sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Carolina Ramos (Natal Feliz)


Ele terá um Natal feliz! Ah, sim! Custe o que custar, o meu moleque há de ter neste ano, um Natal igualzinho ao dos outros!" — Zé Pedro apertava as mãos com vigor, como a transmitir força à decisão. O olhar severo diluía-se em ternura ao pousar sobre o vulto tristonho da criança, que, através da vidraça (opaca de pó, olhava os companheiros de folguedos, a lhe ignorar o afastamento, mal iniciada a discussão dos projetos e preparativos natalinos. Aqueles tinham mãe. Tinham lar. Teriam Natal!

Mas, o seu Betinho, desta vez também teria um Natal! O primeiro Natal, e, talvez, o mais feliz de toda a sua vida!

Logo ao nascer, a morte roubara ao menino a doçura dos carinhos maternos. Crescera aos trambolhões. O pai a desvelar-se. Viril, no trabalho diurno. A noite, premido pelas circunstâncias, a bipartir-se, fazendo o impossível, para dar ao filho a flexível austeridade de um pai e a tépida ternura dos braços maternos. Dupla missão, visando a um fim comum: a felicidade do filho. Atrapalhava-se, sem dúvida. As crianças, por vezes, tornam-se um bocado difíceis de serem entendidas. Mormente, por alguém que no trabalho pesado se embrutecia, calcando ao fundo da alma um cortejo sem fim de ressentimentos, a desfilar tristemente entre as ruínas dos seus pobres sonhos. Sonhos! Que seria isso? Há tanto deixara de sonhar! Sonhos, são para aqueles que ainda pretendem vê-los realizados um dia. Ele nada esperava. Bem... nada, propriamente, não. Queria fazer do filho um homem de valor! Ah! Mas, isto não era um sonho. Era pré-realidade. Palpavelmente concreta? Faria do filho, um homem! Por todos os santos, que o faria! Haveria de estudar, de ser alguém. Nem que o pai não passasse, como até agora, de um sofrido burro de carga.

"Dr. Alberto Celso da Silva!" — "Bom dia, doutor." "Obrigado, doutor!" — Como soava bem! Parecia ver-lhe a placa reluzindo à entrada de uma casa moderna! Casa de gente. Não aquela espelunca!

Zé Pedro desceu à terra. Olhos úmidos, percebeu que andara sonhando. Passou a mão calosa pelo rosto rude, curtido de sol. O certo, é que seu filho teria um Natal feliz!

Olhava a casa modesta, em desalinho, clamando pelos desvelos femininos. Nem de longe, assemelhava-se a um lar! Só as mulheres, com seus filtros mágicos, conseguem dar vida e graça, às coisas sem vida e sem graça alguma! Tentaria repetir o milagre. Pediria até umas férias. Não, nem seria preciso tanto. Uma licença de uns poucos dias, bastaria.

E, assim, tudo começou: "— o encardido das paredes foi escondido por uma camada de cal azul turquesa, talvez um pouco escura demais, mas, sempre azul! " A cor que sua finada Maria tanto apreciava. Casa limpa, tudo pareceu mais fácil. As vidraças, agora transparentes, permitiam que o sol jogasse confetes dourados nas tábuas foscas do assoalho. Zé Pedro exultava! O entusiasmo era tão grande, que o mulherio da vizinhança, sempre pronto ao zelo pelo garoto, em horas de expediente do pai, sentiu uma vez mais o problema, e, uma vez mais, cooperou. A velha Joana, até mesmo a velha Joana, mais dada às críticas e queixas, chegou a enviar-lhe um ramalhete de flores, fresquinhas, colhidas num jardim doméstico, igualzinho àquele que sua Maria esboçara, alguns meses antes que a condição de futura mãe lhe impedisse tais excessos. Maria! Tépida onda de saudade banhou-lhe o corpo, quase a saltar-lhe pelas janelas do olhar. Onze meses de ternura conjugal! E que onze meses felizes! Por que será que a felicidade acaba tão depressa?! Em troca, o infortúnio custa tanto a ir-se! — Uma leve, leve... qualquer ventinho a dissipa; o outro, pesado... pesado demais! Por isso mesmo, talvez nem todo um tufão de boa vontade consegue remove–lo de cima da gente. Ora, Senhor!, lá estava ele, caminhando com os pés virados para atrás, mergulhado no passado! E o presente, combalido, a exigir tantos cuidados!

Quase de mau humor, tentou ajeitar, numa velha leiteira, as flores recebidas. Já rachada, a vasilha partiu-se. A água espalhada por sobre a mesa tosca, arrefeceu o ânimo do homem. Roubou-lhe também um pouco mais do humor.

Fazia falta uma mulher em casa. Por todos os demônios, que fazia! Seis anos de viuvez! Por que não se casava outra vez? — Pergunta que lhe faziam amiúde e que, a si mesmo, repetia com frequência, principalmente, quando certos olhos castanhos ganhavam maior brilho, mal o viam passar. Mas, isso não! Jamais daria madrasta ao filho! A vida, roubando ao seu pequeno o carinho materno, já fora madrasta, e das piores! Não viesse a outra completar-lhe a obra. Tudo se arranjaria, aos poucos, com a graça de Deus.

— "Casa sem flores, pode ser casa, nunca um lar." dissera-lhe, certa vez, a companheira, quando, ao vê-la colocar à mesa, entre os pratos, um vaso cheio de flores, pilheriara: — "Vamos comê-las com sal, ou com açúcar?" Em resposta, haviam rido juntos. A esse tempo, já era possível sentir a presença irrequieta do filho, por sob a bata franzida, da mãe.

Ah! Maria, Maria... sempre Maria!

Zé Pedro enfiou as flores da velha Joana num bule de café. À volta do trabalho, trazia um vaso debaixo do braço. Seu filho teria um Natal feliz! Faltava ainda tanta coisa! E a verba andava curta! Quanto, para que uma casa se transformasse num lar!

O Natal batia à porta. Poderia vender algo. Aquele relógio que lhe dera Maria. Guardava-o com tanto carinho!... Quebrado mesmo, já o farmacêutico lhe oferecera por ele um bom cobre. Era um caso a estudar. Não tinha tempo para estudos. Acariciou o relógio uma última vez... reservava-o para o filho. Bobagens! Até que fosse gente para poder usá-lo, dar-lhe-ia outro melhor e mais bonito. E Maria? — não ficaria, acaso, magoada, se lá de cima visse tudo? Ora, claro que não! As mães compreendem tudo! E tudo não era para que o filho tivesse um Natal feliz?

O relógio ganhou novo dono. O menino, roupa nova. Terninho azul, como tanto desejara. Azul! Sempre o azul presente. Seria azul a cor dos sonhos? Se assim fosse, não seria de estranhar que, uma vez realizados, conservassem algo a lhes lembrar a primitiva cor. Santo Deus, por que pensava em tais tolices?! Aquele Natal lhe estava deixando miolo mole e coração, também. Devaneios de poeta! Olhou-se no espelho que pendia torto da parede. Endireitou-o. — "Toma jeito, Zé Pedro!" murmurou, mastigando um sorriso.

E vieram as frutas secas! Importadas! As amêndoas, as nozes e as avelãs. Um bocadinho de cada. E os bolsos ficando leves! As passas, os figos. Mania de copiar os outros! Por que não festejarmos o nosso Natal à brasileira, com as nossas próprias castanhas, os nossos pinhões, os nossos tão gostosos amendoins? Não são por acaso, frutos secos? E as peras d'água, as laranjas, os abacaxis de coroa na cabeça, e as uvas deliciosas, nossas, tão nossas?! Qual! — o mundo é assim mesmo! Quem sabe lá, se nas mesas europeias mais aristocratas, não haveria uma banana dourada, pintadinha, envolta em papel de seda, à espera de ser parcimoniosamente servida em fatias?

E veio a árvore de Natal. Pequenina, galhos rijos de arame recoberto de crepon verde. Maria não gostava de nada artificial. Maria tinha gosto! Tivesse paciência desta vez. Artificial, o pinheiro era mais econômico, não requeria tantos cuidados, servindo para o próximo ano, ou mesmo, para muitos mais.

Pai e filho: duas crianças iluminadas pelo ingênuo prazer de engalanar a primeira árvore de natal! Qual a mais feliz?

— "E a estrela, pai?"

— "Bolas! — tantas bolas comprara, e esquecera da estrela! A arvorezinha enfeitada, parecia pequenina, ricamente vestida... e lhe esquecera a coroa!"

"Sabe, pai, se eu pudesse ia roubar aquela estrela bonita que brilha lá em cima, no céu!"

Zé Pedro desgostou-se. Que fascinação tinha o filho por esse verbo maldito! Roubar! A própria palavra causava-lhe irritação! Era pobre, mas, honesto. Tivera ao alcance oportunidades sem conta de melhorar de condição. Jamais manchara o nome, que, aliás, já nem considerava seu, mas, do filho. E o seu pequeno... sim, o seu pequeno, com que facilidade lançava mão do alheio! Não havia sido uma, nem duas vezes! Ontem, uma bola furada, sem aparente utilidade. Hoje um velho bodoque e quiçá uma estrela, caso a tivesse ao alcance. E amanhã?... Oh! Deus de misericórdia! — como podia gerar tão monstruosos pensamentos, comprometendo o futuro do futuro Dr. Alberto Celso da Silva?! O tempo, os conselhos e, principalmente, o exemplo paterno, se encarregariam de solver o problema. Coisas de criança! De uma criança que já entrara no mundo baseada em seu maior tesouro!

— "Amanhã, sem falta, terás a tua estrela".

— "E o presépio?"

— Estrilou. “Já estás querendo demasiado, não?" "Insaciáveis as crianças! Mais têm, mais querem!

- "No próximo ano, teremos um presépio bem bonito! Com pastores, carneiros e a Virgem Maria ninando um Menino de cabelos encaracolados. Iguaizinhos aos teus!"

— "E anjos, também?"

— "Anjos também. Muitos anjos!"

E o Natal chegou. Cheio de luzes! Bimbalhando sinos e sugerindo Paz e Amor.

Zé Pedro chegava da rua. Braços pesados, sobrecarregados com os últimos pacotes. A alma leve, leve! Vinha com ele a desejada estrela. A mais bela que encontrara!

Viu gente à porta. Muita gente! Não estranhou. Betinho estaria exibindo o seu lar. Os seus presentes. Andava prosa, ultimamente! Lá chegava a Joana com nova braçada de flores. E não tinham outro vaso!

Contudo, ao chegar, Zé Pedro, em vez da esperada alegria, captou tristeza e dor em cada olhar. Ninguém falava! Abriu caminho até o quarto, já pressentindo algo de funesto. Lá estava ele estendido na cama. Parecia dormir! Muito limpinho, estreando seu terno azul, um quase sorriso nos lábios sem cor.

"Foi um carro..." gaguejou alguém.

"Ele atravessava a rua correndo... ia contar ao filho do farmacêutico, que o seu Natal ia ser bonito... o mais bonito de todos!"

As lágrimas brotavam devagarinho dos olhos cansados de Zé Pedro. Pingos grossos e quentes, caiam mansamente sobre o corpo inerte do menino.

Seu filho... sim, sabia, seu filho fora roubar uma estrela do Senhor! Lá por cima, encontrara a mãe! Maria, por certo, não o deixara voltar. As mães são assim mesmo... Egoístas como ninguém! — quando conseguem prender os filhos nos braços, se pudessem, não os largariam nunca mais!

O caso é que seu filho agora tinha mãe! Tinha um lar! - um lar belo e azul! Muito mais belo, muito mais azul, do que aquele que lhe pretendera dar!

Ah! e tinha também, ao seu alcance, anjos para brincar e não apenas uma, porém, milhares e milhares de estrelas, sem precisar nunca pensar em roubá-las!

Não... não se enganara! Seu filho teria um Natal feliz! Feliz como jamais tivera! — bem mais do que ele ele próprio lhe poderia dar!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

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