quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Vereda da Poesia = 150 =


Trova de
CELSO LUIZ FERNANDES CHAVES
Cambuci/RJ

De viver tenho prazer
no amor tenho muita sorte,
vivo para te querer
enquanto não vem a morte.
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Soneto de
EMÍLIO DE MENESES
Curitiba/PR, 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ

Um músico barbudo

Tem a doença do som e a fatuidade
De pensar que todo ele, fibra a fibra,
É o sonoro instrumento em que só se há de
Vibrar o canto em que o universo vibra.

No seu queixo que pesa mais de libra,
E de pelos na escura densidade,
Pensa que o contraponto se equilibra
À harmonia da capilaridade.

Quando, às vezes, a crítica o abarba
Ele, acudindo ao exigente apelo,
Do ardor de um gênio musical se engarba.

De um filho de Isaú, a cara é o selo,
Pois nem o Padre Eterno tem mais barba,
Nem as onze mil virgens mais cabelo.
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Trova de
LUIZ CLÁUDIO COSTA DA SILVA
Parnamirim/RN

A imponente arte conserva,
os traços e a singeleza
da bela deusa Minerva:
- musa da mãe natureza!
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Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

À lágrima

Quando a esperança acorda um sonho leve
e o som da natureza se aprimora;
penumbras do passado vão embora
e o toque do relógio não se atreve...

Quando o aperto de mão à paz aflora
e a dúvida do amor torna-se breve;
o gelo da pintura vira neve
e o justo com justiça não demora...

Ressurgem as latentes pradarias;
os olhos não se enganam com a fala
e a liberdade enfim mais aparece.

Tertúlias fraternais noites e dias
lapidam o poeta que se exala
e à lágrima fervente desfalece!
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Trova Premiada de
MERCEDES LISBÔA SUTILO
Santos/SP

Trova – apenas quatro versos
traduzem a  vida, a fundo,
do homem em seus universos
- poesia que abraça o mundo!
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Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Dedicatória

A pomba d'aliança o voo espraia
Na superfície azul do mar imenso,
Rente... rente da espuma já desmaia
Medindo a curva do horizonte extenso...
Mas um disco se avista ao longe... A praia
Rasga nitente o nevoeiro denso!...
Ó pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba forasteira! ...

Assim, meu pobre livro as asas larga
Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...
O mar atira-lhe a saliva amarga,
O céu lhe atira o temporal de inverno. . .
O triste verga à tão pesada carga!
Quem abre ao triste um coração paterno?...
É tão bom ter por árvore — uns carinhos!
É tão bom de uns afetos — fazer ninhos!

Pobre órfão! Vagando nos espaços
Embalde às solidões mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe os braços
Vejo abrirem-se ao mísero precito...
Os túmulos dos teus dão-te regaços!
Ama-te a sombra do salgueiro aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro agreste
Traz-me no bico um ramo de... cipreste!
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Trova Popular

O meu amor me disse ontem
que eu andava coradinha;
os anjos do Céu me levem
se esta cor não era minha!
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Soneto de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Sem recato

Chegaste desprovida de recato
Trazendo teus sussurros em oferta
Minh'alma revelada, descoberta
Celebra, degustando fino prato

Da cela dos sorrisos deste vate
Garbosa e sedutora abriste a porta
Outrora esmaecidos, tela morta
Fizeste dos sonhares o resgate

Em mim, nas remotíssimas paragens
Despontam as recônditas imagens
Pedindo teu carinho, esse pincel

Na face tens deveras duas luzes
Guiando lindas mãos com que produzes
Um mundo refulgente, meu laurel
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Trova de
GERALDO LYRA
Recife/PE

Como simples jangadeiro,
  no mar das paixões da vida
  vou ficando sem roteiro,
  numa jangada perdida...
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Folclore Brasileiro em Versos
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Saci Pererê

No bosque escuro, um riso a ecoar,
um pé só dança, travesso, à espreita,
Saci, travador de rimas a brincar,
com seu gorro vermelho em meio à colheita.

Nos ventos que sopram, seus truques ecoam,
leva com ele o medo, o riso a flutuar.
Atrás da moita seus rastros enevoam,
sua lenda vive sempre a nos provocar.

Mas não é só travessa a sua essência,
guardião das matas, do fogo a grelha,
ensina ao homem a ter paciência,

que no simples ato, a vida é uma bem-querença.
Em cada folguedo, uma nova centelha,
no coração do povo, sua presença.
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Trova de
ANTÔNIO TORTATO
Curitiba/PR, 1934 – 1992, Paranacity/PR

Como a sombra, o falso amigo
reza na mesma cartilha.
Ambos caminham contigo
somente enquanto o sol brilha.
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Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Música divina

É música divina o chilrear,
De uma ave que voa, solta ao vento!
É música divina, doce alento…
Se alguém nos diz baixinho: eu vou te amar!

É música divina o sussurrar,
Que o mar provoca em cada movimento.
Divina melodia, o açoitamento;
Que a onda nos difunde, ao se espraiar!

É música divina, quando o amor,
É cântico divino, sedutor;
Lembrando Pierrot e Columbina!

Até o próprio vento em noite escura,
Sibilando estridente na lonjura…
Nada mais é, que música divina!
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Trova de
FERNANDO CÂNCIO
Fortaleza/CE, 1922 – 2013

O morro grita o seu nome
num frenesi sem igual
e vai sambando com fome
a deusa do carnaval!
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Soneto de 
GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Pedido

Peço aos irmãos, aos filhos e aos amigos,
que, quando a morte venha me levar,
não coloquem meu corpo nos abrigos
cimentados, gelados e sem ar!

E nem me ponham em belos jazigos! 
Nesses lugares, eu não quero estar!
Tristeza e solidão são os perigos.
Minha alma quer seguir a navegar!

Por isso eu peço a quem me queira bem,
leve meu corpo longe ... até o mar!
Onde haja céu! Onde vente também!

Nesse lugar azul só de beleza,
lancem ao mar o que de mim restar,
quero ser parte dessa natureza!
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Trova Funerária Cigana

Sou triste como a tesoura
que corta a negra mortalha,
ou da cova a dura terra
que sobre o morto se espalha.
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Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Metades 

Opostos em transe
circulam na mente
buscando um quê,

reflexões de um carente burguês. 
Em vielas secretas, são espelhos 
indefesos em invólucro de buquê.
Sutis maramos de múltiplos tons,
âmagos dispersos na nula psiquê.

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Trova de 
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

Gonçalves Dias, teu verso
das terras do Maranhão
aos píncaros do Universo,
prega ao mundo a comunhão!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Súplica

Aves! Cantai por mim que não possuo lira!
Vós sois como os poetas, livres e inspiradas...
Onde existis, cantais alegres, descansadas,
como a dizer que a vida enleva, encanta e inspira...

Eu não nasci com estro, ó donas da safira!
Jamais foi meu o dom das palavras rimadas,
no peito meu as mágoas sempre estão caladas,
apenas sei chorar! E o pranto já se expira...

Clamor de desespero é só o que eu poderia
arrancar de meu peito. E nunca uma poesia!
Oh! menestréis dos céus, ouvi o que vos clamo!

Ide bem alto, alto, e lá no céu profundo
ao Criador dizei que eu peço neste mundo,
amor, somente o amor do alguém a quem eu amo!
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Como é bom saber que o filho 
vida afora alegre vai, 
dando forma, força e brilho 
aos sonhos do velho pai!
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Poema de
JOSÉ LEZAMA LIMA
Campamento de Columbia/Cuba, 1910 – 1976

Ah, que você escape

Ah, que você escape no instante
em que tenha alcançado sua melhor definição.
Ah, minha amiga, não queira acreditar
nas perguntas dessa estrela recém-cortada,
que vai molhando suas pontas em outra estrela inimiga.
Ah, se fosse certo que, à hora do banho,
quando, em uma mesma água discursiva,
se banham a imóvel paisagem e os animais mais finos:
antílopes, serpentes de passos breves, de passos evaporados,
parecem entre sonhos, sem ânsias levantar
os mais extensos cabelos e a água mais recordada.
Ah, minha amiga, se no puro mármore das despedidas
tivesses deixado a estátua que poderia nos acompanhar,
pois o vento, o vento gracioso,
se estende como um gato para deixar-se definir.

(Trad. Claudio Daniel)
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Trova de
SELMA PATTI SPINELLI
São Paulo/SP

Quando a paixão acontece
de uma forma alucinada,
qualquer esquina parece
uma grande encruzilhada.
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Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

A última rosa

Quero agora te abraçar, por um instante!
E ficar, assim, quieto nos teus braços,
E sentir teu respirar, nesses compassos
Desta música divina e alucinante!

Quero assim, permanecer nesse teu mundo
De sussurros de hinos e de magias...
De teus olhos vem a luz onde me inundo,
De tua voz vem a candura de alegrias...

Quero assim estar contigo quando um dia,
Nos chamar para o seu seio a eternidade.
Quem ficar não deve nunca sentir dor.

Quem ficar deve viver em alegria
E na rosa carregada de saudade
Ofertar à eternidade o grande amor!
= = = = = = 

Trova de
JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Fui rever meu chão de outrora,
mas a saudade era brava:
meus olhos sorriam fora;
dentro o coração chorava!
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Poema de 
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Dois cravos roxos

Esta noite, quando, lá fora,
campanários tontos bateram
doze vezes o apelo da hora,
na minha jarra, onde a água chora,
meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos defuntos,
são como beijos que sofreram,
como beijos que enlouqueceram
porque nunca vibraram juntos...
São como a sombra dolorida
de olhos tristes, que se perderam
nas extremidades da vida...
Oh! miséria da despedida...
Meus dois cravos roxos morreram...
Meus dois cravos roxos morreram!
Meus dois cravos roxos, fanados,
crepuscularam, faleceram,
como sonhos que se esqueceram,
alta noite, de olhos fechados...

Eu pensava numa criatura,
quando os campanários bateram...
Tudo agora se me afigura
irremediável desventura...
Irremediável desventura!
Meus dois cravos roxos morreram...
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Quando a lágrima do olhar
beijar o sol num Adeus,
um arco-íris vai brilhar
entre os meus olhos e os teus!
= = = = = = 

Hino de 
Arapoti/PR

Verde planalto de belezas mil.
És o recanto feliz do meu Brasil.
Orgulho dos filhos teus.
Terra mais rica não há.
Arapoti! Arapoti!
Celeiro natural do meu Paraná.

Rio das Cinzas imponente majestoso.
A cingir qual diadema este solo generoso.
E a ponte sulfurosa presente da natureza.
A mostrar qual venturosa esta terra de riqueza.

Em cada passo em direção ao progresso.
Consolida a esperança de um grandioso sucesso.
Nasceste de um braço forte de herói desbravador.
É o milagre do norte, terra de luz e esplendor.
= = = = = = 

Trova de
ALFREDO ALISSON VALADARES
Sete Lagoas/MG

Cai a velha na lagoa
sendo a custo resgatada,
mas seu genro não perdoa:
– tanto barulho por nada?!!!
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Soneto de 
LAÉRCIO BORSATO
Poços de Caldas/MG

A moça e a rosa

Numa manhã de sol, na rosa entreaberta,
As pétalas luziam com as gotas de orvalho.
Ao longe um carrilhão repetia a hora certa.
Muita gente agitada corria pro trabalho.

Ali embevecido, o rapaz se põe alerta!
Uma janela abriu e na fresta de um galho,
Viu a moça surgir toda risonha, liberta;
Estendeu ao sol, uma colcha de retalho...

Fez na manhã seguinte, o mesmo itinerário...
A rosa toda se abrira. No campanário,
Repetia-se as batidas da manhã anterior...

Ele novamente ali! Voltou pra ver a rosa!...
Ou quem sabe, a moça faceira e formosa,
De farto sorriso e os olhos cheios de amor!...
= = = = = =  

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Retida além do horizonte
onde a razão se esvazia,
dos sonhos ergo uma ponte
e prossigo a travessia.
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Recordando Velhas Canções
Ideias erradas 
(samba, 1959) 

Não faça ideias erradas de mim
Só porque eu quero você tanto assim
Eu gosto de você mas não esqueço
De tudo quanto valho e mereço.

Não pense que se você me deixar
A dor será capaz de me matar
De um verdadeiro amor não se aproveita
E não se faz senão aquilo que merece
Depois ele se vai, a gente aceita
A gente bebe, a gente chora, mas esquece.
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José Feldman (Pafúncio no lançamento de um livro)

Era uma vez, em uma cidade onde a fofoca corria mais rápido que o vento, um jornalista chamado Pafúncio. Ele trabalhava para a renomada revista de fofocas "Fuxico & Fofocas", conhecida por suas histórias exageradas e manchetes que faziam até as pedras rirem. Pafúncio, um homem baixo e gordinho, tinha uma habilidade especial: ele conseguia transformar qualquer evento mundano em uma comédia tragicômica.

Um belo dia, a revista recebeu um convite para o lançamento do novo livro de um escritor famoso, o aclamado autor de romances, Aureliano Cabrito. O evento prometia ser o maior do ano, e Pafúncio estava determinado a ser o primeiro a descobrir todos os segredos por trás da obra. Com seu bloco de notas e caneta de tinta permanente (que estava mais permanente do que o próprio Pafúncio gostaria), ele se preparou para o grande dia.

No dia do evento, o salão estava repleto de celebridades. Havia atores, cantores e até aquele influenciador que ficou famoso por postar vídeos de gatos fazendo yoga. Pafúncio, com sua camiseta da revista e uma calça que parecia ter sido escolhida por um toureiro, se espremeu entre os convidados. Ele tinha um plano: entrevistar Aureliano e descobrir se ele realmente escrevia seus livros enquanto fazia malabarismos com laranjas, como alguns diziam.

Quando finalmente encontrou o escritor, ele estava cercado por fãs e jornalistas. Pafúncio, com sua voz de locutor de rádio, gritou: “Aureliano! Como você lida com a pressão de ser um autor tão famoso?” 

O escritor, surpreso, olhou para ele e respondeu: “Com muito café e algumas doses de solidão.”

Pafúncio, em sua mente, transformou isso em uma manchete: “Aureliano Confessa: Café e Solidão São Seus Melhores Amigos!” Mas ele não parou por aí. Com um olhar astuto, decidiu que era hora de fazer perguntas mais inusitadas. 

“E se você tivesse que escolher entre escrever um livro ou dançar tango com um gato, o que você escolheria?” Aureliano, sem saber se ria ou chorava, respondeu: “Bem, eu acho que o gato tem mais ritmo!”

Pafúncio, já rindo da sua própria piada, decidiu que precisava incluir o pato na matéria. Em um momento de pura inspiração, ele começou a imaginar como seria a capa da próxima edição da revista: “Aureliano e Seu Pato: A Revolução Literária da Dança!”

Mas a situação ficou ainda mais extravagante quando a assistente de Aureliano, uma mulher alta e elegante chamada Serena, decidiu que era hora de fazer a tradicional leitura de trechos do livro. Enquanto ela se preparava, Pafúncio avistou uma mesa com um bolo enorme, decorado com a imagem do escritor. 

Sem pensar duas vezes, ele se aproximou e, antes que alguém pudesse impedi-lo, cortou um pedaço generoso do bolo com uma colher de sopa.

Enquanto devorava o bolo, ele ouviu Serena começar a ler um trecho profundo e poético sobre o amor. Com a boca cheia de glacê, ele não pôde conter uma risada alta, que ecoou pelo salão. Todos os olhares se voltaram para ele, e Pafúncio, em sua típica falta de jeito, tentou se justificar. “Desculpem, mas essa passagem é muito doce… assim como o bolo!”

A plateia, entre risadas e olhares de desaprovação, começou a aplaudir a espontaneidade de Pafúncio. Vanessa, sem saber se ria ou se ficava brava, continuou a leitura. Mas ele, agora inspirado, começou a fazer comentários entre os trechos, criando uma espécie de stand-up literário.

“E quando Aureliano diz que ‘o amor é como um pássaro que voa para longe’, eu só consigo pensar: será que ele também dança tango com um gato?” 

A plateia, em um momento de cumplicidade, riu alto e a tensão do evento desapareceu.

No final do lançamento, ele saiu do evento não apenas com um pedaço de bolo na mão, mas com a certeza de que, em meio a tanta seriedade do mundo literário, sempre há espaço para uma boa dose de humor e, é claro, um gato dançarino.

Assim, Pafúncio voltou para a redação, onde escreveu sua matéria com entusiasmo, transformando o lançamento em um dos eventos mais cômicos da cidade. E assim, o jornalista e seu espírito travesso continuaram a fazer história nas páginas da revista, sempre prontos para a próxima fofoca que brotasse como um bolo em uma festa.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

José Feldman (Grinalda de Versos) * 6 *


 

Jorge Ribeiro Marques (A Aurora que não veio)

Ninguém notou quando ele chegou com a mesma roupa surrada e seu saco de aniagem inseparável que lhe servia de travesseiro, sofá e armário.

Esgueirou-se por baixo da mesma marquise, recolheu-se num canto, colocou a muleta ao longo da soleira da loja, ajeitou o que lhe sobrara da perna direita e da garrafa pet de sempre e sorveu o último gole da branquinha.

Noite de Natal. Num frenesi eufórico, que beirava à histeria, pessoas vestidas em papel de presentes circulavam como se estivessem atrasadas, Inexplicável para um mês de dezembro fazer o frio que fazia, mesmo sendo São Paulo, e ainda não eram vinte e uma horas, como acusava o relógio da praça. Vez por outra uma lufada de vento mais forte renovava as folhas e os papéis espalhados de maneira disforme pelas ruas,

Num dos andares do prédio em frente, o pisca-pisca colorido, que parecia marcar o som alto, adornava simetricamente o pinheiro imperial num canto da sala. A todo esse minueto, Chico assistia com olhos de filmadora em câmera lenta, pneumonia mal curada, cíclica, coração débil, que a mendicância itinerante o tornava a cada dia mais fraco, com uma sensação esquisita de impotência. Tinha perdido a guerra contra a cidade grande. 

Tateou os bolsos rotos de sua farda diuturna, procurando uma guimba, sem encontrar. Com o frio aumentando, esgueirou-se melhor em si mesmo.

Invejou três rapazes, um pouco mais à direita, que fumavam um cigarro até aos dedos, de forma e cheiro estranho e de maneira sutil, parcimoniosa, apartando-se depois em meio à escuridão, companheira de suas noites.

Fechou os olhos e transportou-se até São José de Mipibu, viu Maria Rosa ao seu lado, curtindo as cores matizadas da aurora às margens do Rio Itaporanga, seu cachorro Fumaça e mais ninguém. 

A tosse de sempre e uma forte fisgada nas costas cancelaram a sua viagem, fizeram-no se encolher ainda mais e ficar inerte. O silêncio tinha preenchido os seus pensamentos.

O Bar da esquina tinha acabado de fechar para os clientes e Francisco de Assis Ferreira dos Santos, 61 anos, para a vida: Aurora-14 de setembro de 1958 - Ocaso- 24 de Dezembro de 2019.

(Este conto obteve o 2. lugar no Concurso de Contos, adulto nacional, do III Concurso Literário “Foed Castro Chamma”, 2020 – Tema: Aurora)

Fonte: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.

Vereda da Poesia = 149 =


Trova de
RELVA DO EGYPTO RESENDE SILVEIRA
Belo Horizonte/MG

No jogo da sedução,
não nos importa o depois.
– Na sequência da emoção,
conta é o presente: nós dois!
= = = = = =
Soneto de
CARMO VASCONCELLOS
Lisboa/Portugal

Meu primeiro amor

Ah!  Meu primeiro amor, quanta cegueira,
tornou, depois de ti, meu rumo incerto…
Outros banais amores,  só canseira  
trouxeram ao meu peito a descoberto.

Fugazes devaneios, inconsistentes,
fogos-fátuos, inábeis pra aquecer
minhas veias, ora gélidas, dormentes,
ausente o teu calor que as fez ferver.

Neles sempre busquei tua ideal imagem,
sequestrada no tempo pla voragem
que me arrastou por ventos de ilusão…

Guarda este meu poema onde estiveres
pra que lembres, amor, sempre que o leres,
que cativo é de ti meu coração!
= = = = = = 

Trova de
VANDA ALVES DA SILVA
Curitiba/PR

O valor da roça encerra
o beijo do sol ardente
que, fertilizando a terra,
sacia a fome da gente.
= = = = = = 

Soneto de
JOÃO BATISTA XAVIER OLIVEIRA
Bauru/SP

Liberdade

À pequenina flor pedem passagem
as liras das libertas redondilhas
que fazem amplidões das suas ilhas
e os versos se esvoaçam na miragem.

E quantos que desejam maravilhas
largando as mãos que prendem a coragem
nas ilusões que agitam mas não agem,
levando os sonhos às tribos das trilhas...

Desejam ares nos mares sem costas,
os abandonos das peias supostas,
para os grilhões dos fugazes delírios.

Neste meu mundo deveras pequeno
ao horizonte dos olhos aceno
voo nas asas das vestes dos lírios!
= = = = = = 

Trova Premiada de
SÔNIA REGINA ROCHA RODRIGUES
Santos/SP

Chegas assim que anoitece
a sussurrar de mansinho,
como quem diz  uma prece,
uma trova com carinho.
= = = = = = 

Poema de
CASTRO ALVES
Freguesia de Muritiba (hoje, Castro Alves)/BA (1847 – 1871) Salvador/BA

Adormecida

Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! - tu és a virgem das campinas!
"Virgem! - tu és a flor de minha vida!..."
= = = = = = 

Trova Popular

Com pena pego na pena,
com pena quero escrever;
caiu-me a pena no chão       
com pena de te não ver.
= = = = = = 

Soneto Inglês de
JERSON BRITO
Porto Velho/RO

Indomável paixão

O coração, teu belo rastro, anjo, conserva
Essa lembrança tão gostosa, me inebria.
Fazer amor rompendo rédeas, sem reserva
É meu desejo recorrente, há nostalgia´.

Olhares sôfregos, nas mãos inquietude
Blandiciosa a me tomar completamente,
Entre sussurros e arrepios, plenitude,
Paixão indômita exalada... Como é quente!

Na pele, eflúvio de delírio, olores nobres,
Satisfação no riso largo é estampada,
Envergo o manto do prazer com que me cobres,
Verto langor nos braços teus, oh, minha amada!

Preso em teu laço, vejo a vida ter mais cor,
Dia após dia, sorvo em sonho esse sabor.
= = = = = = 

Trova de
CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA (1863 – 1946) Rio de Janeiro/RJ

Qualquer frase acerba e dura
que ela me atira, eu sorrio;
pois encerra tal doçura,
que parece um elogio!
= = = = = = 

Poema de
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Céu nublado

A chuva infindável caiu,
e molhou
a minha alma
quando você partiu...
e eu fiquei aqui, abandonado...

Por assim, “nos depois” em que 
penso em você, as horas param
o tempo estanca, e tudo me leva
a acreditar, e a perceber,
que a vida cruel me sufoca até morrer
= = = = = = 

Trova de
GILSON FAUSTINO MAIA
Petrópolis/RJ

E fica triste a paisagem, 
se a rede não mais balança. 
É que alguém fez a “viagem” 
e agora a rede descansa.
= = = = = = 

Soneto de 
ALFREDO SANTOS MENDES
Lisboa/Portugal

Igualdade

Indiferente ao credo à própria raça,
O ser humano nasce, modo igual.
A sua formação conceptual,
É dádiva de Deus, divina graça!

Não traz no nascimento uma mordaça.
Um sórdido ferrete, ou um sinal!
É apenas um ser, e tal e qual,
Igual a qualquer ser que nos enlaça!

O seu direito à vida, ao mundo, enfim!
Ao colo maternal, ao frenesim,
É ganho mal acaba de nascer!

E toda a dignidade adquirida,
Só deverá um dia ser perdida…
No dia em que seu corpo fenecer!
= = = = = = 

Trova de
ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN (1951 – 2013) Natal/RN

Deus a nada nos obriga,
são livres os passos meus;
porque Deus jamais castiga,
se castigasse... Meu Deus!!!
= = = = = = 

Soneto de 
HUMBERTO RODRIGUES NETO
São Paulo/SP

Teatro da vida

Assim como acontece no teatro,
a vida também guarda a mesma média,
pois mescla ao riso da alegria nédia
os dissabores de um momento atro.

Da vida somos, pois, o anfiteatro
de co-partícipes de uma comédia,
ou dos distúrbios de uma vil tragédia
que às vezes nos atinge a três por quatro.

Mas o destino, em condição expressa,
execra aquele ator que age à pressa,
toldando o brilho das encenações.

Não transige com falhas ou senões,
pois Deus, que é o próprio Diretor da peça
não quer saber de artistas canastrões!
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Tristonha morada, guarda
de meu bem sua figura,
que os meus suspiros rodeiam
sua triste sepultura.
= = = = = = 

Spina de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

As Ondas do Mar 

Refluxo dançante flui
na calmaria agitada,
reflete leves miragens

em um oásis com imagens
reais. A voz gentil, maviosa,
embala o balé de folhagens
na noite quente. Na melodia 
chuvosa é luz em tatuagens. 
= = = = = = 

Trova de 
ABÍLIO DE ALVARENGA LESSA FILHO
Belo Horizonte/MG

Tu não falaste. O piano
é que me conta os segredos
que te traem, por engano,
pelas pontas de teus dedos…
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Saudade

Saudade é o amor que fica e nos conforta
depois que a gente perde, com pesar,
o nosso ser amado e não suporta
a ausência triste que nos quer matar!

E para mim é a luz que entra na porta
e não permite o escuro me cegar;
mas se o amargor me vem, é ela que o exorta,
e põe consolo amigo em seu lugar!

Assim, acho até bom sentir saudade
e a deixo me envolver bem à vontade,
só para amenizar alguma dor...

Pois o seu gosto é meio adocicado
e nunca me deixou nem agitado...
Saudade para mim é afim do amor!
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Anoitece. Bela e nua, 
começa a rosa a orvalhar-se... 
– Um raiozinho de lua 
virá com ela deitar-se.
= = = = = = 

Gabinete de
OTACÍLIO BATISTA
São José do Egito/PE (1923 – 2003)

     O povo deseja ouvir
     Um Gabinete bonito;
     Poeta, só acredito
     Se você não me mentir.
     Trate de se prevenir
     Para poder cantar bem
     Eu comprei um cartão
     Para viajar no trem:
     Sem cartão ninguém vai,
     Sem cartão ninguém vem!
     Vai e vem, vem e vai,
     Vem e vai, vai e vem.
     Quem não tem o que eu tenho,
     Morre danado e não tem!
     Quem estiver com inveja,
     Se esforce e faça também ...
     Cavalo bom é ginete;
     Quem não canta Gabinete,
     Não é cantor pra ninguém!
= = = = = = 

Aldravia de
MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA
Ipatinga/MG

chuva
cai
música
embala
sono
= = = = = = 

Soneto de
JOSÉ XAVIER BORGES JUNIOR
São Paulo/SP

Divina peça

És todas as lembranças de alegrias,
És todos os sorrisos que sorri,
És todos os ocasos dos meus dias,
És todos os carinhos que acolhi.

És todo esse mistério que vivi,
És luz, escuridão, és harmonias,
És fel que pela vida assim sorvi,
Buquê das minhas taças tão vazias...

És doce salvação que me condena,
A aurora que precede o triste ocaso,
Perdão que hoje me obriga a cumprir pena,

Botão que não vingou neste meu vaso,
O pano que desceu na última cena,
Da peça que encenamos ao acaso…
= = = = = = 

Trova de
LARISSA LORETTI
Rio de Janeiro/RJ

É tão presente o passado 
em que te amei, de verdade, 
que não aceito o recado 
escrito pela saudade. 
= = = = = = 

Poema de 
CECÍLIA MEIRELES
Rio de Janeiro/RJ, 1901 – 1964

Mar em redor

Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:
música perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas...

Esqueceste a sombra no vento.
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.

Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.
= = = = = = 

Trova Humorística de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Ó musa, se eu te perdi
por caminhos tão dispersos,
junto os pedaços de ti
espalhados nos meus versos!
= = = = = = 

Hino de 
Crato/CE

Flor da terra do sol
Ó berço esplêndido
Dos guerreiros da "Tribo Cariri"
Sou teu filho e ao teu calor
Cresci, amei, sonhei, vivi

Ao sopé da serra, entre canaviais
Quem já te viu, ó não te esquece mais!

Para te exaltar, ó flor do Brasil
Hei de te cantar, meu Crato gentil
Ó coração do Ceará
Comigo a nação te cantará!

No teu céu lindo brilha estrela fúlgida
Que há cem anos norteia o teu porvir
Crato amado, idolatrado
Teu destino hás de seguir

Grande e forte como nosso verde mar
Bendita sejas, ó terra de Alencar!
= = = = = = 

Trova de
DÁGUIMA VERÔNICA
Santa Juliana/MG

Tuas cartas eu rasguei,
recortei em mil pedaços,
cada bilhete eu colei
desenhando os teus abraços.
= = = = = = 

Soneto de 
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Ouro Preto/MG, 1870 – 1921, Mariana/MG

Soneto da morte

Entre pilares podres e pilastras
fendidas, te revi subitamente;
eras a mesma sombra em que te alastras,
feita carícias de uma face ausente.

Eras, e me afligias. Tormentosa,
vi-te crescer nos muros desabados.
Cruel, cruel; contudo, mais saudosa,
mais sensível que os céus e os descampados.

Bolor, pátina espessa, calmaria,
vi-te a sofrer no fundo da cidade
como um grande soluço percutindo

sobre os olhos, as mãos e a boca fria.
E de repente um grito de saudade.
Depois a chuva, sem cessar, caindo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Por mais que o orgulho insista
peço a Deus a quem me entrego
que nas horas da conquista
eu saiba despir meu ego.
= = = = = = 

Recordando Velhas Canções
NINGUÉM CHORA POR MIM 
(bolero, 1961) 

Mas se um dia eu tiver que chorar 
Ninguém chora por mim 

Hoje a notícia correu 
Vieram logo me dizer 
Mas a verdade é que eu 
Já estava farto de saber. 

Um comentário é fatal 
A um grande amor que chega ao fim 
E quem sou eu afinal 
Para mudar coisas assim. 

Os meus problemas são meus 
Deixem comigo a solução 
Os meus fracassos a Deus 
É que eu revelo quantos são. 

Um conselho é tão fácil de dar 
Qualquer um cita exemplos no fim 
Mas se um dia eu tiver que chorar 
Ninguém chora por mim.
= = = = = = = = = = = = = 

José Feldman (Visitas ao Médico)

 Visitar o médico é uma daquelas experiências que pode ser tanto um drama quanto uma comédia, dependendo da sua perspectiva. A sala de espera, por exemplo, é um espaço que parece estar fora do tempo e do espaço, onde a normalidade dá lugar a um espetáculo de peculiaridades humanas.

Logo ao entrar, você é recebido por um cheiro familiar de desinfetante misturado com um toque sutil de ansiedade. A primeira coisa que se vê é a recepcionista, que tem a habilidade mágica de fazer a fila de espera parecer uma maratona. Ela é a guardiã da porta do conhecimento médico e, ao mesmo tempo, a porta-voz da boa e velha burocracia. Com um olhar que poderia congelar o mais corajoso dos pacientes, ela diz a frase que já virou um clássico: “O médico já vai atender”.

E ali está você, sentado em uma cadeira que parece ter sido projetada para torturar, cercado por uma variedade de personagens que poderiam facilmente ser protagonistas de um filme. 

À sua esquerda, uma senhora idosa que, com certeza, já passou por mais consultas do que você pode imaginar. Ela está equipada com um caderno e uma caneta, anotando tudo o que o médico diz, como se estivesse escrevendo um best-seller sobre “Como Sobreviver a Consultas Médicas”. A cada espirro e tosse, ela lança olhares severos, como se estivesse julgando a saúde de todos ao redor.

À sua direita, um jovem que parece recém-saído de uma festa “rave” tenta esconder o fato de que está ali por pura pressão social. Ele está com a cara de quem acabou de descobrir que o “mal-estar” que sentiu na noite passada não era apenas uma ressaca. Enquanto isso, ele observa nervosamente os outros pacientes, como se estivesse em um episódio de “Survivor”. A cada chamada do médico, ele dá um pequeno pulo, como se temesse que seu nome fosse o próximo.

E então, a conversa na sala de espera começa. O “Hipocondríaco” é o verdadeiro protagonista. Ele olha para o seu celular e faz uma pesquisa sobre os sintomas que não tem, mas que, se você perguntar, ele descreverá com detalhes que fariam qualquer médico levantar uma sobrancelha. 

“Você já sentiu essa dor estranha aqui?” ele pergunta, apontando para a parte mais improvável do corpo. Os outros pacientes, em sua maioria, tentam ignorá-lo, mas é impossível não se deixar levar pela espiral de paranoia que ele cria.

Quando o médico finalmente o chama, você tem a impressão de que a sala de espera inteira respira aliviada, como se um resgate tivesse ocorrido. 

Ao entrar no consultório, você se depara com o “médico zen”, que parece mais um guru do que um profissional de saúde. Ele está cercado por plantas, livros de autoajuda e um difusor de óleos essenciais que exala um aroma que poderia facilmente ser confundido com um spa. 

“Como você se sente hoje?” ele pergunta, enquanto você tenta encontrar as palavras entre a serenidade da sala e a ansiedade que lhe acompanha.

Enquanto você fala sobre seus sintomas, ele escuta com um olhar que mistura interesse genuíno e uma leve confusão, como se estivesse tentando resolver um quebra-cabeça. 

Quando você menciona que a dor é “como uma picada de abelha”, ele acena, como se tivesse acabado de descobrir a resposta para a última charada do jogo. 

“Vamos fazer alguns exames”, ele diz, e você se pergunta se isso significa que ele vai te transformar em um experimento de laboratório.

Após a consulta, você volta à sala de espera, onde o “Hipocondríaco” agora está em uma fase de autodiagnóstico avançado. Ele discute com a senhora idosa, que, para sua surpresa, parece estar concordando com suas teorias mirabolantes. É como assistir a um documentário sobre fauna e flora, mas com muito mais drama. A cada espirro, ele se inclina mais perto dela, em busca de uma validação que nunca chega.

Finalmente, chega a sua vez de sair do consultório. Você percebe que a sala de espera tem sua própria linguagem. Os olhares trocados entre os pacientes são como um código secreto que apenas eles entendem. Há um entendimento tácito de que todos ali estão enfrentando um mesmo desafio. E, enquanto você se despede do “Médico Zen” e sai do consultório, não consegue deixar de pensar que, apesar do estresse, a visita ao médico é uma verdadeira comédia humana.

Ao se encaminhar para a saída do consultório, você se depara com a recepcionista mais uma vez. Ela sorri, mas, ao mesmo tempo, parece estar esperando que você diga algo extraordinário. 

“E aí, tudo certo?” pergunta, como se a resposta pudesse mudar o curso da medicina. E você, em um momento de reflexões profundas, responde: “Sim, tudo ótimo, exceto por ter que voltar aqui na próxima consulta”.

E assim, você deixa o consultório, levando consigo não apenas receitas e conselhos médicos, mas também uma coleção de histórias. 

Visitas ao médico são, no fundo, uma mistura de comédia e drama, onde cada paciente é uma peça única no grande quebra-cabeça da saúde.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.