de meia,
do papagaio de papel da venda,
completamente esquecidos,
- completamente...

Depois,
quando as amas carregam para dentro
os meninos ricos
que não apanham sereno,
eles seguem com os olhos os brinquedos:
- os soldadinhos que um vai carregando...
- a espada que aquele outro acena no ar...
- o tambor que um terceiro vai tocando...
E a meninada da rua fica olhando... fica olhando...
e vê tudo fugir ao seu olhar...
..................................................

Hoje... depois que os anos vão rolando
sobre injustiças e desigualdades
sei que tudo na vida é mesmo assim:
- há os que vivem trepados pelas grades
e os que podem brincar pelo jardim! . . .

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 3


O MISTERIOSO SR. QUIN
The Mysterious Mr. Quin


Harley Quin é um homem estranho, com um poder quase sobrenatural de mostrar a uma pessoa o que ela viu ou ouviu e já não é mais capaz de lembrar. Sr. Satterthwaite é um homem inteligente, com uma incrível intuição para sempre estar por perto de acontecimentos inusitados. Juntos, nos doze casos reunidos neste livro, eles desvendam crimes intrincados, desaparecimentos suspeitos, assassinatos sem solução e suicídios inexplicáveis, fatos nebulosos que nem a Scotland Yard consegue resolver. O único problema é que o Sr. Quin sempre desaparece sem deixar vestígios…

A Chegada do Sr. Quin
Durante a festa de véspera de final de ano, o caso do suicídio do Sr. Derek Capel. É nesse momento que aparece o Sr. Quin e os ajuda a desvendar a misteriosa morte.

A Sombra na Vidraça
O Sr. Quin e o Sr. Satterthwaite terão que resolver o caso da incrível morte de um homem e de uma mulher encontrados os dois no jardim, aparentando um duplo suicídio.

Na Estalagem Bells e Motley

Tendo que se hospedar na estalagem, Satterthwaite ouve a relato do desaparecimento do Capitão Harwell. Por um acaso, o Sr. Quin também está na tal estalagem e os ajuda a descobrir onde se encontra o Capitão desaparecido.

O Sinal no Céu
Satterthwaite terá que ajudar um homem condenado por um assassinato que não cometeu. No seu restaurante favorito, Satterthwaite encontra novamente o Sr. Quin que o ajuda a resolver o caso.

A Paixão do Crupiê
Neste caso, um crupiê conta sua estória a Satterthwaite e ao Sr. Quin, visitando Monte Carlo. A estória do crupiê se confunde com a de uma condessa deixando todos bastante entusiasmados.

O Fim do Mundo

O Sr. Quin e o Sr. Satterthwaite conseguem, meio sem querer, descobrir uma joia roubada e livrar um homem que está a um ano na cadeia por um crime que não cometeu.

A Voz no Escuro
Passando uma temporada com uma condessa, Satterthwaite descobre uma trama muito perigosa. Para conseguir seu objetivo, um frio assassino mata a condessa e já tem armado seu próximo crime.

O Rosto de Helena

Assistindo a uma ópera, Satterthwaite se encontra com o Sr. Quin. Eles acabam sendo levados a correr contra o tempo para tentar salvar uma mulher de ter uma morte trágica.

O Arlequim Morto

Durante uma exposição de quadros, o Sr. Satterthwaite compra um quadro que lhe lembra uma casa em que ocorreu um suicídio. Ele convida o pintor e outro amigo para jantarem juntos e começam a falar sobre esse acontecimento. À medida que vão conversando, vão descobrindo que talvez a verdade seja diferente.

O Pássaro da Asa Quebrada

Sr Satterthwaite vai como convidado à casa de Madge Keeley, onde ela hospeda outros convidados. Pela manhã, uma moça é encontrada enforcada em seu próprio quarto. Mas existem pontos que não estão esclarecidos e a suspeita começa a pairar sobre todos.

O Homem Que Veio do Mar
Durante uma estadia em um hotel, Sr Satterthwaite terá de convencer um homem e uma mulher a não se suicidarem, convencendo cada um de que a vida ainda vale a pena. Conversando com eles, consegue um resultado ainda mais interessante.

Alameda do Arlequim
Sr Satterthwaite é envolvido em uma trama onde dança e música se misturam. Harley Quin fica junto dele e ambos assistem à escolhas que mudam a vida dos personagens do conto.

O MISTÉRIO DE SITTAFORD
The Sittaford Mystery

Isoladas por uma grande tempestade de neve, duas estranhas inquilinas da mansão rural de Sittaford se reúnem com os poucos habitantes da minúscula aldeia vizinha com o propósito de passarem juntos a tarde. Como o ambiente é propício a fantasmas, decidem realizar uma sessão de espiritismo, e uma presença misteriosa comunica que acaba de ocorrer um assassinato a seis milhas de distância, fato que é comprovado poucas horas depois. O sagaz e minucioso inspetor Narracott, que desconfia das mensagens do além-túmulo, prende aquele que as pistas indicam como o único culpado possível. Por sorte do acusado, sua namorada - a bela, enérgica e corajosa Emily Trefusis - acredita na inocência do amado e decide demonstrá-la, descobrindo o verdadeiro assassino. Como costuma acontecer nos romances - às vezes também na realidade -, o criminoso acaba sendo o menos suspeito.

A CASA DO PENHASCO
Peril at End House


As férias de Poirot na Costa das Cornualhas trilha caminhos inusitados quando ele encontra a jovem e bela Senhorita Nick Buckley. Poirot percebe que há alguém tentando matá-la, e decide então protegê-la. Porém, mesmo tentando escondê-la em uma clínica de repouso, parece que não é possível evitar mais um atentado contra a vida de Nick. Poirot deve usar de toda a sua astúcia para resolver este complicado caso.

Quem queria a morte da belíssima Nick? Tentaram matá-la 3 vezes e a última tentativa foi em frente à Hercule Poirot e seu fiel amigo Hastings. Por que todos os seus amigos pareciam esconder alguma coisa sobre a jovem? Por que todos tentavam mentir ou mudar tudo sobre ela? E quem eram os devotados australianos que moraram na pequena casa na entrada da mansão de Nick? Misteriosas perguntas serão respondidas no final, quando Poirot encontra o assassino cruel da Casa do Penhasco…

A bela dona da casa do penhasco, Nick, sofre uma série de atentados. Ou seriam apenas acidentes? A falta de um motivo, parece indicar a segunda solução. Mas seria coincidência de mais uma bela jovem escapar da morte quatro vezes? Para desvendar este mistério e tentar protegê-la, entra em cena Hercule Poirot, revelando um final surpreendente!

OS TREZE PROBLEMAS
The Thirteen Problems


Com seu profundo conhecimento da natureza humana e uma excepcional capacidade dedutiva, Miss Marple consegue desvendar “doze mistérios insolúveis”, ocorridos em lugares distantes e narrados por seus amigos e vizinhos da pequena localidade de St. Mary Mead, que criam em torno da adorável anciã o chamado Clube das Terças-Feiras. Mas um inesperado assassinato ocorrido na própria St. Mary Mead, torna-se, o décimo segundo mistério a desafiar a inteligência de Miss Marple.

TREZE À MESA
Lord Edgware Dies


Num mundo de aristocratas excêntricos e de atrizes e atores famosos se tecem os fios da complexa e inquietadora intriga deste romance que poderia levar como subtítulo um baile de máscaras, porque na realidade transforma-se em um cenário macabro de mutantes e enganosas aparências, sob as quais se oculta o rosto de um implacável assassino. Entre os assistentes a esse perverso teatro se encontra um espectador muito difícil de enganar: Hercule Poirot, quem, além de utilizar outros sutis recursos, vale-se como de um espelho, do cérebro estritamente normal de seu amigo íntimo, o capitão Hastings - reencarnação moderna do doutor Watson -, para ver, refletido nele, o que o assassino quer que os outros vejam. Com uma modéstia inusitada, Poirot, por uma vez na sua vida, priva-se, injustamente, de todo merecimento, pois diz que pôde desmascarar o autor de três assassinatos, não pelo bom funcionamento dos seus neurônios, mas sim por ter ouvido, na rua, uma conversa trivial. A verdade é que, se o ouvinte não tivesse sido o detetive bigodudo, um inocente, e não o verdadeiro assassino, teria morrido na forca.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

sábado, 14 de março de 2020

Varal de Trovas n. 208


Chico Anysio (A Mulher de Preto)


— Olha a mulher de preto!

Poucos sabem que se chama Fátima. A maioria nem se interessa por saber se tem nome, sequer. Chamam-na "mulher de preto" e isto basta para que qualquer um saiba a quem se referem.

Tem 39 anos de vida e 14 de Brasil, onde chegou de Portugal, solteira. Nasceu no Vizeu, o que lhe dá ao "s" um sabor de "x", considerado cômico.

— O xenhor xabe que não aprexio exa mania de paxar o dia a olhar pro xéu. Xi o trabalho o chama, que o faxa.

O menino, seu empregado no bar, volta ao trabalho por um momento. Não é tão eficiente quanto o bar precisa, mas custa salário pequeno. E não é dos que gostam de responder às admoestações. De boa paz, o menino.

— Xegura cá a xerveja, m'nino.

No bar, o menino é o único homem, desde que Teófilo morreu, num acidente de ônibus na Rio—Petrópolis, três anos depois do casamento.

Fátima, pelo choque, perdeu o filho que começava a gerar. Esteve à beira da morte. Escapou. Mas ficou mais só do que devia. Não tinha tido tempo de fazer amigos, e o marido, ciumento, sempre evitou associar-se às casas portuguesas e a qualquer clube. Viviam um para o outro. Depois, Fátima viu-se obrigada a viver sozinha.

Na parede do bar, atrás do caixa, o retrato do marido: tripeiro de barba cerrada, azulada, que começava ao pé dos olhos, confundindo-se com os pelos do peito. Tinha feições finas, o marido: um homem bem apessoado. Foi enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, onde, todos os domingos, Fátima comparece, levando as flores da saudade. Não chora, todavia. Apenas, triste e solene, deita os cravos sobre o cimento e, após dizer umas poucas rezas, volta ao bar na Rua Salvador de Sá, único patrimônio que lhe ficou.

A mulher de preto. Colarinho fechado, mangas compridas, punhos invariavelmente abotoados, sempre de meias nada transparentes, rosto pálido onde nunca tocaram o ruge e o batom. Faz questão de viver no hábito português do luto eterno. Tem os cabelos escondidos pelo lenço de seda preta que não esquece de atar à cabeça, dando-lhe um jeito de camponesa de Vila Franca do Xira. As pernas, brancas demais, acinzentam-se pelos cabelos que deixa crescer, descuidada, esquecida da vaidade — coisa de gente moça. Imagina-se que nas axilas também os haja.

O bar é pequeno e antigo. São cinco mesas com pés de ferro e tampo de mármore malhado. Cadeiras pequenas, de madeira de lei, fabricadas pelo marido, marceneiro no Porto. Além das mesas, há o balcão onde o mármore, de beiradas comidas e quebradas, serve de pouso aos cálices de cachaça e conhaque ou xícaras de cafezinho.

— Me dá um Cinzano Tinto.

— Acabou. Tem branco, serve?

— Não.

Perde mais um freguês. O negócio não vai bem. Fala-se na desapropriação do bar, para a abertura de uma rua nova, acabando na Presidente Vargas. Nas prateleiras, um fim de estoque.

— Um Dreher.

— Acabou.

Outro freguês para o bar moderno que se abriu na esquina, concorrência desigual. Para ela restam os da cachaça, que dividem a pinga com o "santo" e não economizam palavrões no vocabulário. Já está acostumada aos nomes que escuta. Antes chamava os brasileiros de "Boca Xuja". Agora aceita-os. Deles vem o dinheiro diário.

O menino-ajudante lê a página esportiva do jornal, sentado na caixa de refrigerantes. Ela se aborrece com a inércia do ajudante que não tem a décima parte da sua disposição.

— Eu não te pago para que tu paxes o dia xentado, m'nino. Anda cá a ajudar-me.

Fátima vigia, ensina, comanda, compra, vende, evita.

— Sabe que a senhora, com uma roupinha mais leve, uma blusinha estampada, um penteadozinho maneiro... Não sei não. Tá sozinha porque quer, sabia?

Ela nem sorri, temendo alimentar qualquer esperança sem o menor sentido, impossível mesmo. Desde que o marido se foi, jurou solidão eterna.

— Dois vermutes.

— Xó tem uma dóje. Xerve?

— Não, obrigado.

Vão-se mais dois para beber no bar da esquina. Ah, quanto tempo falta para acabar com tudo isso?

Mora num quarto alugado, em casa de família, com café da manhã e almoço aos domingos. Junta dinheiro. O que con­segue economizar, ao fim de cada mês, amealha, sonhando com o dia em que poderá comprar a passagem de volta ao Vizeu, onde tem parentes que escrevem cartas prometendo coisas melhores do que a vida que o bar lhe permite.

— Por que não casa de novo?

Responde ao dono da casa onde mora, com indisfarçável contrariedade:

— Faxa o favor de não me tocar nexe axunto...

Às vezes cora, à simples ideia de nova união. Considera esses comentários um desrespeito ao luto que esfrega na cara do mundo. Então não veem que a uma viúva não se devem falar certas coisas? Temendo a continuação do assunto, volta ao quarto, onde mantém acesa uma lâmpada sobre a imagem de Nossa Senhora de Fátima, sob a qual há um copo com água, molhando um cravo. Os outros onze, da dúzia, deitou-os domingo sobre o túmulo do finado. Amanhã mudará o cravo do copo.

Reza, dorme e trabalha. Sua vida resume-se à conjugação desses três verbos. Não sabe de cinemas ou teatros e mesmo a Copacabana só foi uma vez, passear pela calçada da praia. O mar nunca lhe tocou o corpo.

Hoje é domingo. Está saindo do cemitério, depois de cumprir a tarefa habitual. Há um vento forte que a faz andar tomando conta da saia que, vez por outra, sobe, deixando que se veja o nó no alto das meias, no começo da coxa.

Tem o marido à sua frente, de tanto que pensa nele. Rememora o acidente. Relembra conversas. No dia seguinte à sua morte iriam ao Pão de Açúcar.

A roupa que usa, o comportamento a que se determinou, a cara fechada e o passo cadenciado são os responsáveis pelos gracejos que ouve. Os galanteios são infinitamente menores do que merece. Isso atribua-se também à roupa, comportamento, cara e passo.

O Pão de Açúcar! Imagina que não será nenhum absurdo fazer o passeio hoje, domingo. Admite, inclusive, ser uma homenagem póstuma a Teófilo. Despreza o táxi que se oferece, preferindo o ônibus.

Há uma fila grande para o bondinho. A mulher de preto, no entanto, sente-se num deserto. É a única a não mostrar alegria. Não há prazer no passeio. Age no tom que se determinou: homenagem póstuma. Qualquer atitude diferente disto, encarará como pecado, quase heresia, nem sabe definir.

Turistas esbarram nela que, da janela do bondinho, olha a cidade sem maior interesse. Vê as praias repletas, os automóveis que mais parecem formigas, de tão pequeninos. Teme, por um momento, que se quebre o cabo, e o carro despenque. Afasta os olhos da paisagem, virando-se para o interior. Examina os companheiros da viagem. As famílias e os casais, alegres, tirando fotografias, fazendo piadas que imaginam engraçadas.

— O cabo vai quebrar... vai quebrar... vai quebrar...

Ridículos. Um menino faz cócegas na tia, provocando-lhe um grito, de susto.

— Xi exe miúdo foxe meu, eu o enxinava... — pensa.

Está quase arrependida do passeio.

Seus olhos param num homem sentado no canto do bondinho. Comporta-se diferente dos demais, porque se comporta igual a ela. Está só, o homem. Igual a ela. O homem lhe sorri, de modo simpático. Ela retribui e depois se arrepende. Volta à paisagem. Mas já não vê os carros nem as praias. U'a mão invisível torce-lhe o pescoço, obriga-a a virar o rosto para o canto, onde Geraldo continua sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto.

Saltam no morro da Urca para trocar de bondinho. As crianças correm na frente, querendo lugar na janela. Os pais tentam alcançá-las. Os casais têm menos pressa. No fim do grupo, Fátima e Geraldo. Olham-se com respeito, com esperança, com temor e quase carinho. Ele lhe dá passagem. Ela entra no bondinho, já admitindo comprar uma blusinha estampada que viu anteontem numa vitrine, no Estácio.

Geraldo sorrindo, sorrindo, sorrindo, adulto, compenetrado, cara de trabalhador, respeitável, simpático, aparentemente honesto, sorrindo, sorrindo...

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

J.G. de Araújo Jorge (O Canto da Terra) 1


A CARTA QUE NÃO CHEGOU
                               ( A Ladislau Stowinsky - 1944 )

Eu também queria viver para a alegria pura de criar
para o convívio das obras que nos contam da vida e da beleza;

para beijar as mulheres que me oferecesse as suas carícias
e aceitasse uma parcela de minhas preocupações;

para regar as plantas de manhã cedo, quando o sol
ainda não desceu das montanhas,
e dizer para as crianças não pisarem nos canteiros;

para podar o jardim e encher o jarro de flores
de flores macias e frescas como as faces das crianças;
para sentir no corpo sadio a ducha fria do chuveiro
e a alma cantar feliz numa canção qualquer.

eu também queria viver para levar orgulhoso pela mão, o meu filho,
para a escola que canta ao longe como um viveiro de pássaros;
e tomar posse, com ele, pelo caminho, das belezas insuspeitáveis,
e ensiná-lo a ser puro como a manhã, e a ser bom como a terra
e ensiná-lo a deslumbrar-se diante das coisas simples:

- uma gota que ficou brilhando imóvel, trespassada num espinho...
- um pássaro que apanhou, ligeiro, um pedaço de grama...
- um botão que se entreabre ainda molhado da noite
puro como um sonho de criança que não adivinha a vida...
- um menino passa de bicicleta, assoviando...
- o jornaleiro que não sabe que leva a História na mão...
- uma semente que alteia o chão e vence a terra
no supremo milagre da beleza: - à procura do sol!

Eu também queria viver, para voltar e encontrar a mesa posta,
a toalha limpa, o prato branco, o pão cortado,
os talheres brilhando, os guardanapos dobrados;

para deitar-me cansado e adormecer depressa, conversando,
sem perceber que estou dividindo as coisas mínimas  
e que há alguém que dá valor às minhas mínimas coisas;

eu também queria viver para as horas leves que passam
sem que cheguemos a perceber que são as horas de prazer,
para um dia então nos lembrarmos, de que elas foram, em verdade,
as horas boas e inesquecíveis de felicidade...

Eu também queria viver, sem esperar e temer a morte todos os segundos,
sem pensar que ela é o fim necessário, a grande paz inviolável;
sem esse medo da chuva, da noite, do inimigo,
sem ter que me alimentar de pensamentos dolorosos e vãos
e me contentar com a esperança vaga de um tempo perdido...

Eu também queria viver, - nessa grande felicidade intraduzível
de quem vive feliz sem saber mesmo que está vivendo;
sem essa presença angustiosa de todas as coisas e de todos os seres
que amamos e que desejamos como à terra e como à vida,
e que só a dor e a ausência tornam poderosamente presentes...
- - - - - –

A ETERNA LUTA
                       ( A Modesto de Abreu - 1940 )
   
Não te irrites, amigo - a verdade é uma lança
que a mentira, aos pedaços, lentamente faz!
E o tempo - o tempo é a esponja que apaga... é a bonança
que vem, quando a tormenta fica para trás!

Não duvides de ti, se és forte e se és capaz!
E tem fé que esta fé deve ser a esperança
de que apesar de tudo é a verdade que avança
e a ignorância que foge, e aos poucos se desfaz!

Tu que és a mocidade e o pensamento novo,
luta por tua terra e defende teu povo,
que é preciso afinal lutar pelo que é teu!

Tem sido eterna a luta entre as sombras e a luz!
Foi por pregar o bem que mataram Jesus!
E por crer na verdade: - Sócrates morreu!
- - - - - –

A LIBERDADE E A LARANJA
                (A Guilherme Figueiredo)

Um dia a liberdade será como a laranja
que tens na mão...

Já não será o sangue que espirrará em teu rosto
prova, e sentirás o gosto,
- será apenas o suco doce da laranja irmão...

Um dia, sentirás o gosto da liberdade,
apalparás a liberdade entre os dedos,
e ela escorrerá pelos teus lábios
e molhará a tua garganta...

Um dia, essa liberdade de que tanto te falam
e que tanto te prometem
deixará de ser palavra, e terá forma e cor...
E hás de apertá-la então, nas mãos ansiosas,
e hás de sentir na boca e na alma o seu sabor!
- - - - - –

A TORRE DE BABEL

Eu creio que os homens seriam bons
se a torre de Babel
não se tivesse feito em pedaços no chão...

(As línguas são os estilhaços sonoros
de um só coração...)

Não importa que eu seja ainda uma vez profano,
mas se hoje, uma outra torre se erigisse
no centro do Vaticano,

- eu sei de homens que derrubariam essa nova Babel
com receio talvez que ela chegasse ao céu!...
- - - - - –

A VOLTA DO CAMPONÊS
              ( A José Queirós Júnior-1940 )
   
Outrora, por estas terras, uma estrada desenrolava
pacificamente  
o seu novelo de paisagens bucólicas,  
e havia cantos, e havia vozes,
e automóveis velozes,  
e carros pachorrentos
indo e vindo, pelas tardes quietas e melancólicas  
lentos... muito lentos...

Outrora, sobre aquelas águas que ainda hoje
não cessaram de rolar  
ligeiras  
- mas que riam - e agora parecem chorar,
havia uma ponte, uma ponte que era como uma pulseira  
que o progresso ofertara
ao braço branco do rio de água sonora e clara...

E do outro lado, junto ao seio da colina
que arqueia, numa suave claridade,
é que ficava a cidade...
Era de ver, a grande praça aos domingos, contente
e sempre cheia,
ou nos dias de semana, monótona, tranquila,
- tão linda a praça da vila...

E subindo as encostas, debruando as ruas:
o casario
com seus telhados de cor e seus penachos de fumo. . .
- como se cada rua fosse um rio
vermelho, descendo pelas encostas
sem rumo...

Outrora, - ( até parece no outro dia,
- se eu cerrar os meus olhos sou capaz de crer
nestas lembranças,
- e de escutar, quem sabe? a algazarra, a alegria
das crianças...)

- Se eu cerrar os meus olhos, sou capaz de ver,
o dia em que me chamaram
o dia em que eu parti
e os dois olhos embaciados que ficaram
me acompanhando,
e a criança que acenou as mãozinhas, chorando
e que eu nunca mais vi
...........................................................................

Chamaram-me e eu fui. Disseram-me que eu ia
para a guerra,
(que guerra?)  
- que eu ia defender a minha terra
e era preciso lutar,
que a pátria me chamava, e que eu defenderia
meu trabalho, meu lar  

Chamaram-me e eu fui . . . matei voltei...
Por que deixaram-me voltar?  
Antes ficasse, se já não encontro
a terra que deixei,
se não tenho trabalho e se perdi meu lar...

Voltei... por que deixaram-me voltar?

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. O Canto da Terra. 1945.