segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Vereda da Poesia = 123 =


Semi-Soneto de
JOSÉ FELDMAN
Campo Mourão/PR

Solidão (2)

Se a solidão é a musa que me guia, 
nos versos tristes, a dor se revela, 
um labirinto de sombras principia… 
o tempo, inexorável, é uma gazela. 

A hora se arrasta, pesada, lenta, 
e cada instante pesa como um fardo. 
No peito, um grito, vozes que acalenta, 
um eco profundo, um amor que é guardado. 

Mas entre as nuvens, há uma luz que se acende, 
uma chama intensa, que nunca se apaga, 
e mesmo só, a esperança se estende. 

Na solidão, a alma nunca se desapega, 
pois o amor, mesmo em dor, se defende, 
e na ausência, à vida se entrega. 
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Trova Humorística de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Na briga que o meu cabelo,
e a careca estão travando
lamento ter que dizê-lo,
a careca está ganhando...
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Poema de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Refém feliz

A cada vez que minha dor me diz bom dia,
A poesia brinca com meu pensamento...
Meu coração convida minha fantasia
E anestesia o meu próprio sofrimento.

Meu riso fácil mansamente se projeta,
Poeta ri, quando a poesia é seu espelho,
Mas também chora, quando lhe foge o poeta
E ele se curva à própria dobra de um joelho.

A cada vez que a dor se torna mais severa,
Amanso a fera, afinal, sou domador
Da própria dor que não resiste a essa quimera
Que faz de mim, refém feliz de um sonhador.

Estou aqui e sou feliz... esse é meu jeito
De abençoar meu coração com a alegria
E se o amor mais fraternal bate em meu peito
Ele transforma minha dor em poesia.

Tenho uma história e toda vez que a reconto,
Não ponho ponto, quando finda a narrativa,
É só alguém me ouvir, que encontro o contraponto
Da minha vida e pronto: encontro outra saída.

Deixo um legado para a dor que me provoquem:
A piedade... mas não sei silenciar,
E se eu chorar, quando eu sorrir, não me retoquem,
Preciso rir, sentindo a dor se dispersar.

A cada vez que o desamor me deixa triste,
A dor insiste... mas se ela não me doer,
Sinto-me morto e esse amor que ainda resiste,
É que me faz, sentindo dor, sobreviver.

As dores físicas não pedem permissão...
São atrevidas... sempre vêm sem avisar,
Mas se um rancor atinge em cheio um coração,
A solidão faz razão se emocionar.

E eu não nasci para sofrer, pois Deus me fez
Para sonhar... viver... amar... e ser feliz
E sempre busco me curar a cada vez
Que alguém me fere com palavras pueris.

A minha dor é espontânea e atrevida,
Ela revida toda vez que a desacato,
Mas eu a mato, porque se ela ganha vida,
Brinca com a vida que ainda há no meu retrato.

Faço uma selfie, meu sorriso é imortal
E debochado, quando a dor é insistente,
Pois cada vez que ela vem e me faz mal,
Deus ri comigo e volto logo a ser contente.
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Trova  Premiada em Irati/PR, 2023
CATERINA BALSANO GAIOSKI 
Irati / PR

Desde um tempo bem distante,
as pedras tem seu valor,
podem matar um gigante,
ou conquistar um amor.
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Soneto de 
ALFONSINA STORNI
Capriasca/ Suiça (1892-1938) Mar del Plata/Argentina

A súplica

Senhor, Senhor, há muito tempo, um dia,
sonhei o amor, como ninguém houvera
ainda sonhado, amor que fosse e que era
a vida toda todo uma poesia.

Passa o inverno e esse amor não chegaria,
passaria também a primavera;
o verão persistente volveria...
E o outono ainda me encontra à sua espera.

Ó Senhor, sobre minha espádua nua,
faze estala, por mão que seja crua,
o látego que mandas aos perversos,

que já anoitece sobre minha vida
e esta paixão ardente e desmentida
eu a gastei, Senhor, fazendo versos!
(Tradução de Oswaldo Orico)
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Trova Popular

Quem tiver filhas no mundo
não fale das malfadadas;
porque as filhas da desgraça
também nasceram honradas.
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Soneto de
J. G. DE ARAÚJO JORGE
(José Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Bom dia, amigo sol!

Bom dia, amigo Sol! A casa é tua!
As bandas da janela abre e escancara!
Deixa que entre a manhã sonora e clara
que anda lá fora alegre pela rua!

Entra! Vem surpreendê-la quase nua!
Doura-lhe as formas de beleza rara...
Na intimidade em que a deixei, repara
que a sua carne é branca como a Lua!

Bom dia, amigo Sol! É esse o meu ninho...
Que não repares no seu desalinho,
nem no ar cheio de sombras, de cansaços...

Entra! Só tu possuis esse direito
de surpreendê-la, quente dos meus braços,
no aconchego feliz do nosso leito!...
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Trova de
MARINA BRUNA
Franca/SP (1935 – 2013) São Paulo/SP

Canta, Poeta! O teu canto,
de um sentimento profundo,
é o turíbulo de encanto
que vai incensar o mundo!
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Poema de
FERNANDO PAGANATTO
São Paulo/SP

Jardineiros

Como é frágil
a planta que nasce
no ventre dos nossos quartos.
Flor de pétalas de seda
e aroma dourado,
de tão duros cuidados.

Floresce na encruzilhada
da magia com a crença
e quando a encruzilhada
encontra-se em nossas camas.

Depois, lá só morre
pela falta de um regador
de olhares.
De um regador de olhares
que rega olhares das manhãs,
das tardes e também das noites,

ou porque, antes,
morreu o solo
acabou-se a magia
ou a crença.
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Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/SP

O marido não aguenta
ver a cara da Maria!...
“Não dá pra trocar – lamenta
– veio sem a garantia!”
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Estado d´alma

O que reflete o meu estado d´alma,
de tudo quanto vi e já conheço,
é a poesia amiga, quando espalma
tão bem a dor do amor, no qual padeço

Quem lê meu verso com bastante calma,
por certo me conhece até no avesso,
pois minha inspiração jamais empalma
tudo que às outras almas ofereço.

Quem lê meu verso sabe, num instante,
se estou tristonho, ou até feliz bastante.
- Mais claro ainda?  -  Olhe nos meus olhos!

As minhas vistas são também janelas,
bastando apenas ver através delas,
se tenho um grande amor... ou só abrolhos!
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Trova do 
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ (1916 -1977) Santos/SP

Glórias, riqueza, esplendor,
nunca te dei... e nem tive...
Porém, mais dura um amor
quando com pouco ele vive…
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Poema de
GERSON NEY FRANÇA
São Paulo/SP

Crepúsculo

O crepúsculo não faz jus
Ao silêncio do teu sono
Se abandona toda a luz
E a luz ainda é incômodo

A mudez da madrugada
Vem fazer tanto barulho
No rugir do som do nada
Seus arroios, seus arrulhos...

Mesmo o ar se faz atrito
Ao fluir do teu suspiro
E o ambiente tranquilo
É a mordaça do não-grito

Se atinge um quê de clímax
No apogeu desse crepúsculo
Quando em ti nada por cima
Faz crispar todos os músculos
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Trova Funerária Cigana

Já que não posso morrer
contigo, minha Adelaide,
aceita o pranto sem fim
de uma perpétua saudade.
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Soneto de 
DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC (1926 – 2017) Sorocaba/SP

Tempo

O tempo apaga um sonho já desfeito
na aridez de uma vida mal traçada,
uma paixão que se evolou do peito
como essência do frasco evaporada.

Tudo finda, como água já passada
que não retorna nunca mais ao leito:
do tempo que se foi não resta nada,
é verbo no pretérito perfeito.

Mas no incontido caminhar dos anos,
paciente, a transportar os desenganos,
ele ameniza o nosso sofrimento.

Lava que esfria e se transforma em rocha,
se algum desgosto ainda nos arrocha,
o tempo é o óleo bom… do esquecimento.
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Trova Hispânica de
ÁNGELA DESIRÉE PALACIOS
Venezuela

Con el mundo en nuestras manos
orando por paz y amor,
seríamos siempre hermanos
y el universo mejor
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Poema de 
MÁRCIA SANCHEZ LUZ
São Paulo/SP

Lareira acesa

Em frente à lareira acesa
Contemplo o fogo que aquece
E que em brasa, a madeira
Meu amor transparece.

Meu coração não te esquece
Não te perde quando sonha
Enlouquece, entontece
Fica aceso feito chama.

Feito fogo em álcool embebe
Fico afoita, doida, rouca !
Te desejo, tonta e pronta
Te apercebes, me recebes.

Defronte à lareira acesa
Aqueço meus sentimentos!
Meus pensamentos se aquietam...
Aquieto-me frente à beleza
Que me convida a sonhar...

Com sua chama
Com sua calma
Acalma meus medos
Alerta-me
Fita-me
Incita-me
Faz-me sorrir.
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Trova de
TIAGO
António José Barradas Barroso
Paredes/Portugal

Um ato de amor será
dar o que se tem, agora,
mas muita gente só dá
aquilo que joga fora.
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Buquê de Trovas de
NEMÉSIO PRATA
Fortaleza/CE

Meu livro...

Dos livros que ainda não li,
tenho por um grande anelo
em lê-lo, pois o escrevi...
porém não foi para o prelo!
 
Quem sabe, daqui a vinte
ou trinta anos o publique;
ou será que, por acinte,
o "escritor" já foi a pique!?
 
Mesmo assim eu os convido,
a fazerem-se presentes,
por favor, não deem olvido;
não quero "vê-los" ausentes!

Todo livro deve que ter
"título" bem eficaz...
pois não é que o meu vai ser:
Leia-me... (se for capaz).
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Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Fim do filme... Na saída,
pergunta à pulga o pulgão:
– Voltamos a pé, querida,
ou vamos tomar um cão?
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Soneto de
DELMIRA AGUSTINI
Montevidéu/Uruguai, 1881 – 1914

Explosão

Se a vida é amor, bendita seja então!
Quero mais vida, se esse amor aumento;
que não valem mil anos de razão
um só minuto azul de sentimento.

Meu coração morria triste e lento
e hoje é uma flor de luz em combustão!
A vida canta como um mar violento
quando a mão de um amor a agita em vão!

Esfuma-se na noite triste, fria,
de asas rotas - minha melancolia;
como a indelével mancha de uma dor

que na sombra distante já perdi...
A vida toda canta, beija, ri,
numa explosão como uma boca em flor!
(Tradução de J. G. de Araujo Jorge)
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Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Que o presente se reparta
com o passado, sem queixa...
- A memória não descarta
o que a saudade não deixa!
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Hino de 
Laguna/ SC

Minha Laguna
Contarei tua história
E os feitos de glória
Que ofertaste ao Brasil.

E falarei
Das belezas sem par
Deste céu, deste mar
Destas praias sem fim.

Minha Laguna
Falarei do teu povo
Que adora o que é novo
Sem matar o passado
E mostrarei
O valor desta gente,
Nesta canção dolente,
Que orgulhosamente
Eu fiz pra te ofertar.

Laguna amada
Sob este céu que é tão azul
Foi que a Pátria deslumbrada
Deu a grande caminhada
Em direção ao sul.
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Trova Humorística de 
SELMA PATTI SPINELLI
São Paulo/SP

Até no "terreiro" em prece,
é preguiçoso, o farsante:
quando o "santo" dele -desce-
só vem... de escada rolante!
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Poema de 
WAGNER LUIZ ANICETO
Santos Dumont/MG

Porto de Solidão

Porto de solidão,
Num cantinho de mar, abandonado.
Pedaço de madeira flutuante,
Resto de naufrágio!...

Já foste ancoradouro em outras eras,
E acolheste milhões de visitantes
Em teus limites:
Homens, barco, fragatas e navios.

Hoje, és meramente um marco inglório,
Camuflado sob dunas, musgos e detritos,
Serves simplesmente de abrigo
Às aves errantes, ociosas...

Porto de solidão!
Os reis também já te esqueceram.
Ninguém recorda a tua glória.
O teu cartão-postal envelheceu.
Morreu tua beleza transitória!

Porto de solidão!
Há algo comum em nossa história!
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Trova premiada em Irati/PR – 2023
LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI 
Bandeirantes / PR

Quem chega a cargos honrosos
com determinantes passos,
nos caminhos pedregosos
soube afastar os fracassos!
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Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

O cão que leva o jantar ao dono

Marchando com grande entono,
Um cão esperto e sagaz
Levava o jantar do dono
Em um pequeno cabaz.

Passa outro cão — e atrevido,
Entra a rosnar, a rosnar,
E mostra-se decidido
Em lhe tirar o jantar.

Mas o que pensa não faz,
Que o primeiro cão, valente,
Da boca larga o cabaz
E ao ladrão refila o dente.

Um bando de cães acode;
Vê-se o jantar em perigo;
E o fiel cão, que não pode
Combater tanto inimigo,

Diz aos irmãos com bons modos:
«A questão é de barriga;
Reparta-se isto por todos,
E não pensemos na briga.»

Este atira-se a um bocado,
Aquele a um outro cobiça;
Cada um puxa para seu lado...
Foi — fogo viste, linguiça!

É semelhante este cão
Ao empregado zeloso
Que arrecada, escrupuloso,
Os dinheiros da nação;

Mas não podendo estorvar
Que os outros comam do bolo,
Não quer que lhe chamem tolo
E é o primeiro a roubar.

Recordando Velhas Canções (Meu sonho é você )

(samba, 1951) 

Compositores: Altamiro Carrilho e Átila Nunes

Quando eu passo
Pela rua onde mora
Aquela que eu perdi
Numa noite de verão
Ainda hoje, eu sei que ela chora
Ao recordar com saudade
Aquela amizade
Que o tempo levou, levou 

Meu desejo, era ser bem feliz
Mas o destino não quis
Vivo sofrendo afinal
Meu sonho é você
Que é todo o meu mal
Tudo terminou
De um modo banal
Tudo terminou
De um modo banal

A Melancolia de um Amor Perdido em 'Meu Sonho É Você'
A música 'Meu Sonho É Você', é uma balada melancólica que explora a dor de um amor perdido. A letra começa com o eu lírico passando pela rua onde mora a pessoa amada, que ele perdeu em uma noite de verão. Esse cenário evoca uma sensação de nostalgia e tristeza, sugerindo que o término foi abrupto e inesperado. A menção de que a pessoa amada ainda chora relembrando a amizade que o vento levou reforça a ideia de que ambos ainda estão presos ao passado e às memórias do relacionamento.

O eu lírico expressa seu desejo de ser feliz, mas lamenta que o destino não quis assim. Essa linha sugere uma resignação à fatalidade, como se o amor deles estivesse condenado desde o início. A repetição da ideia de sofrimento e a declaração de que seu sonho é a pessoa amada, que também é a causa de todo o seu mal, cria um paradoxo emocional. O amor, que deveria ser fonte de alegria, se torna uma fonte de dor insuportável. A conclusão de que tudo terminou de um modo banal adiciona uma camada de frustração, indicando que o fim do relacionamento foi trivial e sem sentido, o que torna a dor ainda mais aguda.

Dick Farney, conhecido por sua voz suave e interpretação emotiva, consegue transmitir a profundidade dessa tristeza através de sua performance. A música, com sua melodia suave e letra introspectiva, é um exemplo clássico do estilo romântico e melancólico que marcou a carreira do artista. A combinação de melodia e letra cria uma atmosfera de saudade e arrependimento, convidando o ouvinte a refletir sobre seus próprios amores perdidos e as voltas que a vida dá.

domingo, 29 de setembro de 2024

Newton Sampaio (Espetáculo)

Damião desce correndo aquele pedaço de rua.

— A campainha já parou de tocar. Vai começar a coisa.

Cruza com o Durvalino. Vai pras bandas da Amelinha, com certeza.

— Que pressa é essa, menino?

Nem responde. Estuga mais o passo.

— Tomara que ainda não tenha começado.

Atravessa a porta grande. Estranha o velho Gregório ainda na bilheteria.

— Pronto, padrinho. Ele mandou dizer que sim.

Entra no salão, com o pulso alterado.

Não. A função não começara ainda.

— Que sorte!

Ninguém quase. No reservado da direita, o Doutor Paiva, soleníssimo. Na terceira fila o seu Pernambuco, mais a família, gozando a delícia da permanente. Um pouco para trás, uma dúzia de espectadores. Lá em cima, como sempre, o negro Fabiano com a molecada. E bem na frente, rente à boca do palco, o Joca, afinando o instrumento.

— Coisa engraçada! Por que será que o pessoal não veio?

Juquita não compreende que o povo deixe de comparecer ao espetáculo do mágico.

— Ah! Quem sabe foi por causa da morte do Amâncio?

Acha que a razão é muito besta.

— Meu Deus! Morre um homem e agora ninguém mais se diverte?

Pela cabeça do Damião passa, de atropelo, um punhadão de pensamentos. Tem ímpeto de sair à rua e gritar:

— Pessoal! Ô, pessoal! Venha assistir ao espetáculo. Eu sei que o homem faz mágicas. Umas mágicas bonitas, eu sei.

E logo sente desejo de xingar o povo com os nomes mais feios do mundo. Detesta colossalmente, nesse momento, a gentalha da cidadezinha.

— Éguas! Bobalhões! Filhos da mãe!

Primeiro sinal. Música.

Segundo sinal. Silêncio.

Terceiro sinal. Aparece a cena, que é simples. Duas cadeiras. Uma mesa, com dois copos em cima. A caixa de papelão encardida. Vem o artista, desenxabido, vestindo uma roupa de gala muito surrada. A mulher é deselegante. Mais gorda ainda que dona Vitória. 

O homem parlenga dois minutos. Damião não entende bem. Só sabe que, a cada passo, ele solta:

— Cavalheiros... Damas...

As mágicas são bem bobas.

Umas coisas mais sem efeito, gastas, repetidas. O relógio que passa, invisivelmente, do bolso do espectador para a caixa de papelão. 

Um lenço branco que fica vermelho. O chapéu que vira passarinho.

No fim do espetáculo vêm aplausos tímidos, sem vontade. O homem se curva uma, duas vezes. A mulher agradece também.

Damião quer mais é derrubar o barracão, à custa de palmas. Só pra alegrar o mágico, que tem uns olhos muito tristes.

Diante da gaveta semiaberta, o velho Gregório, levantando a gola do casaco preto, aceita o fiasco com a resignação de sempre. E ainda troça, conferindo a aritmética da noitada:

— Está vendo? 25 pessoas. O delegado, o promotor, o Fabiano, os cinco moleques, o Pernambuco mais a família. Ao todo, treze pessoas que não pagaram. Doze entradas vendidas a 1$500 somam 18$000.

Conta redonda.

E articula, pausadamente:

— Dezoito mil réis.

O ilusionista foi ter com o empresário, no dia seguinte.

— O senhor ontem foi um pouco infeliz, não? — diz o velho.

— É. Não tive sorte, quase.

Faz um gesto de desalento:

— Já me aconteceu coisa parecida mais de dez vezes. Mas não faz mal.

— Paciência, amigo. A morte do Amâncio estragou a frequência. O senhor sabe. Povo do interior é assim. É muito respeitador.

O homem das mágicas tinha no rosto uma sombra de amargura infinita.

— Parece que não dá nem pra pagar o aluguel do teatro, não, seu Gregório?

Gregório levanta os ombros.

— Não importa. Perdoo o aluguel.

E fica pensando na coragem do homem em chamar aquilo de “teatro”.

Damião, no ângulo da saleta, espia com piedade a figura miserável do ilusionista. Tenta justificar consigo mesmo.

— Ele sabe fazer mágica. Sabe mesmo. O desastre foi a falta de assistência. Povo besta!

O artista solta um suspiro longo.

— Muito obrigado, seu Gregório, por sua boa vontade.

— Não há de quê. Disponha.

Já na porta, o homem volta-se. Fala, com brandura, humilde:

— Quando fui à sua casa, vi lá, num canto, uma pequena mala desocupada. O senhor não poderia fazer presente dela?

— Pois não. Pode ir buscar.

— É só carregar as bugigangas. A minha está tão velha...

Fica atrapalhado. Não sabe como explicar.

— Desculpe, senhor. Desculpe.

Damião aproxima-se discretamente do velho. E cochicha.

— Padrinho. Dê vinte mil réis ao coitado. Dê.

Gregório atende o menino. O artista ambulante agradece comovidíssimo. E abala rua acima.

No trem das quatro, Damião vai à estação.

Lá estão, no carro de segunda classe, quietinhos, o mágico e a mulher.

Damião se despede.

— Felicidades, amigo.

— Obrigado, menino.

O trem apita. Arranca, devagar. E logo desaparece, soltando fumaça, do lado do paredão.

Fonte:
Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.  (Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 17/12/1936)