segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Febo Vitoriano (Como declamar poesias?)

(Febo Vitoriano, pseudônimo de Rommel Werneck*)
 

Saudações, Ilustre Plêiade e Leitores!

Segue abaixo meu texto sobre esta prática tão bela retomada no meio literário.

A POESIA

A poesia é o gênero literário em que a expressão do estado da voz lírica se encontra num tempo presente que não foi passado e nem será futuro, o Presente Eterno, ou seja, a vitória da atemporalidade sobre os ruídos destruidores do tempo. Para isto acontecer, é necessário que o escritor selecione bem as palavras e emita sua mensagem de modo indireto e subjetivo, ou seja, o texto precisa ser construído racionalmente e com a graciosidade estética que exige.

Sendo o texto literário de uma construção diferente dos nossos diálogos cotidianos e de textos como bula de remédio, reportagem jornalística etc, convém que a recitação literária também seja decorada esteticamente por entonações, gestos, fundo musical etc, afinal, a leitura de uma notícia de jornal em voz alta é muito diferente da leitura de um soneto de Camões no mesmo tom de voz.

TIPOS DE DECLAMAÇÃO

Estas são orientações simples e pessoais que decidi expor aqui, mas que desmitificam lendas literárias das teorias do achismo. A regra geral é ler com confiança seguindo a pontuação, dando um tom artístico conforme pede o poema e, para isto, temos que ter o domínio do conteúdo e da forma também, afinal, ler um rondel é diferente de um soneto já que o primeiro apresenta refrão etc.

DECLAMAÇÃO SIMPLES

Com a intensa propagação e oficialização da poesia marginal, surgiu o mito de que a declamação simples lida é errônea, ultrapassada e sem graça. Afirmar isto seria o mesmo que dizer que os versos regulares também são ultrapassados e todos sabem que nossa luta é contra isto!

Uma declamação simples não consiste em ler em voz alta um poema somente, a graciosidade está na adoção de uma voz dramática para o texto assim como expressões faciais e gestos coerentes que são muito bem-vindos. O declamador lê na frente de todos, mas entoa como se estivesse cantando para si mesmo publicamente. Em um segundo, é possível ler o verso e declamar parte dele olhando para a assistência já que parte dele foi decorada. Pode-se utilizar uma pasta ofício, um livro ou mesmo um pedaço de papel na mão ou mesmo posicionados num ambão, a outra mão pode ficar com o microfone ou fazendo alguns gestos no caso de microfone no pedestal.

Para este tipo de leitura não são recomendados textos longos, pois seria muito cansativo para o espectador. O declamador não precisa utilizar uma vestimenta ou maquiagem toda especial, pode estar apenas um pouco estiloso por estar num sarau. 

DECLAMAÇÃO DECORADA

Consiste em declamar um texto sem ler o que permite mais gesticulação e expressão facial. Recitar um poema decorado sem expressão nenhuma é o mesmo que fazer uma leitura ruim, pois o que merece destaque não é o simples ato de ter decorado o texto e recitar sem ler, o que importa é que decorando pode-se utilizar uma postura mais expressiva. Textos longos são bem-vindos.

DECLAMAÇÃO CÊNICA

Trata-se do caso anterior em um degrau a mais. Tudo que for utilizado para solenizar sua performance deve ter uma razão, regra que, aliás, já serve lá para os outros tipos. A declamação pode ser lida (desde que o ato de ler seja proposital) ou decorada como ocorre com mais frequência. Pode-se utilizar uma música de fundo, um figurino especial, uma entrada silenciosa ou musical, mesclar-se dança, recitar em grupo etc

Esta forma de recitação é perfeita para textos longos, teatrais ou que contenham diálogo, alegorias etc, pois não cansará o público e será uma bela união entre poesia e o gênero dramático e também com as outras artes, como a dança e a moda, além do mais, poemas longos permitem uma entrada triunfal, música de fundo e vários recursos que um poema curto como haicai não permite, afinal, não é agradável ver uma pessoa encenar um poema curtíssimo, porque nem temos o tempo de sentir a intensidade do texto e a dramaticidade exposta.

Claro que é possível realizar algo cênico com haicais e afins, mas evita-se a maioria dos recursos como sonoplastia, figurino etc. Por texto longo, entende-se algo a partir do tamanho de um soneto (14 versos), uma vez que a declamação cênica pode ser mais lenta para dar espaço aos gestos, movimentações e profundidade do poema.

OBSERVAÇÕES

-Antes de declamar, convém identificar o texto com o autor e o título. A etapa citada pode ser em forma dialogada em casos de uma comunidade literária pequena, porque é uma forma de contar como se chegou ao texto, Uma auto-apresentação também pode acontecer, mas há a opção de realizá-la entre o primeiro e o segundo texto ou mesmo no fim. Termina-se a leitura fazendo um gesto, aceno de cabeça, transformação do tom da voz etc ou dizendo o nome do autor.

- Alguns afirmam que deve haver uma compatibilidade do poema com o declamador, é a crença de que o declamador deve concordar em gênero, número e grau com o poema, portanto, uma mulher não poderia ler um texto de eu lírico masculino, nem uma pessoa jovem recitar um texto de um eu lírico aparentemente mais velho etc Realmente, soa estranho quando não há tal relação, entretanto, se um escritor homem pode escrever como se fosse eu lírico feminino assim como acontecia na Idade Média, por que não podemos hoje declamarmos um belo poema independente do eu-lírico ser isto ou aquilo? Nestes casos o declamador pode deixar a voz um pouco mais aguda e a declamadora pode deixar mais grave e séria, é uma forma de neutralizar quem declama.

- Embora em desuso, mas nunca abolida, a prática de bater os pés nas sílabas fortes é muito criativa, didática e em excelente caimento para todos os tipos citados acima. Ela tem origem nos poetas antigos que seguiam o sistema greco-latino de metrificação denominado pé justamente por esta razão. Agora em que estão considerando ultrapassada a regularidade métrica, creio que não há nada mais pedagógico e cultural que bater os pés nas declamações de sonetos na 6ª e 10ª sílabas, por exemplo, caso dos heroicos, porque é uma forma de mostrar a autenticidade dos versos regulares.

- Talvez, o tipo de verso mais fácil de errar é aquele que contém o cavalgamento, recurso poético também denominado enjambement e encadeamento, que consiste em transferir a parte final da construção sintática para o verso posterior por razões métricas e rítmicas. Observe:

“Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.”
Olavo Bilac

Neste caso, leríamos sem deixar pausa. A pausa, nós utilizamos entre as estrofes e os símbolos de pontuação.

- Além das observações expostas acima, vale lembrar que é interessante conhecer e compreender o texto antes de ler em público, eliminar as dúvidas etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Declamar em saraus é uma prática maravilhosa que merece criatividade, dedicação e lirismo. Seria muito interessante se, em eventos não-literários, existisse uma ou outra declamação como parte da abertura assim como já se faz com a dança, por exemplo, em bailes de formatura, debutante, casamentos, dever-se-ia pensar mais na possibilidade de executar performances literárias bem cuidadas em tais situações.
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* O AUTOR
Febo Vitoriano, pseudônimo de Rommel dos Santos Andrade Werneck (1987), natural de São Caetano do Sul/SC. Graduação em Letras, Especialização em Língua Inglesa, Especialização em Literatura de Língua Inglesa. Cursando Pedagogia. Editor-geral e cofundador do blog Poesia Retrô. Presidente Emérito do Picnic Vitoriano São Paulo. Professor na rede municipal de Santo André, onde reside. Membro ocupante da cadeira nº 29 da Academia Brasileira de Sonetistas, tendo como patrono Álvares de Azevedo.

Conheçam o blog abaixo, além de seu conteúdo, há também e-antologias para baixar gratuitamente.

Fonte:
Poesia Retrô
https://poesiaretro.blogspot.com/2010/08/como-declamar-poesias.html

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 8: Discórdia familiar

Dona Ana permaneceu por longos dias hospitalizada. E, nesse meio tempo, Isadora se preparava para a tal conversa com o pai. 

Ocupando o espaço da mãe à beira do fogão, ela preparava as refeições do senhor Antônio que, mesmo com a esposa correndo riscos de vida, seguia como de costume, sumindo de casa, sabe lá Deus por onde e com quem.

O velho chegou atrasado para a janta. Com as botas embarradas e um sorriso incomum estampado na face, que quase sempre se mantinha fechada e sombria.

Cara de homem que havia acabado de sair dos braços de alguma mulher.

Com raiva, Isadora arrumou a mesa e serviu o velho. Mas, tomada por preocupações, não conseguiu provar da refeição.

- Come, “fia”. - disse ele.  

- Pareces feliz. Alguma boa notícia sobre o estado de saúde da mãe? Ligaste ou foste vê-la? - perguntou Isa, controlando a irritabilidade.

-  Não. Passei o dia ocupado. Amanhã vou até o “hospitar".

- Desculpa, meu pai, não quero faltar com o respeito, mas o senhor parece muito feliz para quem está com a esposa hospitalizada. Da onde vens? Da casa de alguma amante, china, mulher da vida? Não sei qual o melhor termo a ser usado nesse tipo de situação.

As suspeitas da filha acenderam em seu Antônio uma raiva ardida que, em segundos, o deixou corado, pegando fogo.

Cheio de ira, imediatamente ele atirou o prato servido na parede e disparou: - Não te criei pra "falá” assim comigo. Só não puxo o rebenque porque ainda não tinha falado “arto” comigo. Que isso nunca mais se repita. Porque se isso acontecer de novo, te darei uma coça de criar bicho. Vai pro quarto! - gritou ele, com os olhos arregalados.  

-  Não lhe faltei com respeito, meu pai. E jamais faltarei. Fui muito bem educada por minha mãe. Já, o senhor, entende pouco de educação e respeito. Nunca tratou sua mulher com a devida deferência. A faz trabalhar como se ela fosse sua escrava. Por certo, a trai com outras mulheres. E o pior, mesmo perante uma situação que não muda, ela insiste em aceitar todas essas humilhações, submissa ao seu egoísmo desmedido.

Isadora não se calou, e o senhor Antônio, sem paciência, fez menção de puxar o cinto.

- Isso, pai, bate! Nenhuma surra pode  doer tanto em meu corpo ou em minha alma quanto a dor que fazes minha mãe sentir. - disse a guria, sem temores.

O velho recuou e repetiu a ordem:

- Vai pro quarto e te ajeita, guria! - disse, saindo porta afora.

Isadora obedeceu e, aos soluços, deixou o pranto fluir...    

No peito dos homens machistas, sentimentos como amor verdadeiro e fidelidade, passam longe. Eles pensam ser os donos do mundo, e vivem como se fossem superiores a todas as mulheres, sejam elas suas esposas ou filhas.

São xucros. Habituados a esses costumes,  não aceitam cabrestos. E preferem morrer a mudarem seus comportamentos. O modelo patriarcal ainda vigente na sociedade em que vivemos, está sempre a colocar a situação do ser feminino em desvantagem” - pensou ela, no escuro do seu quarto, mergulhada no breu de suas emoções. 
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora.

Concurso de Trovas de Natal-RN (Prazo: 30 de novembro)


Âmbitos Nacional/Internacional (Veteranos e Novos Trovadores para L/F)

e Estadual 

Tema L/F: VINGANÇA(S)

Tema Humor: CAMA(S)
 
Âmbito Interno - somente para associados ATRN e UBT/Natal-RN

Tema L/F: SILÊNCIO(S)

Tema Humor: VELHACO(S)
 
1. Apenas UMA TROVA por participante;

2. A palavra tema deverá constar na Trova;

3. No âmbito nacional/internacional, em língua portuguesa, deverá haver menção à categoria (veterano ou novo trovador);

4. Novos trovadores concorrerão apenas com Trova L/F, âmbito Nacional/Internacional;

5. Enviar a identificação com nome, endereço, telefone e e-mail;

6. A participação será por E-mail:
 
6.1. Para o âmbito Nacional / Internacional Língua Portuguesa

Por e-mail: 
A/C de Magnus Kelly

magnuskelly@yahoo.com.br

6.2. Para o âmbito Estadual

Por e-mail:
A/C de Jerson Brito

jersonbrito.pvh@gmail.com
 
6.3. Para o âmbito Interno
 
Por e-mail: 
A/C de Marciano Medeiros

editorabisel@gmail.com

7. Prazo máximo para recebimento das trovas: 30/11/2023.
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domingo, 13 de agosto de 2023

Versejando 120

 

Monsenhor Orivaldo Robles (Desprendimento)

 Foi no tempo em que as moedas tinham grande valor. Muito maior que o dessas de agora. Alguém se lembra daquela de mil réis, que, na nossa infância, dava para comprar vinte balas toffee de leite condensado? Não balinhas mirradinhas, não; eram balas mastigáveis, grossas, bastas. Chegavam a dar dor nas mandíbulas de tanto que demoravam a acabar. Não vi nenhuma dessas moedas ainda dourada e brilhante, como deviam todas ter saído, com certeza, da Casa da Moeda, onde eram cunhadas. Mas logo eram encaminhadas para o comércio, seu destino. Passavam de mão em mão. Não é à toa que a gente considera o dinheiro uma coisa suja. As poucas moedas de mil réis nas quais conseguimos pôr as mãos traziam a data de fabricação, sempre um ano passado havia muito. Carregavam as marcas do seu longo tempo de uso. Eram encardidas de um jeito que nem um litro de Kaol conseguiria limpá-las. Mas eram as nossas moedas mais valiosas. Crianças dificilmente ganhavam uma.

Pois foram duas dessas que, lá num dia de outrora, um pai deu ao seu garotinho em manhã de domingo. Uma destinava-se à oferta na igreja, outra era para o sorvete, depois da missa. Lá se foi o menino, saltitante e descuidado, a brincar com sua pequena fortuna. Até que, de repente, aconteceu o previsível. Não deu outra: caiu-lhe da mão uma delas e rolou pela calçada. Antes que a pudesse apanhar, ela sumiu num bueiro. Ele virou-se para o pai com ar de decepção: “Ah, papai, que pena! A moeda da oferta caiu no buraco”.

Os simpáticos leitores devem conhecer a historieta. Não é mais do que uma anedota, mas encerra muitas lições de vida.

Demonstra quanto pesa em nós o barro de que fomos fabricados. Bobagem atribuir ao pobre Gérson, o canhotinha de ouro, a invenção da lei de levar vantagem em tudo. Ele só foi usado pela indústria tabagista para proclamá-la em voz alta. Levar vantagem é uma herança que trazemos desde o velho Adão. Vem lá das nossas origens. De quando nossos ancestrais ainda moravam em árvores.

Voltando ao garoto, há quem aplauda sua suposta esperteza. Por que chamamos esperteza ao que não passa de cupidez (cobiça)? Já sei; alguém dirá que qualquer criança faria o mesmo. Isso vem provar que não nascemos naturalmente orientados para o bem, como alguns pensam. Se os pais não interferirem, a coisa descamba. Daí a importância de educarem os filhos para que aprendam a praticar o que é correto, não o que é gostoso.

Outro ensinamento da historieta é que os pais devem orientar os filhos para a partilha dos bens que recebemos. A moeda da oferta é valioso reforço para a abertura do coração. Há quem erroneamente pense que na igreja se dá esmola. Pelo contrário; se reconhece que Deus nos dá os bens para que aprendamos a partilhar. Se Ele é Pai, não aceita de bom grado que a algum filho falte o necessário. Se nós somos irmãos, não podemos admitir que alguém sofra necessidade. A oferta na igreja é uma pequena, mas poderosa lição. Repetida, ao longo dos anos, ajuda a criar o hábito de lutar por uma sociedade mais fraterna e igual entre nós.

O lar é o ambiente próprio onde formar os filhos no desprendimento. Para orientá-los na prática dessa virtude que leva a apreciar o bem comum antes que o bem particular. Virtude que me leva a considerar tão importante e desejável para o outro aquilo que considero importante e desejável para mim.

Fonte:
Portal do Rigon. Em 21/06/2014.
https://angelorigon.com.br/2014/06/21/desprendimento/

Daniel Maurício (Poesias da Madrugada) I


Agora
não
“caio mais
na tua onda"
é que
com a vida
tive
que aprender
a surfar.
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Amanheço em você.

De mansinho
a noite escapa
pela fresta
da cortina
e o sonho inacabado
por você, menina,
deixei guardado
embrulhado na
florida fronha.
= = = = = = = = = 

Ao alcance
da língua
ou
a amizade
permanece
ou
num lance
se finda.
= = = = = = = = = 

Cessaram
as 
procuras
pois você
é
a versão
definitiva
do meu
amor
= = = = = = = = = 

Com as folhas
aprendi
a ler o tempo
das coisas.
Quando senti
que querias ir
disfarcei
um sorriso
e deixei
escapar
um até mais.
= = = = = = = = = 

Contemplação.
Embora
as palavras
queimem
minha língua,
ante a beleza
do amor
silencio
o meu olhar.
= = = = = = = = = 

Desejo

Mesmo
com o passar
do tempo
o teu olhar
cioso
ainda ronrona
em minha pele.
= = = = = = = = = 

Do
sapato
antigo
florescem
lembranças
dos caminhos
percorridos.
= = = = = = = = = 

Enquanto
as lembranças
amarelam
com o tempo
guardo o nosso amor
feito relicário
no meu peito
cumprindo
a promessa
que um dia
eu te fiz.
= = = = = = = = = 

E quando
ela caiu
em si
o amor
que sentia
por mim
já tinha se
enraizado
por dentro.
= = = = = = = = = 

Mais alto
do que a pipa
voam
os sonhos
de menino
recordo
com saudades
das lindas tardes de
domingo.
= = = = = = = = = 

Na
explosão
do 
amor
a flor
mostra
o seu
rosto.
= = = = = = = = = 

Não quero mais
devolver
o sorriso
que emprestastes
ao meu rosto
digas
que pra sempre
tu ficarás.
= = = = = = = = = 

No
banco
vazio
meus
olhos
enxergam
saudades.
= = = = = = = = = 

No mar de
hortênsias
a abelha feliz
mergulha
sem medo
e nas ondas azuis,
em paz
segue sua rota
em segredo.
= = = = = = = = = 

0 silêncio
do moribundo
doía na carne
mas os gritos
da sirene
sangravam
na alma.
= = = = = = = = = 

O tempo
enrijece
o cerne
dos homens
em
seus
desertos.
= = = = = = = = = 

Quando
te entreguei
meu coração
era pra que tu
morasses dentro
e não pra que
o levasses
no adeus
me deixando
um vazio imenso.
= = = = = = = = = 

Sem
meias palavras
prefiro as tuas
que vem nuas
e batem
em meu rosto
feito
um beijo
gelado.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Daniel Maurício. Poesias da madrugada. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Contos das Mil e Uma Noites (A douta escrava Simpatia)

Conta-se que vivia certa vez em Bagdá um mercador muito rico e cumulado com honrarias e privilégios. Mas Alá o privara de uma felicidade: Não tinha filho - nem mesmo uma filha. Na medida em que envelhecia e o peso dos anos encurvava-lhe as costas, aumentava seu desespero por nada conseguir de suas numerosas esposas. Um dia, porém, após ter distribuído esmolas e visitado santos e rezado com fervor, deitou com sua mulher mais jovem e, pela graça de Alá, engravidou-a. No fim de nove meses, a mulher deu à luz um menino tão lindo quanto um pedaço de lua. A título de agradecimentos a Alá, o mercador alimentou os pobres, as viúvas e os órfãos durante sete dias, e chamou seu filho Abu-Husn. 

A criança foi alvo de todos os cuidados como uma joia rara. Quando atingiu a idade em que se começa a aprender, deram-lhe instrutores de todas as ciências e artes. Abu-Husn tornou-se assim ao mesmo tempo um adolescente instruído e de mágica beleza. 

Sua graça juvenil, o frescor de suas faces, as flores de seus lábios foram assim celebrados pelo poeta: “Embora a primavera já tenha passado sobre as roseiras, aqui há botões que ainda não abriram.  Neste agradável jardim que não conhece as mudanças, Abu-Husn reinará com dois cetros reunidos: a beleza e a graça.

Abu-Husn iluminou assim os últimos anos de seu velho pai. Quando o pai sentiu aproximar-se o termo inelutável, chamou a si Abu-Husn e disse-lhe: “Meu filho, a minha hora chegou. Lego-te grandes riquezas que devem durar por toda a tua vida e a de teus filhos e netos. Aproveita-as sem excesso, agradece ao Doador e sê moderado e bom para com todos.” E o santo homem morreu. 

Abu-Husn quis seguir os conselhos do pai, mas seus camaradas levaram-no para outros caminhos. Frequentou músicos e dançarinas, seguiu todos os caprichos, gastou imoderadamente - e, um dia, acordou para verificar que só lhe restava de todas as suas riquezas uma única jovem escrava.

Agora, parai, e admirai os caminhos do destino. Decretou ele que essa jovem seria a maravilha suprema das mulheres do Oriente e do Ocidente. Era chamada Simpatia. E nunca um nome foi mais apropriado a seu dono. Era ereta como a letra Alef. Sua boca parecia ter sido selada por Soleiman para nela guardar as pérolas mais preciosas. Seus seios eram como duas romãs separadas por um vale de sombras e luzes acima de um umbigo que parecia o centro de um planeta. Deixava impressa no divã a marca de curvas suaves. 

Disse dela um poeta: “Se ela aparecesse aos pagãos, largariam seus ídolos e a adorariam. E se tomasse banho de mar, ao contato de sua doçura, a água perderia seu sal e viraria doce.

Tendo verificado que estava arruinado, Abu-Husn caiu numa desolação que lhe roubou o apetite e o sono e pos-lhe a vida em perigo. Mas sua escrava Simpatia decidiu tudo fazer para salva-lo. Vestiu-se tão elegantemente quanto pode, usando o que lhe sobrava de joias, e procurou seu amo. 

“Para por à fim a tuas desgraças com minha ajuda,” disse-lhe. “Leva-me ao califa Harun Al-Rachid e oferece-me a ele por 10 mil dinares. Se ele achar o preço alto, pede-lhe que me examine para dar-se conta de que valho mais do que isso.” 

Na sua devassidão, Abu-Husn nunca reparara nas dádivas raras de sua bela escrava. Levou-a ao califa. O califa interessou-se por ela e perguntou-lhe: - Como te chamas? 

- Meu nome é Simpatia. 

– Ó Simpatia, és mesmo instruída e podes citar os ramos de saber nos quais te destacas? 

- Meu amo, estudei a sintaxe, a poesia, o direito, a música, a astronomia, a aritmética, a jurisprudência. Conheço de cor o Livro Sublime. Sei o número de suras, versículos, vocábulos, letras de que se compõe. Conheço as leis e o dogma. Conheço a lógica, a arquitetura, a filosofa. Sei compor poemas. Além disso, sei cantar, dançar e toco o alaúde e a flauta. Quando, vestida e perfumada, caminho balançando os quadris, posso matar. Quando toco em alguém dou-lhe a vida, e quando me afasto dele dou-lhe a morte. 

O califa ficou assombrado e disse a Abu-Husn: “Vou mandar os mestres da ciência porem à prova tua escrava. Se ela vencer, não apenas te darei 10 mil dinares como te cumularei de honrarias. Se ela fracassar, continuará a ser tua.” 

O califa mandou reunir os maiores sábios, poetas, gramáticos, médicos, astrônomos, filósofos, jurisconsultos e teólogos. À ordem do califa, sentaram-se todos em uma roda, enquanto Simpatia pôs-se no meio deles, sorridente e com o rosto coberto com um véu transparente. Dirigindo-se à assembleia, declarou Harun Al-Rachid: “Fiz-vos comparecer aqui, ó sumidades, para que examineis esta adolescente quanto à variedade e profundidade de seus conhecimentos. Não vos acanheis em exibir vossa própria A capacidade e erudição.” 

Todos os presentes inclinaram-se e, pondo as mãos sobre os olhos e as frontes, responderam: “Obediência a Alá e a vós, ó Comandante dos Fiéis.” 

As perguntas mais diversas choveram sobre Simpatia. A todos respondeu com infalível segurança e exatidão. Eis algumas das perguntas e respostas mais notáveis: 

– Quais são as principais obrigações de nossa religião? 

- As obrigações indispensáveis de nossa religião são cinco: a profissão de fé (“Não há Deus senão Alá, e Maomé é o mensageiro de Alá”), as orações, a caridade, o jejum de Ramadã e a peregrinação a Meca. 

- Quais os atos de fé mais meritórios? 

- São seis: recitar as orações, distribuir esmolas, jejuar, visitar Meca, combater os maus instintos e participar da guerra santa. 

- O que é guerra santa? 

- É a guerra sustentada contra os descrentes quando o islã está em perigo. Só pode ser uma guerra defensiva. Armado, o crente deve andar para a frente e nunca recuar. 

– Qual é o fruto ou a utilidade das orações? 

- A verdadeira oração não tem utilidade terrena. Deve ser considerada apenas como um laço espiritual entre a criatura e seu Criador. E suscetível de produzir dez resultados imateriais: ilumina o coração, alegra o compassivo, irrita o demônio, atrai a piedade, expulsa o mal, preserva da aflição, protege contra os inimigos, fortalece o espírito vacilante e aproxima o escravo de seu Mestre e Senhor. 

- Fala-nos do jejum. 

- O jejum consiste em abster-se de comer, beber e ter relações sexuais todos os dias do mês de Ramadã, do levantar ao por-do sol. É bom também evitar toda conversa fútil e ler exclusivamente o Alcorão. 

- Qual é o valor do quinhão do pobre que todo crente deve pagar? 

- Se o crente possui até vinte dirhams de ouro, nada deve. Acima dessa importância, a proporção devida é de três por cento. Assim, um carneiro é pago a cada cinco camelos, um camelo a cada vinte e cinco camelos, e assim por diante. 

– Podes dizer-nos o que é uma coisa, a metade de uma coisa e menos que uma coisa. 

-O crente é uma coisa; o hipócrita é a metade de uma coisa e o descrente é menos que uma coisa. 

- Podes contar-nos em que versículo o Profeta julga os descrentes? 

- No versículo que proclama: “Os judeus dizem que os cristãos estão no erro; e os cristãos dizem que os judeus estão no erro. Neste ponto, ambos estão certos.” 

- Qual é a causa de todas as doenças? 

- Nossos erros e excessos alimentares: comer antes que a refeição anterior tenha sido digerida; comer sem ter fome. A gula é causa da maioria das doenças que afligem a humanidade. 

- Podes dizer-nos que coisa vive sempre na prisão e morre quando respira o ar? 

- É o peixe. 

- Explica o seguinte: “arrasto longas caudas atrás de mim. tenho um olho, mas não me é dado ver; faço vestidos que não me é dado usar.” 

- É a agulha. 

Um astrônomo perguntou-lhe: “Achas que choverá este mês?” 

Respondeu, dirigindo-se a Harun Al-Rachid: “Ó Príncipe dos Crentes, peço-vos emprestar-me vossa espada por um momento para que corte a cabeça deste agnóstico sem fé.” 

Ouvindo essas palavras, o califa e todos os sábios deram gargalhadas. E Simpatia prosseguiu:

“Deverei ensinar-te, ó astrônomo, que há cinco coisas que somente Alá conhece: a hora da morte, o sexo do feto no útero materno, quando choverá, o que acontecerá amanhã e onde morreremos.” 

Naquela altura, o sábio Ibrahim Ibn Sirah levantou a mão direita e testemunhou publicamente que a escrava Simpatia o ultrapassava em conhecimentos e sabedoria e era a maravilha dos tempos. O califa levantou-se por sua vez e disse: “Possa Alá aumentar ainda mais tuas qualidades, ó Simpatia, e abençoar os que te trouxeram para este mundo e os que te ensinaram.” 

E mandou entregar a Abu-Husn 10 mil dinares de ouro, colocados em cem sacos. Depois virou-se novamente para Simpatia e perguntou-lhe: “Dize-me, ó adolescente maravilhosa , preferes entrar no meu harém e ter um palácio e uma comitiva próprias, ou voltar para a casa deste moço?” 

Simpatia beijou a terra entre as mãos do califa e respondeu: “Possa Alá continuar a abençoar o soberano do mundo. Vossa escrava prefere voltar para a casa de quem a trouxe para cá.” 

Em vez de sentir-se ofendido, o califa presenteou Simpatia com 5 mil dinares de ouro, dizendo-lhe: “Possas ser tão destra no amor quanto o és na dialética.” 

E  todos saíram felizes, abençoando o saber de Simpatia e a generosidade de Harun Al-Rachid.

Fonte:
As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX.
Disponível em Domínio Público.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Izo Goldman (Buquê de Trovas) – 6 –

 

Aparecido Raimundo de Souza (Pulp’s)

O pior cego é aquele que nunca se enxergou - primeiramente a si mesmo -, no espelho interno da sua alma”. 
Tompson de Panasco.

A BURRICE ou o despautério das pessoas, não se arregimenta em fazer o que elas querem, de livre vontade e, sim, no que os outros escolhem e perpetram, geralmente contra seus princípios morais.  De certa forma, este particular quase insignificante as deixam e as tornam submissas. Num quadro geral, viram escravas de desonrosa e desprezível estupidez.

Em cada um de nós (seres humanos) existe uma pequena parcela de imbecilidade, como também de idealismo. Ambos funcionam como uma balança de precisão imprecisa. Com o passar do tempo, ou a extravagância prevalece, aflorando, ou a futilidade toma conta fazendo da personalidade do infeliz um joguete a seu bel prazer.

O “ideal” de toda alma vivente (ou a sua congeminação) deve ser como a árvore plantada no meio de uma floresta enorme. Ter suas raízes sedimentadas em terra firme, cravadas de modo duradouro e eterno. Ao contrário da boçalidade. Seus embriões precisam navegar continuamente em águas correntes.

Aconteça o que acontecer, meus caros amigos, nunca percam a esperança de serem felizes. Estejam alegres, saltitantes, haja o que houver. Seja o que for que esperem, não importa. Dias melhores, horas mais benfazejas, momentos mais agradáveis, surgirão em oportunos instantes, para que realizem seus propósitos e intentos de acordo com as necessidades consideradas mais prementes.

Lembrem que as criaturas de corações tidos como excelentes, exigem tudo de bom de si mesmas, principalmente em relação aos demais da sua estirpe. Os medíocres, ao contrário, esperam tudo de belo e majestoso, mas vindo dos outros semelhantes à sua volta.

“De onde menos se espera – dizia o Barão de Itararé – é que não sai nada mesmo.” Existem controvérsias quanto a este pensamento. Desta forma, procurem incansavelmente os seus “de onde menos se espera”. De repente, contrariando literalmente o famoso jornalista Apparício Torelly (1895-1971), as senhoras e os senhores deem de cara com algo suntuoso que não estava previsto e este simples gesto virá fazer ou fará toda a diferença em suas vidinhas medíocres.

Mas atenção, amigos. Cuidado com as contraindicações. Leiam, antes, a bula. “Enquanto há vida, há esperança.”, lecionava o filósofo romano Cícero (106-43 a. C). Do mesmo modo, onde há esperança, aí estará e se presenciará a vida. De modo algum deixem que se esvaia a esperança pela vida. Tampouco a vida pela esperança. Não chovam –, dito de outra maneira –, no molhado, nem façam sombras onde a escuridão impera duradoura e determinante. 

A melhor parte das nossas vidas, passamos em aguardar o que, talvez, nunca aconteça. Todavia, às vezes, o destino interfere, arrebatador, dando uma forcinha e nos brindando com aquilo que almejamos num abrir e piscar de olhos. A sorte às vezes, aparece, surge do nada, quando menos esperamos pela sua visita.

“Um raio de sol é suficiente para afastar muitas sombras”, no entendimento do religioso italiano e depois canonizado santo, Francisco de Assis. Porém, jamais se olvidem de um detalhe importantíssimo. A esperança é como a vida plena.  Se ocupem dela sonhando com os olhos bem abertos, de preferência quando estiverem dormindo.

Em tempo algum deixem de ser otimistas. O entusiasmo, o positivismo; alegra a alma; clareia o espírito; ajuda na reestruturação do corpo cansado; além de espalhar; para longe; as contrariedades e as tristezas do dia a dia.

Esperançosos e confiantes são aquelas pessoas que acreditam, que creem piamente que o que está para acontecer (seja de agradável, ou de temeroso, por alguma forma inexplicável), será sumariamente adiado. 

“A crença positivista – na concepção da escritora americana Helen Keller, autora de “A história da minha vida” é a FÉ em constante AÇÃO.” Em resumo, se vocês perderem a AÇÃO, a FÉ irá, de mala e cuia, para os cafundós. E vice-versa.

Como um todo, não devemos nunca, senhoras e senhores, deixar que se percam as ilusões. Sejam elas quais forem. Ilusões perdidas seriam (grosso modo), como mandarmos para o espaço, de uma vez para nuca mais, a realidade pujante e viçosa em que vivemos.

Necessitamos constantemente massagearmos nosso ego, alimentando-o todos os dias (ainda que construindo castelos no ar), embora tenhamos pleno conhecimento que nos será cruel e doloroso a sua destruição, logo adiante.

“A capacidade de nos iludirmos nessa vida de altos e baixos (ensinava, com muita propriedade, Jane Wagner, escritora e humorista) pode ser uma importante ferramenta de sobrevivência.”   

Tenham este conceito aparentemente bobo, meus queridos leitores, ao alcance das mãos. Usem como uma espécie de sentença, ou acórdão*. “Pode ser uma importante ferramenta de SOBREVIVÊNCIA.” De fato, se forem pesquisar a fundo, NÃO DEIXA DE SER. OU MELHOR, É.
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*Acórdão = [Jurídico] Última sentença ou decisão final que, atribuída por uma instância superior, começa a valer como modelo para resolver casos, questões ou situações de teor semelhante.

Fonte:
Enviado pelo autor, da Lagoa Rodrigo Freitas, no Rio de Janeiro.  

Sílvia Araújo Motta (Sonetos Sáficos-Heroicos) – 1 -


DEPOIS DO CARNAVAL 

É quarta-feira! Nuvem chega escura! 
O mascarado perde o grande encanto; 
tira o disfarce, vê real figura;
apaixonado, triste enxuga o pranto. 

Hoje o palhaço chora a dor, sem cura! 
Entra na Igreja, faz a prece, enquanto   
cinzas na testa põe, naquela altura; 
na multidão, perdeu garota e tanto. 

O morador de rua faz poesia; 
do carnaval, nenhum confete resta... 
Volta à marquise, chora todo dia. 

Nos blocos pulam, dançam, fazem festa, 
para brindar amor e paz na terra. 
A fantasia, só ilusão encerra!
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DIA DAS MENTIRAS-1º de ABRIL

Dia primeiro, mês de abril, persisto:
siga a razão e creia, traz ventura;
educação faz obra, pense nisto.
Sabedoria é graça, ao tempo dura...

Valor moral requer ação benquista.
Saber sofrer, enfim suporta a agrura...
A criatura humana é boa, insisto:
-Sabe escolher o livre-arbítrio e cura:

Vícios, defeitos onde houver vontade...
A liberdade dá poder total profundo;
quem tem caráter firme diz verdade.

Quem mente, não prospera neste vício,
pois faz trapaça e engana a todo mundo.
O mentiroso é escravo desde o início.
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Nota: Acróstico mesóstico-diagonal (letras em vermelho)
Esse tipo acontece quando a palavra ou verso é formado pelas letras que estão situadas no meio das palavras ou versos, e seguem em diagonal.
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MÃE - NOME SUBLIME

Nome sublime, mãe, um ser que eu amo,
no peito guarda amor, magia, calma,
somente quer a flor do belo ramo;
a dor esquece fácil, sempre acalma.

Com seu sorriso, nada mais reclamo;
astro no mundo, sol que brilha n´alma;
anjo do lar, do bem, presença clamo,
não tem nenhum limite e luz espalma.

Feliz aquele ser que em ninho sonha,
para acordar e ter mamãe presente,
bem sorridente, ao colo, então lhe ponha.

Feliz quem teve voz materna augusta,
que já partiu da terra; embora ausente:
– Mãe é Rainha... e sua fama é justa.
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NADA ME FALTA – TENHO O TUDO

Tento saber dos males, dentre tantos,
que tanta gente chora e faz lamento;
no mundo existe fome, em quatro cantos;
amor é fruto raro, neste intento.

Ausente luz traz choro, negros mantos!
No patamar da vida, em banco sento;
no meu teclado, o canto tem encantos,
com pais amados, meu viver foi bento. 

Irmãos unidos, risos, filhos, beijos...
Na caridade vi razão de sobra;
plantamos fé; até fizemos queijos.

“Tem mais presença em mim o que me falta.”
A gratidão nenhuma coisa cobra:
- Se nada falta, Deus, o Tudo exalta.
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NÃO HÁ PERFEIÇÃO - Pensando em Colombina

Nesta existência, viu Pierrot que canta.
Nas brincadeiras, teve o tempo inteiro,
troca de beijos, num salão que encanta;
a chave de ouro deu por um pandeiro.

A mascarada fez altar à santa.
Grande promessa quis cumprir no outeiro,
pois ser estrela, todo astral levanta,
pede esperança, em quadro com letreiro.

A falsidade é força e inveja encena.
Nem Colombina esconde ser vadia,
a solidão, bem sei traz choro e pena.

Sem fantasia, perde a cor... Desiste;
acena a mão; na quarta; quem diria!
Casal feliz, perfeito, não existe.
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Fonte:
Recanto das Letras da Poetisa.
https://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?id=3146&categoria=Z

A. A. de Assis (Agenda de Criança)

Perguntei ao meu bisneto de 9 anos se ele teria um tempinho para ir comigo comer um hambúrguer numa lanchonete. Ele respondeu que seria legal e que acharia um tempinho sim, porém primeiro precisaria consultar a agenda.

Só então me dei conta de que agenda de criança não é moleza hoje em dia. Quando eu era menino, muitas luas passadas, a gente ia também à escola e tinha um momento para fazer os deveres de casa, mas sobrava tempo para viver plenamente a infância. Futebol, banho de rio, matinê de cinema, leitura de gibi, brinquedos diversos e “artes” várias preenchiam os nossos dias sem nenhum medo ou estresse.

A modernidade mudou tudo: obrigou a garotada a assumir precocemente compromissos e responsabilidades de gente grande. Meninos e meninas têm uma agenda pesadíssima: além das aulas regulares, frequentam cursos paralelos de inglês, música, judô, balé, robótica, sabe-se lá mais o quê. E ainda tem o celular, que prende todo mundo por horas e horas, roubando até boa parte das horas de dormir. Daí fica mesmo difícil achar uns minutinhos livres para ir à lanchonete com o biso. A sorte é que o biso nunca tem nada que fazer, e então pode esperar. 

Sairiam todos ganhando, caso tivessem como conversar mais – pais e filhos, netos e avós, bisnetos e bisavós. Me arrependo até hoje por não ter batido longos papos com os meus pais e avós. O vô e a vó paternos não conheci, mas com o vô e a vó maternos convivi até os 12 anos, quando eles partiram para a eternidade.

Poderia ter ouvido deles histórias interessantíssimas, inclusive sobre as raízes de nossa própria família. Eles nasceram no século 19, poderiam ter falado sobre a monarquia, sobre o início da república, sobre os primeiros anos do século 20, sobre as mudanças nos usos e costumes. Meu avô era um homem da roça, mas gostava de ler, sabia das coisas. Meu pai também, embora fosse igualmente da roça, era bem informado, lia jornais. Minha mãe tinha só o curso primário, porém tinha sempre um livro na cabeceira e até escrevia poemas.

Pois é: e eu conversei tão pouco com eles. Falta de tempo não era; era só bobice minha, que na época não pensava no valor do diálogo entre as gerações.

Você, que está lendo agora esta conversinha, se tem na sua família pessoas de idades diferentes, aproveite bem esse privilégio. Estimule, sempre e tanto quanto possível, o diálogo entre os mais novos e os mais vividos. É muito bonita a troca de experiências entre os meninos e os bisos. Sei que os jovens vivem correndo. Sei também que é meio complicado achar assuntos que interessem ao mesmo a todos. Todavia, com um pouco de jeitinho e habilidade, dá para criar encontros familiares extremamente prazerosos.           

Comer um lanchinho é bom. Com os bisnetos ao lado é bem melhor. E muito melhor ainda é o papo que rola enquanto a gente se farta no hambúrguer com refrigerante e batata frita.

O biso pede sempre bis quando isso acontece. 
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(Publicada no Jornal do Povo, em 20.07.2023)

Fonte:
Portal do Rigon
https://angelorigon.com.br/2023/07/20/agenda-de-crianca/

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Vanice Zimerman (Tela de versos) 21

Vanice é de Curitiba/PR
 

Lauro Grein Filho (A xícara de azeite)

Convencido e presumido de um bom cabedal médico, respaldado por um  curso laureado e uma especialização no "Miguel Couto", do Rio, animado e motivado por todas as ilusões que envaidecem os anos da mocidade, iniciava em Castro os primeiros passos da jornada.

Não tinha mais que uma semana na cidade, que tanto me desconhecia quanto eu desejava conquistá-la, quando recebi o chamado lá pelas onze da noite. Vinha com o táxi, cabendo ao motorista o encargo único de me conduzir, nada sabendo sobre o doente, o caso, a ocorrência. Apenas o nome e o endereço do cidadão, pessoa ilustre e conhecida na praça. Chegando à residência, nela ingressei firme e forte, dono da verdade, da ciência e de tudo. No quarto e na cama do casal, um menino de quatro anos choramingava suas dores para a plateia de sete adultos e três menores. É proverbial a solidariedade dos sírios, nos infortúnios da saúde. Não faltavam, pois, parentes e amigos, todo um clã, irmanado na mesma preocupação, unidos no mesmo lamento, sofrido no mesmo pranto.

À minha presença, o guri aumentou o choro no timbre e na intensidade. Esclareceram-me, então, que havia caído da mesa e machucado o braço. Após algum empenho consegui por fim acalmá-lo, pondo-o dócil e amigo em minhas mãos. O exame cuidadoso não revelou, nos sinais específicos, qualquer indício de fratura ou luxação. Tratei, pois, de serenar o ambiente, explicando a benignidade de uma simples contusão, sem gravidade e sem importância, coisa banal, de recuperação espontânea em poucas horas. A confirmar minhas palavras, o moleque, já refeito do médico e do susto, ensaiava alguns sorrisos para o auditório a esta altura tranquilizado.

Aprontava-me em instantes para sair, certo da missão encerrada e bem cumprida, quando uma voz retumbou autoritária pelos quatro cantos da sala: - "Mas então, doutor, o Sr. não vai fazer nada?". Era uma senhora gorda, idosa e bem disposta, avó materna do moleque.

- Minha Senhora, como eu disse...

- Olha, doutor, bom para isso é esfregação de azeite quente. Vamos acudir a criança.

E enquanto me aturdia na surpresa e na indecisão, a devotada criatura dirigiu-se resolutamente à cozinha, de lá trazendo, rápida e triunfante, uma detestável xícara de azeite morno.

Para não me alterar na inconveniência e na descortesia, mergulhei corajosamente os dedos no unguento repulsivo, passando a lambuzar com ele o braço do garoto.

A cena durou uns cinco minutos, o mínimo necessário para o contentamento de todos e a aprovação geral da casa. Preço caro em troca da imagem preservada, a simpatia conquistada, a lição apreendida.

Lavei as mãos para me livrar da gordura incômoda, ouvindo do pai agradecido a firase irrecorrível que haveria de me acompanhar trabalhos afora: “Por enquanto muito obrigado, depois nós acertamos". Amavelmente fui me despedindo, um por um, entrevendo na clareza dos semblantes as evidências de que deixava o campo são e salvo.

Da esclarecida senhora mereci um confortável abraço, que beijo não se dava a esmo no passado. As aparências, resguardei-as como devia. A verdade, entretanto, é que, naquela casa e naquela noite, deixava no braço inocente daquele guri moreno uma parte das minhas ilusões, outro tanto do meu orgulho, das minhas convicções e um pedaço de mim mesmo. Muitas e muitas vezes depois, ao longo da clínica interiorana, a experiência me levaria ao melhor convívio com tais maneiras, admitindo-as em nome de uma cultura autenticamente nossa, criada e embalada no mundo simplório de nossos avós.

Mas o primeiro confronto foi por demais impiedoso para que dele facilmente me esquecesse.

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.