segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Vereda da Poesia = 127 =


Soneto de
AMAURY NICOLINI
Rio de Janeiro/RJ

Visões

Faço um esforço pra lembrar teu rosto,
mas apenas uma nuvem me aparece,
como se a encobrir todo o desgosto
daquilo que passou e não se esquece.

Ainda há pouco eu conseguia ver-te,
mas os contornos foram se apagando,
junto com a esperança de ainda ter-te,
mesmo que, como antes, eu chorando.

Não sei se agradeço o esquecimento
de como era teu rosto, ou se lamento
pois foi parte importante do passado.

Mas creio que ainda seja bem melhor
outro rosto procurar guardar de cor
do que querer restaurar esse, borrado.
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Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

A grandeza imaginária
que todo vaidoso tem,
é uma estrela solitária
brilhando sobre... ninguém...
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Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Quando a nossa dor faz poesias

O amor é o nosso ponto de partida
em tudo que façamos... a razão
não sabe controlar um coração,
quando nossa emoção comanda a vida.

Não penses que só tu tens incertezas,
mágoas, medos, raivas... melancolias,
pois quando a nossa dor faz poesias,
copia simplesmente das tristezas.

Nem sempre o que te dói é o que perfura,
há pobres sem saber o que é pobreza
e quem é infeliz por natureza,
nem sempre compreende a alma pura.

A água não desgasta a pedra dura...
apenas acomoda-a em seu leito,
assim é o coração: só dói no peito,
quando não tem mais jeito, a amargura.

Doutor nenhum conserta a criatura,
poeta, sim, engana até a dor,
e engana-se a si mesmo...ele é doutor
em conversar com a dor com mais ternura.

Quem diz que é grão-mestre em autoajuda,
mas não pratica nada do que ensina,
semeia um amor que não germina,
retira a proteína que o acuda.

A vida tem um tempo, o destino
não manda nos desígnios de Deus,
por isto, aprimora os gestos teus
e ensina-te com cada desatino.

Nós somos seres únicos, porém
somente somos dignos de nós,
quando passamos ter a mesma voz
daqueles que só querem nosso bem.
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Trova  Premiada em Irati/PR, 2023
MARIA HELENA OLIVEIRA COSTA 
Ponta Grossa / PR

Das pedras nunca se cansam
os homens, com seus exemplos:
alguns essas pedras lançam,
já outros... erguem seus templos!
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Spina de
NINA MARIZA
Berilo/MG

Gratidão

Gratidão é praça…
com lindos jardins,
perfume de flores.

Gratidão é sinfonia… de amores!…
Ternos bilhetes que lemos baixinho.
Da primavera são agradáveis olores.
Da alma… são apaixonadas poesias.
Gratidão é cobertura de valores!…
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Trova Popular

Alegria dos meus olhos     
é ver a quem quero bem:   
quando não vejo quem quero
não quero ver mais ninguém.
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Poema de
JOSÉ FARIA NUNES
Caçu/GO

Quero indignar-me

Quero indignar-me
com a mãe que se submete
ao aborto de uma vida.
Mas como indignar-me
se a própria vida dessa mãe
já foi abortada?
Quero indignar-me
com uma criança que na rua
assalta à mão armada.
Mas como indignar-me
se essa criança jamais
conheceu o afago da mãe
ou o valor de ser gente?
Quero indignar-me
com a fome
a miséria
a deseducação.
Mas como indignar-me
se me falta tempo
até de ver como gente?
Quero indignar-me
com o desamparo de crianças e idosos
de filhos sem pais e de pais sem filhos.
Mas como indignar-me
se a vida neste mundo global
colocou uma cifra
no lugar do meu coração.
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Trova de
ANTONIO CABRAL FILHO
Jacarepaguá/RJ

Nascer é pegar um trem,
sem avisar onde vai;
todos vão nele também,
ninguém diz sequer um ai.
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Poema de
PEDRO APARECIDO PAULO
Maringá/PR

Teste de pincel

Em você, o meu primeiro visual,
comecei a pintá-la, tornando-a imortal,
diante de seu corpo desnudo;
curvas e traços confundidos,
qual beleza inigualável em tudo.
Ao iniciar não revisei a tela,
não imaginei uma forma assim tão bela,
pois fora apenas um teste de pincel.
Riscos e cores traçados devagar,
não havia em mim razão para pintar,
pois seria somente em teste, o meu papel.
Aos primeiros traços que foram surgindo,
mudou tudo enfim, que quadro tão lindo,
arrumei a tela com profunda emoção!
Ao ver o seu corpo retratado ali
É indescritível tudo o que senti,
pois pintava alguém em meu próprio coração.
Vi com outros olhos pincéis e tela;
consertei os riscos, deixando-a mais bela.
No quadro, então, moldei-a, enfim.
Completei com júbilo seu corpo sem igual!
Tão rara imagem tornou-se imortal,
tenho essa musa, bem juntinho a mim!
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Trova de
DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Nunca mais o trem passou,
mas ouço-lhe ainda o apito...
O silêncio eternizou
a saudade do seu grito.
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Sonho

Meu sonho desta noite foi incrível;
só mesmo um Freud para o destrinchar;
olhei no espelho e me senti horrível...
Parecia um duende tumular!

Não foi um pesadelo desprezível,
dos que nos envergonham de contar;
pelo contrário, até foi susceptível
de reverter a história e me alegrar!

No sonho você disse para mim,
que eu não ficasse triste, tanto assim,
pois não a importava a fealdade minha...

O que valia, disse a minha amada,
com um sorriso encantador, de fada,
que ela ao meu lado era... uma rainha!
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Trova do 
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ (1916 -1977) Santos/SP

Meus sentimentos diversos
prendo em poemas tão pequenos.
Quem na vida deixa versos,
parece que morre menos ...
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Poema de
WANDERLINO TEIXEIRA LEITE NETTO
Niterói/RJ

Inútil canção

Dedilhando a lira,
ela emite arpejos
para quem partira
com os seus desejos.
Algo tão tristonho,
que jamais se ouvira
nem sequer em sonho.

No primeiro acorde,
tudo que a aturde,
antes sem alarde,
arde agora em dor.

Sem qualquer rancor,
urde a conclusão:
já é muito tarde,
mesmo pra canção,
seja ela qual for.
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Trova Funerária Cigana

Debaixo da terra fria,
contra o teu rosto de dó,
mais aumenta a minha pena,
o me lembrar que estás só.
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Soneto de 
RAUL DE LEONI RAMOS 
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Adolescência

Eu era uma alma fácil e macia,
Claro e sereno espelho matinal
Que a paisagem das cousas refletia,
Com a lucidez cantante do cristal.

Tendo os instintos por filosofia,
Era um ser mansamente natural,
Em cuja meiga ingenuidade havia
Uma alegre intuição universal.

Entretinham-me as ricas tessituras
Das lendas de ouro, cheias de horizontes
E de imaginações maravilhosas.

E eu passava entre as cousas e as criaturas,
Simples como a água lírica das fontes
E puro como o espírito das rosas...
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Trova Hispânica de
NIMIA PINTO
Porto Rico

Solitaria la bandera
siempre eleva el corazón,
en la sonrisa guerrera
del amor en erupción.
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Poema de 
DALMIR PENNA
Volta Redonda/RJ

Colcha de retalhos

É uma colcha de retalhos
nossas vidas;
é só percalços, tropeços,
lágrimas, risos e dores!
Mas, há momentos de alegrias,
de encantamento e belezas,
é só olharmos com otimismo
para a frente e para o alto,
e, aos que ao nosso lado caminham
muitas vezes, com os mesmos pensamentos.
Sorria que a vida é bela, sê feliz
e, compartilhe esta felicidade com alguém
que lhe sorrirá também, sê cortês
com os idosos, e com as crianças,
é só uma questão de tempo,
para que outros sejam contagiados;
e assim sendo, verás sempre ao teu lado
um rosto alegre, sorridente a cumprimentá-lo,
bom dia, bom trabalho, boa noite,
até amanhã, vá com Deus, e obrigado!
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Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

Foi o bebum "muito esperto",
como eremita... e está crente
que, no calor do deserto,
o oásis é de água... ardente!!!
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Soneto de 
THEREZA COSTA VAL
Viçosa/MG, 1933 – 2014, Belo Horizonte/MG

Colhendo versos

O pensamento enchi de lindos versos
colhidos em leituras fascinantes;
dentro do coração, deixei imersos
meus sonhos de poeta, fervilhantes.
.
Na mente e no papel, tracei diversos
esboços de poemas, incitantes…
O tempo foi passando… e pôs dispersos
meus sonhos, ideais e os planos de antes,
.
mas nunca reneguei esta magia
que, em mim, exerce ainda a Poesia.
E vi chegado o dia da colheita!
.
Vesti-me de emoções – a idéia feita –
e, no papel em branco que escolhi,
o soneto nasceu… e eu o colhi!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

As almas, se generosas, 
percorrem árduos caminhos... 
Só no céu elas e as rosas 
ficam livres dos espinhos! 
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Poema de
MARIA LÚCIA DALOCE
Bandeirantes/PR

Colheita de poeta

Por que a poesia deve ser linda, pura e majestosa?
Eu quero uma poesia livre, feia, cruel,
Que mostre a crueza da vida.
Esta vida que a gente tem e não quer.
Esta vida que nos é imposta, alheia a outra que sonhamos.
Que a minha colheita de palavras fira os meus lábios
E os pensamentos daqueles que a lerem.
Que os seus espinhos teçam a coroa dos sofrimentos
E não perfume e nem adoce com mel
O texto hipócrita!
Quero colher as dores, abrir as feridas, sangrar as letras,
Para ver no terremoto das rimas, desaparecer meus versos líricos.
E, afiando a espada, que há na pena
Dilacerar o pouco que restou na minha messe escassa,
Para ressuscitar, enfim, do fingimento lírico,
Toda mortalidade do realismo trágico.
Quero queimar a colheita vil do amor que imaginamos ter ou ser.
Desnudar, sem piedade, o transfigurado rosto, colhido aos poucos,
Devagar… E a cada novo sofrimento, mais feio do que antes,
Até sentir a face monstruosamente original,
Que o meu verso deixou cair no abismo do papel.
Quero mostrar a pobre safra dos campos ressequidos
Na aridez de um coração.
Quero enegrecer a estrofe com meus versos brancos
E revelar a cor que tem meus prantos.
Quem sabe assim entenderão, que a colheita de um poeta,
Também é uma semente, que embora pareça não ter vida,
Continua latente e, tendo vida,
Traz consigo, também, o gene da imperfeição!
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Trova de
MÁRIO PEIXOTO
Rio de Janeiro/RJ

Pobreza pode ser fria
e a fome pode ser dura,
mas, às vezes, a harmonia
vale mais do que a fartura.
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Hino de 
Alegrete/RS

Alegrete, Alegrete
Cidade continentina
Surgida em plena savana,
Nas guerras da Cisplatina.

Salve, salve
Augusta e bela
Centenária sentinela
Do nosso amado Rio Grande.

Plantada no pampa imenso
De pôr-de-sol sem igual,
És uma jóia engastada
No Brasil Meriodional.

Querência do audaz minuano
Também gleba do charrua,
Halo de glória e heroismo
Na tua história flutua.

Salve, pois
Augusta e bela
Centenária sentinela
Do nosso amado Rio Grande.
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Trova Humorística de 
SÉRGIO FERRAZ
Nova Friburgo/RJ

Prende logo a dentadura
antes que o mal aconteça!
Se corega não segura,
parafusa na cabeça!!!
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Soneto de 
JOSÉ A. JACOB
Juiz de Fora/MG

Despercebimento

Dentro dos seus sapatos desbotados
Ele saiu de casa e foi distante;
E foi além da conta: andou bastante,
Até achar caminhos nunca achados.

Esse homem, descontente e itinerante,
Não deu adeus quando se foi aos lados,
Deixou atrás de si rostos molhados
E colocou a Sorte vida adiante.

Depois voltou trazendo na memória
O que o Mundo não lhe pode servir;
E entrando em sua casa, ó Sorte inglória!

Nenhum sorriso amado viu sorrir:
Chamou, cantou, chorou, contou história,
Mas ninguém quis saber e nem ouvir...
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Trova de
LUIZ CARLOS ABRITTA
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG

Vendo a ponte de madeira,
em forma de tobogã,
eu vou descendo a ladeira,
mas só penso no amanhã !
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O pescador e o peixinho

Peixe pequeno será grande um dia,
Se Deus vida lhe der;
Mas é falta de siso em demasia
O largá-lo qualquer,
Esperando que ele cresça
E depois apareça:

Apanhá-lo outra vez é muito incerto.
Um pescador esperto
Em a rede apanhou
Uma carpa muitíssimo pequena:
«Se os poucos muitos são, valem a pena!»
Disse, e a carpa guardou.

Pergunta-lhe a coitada:
«De mim o que farás, se chego a custo
Para meia dentada?...
Oh! deixa-me no mar crescer sem susto...

Mais tarde vender-me-ás por alto preço!»
— Tua esperteza muito bem conheço,
Lhe torna o pescador: irás, amiga,
Apesar da cantiga
Parar à frigideira!

Diz-nos desta maneira
Certo rifão que achei
E vem de molde para casos tais:
Um “toma” vale mais
Que dois eu “te darei”!

Recordando Velhas Canções (Vida de bailarina)


(samba-canção, 1954) 
Compositores: Américo Seixas e Chocolate

Quem descerrar a cortina
Da vida da bailarina
Há de ver cheio de horror
Que no fundo do seu peito
Existe um sonho desfeito
Ou a desgraça de um amor
Os que compram o desejo
Pagando amor a varejo
Vão falando sem saber
Que ela é forçada a enganar
Não vivendo pra dançar
Mas dançando pra viver!

Obrigada pelo ofício
A bailar dentro do vício
Como um lírio em lamaçal
É, uma sereia vadia
Prepara em noite de orgia
O seu drama, passional
Fingindo sempre que gosta
De ficar a noite exposta
Sem escolher o seu par
Vive uma vida de louca
Com um sorriso na boca
E uma lágrima no olhar

A Dualidade da Vida de uma Bailarina: Entre o Sonho e a Realidade
A música 'Vida de Bailarina', é uma profunda reflexão sobre a vida de uma bailarina que, por trás das cortinas, esconde uma realidade dolorosa e cheia de sacrifícios. A letra revela a dualidade entre a aparência glamorosa e a dura realidade enfrentada por essas artistas. A bailarina, que deveria viver para dançar, acaba dançando para sobreviver, sendo forçada a enganar e a se submeter a situações degradantes para manter-se financeiramente.

A canção utiliza metáforas poderosas para descrever a situação da bailarina. Comparando-a a um 'lírio em lamaçal', a letra sugere a pureza e a beleza que são manchadas pelas circunstâncias adversas. A bailarina é retratada como uma 'sereia vadia', uma figura mítica que, apesar de sua beleza e encanto, está presa em um ciclo de vícios e orgias noturnas. Essa imagem reforça a ideia de que, embora a bailarina possa parecer deslumbrante e feliz por fora, ela carrega um profundo sofrimento interno.

Além disso, a música aborda a questão da exploração e da objetificação das mulheres no mundo do entretenimento. A bailarina é obrigada a fingir prazer e a se expor, sem ter a liberdade de escolher seus parceiros ou seu destino. O contraste entre o 'sorriso na boca' e a 'lágrima no olhar' simboliza a máscara que ela é forçada a usar, escondendo sua verdadeira dor e tristeza. A letra de 'Vida de Bailarina' é um poderoso comentário social sobre as dificuldades e os sacrifícios enfrentados por muitas mulheres que trabalham no mundo do espetáculo, revelando a dura realidade por trás do brilho e do glamour.

Personagens típicas da noite carioca nos anos trinta e quarenta, essas bailarinas serviram de motivo a algumas composições como "Garota do Dancing", de Alberto Ribeiro e Jorge Faraj. Nenhuma, entretanto, alcançaria o prestígio de "Vida de Bailarina", lançada por Ângela Maria em 1954 e revisitada por Elis Regina, dezoito anos depois. Representante ilustre da classe foi Elizeth Cardoso, bailarina antes de se tornar cantora profissional.

Fontes:
– https://www.letras.mus.br/angela-maria/44140/
– Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção no Tempo. Vol. 1. Editora 34, 1997.

domingo, 6 de outubro de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 60: Primavera

 

Nilto Maciel (Insensatez)

Enquanto despejava o resto da terceira cerveja nos copos, Airton pigarreou e olhou para mim.

– Esse meu irmão é o gênio da publicidade.

Os três, ao mesmo tempo, agarramos os copos e, no engolir a bebida, perdi as palavras iniciais de Fernando.

– Jornalista frustrado, rabiscador de frases de encomenda, assessor da burguesia.

O primeiro soluço morreu nos corredores mal-assombrados do esôfago, tal o meu susto. Ora, para mim Fernando só podia estar feliz, por voltar ao trabalho e ao exercício da comunicação. Além do mais, pagavam-no relativamente bem.

– Não seja ingrato.

Pela calçada, os primeiros habitantes da noite engatinhavam, ainda farsantes, medrosos, macios.

– Olha que pernas!

Fernando não deu ouvidos ao irmão, nem desviou os olhos dos meus. Também neles não havia nenhuma cólera. Porém, me fulminaram suas palavras de agradecimento por ter-lhe tirado a barriga da miséria, tê-lo livrado da futura companhia dos mendigos e devolvido ao convívio dos comunicadores.

–  Nunca vou me esquecer disso, nem de você.

Airton continuava a farejar o rabo da noite, venta metida no copo, e eu pedia a Deus que a língua dele inventasse obscenidades e fizesse Fernando olhar e cheirar e desejar tudo, menos relembrar o passado.

– Apesar disso, eu quero mesmo é voltar ao jornal.

A quarta cerveja chegou menina pelas mãos do garçom e se dividiu pura para nós três. Nem ela, porém, fez menos amargo Fernando.

– Você não pode nem pensar nisso. Eles são capazes de acabar com a imprensa para impedir uma coisa dessas.

Do outro lado da calçada, letras vermelhas pintavam no muro palavras que os carros não me deixavam ler. E eu olhava por cima dos ombros de Fernando, como se suas orelhas me interessassem. Ele as alisava de vez em quando, irredutível em suas opiniões.

– Lá eu me sentia bem, coerente comigo mesmo, apesar das porradas.

As luzes dos bares e lupanares atraíam as mariposas para o festim de todas as noites. E Airton se debatia dentro do copo, incapaz de voar.

– Onde está a incoerência da publicidade?

Fiz um último esforço para ler o mural que a noite apagava. Um automóvel engoliu-o, antes de se meter nos labirintos do ouvido de Fernando.

– Cuidado!!!

Os irmãos se assustaram e rimos.

– Eu queria acordar o Airton.

O garçom trouxe outra cerveja, ofereceu tira-gosto, insistiu até perder a paciência.

– O publicitário é um propagandista do supérfluo, um camelô do capital. Quer dizer,  o leal conselheiro do rei, filósofo-bobo da corte, espécie vulgar de Maquiavel.

Pedi outra cerveja e a opinião de Airton, embora nenhuma das duas pudesse fazer Fernando se acalmar. Pelo contrário, quanto mais bêbado, mais se tornava amargo, e quanto mais enaltecido, mais se auto-criticava.

Airton voltou a chamá-lo de inteligente, a ponto de pensar pelos burgueses. Talvez ironizasse, talvez só falasse besteiras.

Fernando sorriu. Sim, era mais um dos fílósofos da burguesia. Apenas não escrevia ensaios.

Irritei-me, e de nada serviu minha irritação. Acusou-se de crápula. Aliás, não sabia a diferença entre ser e estar sendo. Tão sutil a diferença que outros podiam apenas estar sendo, enquanto ele podia ser o próprio.

Não, nem ele era nem estava sendo crápula. Éramos apenas empregados da burguesia.

Feriu-me. Eu ia terminar advogado de torturadores. Não entendi de imediato a frase. Explicou-me: sendo o publicitário e o torturador ambos meros trabalhadores, não são responsáveis por seus atos,  porque mandados. E não podem se recusar a cumprir suas tarefas, sob pena de demissão.

Chamei-o de simplista. O torturador era um criminoso pago pelo Estado ou por grupos do Poder, enquanto o publicitário um intelectual pago por agências de publicidade.

Concordou comigo. Apenas não abria mão de chamá-los de assessores do Poder. Ou instrumentos.

Fernando fazia questão de se torturar, de se proclamar um lacaio do capitalismo. Tive vontade de mandá-lo plantar batata ou virar guerrilheiro. Mas seria encerrar o assunto e eu queria ajudá-lo. E meti o jornalista no meio. O profissional que se sujeitava a trabalhar na imprensa burguesa. Sem falar, é claro, do que comunga com as ideias do dono do jornal. Era ou não um assessor do Poder?

Atingi-lhe o calcanhar. Perguntou se suas reportagens serviam ao Poder. Claro que não. Do contrário, não teria sido mandado para a rua. Logo, tornava-se impossível a coerência do jornalista consigo mesmo na imprensa burguesa.

Não havia salvação.

O assunto se esgotou aí e logo mais nos despedimos.

Encontramo-nos de novo, passado quase um mês. Parecia outro. Abraçou-me com euforia, mostrava-se alegre, otimista, satisfeito com o trabalho. Andava às voltas com a criação da melhor campanha de sua vida. Coisa de deixar qualquer gênio da propaganda com inveja.

De início, mantive-me reservado, embora procurasse retribuir a euforia. Supus estivesse me provocando. Não se tratava disso, porém. Nem uma só palavra sua soou falsa. Falava de dentro mesmo.

Interessei-me pelo título da campanha, pelos textos, por tudo, e ele me encheu de informações. Tratava-se de uma campanha patrocinada pelo Sindicato dos Produtores de Massas. A população ia trocar a carne, o arroz, o feijão, o leite pelo macarrão. Eu ia ver o povo gordo.

Não toquei na discussão passada, atento às suas palavras, feliz com sua felicidade, olhos mirados nele, quase sempre, ou nas muitas folhas de papel que carregava. Nelas, trazia anotadas frases, textos, poemas, tudo relacionado ao novo trabalho.

Convidou-me a acompanhá-lo, sem dizer para onde ia, e fomos. Apenas a caminhar pelas ruas, feito dois vagabundos. E falava sem parar, como se toda a fala do mundo desaguasse de sua boca. Até aí, porém, nada de imaginar isso ou aquilo. Se me ocorreu alguma ideia foi a de sempre – que cérebro aquele!

Ao avistar um conhecido, chamou-o. O rapaz assustou-se, escondeu-se e só não se perdeu de vista devido ao faro de Fernando. Talvez não fossem tão íntimos para uma cena daquelas. Além do mais, meu amigo havia se tornado mais conhecido por sua prisão, embora assinasse reportagens polêmicas. Estranhei a cara de espanto do outro e mais ainda os modos de Fernando. Pois, sem qualquer preâmbulo, pôs-se a repetir aos brados os motivos de sua alegria, a reler os manuscritos da campanha do macarrão. Para livrar o sujeito do embaraço, apresentei-me, dizendo-me amigo “desse grande Fernando Darque”. O malandro se aquietou. Logo, porém, alegou estar com pressa e se retirou.

Por um instante pensei em perguntar a Fernando se não achava ridículo chamar alguém aos gritos no meio da rua e, sobretudo, ler aquilo.

Nem bem arranjava palavras para a sabatina e lá apareceu outro conhecido. O mesmo vexame, a mesma lengalenga, macarrão aqui, macarrão ali, e o sujeito a se aborrecer, pedir licença para se retirar.

A essas alturas, não me restava nenhuma dúvida mais sobre o destino de Fernando. E, para fortalecer minha convicção, convidou-me a comer macarronada, embora tivéssemos almoçado fazia coisa de uma hora e fôssemos ambos avessos a massas. Procurei-lhe no rosto qualquer sinal de brincadeira e só alcancei a insistência para o convite. Se eu recusasse, não contasse mais com sua companhia e muito menos com sua amizade. E procuramos um restaurante e o encontramos e fiz das tripas coração para nem sonhar com uma indigestão.

Mal começou a comer, chamou o garçom, gabou-o, quis saber do nome do mestre-cuca, dos cozinheiros, deixou a mesa e correu à cozinha a enaltecer os empregados. Saí em seu auxílio, temeroso de mal-entendidos e, a piscar o olho para o pessoal, conduzi-o de volta ao salão. Nisso, o proprietário se apresentou. Para quê? Fernando se encheu de mais falas, fez o elogio da casa, da comida italiana, das massas alimentícias, do trigo, das fábricas de macarrão, sob os olhares espantados dos clientes famintos e do gordo dono do restaurante.

Só me restava pedir a conta, pagá-la, acrescida de boa gorjeta, inventar um compromisso urgente e conduzi-lo à rua.

Nunca deixei de me preocupar com Fernando, apesar de não o ter visto mais com vida. Andei ainda a procurá-lo na agência onde trabalhava, nos jornais, por toda a cidade. A correria do dia-a-dia, porém, logo ocupou meu espírito de outras preocupações. Quando parei, já não me restava fazer nada, a não ser lamentar a desgraça. E talvez não o salvasse, por mais que o seguisse, guiasse, guardasse. A loucura já o dominava. Pois não está louco quem armazena macarrão, por temor de sua escassez no mercado? E mil vezes insensato quem se joga a um panelão cheio de água fervente e deixa o bilhete: “Sirvam-se, que estou bem cozido”?

Fonte: Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.