sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia IV)

COMO INÚTIL TAÇA CHEIA

Como inútil taça cheia
Que ninguém ergue da mesa,
Transborda de dor alheia
Meu coração sem tristeza.

Sonhos de mágoa figura
Só para Ter que sentir
E assim não tem a amargura
Que se temeu a fingir.

Ficção num palco sem tábuas
Vestida de papel seda
Mima uma dança de mágoas
Para que nada suceda.

COMO UMA VOZ DE FONTE QUE CESSASSE

Como uma voz de fonte que cessasse
(E uns para os outros nossos vãos olhares
Se admiraram), p'ra além dos meus palmares
De sonho, a voz que do meu tédio nasce

Parou... Apareceu já sem disfarce
De música longínqua, asas nos ares,
O mistério silente como os mares,
Quando morreu o vento e a calma pasce...

A paisagem longínqua só existe
Para haver nela um silêncio em descida
P'ra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

E, perto ou longe, grande lago mudo,
O mundo, o informe mundo onde há a vida...
E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

CONTA A LENDA QUE DORMIA

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada

A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.

Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
- Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

CONTEMPLO O LAGO MUDO

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos

Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

CONTEMPLO O QUE NÃO VEJO

Contemplo o que não vejo.
É tarde, é quase escuro.
E quanto em mim desejo
Está parado ante o muro.

Por cima o céu é grande;
Sinto árvores além;
Embora o vento abrande,
Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado,
No que há e no que penso.
Nem há ramo agitado
Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe
Com o que durmo e sou.
Não sinto, não sou triste.
Mas triste é o que estou.

DA MINHA IDÉIA DO MUNDO

Da minha idéia do mundo
Caí...
Vácuo além do profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus ! Além-Deus!  Negra calma...
Clarão do Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...

DE ONDE É QUASE O HORIZONTE

De onde é quase o horizonte
Sobe uma névoa ligeira
E afaga o pequeno monte
Que pára na dianteira.

E com braços de farrapo
Quase invisíveis e frios,
Faz cair seu ser de trapo
Sobre os contornos macios.

Um pouco de alto medito
A névoa só com a ver.
A vida? Não acredito.
A crença? Não sei viver.

DE QUEM É O OLHAR

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando ?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade

De eu ter passos comigo ?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Por mim próprio mesmo
Em alma mal existo,

Toma um outro sentido
Em mim o Universo
- É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre
Minha idéia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora
– Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua
-Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora!

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.

DITOSOS A QUEM ACENA

Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida !
São felizes : têm pena...
Eu sofro sem pena a vida.

Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar...

E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.

DIZEM QUE FINJO OU MINTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo.
Não. Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é,
Sentir, sinta quem lê !

DIZEM?

Dizem?
Esquecem.
Não dizem ?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Por quê
Esperar ?
Tudo é
Sonhar.

DOBRE

Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.

DORME ENQUANTO EU VELO...

Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.

DORME, QUE A VIDA É NADA!

Dorme, que a vida é nada!
Dorme, que tudo é vão!
Se alguém achou a estrada,
Achou-a em confusão,
Com a alma enganada.

Não há lugar nem dia
Para quem quer achar,
Nem paz nem alegria
Para quem, por amar,
Em quem ama confia.

Melhor entre onde os ramos
Tecem docéis sem ser
Ficar como ficamos,
Sem pensar nem querer,
Dando o que nunca damos.

Dorme sobre o meu seio

Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.

Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O 'spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...

No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Antonio Facci (Sem Palavras II)

http://abibliapelabiblia.blogspot.com
Sem palavras para contar histórias, mesmo as mais simples, aquelas que povoam as mesas dos bares da periferia.

Sem palavras para relatar as historietas domésticas, relatando travessuras dos garotos, a gulodice de algum membro da família.

Sem palavras para descrever o cãozinho de estimação que abana o rabo e beija os pés do dono, mesmo depois de haver apanhado.

Sem palavras que possam descrever os olhares incrédulos dos que recebem notícias a eles não destinadas.

Sem palavras para descrever o brilho dos olhos do senhor de cabelos brancos ao falar de suas aventuraas amorosas, quase sempre imaginárias.

Sem palavras!

Fonte:
FACCI, Antonio. Sem Palavras. Maringá: Sthampa, 2003.

Trova 247 - Alcy Ribeiro Souto Maior (RJ)


Simone Pedersen (Embriagado de Versos)

VOZ DE GELO

 Quando você diz que me ama,
 Sua voz ecoa no meu vazio.
 É tão seco dentro de mim,
 Que o som rasga minhas entranhas.
 Não quero mais ouvir.
 Houve, sim, tempo em que queria...
 Sonhava com sua melodia.
 Vivia pela nossa harmonia.
 O tempo passou.
 Você passou.
 E como não deixou marcas,
 não faz diferença.

 O CICLONE

 O ciclone se aproximou
 Com imensa força e rapidez
 As nuvens densas
 Escondiam seu interior
 Extasiada com tanta volúpia
 Permiti que se aproximasse
 Dancei em seus ventos
 Rodopiando centro acima
 Subia e subia
 Cada vez mais imersa
 Nessa nova vida
 Distante da terra
 Meus pés flutuavam
 Nada mais existia
 Além do ciclone e eu.

 QUANDO PASSOU

 A calmaria chegou
 Assustada percebi
 Meus pés afundavam
 Em areia movediça
 Abaixo me puxava e puxava
 Até que morri
 Mil vezes seguidas
 Sem ar, sem espaço
 Sem visão, sem movimento
 Meu corpo na terra
 Lama na lama
 Lágrimas marrons
 Até que não mais era.

A BONECA

Pés descalços no chão
Corpo disforme, raquítico
Barriga grande
Dedo sujo na boca

Terra molhada,
Esgoto a céu aberto
Caixas de papelão
Lar dos subumanos

Urubus e capivaras
Animais de estimação
A boneca tão limpinha
Aninhada no coração

A menina cresceu
E cheirou cola
Depois vendeu seu corpo
Assaltou pedestres felizes
E se mudou para a prisão...

Mas a boneca, ah!
Aquela boneca
Sem cabelos
Lavada com lágrimas
Choradas pela dor de fome
A boneca, ah, a boneca!
A menina levou com ela.

ABANDONO
Mandela

 Você partiu sem despedidas nem explicações
 Eu busquei respostas no passado que preenchessem o vazio
 O porta-retrato no lixo eu recuperei
 Um pijama que não será lavado
 Mosaico da tua presença impregna os sentidos
 Lembranças de frases jogadas:
 “Controladora...”
 “Enruga as minhas asas...”
 “Vai: destranca a gaiola...”

 Era um ninho aberto
 Você não sabia?
 Enruguei minhas asas por que quis
 Subi grades imaginárias
 Em minha volta
 Agora
 Não beijarei flores perfumadas ,
 Caminharei por becos imundos, sozinha

 Sem você, não sou borboleta
 Sou lagarta, agarrada, desconfiada

 Do que tenho medo? Não é medo de cair.
 É medo de te ver voejar em outro jardim.

Fontes:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51.html
http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/2010/06/simone-pedersen-escritora-e-poeta.html

Simone Pedersen

Simone Alves Pedersen nasceu em São Caetano do Sul.

Formou-se em Direito.

Morou onze anos no exterior onde teve vivência multicultural e conheceu diferentes estilos linguísticos.

Desde essa época já escrevia crônicas para os amigos sobre a diversidade que vivenciava.

Reside em Vinhedo, no interior de São Paulo e, há dois anos, participa ativamente de concursos literários, tendo conquistado inúmeros prêmios no Brasil e no exterior.

Tem textos publicados em diversas antologias de contos, crônicas e poesias. É colunista de um periódico da região.

 Ministra oficinas literárias para crianças e adolescentes.

Membro da AEILI J – Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantojuvenil
Membro da Academia Literária AMLAC – SP,
Membro do CEV – Clube de Escritores de Vinhedo.
Membro-fundadora do Clube dos Escritores de Vinhedo,
da Academia Metropolitana de Letras, Artes e Ciências,
da Academia Literária da Grande São Paulo,
da Academia Poçoense de Letras,
membro-correspondente da Academia Caxiense de Letras.
Delegada da UBT em Vinhedo.

Livros Infantis

 Coleção Pápum
 Coleção Fuá
 Vila Felina
 Vila Encantada
 Sara e os óculos mágicos
 Conde Van Pirado

Livros  Adultos

 Fragmentos & Estilhaços: crônicas, contos e poemas
 Colcha de retalhos: poemas
 O Tango da Vida: contos (lançamento em janeiro de 2012)
 
Fonte:
http://www.asesbp.com.br/escritores/escritores51.html

Cacaso (Há Uma Gota de Sangue no Cartão Postal)

eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira
de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor

Heloisa Prieto (O Baú Secreto da Vovó)

Quando eu era menina e sentia medo, no lugar de chorar, ficava com raiva.

Na noite em que descobri o baú de minha avó, eu estava em Santos. Trovejava muito. Apavorada, comecei a gritar que odiava o mar. Foi quando minha avó me chamou.

— Minha neta, você sabia que eu tenho um baú cheio de segredos?

— Como assim? Onde?

— Lá no fundo da garagem.

Pronto. Nada como a curiosidade para espantar o medo. Na garagem, vovó o abriu e retirou de dentro dele uma espécie de régua:

— Você sabe o que é isso?

— Uma régua esquisita — respondi.

— Não, isso é uma palmatória. Quem errasse na escola levava uma batida na palma da mão.

— Não acredito! E por que a senhora guardou esse treco?

— Pra lembrar que a gente precisa ser mais forte do que as injustiças. Olhe... meu dedal preferido. Foi com ele que eu costurei essa roupa — e ela me mostrou um vestidinho com uma espécie de short por baixo.

— Você jogava tênis, vovó?

— Não, isso é um maiô!

— Você nadava de vestido?

— Sim, e era considerada atrevida. Mas foi assim que conquistei seu avô.

— Nadando de roupa?

— Eu vinha de uma família pobre. Seu avô, não. Ele lia, gostava de dançar.

— E de nadar também?

— Sim, e por isso fiz esse maiozinho. Corri até a praia de chapéu. Seu avô estava tomando sol. Fingi que tinha perdido o chapéu no mar. Ele era um cavalheiro e veio ajudar. O chapéu foi parar no fundo. Apostamos uma corrida para ver quem o apanhava. Ele gostou da minha ousadia.

— Foi assim que vocês começaram a namorar?

— E logo me casei. Guardei o dedal pra lembrar que a gente precisa tecer a felicidade, e o maiô, porque um pouco de coragem não faz mal a ninguém. Olhe essa caixinha de música. Seu avô me deu quando você nasceu. Não é linda?

Vovó mostrou para mim outros objetos e assim fui descobrindo que se não fosse o mar, que eu temia, não haveria o encontro de meus avós e que viver é saber perder o medo de tudo o que a gente nunca espera e nunca vai conseguir controlar.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Elisa Barreto (Sonetos Escolhidos)

Fonte: Libreria Fogola Pisa
"VELHAS FOTOGRAFIAS"

Velhas fotografias, amarelas,
lembram vidas da vida que passou.
São guardiãs fiéis, são sentinelas,
que a arte no papel eternizou.

Guardam características singelas
de épocas que a evolução tragou.
Na estrutura da vida são janelas
que o palácio do tempo conservou.

Olham-me da parede, penduradas,
como a indagar-me, muito admiradas,
por que eu as fito tão frequentemente . . .

È que as fotografias tomam vida
e a alma de alguém, quando nos foi querida,
nelas palpita misteriosamente.

"OS TEUS OLHOS NEGROS"

Teus olhos de grafite são pequenos
mas nele cabe em plena intensidade
todo o matiz suave, os tons amenos
do colorido espelho da saudade.

São plácidos, tranquilos e serenos
e emitem tanta luminosidade
que me fazem pensar: são dois acenos
para a luz imortal da eternidade.

Bendigo nos teus olhos minha vida
por me dar a ventura indescritível
de sentir a beleza em toda a essência

e louvar, num soneto, comovida,
o êxtase que torna imperecível
a sublimada glória da existência.

"COLIBRI"

Por entre margaridas e agapantos
e hortênsias e junquilhos rosa-amor.
ligeiro, mas sereno e sem espantos,
voeja o colibri de flor em flor.

Nas asas tem feitiços, tem quebrantos;
em vários tons de azul esplende a cor
e vai, beijando dálias e rodantos,
sem mágoas, sem tristezas e sem dor.

Que ave delicada e pegureira!
Tão lépida a voar na claridade
do éter que se evola da Natura,

é a doce precursora, a mensageira
de tudo o que traduz felicidade
e indica o Paraíso à criatura!
–––––––

Elisa nasceu na cidade de Santos, Estado de São Paulo. Jornalista, poeta.
Homenagens:
"Concurso Internacional de Poesia",
Academia Teresopolitana de Letras;
Troféu "Colombina"
e Taça "Bernardo Pedroso", Casa do Poeta de São Paulo .

Livros:
Turbilhão de Emoções, 1961; Catedral de Lágrimas, 1964;
Pequena Antologia, 1965; Outros Poemas,1969 .


Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/072-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 7. Rufina

Esquisita vaga de saudade! Ontem, anteontem, nada vi no bonde: nada vi senão Rufina, a moça que salvei de um desastre iminente.

A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, que tinia de vida e
mocidade, se lhe guardara afeição apenas pelo fato de a ter socorrido. -Há no fundo de nossa alma um veiozinho de sentimento que fica agradecido aos que nos devem serviço. E quando quem deve o serviço é uma bonita mocetona, temos evidentemente uma complicação a mais.

Ser útil a alguém no perigo ou na penúria, é o melhor caminho para vir a querer-lhe bem: fica-nos pertencendo um pouco, já que nos custou alguma coisa. Andam errados os moralistas filantropos quando pregam a necessidade de amar ao próximo como condição e preparação para o ajudar e suportar. O primeiro passo é ajudá-lo e suportá-lo: o amor vem depois.

Mas isto não tem nada que ver com o amor-amor, amor-desejo, o amor-folia; e a perturbação que Rufina deixou em mim veio muito menos do susto de que a livrei do que do filtro luminoso que a furto se lhe escorreu de entre as pálpebras semicerradas.

..................................... un long rayon d'étoile!

Ah! Rufína, meteoro rutilante perpassaste pelo céu caliginoso de minha vida! Estarás a estas horas olvidada de mim. Nem por um momento esvoaçará tua cabecinha pequenina e redonda a idéia de que deixaste um farpão enroscado na carne de um pobre funcionário; de que esta pobre alma, jogada de cá para lá sobre os trilhos imutáveis, está a ver-te sempre no mesmo banco, ao lado do mesmo ancião de rosto severo e pausada voz, como um avezita ao lado de um rinoceronte. -Perdoa-me, se é teu pai, ou teu avô, ou padrinho; mas não podias ter companheiro que melhor fizesse realçar a tua brevidade graciosa e arrogante de galinha garnisé.

Não te verei mais, Rufina?

Fonte:
Domínio Público

Soares de Passos (Desengano)

Vejo-a ainda! ressurge a meus olhos
Como em tempos ditosos surgia,
E, qual anjo de casta poesia,
Desce às vezes num sonho d'amor;
Vejo-a ainda nos céus e na terra,
Nos encantos e risos da aurora,
E, se o dia nas ondas descora,
Das estrelas no meigo fulgor.

Era a luz que brilhava em minha alma,
Era o astro que em sombras luzira,
Era o fogo sagrado que a lira
Às doçuras d'amor acordou...
Tudo c findo; debalde nas trevas
Busco ainda seu facho luzente:
Foi apenas um astro cadente,
Meteoro fugaz que passou.

Pobre seio que ardente pulsaste
Embalado por falsas venturas,
O fanal que na terra procuras
Sobre a terra jamais acharás.
Não há seio que entenda no mundo
Esse ardor de teus vagos anelos;
Não há luz que em seus raios mais belos
Não te esconda uma sombra falaz.

Que te resta? um futuro vazio
D'ilustres que nutriu a esperança,
E um passado de triste lembrança
Como é triste a verdade sem véu...
Olvidar! olvidar! que ao presente,
Ai! só cabe o repouso do olvido.
Olvidar! e que em gelo sumido
Seja o fogo que em chamas ardeu!

Sonho belo, que esta alma iludiste,
Chama ardente nos céus ateada,
Voa, voa à celeste morada!
Lá nasceste, do mundo não és.
E tu, lira de lânguidas cordas,
Que de amor suspiraste em desleixo,
Vai, oh, vai! em silêncio te deixo...
Vai, oh, vai para sempre talvez!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Teatro de Ontem e de Hoje (O Cão Siamês)

Peça de Antônio Bivar lançada em 1969, na esteira do sucesso aberto por Cordélia Brasil, traz uma marcante interpretação de Yolanda Cardoso, que divide a cena com Antonio Fagundes, sob a direção de Emílio Di Biasi. A encenação é materialmente modesta, mas iluminada pelos intérpretes. Espetáculo cult, faz breve temporada e tem pouco público.

A peça é centrada na figura de Alzira, uma explosiva outsider, crítica, bem informada, desbocada e irreverente, que atende a Ernesto, vendedor de enciclopédias que bate à sua porta. O rapaz, casado e com filhos pequenos, revela-se uma pessoa sem sonhos, conformado com sua vida modesta e sem perspectivas. O encontro entre figuras tão díspares produz um conflito: o anarquismo de Alzira triunfa, massacrando a racionalidade de Ernesto. Para Emílio Di Biasi, "Alzira é uma heroína marginal, já que ela faz a apologia de tudo o que vai contra os princípios do que se convencionou chamar sociedade. A sociedade absurda de Ernesto contra o absurdo mundo de Alzira. [...] Ela se recusa a qualquer tipo de sentimentalismo pessoal e leva seu subconsciente violento até as últimas conseqüências".1

Em 1970, o diretor Antônio Abujamra monta o texto no Rio de Janeiro, retrabalhado e aumentado por Bivar, com a mesma atriz e com Marcelo Picchi vivendo Ernesto. A encenação alcança grande sucesso e repercussão, rebatizada como Alzira Power, retorna posteriormente para São Paulo, onde faz longa carreira.

A encenação carioca desperta vivo entusiasmo na crítica especializada, como anota Henrique Oscar no seu comentário: "O espetáculo de Abujamra está todo apoiado numa hábil direção de atores. Neste sentido, o rendimento obtido com Yolanda Cardoso é muito grande. Ela assume o papel com uma garra impressionante. Outro que se sai muito bem é o ator paulista Marcelo Picchi, em seu segundo desempenho profissional. Num papel que pede muito menos do intérprete do que sua parceira, ele tem um trabalho perfeitamente realizado, inclusive nos momentos mais perigosos que o texto lhe exige".2

Antônio Bivar completa em seu livro detalhes peculiares sobre a montagem de Abujamra: "Tirando o Hair, onde todos ficavam nus, Alzira era novidade também por, além de ser uma peça que falava fundo às mulheres - como nenhuma peça brasileira até então (a personagem-título era uma libertária desvairada) - tinha, como sobremesa, a exibição demorada e ritualística de um rapaz pelado. Não estava no texto, era coisa da direção picárdica de Antonio Abujamra".3

Yolanda Cardoso recebe, com este desempenho, todos os prêmios como melhor atriz do ano, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo.

Notas

1. ALZIRA POWER OU O CÃO SIAMÊS DE ALZIRA PÔ... LÔCA. Direção e texto Emílio Di Biasi. São Paulo, 1969. 1 folder. Programa do espetáculo, apresentado no Teatro Ruth Escobar em agosto de 1969.

2. OSCAR, Henrique. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, jul. 1970.

3. BIVAR, Antonio. Longe Daqui Aqui Mesmo. São Paulo, Best Seller, 1995, p. 17.


Fonte:
Enciclopédia Itaú Cultural

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte III

2.2 Sousândrade: um romântico

 Inscrito cronologicamente dentro do movimento romântico, Sousândrade não escapou plenamente desse ideário. Na concepção de Williams (1976, p. 75), “Sousândrade foi um poeta romântico, modelado e desenvolvido pelo romantismo nacional e internacional”. Se pensarmos Sousândrade pelo prisma romântico, podemos perceber em sua obra a marca de sua época. A constante aproximação do cenário exótico da “pátria” ao jardim do Éden, ponto de pureza natural presente no livro do Gêneses, leva a uma idealização tipicamente romântica, pois o território nacional é comparado a um elemento de absoluta pureza. Tal postura implica um nacionalismo latente, pois o elemento natural, visto como ponto de afirmação da individualidade, passa a ser adorado enquanto índice de brasilidade.

O Eden alli vai n’aquella errante

Ilhinha verde – portos venturosos

            Cantando á tona d’água, os tão mimosos
            Simplices corações, o amado, o amante.
Incantados lá vão, ás grandes zonas
            D’ um outro mundo, a amar, a ouvir cantando:
            Oh, ninguem sabe o incanto do Amazonas
            Ao sol, ao luar, as aguas deslumbrando!

Esta é a região das bellas aves,
            Da borboleta azul, dos reluzentes
            Tavões de oiro, e das cantilenas suaves
            Das tardes de verão mornas e olentes;
A região formosa dos amores
            Da araçaranea flor, por quem doudeia,
            Fulge ao sol o rubi dos beija-flores,
            E ao luar perfumado a ema vagueia.

(O Guesa. Canto II, p. 21)[iii]

Neste fragmento, temos uma visão idílica do espaço natural. Os elementos naturais como “borboleta azul”, “araçaranea em flor”, “beija-flores”, “ema” são aproximados a tons amenos da natureza como o entardecer, tendo ao fundo uma “cantilena”. Essa postura indica a visão do espaço natural como pólo de paz para o eu-poético. A sinestesia “luar perfumado” poderia ser citada como confirmação dessa visão idílica auferida à natureza. As riquezas “oiro” e “rubi” são derivadas de elementos naturais como o raio e os beija-flores. Tal indicação remete a uma riqueza imanente ao traço natural. Podemos falar, então, em uma supervalorização do espaço natural que, via de regra, vem envolto em um olhar deslumbrado e, portanto, nacionalista e idealizador.

No entanto, a racionalização da tradição romântica deve ser reconhecida como ponto de distinção da obra sousandradina dentro das manifestações “corriqueiras” de nosso Romantismo. Sua linguagem transborda os limites conservadores do cânone romântico consagrado no Brasil e, por isso, não seria compreendida dentro desse movimento. O próprio Sousândrade (apud WILLIAMS, 1976, p. 14) afirma: “Ouvi dizer já por duas vezes que ‘O Guesa Errante’ será lido cinqüenta anos depois; entristeci – decepção de quem escreve cinqüenta anos antes”.

Essa singularidade não leva, como já salientamos, a uma ruptura com o ideário romântico, mas sim a uma nova perspectiva em relação à heterogeneidade do movimento. Fazendo uma distinção dentro do Romantismo, Paz (1984) salienta que esse movimento apresenta duas vertentes: uma que valoriza a emotividade como elemento máximo, levando a uma espécie de supervalorização do impulso primário, revelando, assim, uma profunda impulsividade e eloqüência; e uma segunda vertente, na qual a postura emotiva aparece permeada por uma certa racionalidade que busca condensar o veio impulsivo da primeira vertente.

Segundo o crítico, foi a primeira vertente que determinou a formulação canônica consagrada no movimento romântico brasileiro. Na segunda vertente, mais racional, figurariam nomes como Nerval, Nodier, Hölderlin, poetas que souberam redefinir o veio consagrado e, por esse motivo, ficaram longo tempo à margem da valorização literária. É a essa vertente racional que aproximamos o procedimento poético sousandradino. Haroldo de Campos (1976, p. 18) toca nessa questão ao afirmar que “nosso Romantismo poético – [...] é um Romantismo defasado e epigonal, extremamente dependente dos modelos europeus, [...] principalmente, dos paradigmas ‘extrínsecos’ (a oratória hugoana, o intimismo soluçante de Musset, a religiosidade lacrimatória de Lamartine)”.

Em oposição a essa corrente epigonal, o crítico salienta a existência de um Romantismo “crítico”, baseado na apropriação crítica dos valores emotivos predominantes no Romantismo canônico.

Diante do exposto, poderíamos dizer que a obra sousandradina não pode ser entendida completamente sem levar-se em conta que o poeta distanciou-se da linha predominante em nosso Romantismo. A interposição do “externo” ao “interno” revela a consciência da diferença entre a cultura do conquistador e a cultura indígena; em outras palavras, o poeta soube manipular a tradição para atingir uma toada distinta da de seus contemporâneos e, com isso, vislumbrar uma individualidade mais próxima do elemento nativo.

continua…

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia III)

CANSA SENTIR QUANDO SE PENSA

Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)

CERCA DE GRANDES MUROS QUEM TE SONHAS

Conselho


Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim com lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...

CESSA O TEU CANTO!
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Com que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós.

Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas cantar.
E a melodia
Que não havia.
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.

CHOVE. É DIA DE NATAL

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

CHOVE. HÁ SILÊNCIO, PORQUE A MESMA CHUVA

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

CHOVE ? NENHUMA CHUVA CAI...

Chove ? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?

Onde é que chove, que eu o ouço ?
Onde é que é triste, ó claro céu ?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...

Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...

COMEÇA A IR SER DIA

Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.

Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.

Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.

Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.

Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente ?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.

COMO A NOITE É LONGA !

Como a noite é longa !
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p'r'ao pé de mim...

Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido !
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo ?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Fonte:
Fernando Pessoa. Cancioneiro.
Imagem formatada com sobreposição de figuras modificadas com imagens obtidas na internet, sem identificação do autor.

Amadeu Amaral (Memorial de Um Passageiro de Bonde) 6. O Homem que Fuma

Vou deixar o hábito de ler no bonde, hábito estúpido. Ver o homem viver é mais interessante doque ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa que pensa.) É certo que no bonde, geralmente, salvo numerosas exceções, vai quieto e sorumbático. Mas onde quer que esteja, e como quer que esteja respira humanidade. E os seus gestos e momos mais fugitivos são debuxos descosidos do grande jogo de cena que faz a dramaticidade da história.

"Todo ser humano é para mim um templo, e eu gostaria mais de distinguir os traços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que de ver o famoso quadro da Transfiguração de Rafael." Esta opinião de Sterne em sua Viagem Sentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. -Só divirjo dele em que não gosto apenas dos traços originais, mas de todos. Aliás, no fundo, cada homem é sempre uma síntese original, um composto único, um exemplar sem parelha. A nossa visão grosseira ou a nossa necessidade e sede de catalogação é que nos obriga a converter as semelhanças em identidades e as analogias em semelhanças, a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realidade tangível, único depósito real de humanidade vivente e vibrante.

Viajei ao lado de um homem que, pela casca, devia ser negociante de secos e molhados. Era, de fato. Cheirava a suor, tinha os dedos grossos e encardidos, trazia um casaco de casimira cinzenta semeado de respingos, coscorões e tintas de varias cores. Contudo, carregava relógio com uma grossa cadeia de ouro, guardava na pupila a chispa da independência e, enfim, tinha esse ar de cavaleiro garbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homens classificados e prósperos.

Mascava um toco de charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entre os quais havia senhoras de várias idades, formatos e cores. Não lhe ocorria sequer a idéia de que pudesse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmo homem, em mangas de camisa, por trás do balcão a desfazer-se em mesuras com os habítués do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.

Portanto, um abjeto ganhador de níqueis? um tipo que se faz calculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quando não depende? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com a freguesia é uma forma de virtude. Disto se ufana. Ensina essa virtude ao caixeirinho, ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção de que o Bem é uma coisa que logo se reflete na gaveta.

No bonde, o Sr. Joaquim já não é um negociante, é um passageiro. Aí, já não sente os limites que de ordinário lhe circunscrevem a personalidade, pungindo-lhe a carne; dá liberdade ao corpo; reveste, como uma roupa larga, os gestos e modos comuns do passageiro.

A este não lhe incumbem senão três coisas: pagar a passagem, não fumar nos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar de uma pessoa -o que não é difícil, a menos que tenha um volume incapaz de redução à unidade, na aritmética dos bondes. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos podem, ser brutos, dentro das regras, bastante amplas, que presidem a vaga polícia dos carros. -O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado deste princípio, que da mesma forma já se lhe incorporou à maquinalidade dos reflexos.

Ora, quem estiver isento de culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos, nesta vida, cada um a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim. Todos, no fundo, vendeiros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros que fumam nos bondes da vida muito à sua vontade.

Onde estão a originalidade do Sr. Joaquim? Eis o que não pude descobrir, mas tenho a certeza de que lá está, dentro dele, como uma pérola no ventre de um galo. Questão de tempo e de paciência. – Há criaturas difíceis de decifrar. São enigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o grande matador de todas as charadas.

Fonte:
Domínio Público

Marcelo Spalding (A Literatura Infanto-Juvenil Que Vem de Longe)

O livro sobre o qual escreverei hoje é um dos mais delicados, bonitos e profundos textos de literatura infanto-juvenil que já conheci. Por seus méritos literários e humanísticos (que talvez sejam os mais importantes), deveria figurar na lista de compra do MEC, entre os finalistas dos grandes prêmios, nas vitrines das livrarias. Não vai. Possivelmente (e isso é triste como o final da história) terá poucos e encantados leitores, alguns elogios como esse na internet, mas não conseguirá emergir da enxurrada de textos juvenis publicados.

 Comecemos, então, por aí. A menina que veio de longe (2012, 82 p.) é o livro de estreia da contadora de histórias Andréa Ilha, professora da rede municipal de Caxias do Sul e moradora de Farroupilha, RS. Num tempo em que livros e mais livros são escritos para vender e distrair, distrair e vender, com histórias repletas de aventura e divertimento, A menina que veio de longe é um livro que faz pensar. Não que as palavras sejam difíceis; os temas é que o são. Difíceis — e complexos — como a vida.

 Mas não é por isso que A menina que veio de longe não chegará aos tantos leitores que o amariam. E nem pela ausência de ilustrações internas, num mercado sedento por livros para serem vistos, não para serem lidos. O livro não vai ter o destaque merecido porque Andréa é uma escritora iniciante aqui no canto do Brasil; porque Andréa não faz salamaleques para a imprensa e não assina coluna em jornal; porque Andréa é professora municipal como tantas e trabalha muito; não é modelo, atriz, filha de famoso ou ex-BBB. E, talvez o mais decisivo, por tudo isso o livro foi lançado pela própria autora e não traz em sua capa um selo capaz de negociar com as livrarias, com o governo ou com os prêmios literários.

 Sim, leitores, infelizmente em muito prêmios escolhe-se o livro sem ir além das capas (o festejado Portugal Telecom posso dizer que é um deles). E o governo só faz as generosas compras para o MEC das editoras por ele cadastradas (que além de não serem muitas, concentram-se sobremaneira no eixo Rio-SP). Mas aquele que abrir a capa e buscar o texto de Andréa Ilha terá uma das maiores e melhores surpresas que se pode ter no mundo literário: descobrir uma grande história.

 A história começa fiel ao título, com a narradora saindo da cidade em que nasceu e vindo para Porto Alegre, cidade da família da mãe. A menina, sabe-se já pela capa, e é dito no começo, é mulata. Mas eis um dos primeiros méritos do livro: isso é uma informação, não o tema da história. A menina é mulata como poderia ser loira ou ruiva.

 A mudança de cidade, aos poucos, se revela apenas a ponta do iceberg, consequência de problemas maiores, não causa. E a trama vai se tornando bem mais complexa. Logo no começo, depois de chegarem em Porto Alegre, os pais da menina Dulce partem para tentar a vida no Canadá, deixando a menina com muita saudade e sob cuidados da avó. O incrível é que, aos poucos, percebemos que esses pais não são exatamente os pais dos livros infanto-juvenis, sempre tão íntegros e amorosos e perfeitos. Não, os pais aqui somem, não têm tempo, têm medo, fraquezas. Os pais não são heróis, tampouco vilões. São personagens complexos como os pais de fora dos livros. Vejamos esse trecho em que um amigo de Dulce fala sobre sua família:

 "— Sabe o que é, Dulce? — o Vítor saiu falando, com o rosto cada vez mais vermelho, e a voz um pouco trêmula — É que eu fui abandonado pela minha mãe. Quando eu e os meus irmãos, quando a gente era bem pequeno. A mãe conheceu um outro cara e foi embora com ele. Eu até me lembro de ter visto ela saindo com ele, indo embora no carro dele. Eu chorei muito, mas sempre fiquei esperando que ela ia voltar de novo. Mas ela não voltou. E ficamos só com o pai. Mas o pai trabalha tanto, tanto, que quase a gente não vê ele. É muito chato, e eu fico triste com isso, tem dias que eu chego até a ter saudade dele."

 É esse realismo sincero e sem melodramas que chama a atenção no livro. Não é o primeiro a fazer isso, claro, mas o faz com leveza, profundidade. A narradora menina é obrigada a lidar com sentimentos e problemas que passam longe de sua idade, mas perto demais de sua casa. E de tantas casas.

 Engana-se, porém, quem espera uma leitura pesada. Andréa cria na história um espaço lúdico, um mato fantástico e um ser em forma de cone que convivem sem dificuldades com a narrativa realista, dando um tom de suspense e ajudando sobremaneira nas cenas mais densas. Nesse aspecto lembra filmes como O Labirinto do Fauno ou O Jardim Secreto.

 Embora pareça paradoxal, o tom que predomina é de pureza. Tal pureza da narrativa é bem representada, por exemplo, na fala final de Vítor, o melhor amigo de Dulce, uma fala curta que talvez sintetize o grande sonho que todos nós tivemos um dia, e também nossos pais, avós, bisavós, de geração para geração:

 "- Nunca na minha vida eu vou precisar de outra pessoa. Eu tenho tu! Quando a gente fizer quatorze anos, eu vou te pedir em namoro pra vó. Ela vai deixar, e a gente vai namorar, e, depois, com dezoito ou dezenove, a gente vai casar. Mas a gente só vai ter filhos bem mais tarde, que é pra gente estudar, se curtir um montão, só os dois, e juntar dinheiro pra ter uma vida bem legal com as crianças. E, daí, a gente nunca, mas nunca mesmo, vai deixar os filhinhos da gente! A gente vai ficar junto com eles, sempre junto, até eles crescerem felizes de serem amados pelos pais bons que a gente vai ser!"

 As coisas, nós sabemos, às vezes não saem como o planejado. Mas o final do livro, para um leitor jovem, é reconfortante. E para um adulto, aparentemente previsível. Só aparentemente, porque esse não é o verdadeiro final, já é o epílogo, a coda de um final trágico, porém necessário. Realista.

 Nem é preciso dizer que eu quero muito estar errado, quero muito que o livro seja descoberto e distribuído para as tantas e tantas crianças que nao têm a família pefeita dos comerciais de TV. É possível que da mesma pena de Andréa saiam outros e outros livros e a obra consiga o merecido destaque nessa geleia geral que virou nossa literatura juvenil. Ou, quem sabe, que essa resenha caia nas mãos de um editor atento e ele pelo menos abra o livro, deixando-se cativar pela simplicidade do texto e emocionar-se pela profundidade da trama.

 O problema maior é que A menina que veio de longe é, sem duvidas, apenas um símbolo da quantidade de belas obras publicadas em todo o Brasil que nós sequer conhecemos, já que não são lucrativas para as livrarias (sempre tão sedentas por blockbusters estrangeiros). O que pode estar acontecendo é que temos muitos bons escritores, mas talvez estejam rareando os bons leitores.
––––––––––
Sobre o Autor do Artigo
Marcelo Spalding é formado em jornalismo e mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS, professor da Oficina de Criação Literária da Uniritter, editor do portal Artistas Gaúchos, autor dos livros 'As cinco pontas de uma estrela', 'Vencer em Ilhas Tortas', 'Crianças do Asfalto', 'A Cor do Outro' e 'Minicontos e Muito Menos', membro do grupo Casa Verde e colunista do Digestivo Cultural. Recebeu o Prêmio AGES Livro do Ano 2008 pelo livro 'Crianças do Asfalto', categoria Não-Ficção, e o Prêmio Açorianos de Literatura em 2008 pelo portal Artistas Gaúchos.

Fonte:
http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=707

Danglei de Castro Pereira (Sousândrade: tradição e modernidade) Parte II

2.1 O cânone romântico brasileiro

O cânone consagrado em nosso Romantismo, amplamente discutido por Edgar Cavalheiro (1959), figuraria como o resultado de uma exposição de valores nacionais influenciados esteticamente por um olhar europeu. Segundo Cavalheiro (op. cit.), poder-se-ia delimitar, dentro da complexidade do movimento, características comuns entre as manifestações de nosso Romantismo. Dentre as quais, as principais seriam: i) o abandono ao cânone clássico, o que implica antes de tudo na mudança da noção de belo artístico e a conseqüente negação da cultura greco-romana; ii) a valorização de temas e traços particulares de cada região e, por fim, iii) a valorização do traço subjetivo, pois a expressão romântica passaria a ser centrada na individualidade e não na obra em si.

Para Cavalheiro (op. cit.), a tendência romântica à valorização das peculiaridades inerentes a cada região assume a função de distinguir a corrente brasileira das influências externas. Essa distinção, conseguida através da interação entre a visão subjetiva e a realidade, fez com que o olhar subjetivo revelasse uma supervalorização do espaço brasileiro em uma atitude marcadamente emotiva. O poeta romântico brasileiro, assolado pelo furor nacionalista, cantou o território brasileiro como o melhor e o mais belo do mundo e, nesse processo, plasmou um olhar utópico que, em muitos casos, aproxima-se da impulsividade emotiva perceptível na vertente epigonal.

A esse respeito podemos lembrar Gonçalves Dias.[ii] Em “Canção do Exílio”, por exemplo, a valorização do natural e a afirmação patriótica, associadas a uma esperança no futuro, podem ser entendidas como constantes canônicas de nosso Romantismo. Em poemas como “O canto do Piaga” e “I-Juca-Pirama”, é possível identificar o elemento natural como a expressão do “genuinamente” brasileiro. Em “Leito de folhas verdes”, Gonçalves Dias sintetiza, na figura da mulher indígena, a pureza dos elementos naturais. “A flor que desabrocha ao romper d’alva” pode ser entendida como uma metáfora da própria nação brasileira à espera da plenitude do porvir.

Essa postura nos leva a afirmar que existe, no cânone romântico brasileiro, uma tendência à pacificação do sujeito pelo traço natural. A expressão de sentidos positivos ligados a esse ambiente atenua o sofrimento do Eu em conflito com o mundo. A identificação entre o Eu e a natureza sintetiza a negação da realidade agressora, pois a pureza da natureza seria para o romântico um dos mecanismos utilizados para a efetivação do ímpeto transcendente. O artista tende a ver no espaço natural uma função catártica, pois procura, por meio da equiparação à pureza do espaço, resgatar sua plenitude perdida no contato com o mundo civilizado. O natural, visto por esse prisma, revela o desejo de purificação do Eu e, por esse motivo, passa a ser ponto de equilíbrio entre o homem e o mundo.

Dentro desse traço catártico, as imagens ligadas ao natural estão, quase sempre, em harmonia e remetem a uma paz interior. Reportemo-nos aos versos de “Quadras de minha vida”, de Gonçalves Dias: “De bela flor vicejante,/ E da voz imensa e forte/ Do verde bosque ondulante...”. Aqui, o elemento natural é visto como purificador do Eu romântico, que procura afirmar-se como parte integrante da harmonia natural. O tom ameno e singelo, percebido na adoção de imagens delicadas como o céu azul e límpido, o campo verdejante, a alvura das nuvens, o rio limpo que segue seu curso, a beleza das flores, a pureza da amada comparada à mãe e à irmã, entre outros, teriam a função de reafirmar a ligação do sujeito com o estado de pureza da natureza.

Alfredo Bosi (1993, p. 245) observa que a linguagem romântica tende a buscar a equiparação ao natural com o intuito purificador, uma vez que “a metáfora romântica mais simples é sempre a que se funda sobre alguma correlação entre paisagem e estado de alma”. Dessa forma, o apego ao natural representaria a busca por purificação do mundo corrompido que degrada o sujeito. Daí a predisposição romântica a se fixar na exposição do traço exótico e exuberante de nossa natureza tropical, pois quanto mais intocada a natureza, mais o sujeito se identificará com esse ambiente de pureza.

A religiosidade seria outro pólo explorado pelo sujeito como fonte de purificação para os desequilíbrios do mundo empírico. Em “Sobre o túmulo de um menino”, Gonçalves Dias mostra a imagem angelical da criança morta como forma de amenizar o sofrimento da perda: “O invólucro de um anjo aqui descansa/ [...] Como o’ferenda de amor ao Deus que o rege; / Não perguntes quem foi, não chores; passa”. Na temática romântica, o traço religioso, visto como fonte de esclarecimentos e explicações para a degradação do homem pela realidade, pode ser entendido como um prolongamento do elemento natural.

Dada à tendência romântica de idealização da realidade, o aflorar dessa tentativa de pacificação exprime-se por uma profunda emotividade. Nessa tentativa de transformar o mundo, a castidade, a pureza angelical, o homem e a mulher quase perfeitos serão valorizados e largamente utilizados pelos artistas românticos. Nos versos do poema “Rôla” de Gonçalves Dias: “Amo-te, quero-te, adoro-te/ Abraso-me quando em ti penso,” é notável como o sentimento amoroso figura como fonte de plenitude. Em “Se se morre de amor”, de Gonçalves Dias, o lirismo deixa transparecer essa atitude idealizada, devendo ser preservado em sua plenitude.

A pureza, então, passa a ser vista como fonte da plena realização do desejo transcendente e, uma vez profanada, gera a dilaceração da plenitude do Eu: “amá-la, sem ousar dizer que amamos,/ E temendo roçar os seus vestidos,/ Arder por afogá-la em mil abraços:/ Isso é amor, e desse amor se morre!” (Gonçalves Dias). A plenitude concretiza-se na impossibilidade, o sujeito idolatra a amada à distância; é como se a proximidade destruísse a idealização. Nos momentos em que o desejo de profanação materializa-se, o sujeito transfigura o “perfeito”, degradando a figura divinizada.

Essa possibilidade de degradação imanente ao espírito romântico, muitas vezes proporciona um amargor em relação à visão positiva do sujeito com o mundo (Eu pacificado pelo natural). Nesse caso, o pessimismo invade o espaço eufórico, levando à angústia e à melancolia. O universo natural, transfigurado em negatividade e sofrimento, passa a agressor, perpetuando o desequilíbrio do Eu. É o “mal du siècle”, momento em que o Eu torna-se irônico por assumir uma posição consciente face sua inquietação com o mundo.

Segundo Octavio Paz (1984), a ironia advém da constatação da dualidade do homem. É justamente a consciência dessa situação que proporciona a angústia e o pessimismo do Eu romântico. O sujeito inverte a apreciação positiva e se torna sarcástico, brincando com a impossibilidade de realização do equilíbrio. Tal postura romanesca é caracterizada por Bosi (1993, p. 248) como uma “inversão do liame tradicional”, pois o dia é relegado à noite, a beleza, ao grotesco; a vida, à morte; a pureza, à depravação; a perfeição, à imperfeição.

Essa postura negativa leva o Eu romântico a ver na morte o elemento de purificação do espírito, agora transfigurado em sofrimento e dor pela passagem inerte e vazia pela vida. Nessa fase de desespero e agonia, é comum a incorporação de elementos como a prostituta, o fluir inútil do tempo e das esperanças, a noite fantasmagórica, a fixação na lápide e no sepulcro, entre outros. É como se o poeta negasse sua vida atormentada para ver, na morte, o elemento de regresso ao equilíbrio perdido.

Em sua procura por transcendência, o artista romântico plasma um discurso extremamente inusitado, adotando uma linguagem “culta”, recheada de metáforas, sinestesias, paralelismos, hipérboles, entre outras figuras de linguagem. A preocupação formal em exprimir a emotividade produz um efeito paradoxal, pois, ao tentar ser genuinamente emotivo e atingir a “pureza expressiva”, o artista racionaliza esse impulso no momento de concretizá-lo em linguagem.

Tal procedimento produz uma espécie de aprisionamento do Eu pela linguagem. Musset (1835) expressa muito bem esse aprisionamento ao afirmar que as palavras atrapalham a plena expressão romântica. Não sendo suficiente para a expressão total do sujeito, a língua limita seu ímpeto primário e passa a ser explorada enquanto extrapolação expressiva.

Desse modo, o Romantismo representou uma reformulação da linguagem, pois, na tentativa de extrair dela seu significado mais profundo, o sujeito usou os recursos formais para atingir a perfeição expressiva. No dizer de Blanchot (1988, p. B-3), o movimento romântico buscou “o cerne da palavra para extrair dela a pureza expressiva”. Daí termos, nesse período, o chamado “barroquismo”, entendido, aqui, como trabalho estético com a palavra para atingir um plano expressivo mais próximo do desejado pelo espírito romântico.

Nesse sentido, o Romantismo brasileiro, marcado por uma profunda emotividade, plasmou no campo lingüístico uma atmosfera de valorização do elemento nacional como fator de individualização de nossa realidade. Foi o momento de afirmação de nossa identidade nacional, representando uma verdadeira revolução do ponto de vista expressivo. Como bem observa Manuel Bandeira (1963), o Romantismo foi o momento em que o Brasil expressou verdadeiramente sua cultura através da literatura.

Essa constante auto-afirmadora não impediu, no entanto, que nosso Romantismo sofresse interferências externas. É notável como artistas românticos europeus como Byron, Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand e tantos outros influenciaram nossos poetas. Esse perene “olhar para fora” determinou um caráter europeu imanente a nossa vertente canonizada, já que o Romantismo brasileiro tradicional ou conservador moldou a “cor local”, tendo como paradigma as influências externas.

Para Manuel Bandeira (1963, p. 66), “a poesia romântica enche o século, de 36 até os primeiros anos da década de 80, renovando-se através das gerações, não na forma – vocabulário, sintaxe, métrica – a que se manteve sensivelmente fiel, mas nos temas, no sentimento e no tom.”. Apresentando algumas tentativas de mapeamento da diversidade temática romântica, assim Bandeira divide o ideário:

Pondo-se de parte as pequenas diferenciações individuais, pode-se distribuir a evolução romântica em três momentos capitais: o inicial, em que à inspiração religiosa, base da poesia de Magalhães e Porto Alegre, reflexo da de Lamartine, acrescentou Gonçalves Dias a que buscava assunto na vida dos selvagens americanos; o segundo, representado pela escola paulista de Álvares de Azevedo e seus companheiros, onde predominou o sentimento pessimista, o tom desesperado ou cínico de Byron ou Musset; e finalmente o terceiro, o da chamada escola condoreira, de inspiração social, a exemplo de Hugo e Quinet. (BANDEIRA, 1963, p. 66)

Como podemos perceber, cada momento representou um posicionamento subjetivo em relação à realidade. O nacionalismo religioso, o pessimismo egocêntrico, o lirismo amoroso e os problemas sociais forneceram o cabedal temático ao nosso Romantismo que, permeado pelas interferências externas, formaria a diversidade de nossa arte romântica.

Ao tentar resumir rapidamente o cânone poético brasileiro consagrado no século XIX, Luiz Costa Lima (2001) assim se manifesta:

Suponho que me tivessem dado a tarefa de dizer em poucas palavras em que consistiria o cânone poético que, consagrado no século 19 brasileiro, se mantém até hoje. Proporia a fórmula seguinte: tematicamente, o poeta há de mostrar apreço pela moral e os bons costumes enquanto aclimata seus cenários à natureza tropical; estilisticamente, trovões de eloqüência estremecem uma superfície sentimental – embalante. Castro Alves (1847-1817) e Gonçalves Dias (1823- 1864) são seus paradigmas, seguidos a certa distância por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e o inefável Casimiro. (Folha de S. Paulo, 25/03/2001)

Nas palavras de Lima (op. cit.) é possível confirmar que o ideário romântico brasileiro foi marcado profundamente pelo que podemos chamar de uma “eloquência natural”. No entanto, essa visão conservadora, amplamente difundida pelos manuais de Literatura em nosso país, apresenta uma visão limitada de nossa diversidade romântica. O Romantismo brasileiro, a nosso ver, foi muito mais complexo e heterogêneo. Lobo (1986) comenta que:

[…] o estudo minucioso do emprego de fontes e temas predominantes no Romantismo talvez nos leve posteriormente a encontrar uma Gestalt de uma contra-ideologia existente no seio de escritores românticos marginais e esquecidos pela história da literatura romântica oficial. (LOBO, 1986, p. 24)

Concordando com Lobo, diremos que essa contra-ideologia pode ser encontrada não só em autores marginais, mas também nos chamados grandes autores do Romantismo brasileiro, o que proporcionaria uma revisão do ponto de vista conservador predominante na delimitação de nosso cânone romântico.

Fonte:
Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 4, número 2, jan./jun. 2004

Casimiro de Brito (Poesias Escolhidas)

A PAZ

Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz limpa dos frutos, oque me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio, Perdoa-me se não te peço
a paz.
apenas pergunto: - O que me darias
em troca se te pedisse? O Sol? A Sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranqüila,
no centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cinza. Falo de mim,
entrego-te o meu destino. E a morte vivo
Só de pergumtar-te: - O que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas da liberdade?
===

LIVRO DAS QUEDAS

Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

UM CORPO UM PAÍS

primeira biografia

 Frente ao mar
meu corpo ardente e nu de marinheiro pelo sangue.
Fervem-me nas veias
um milhão de ondas em repouso
Em meus olhos cativos e saudosos
— imagem da minha solidão imensa —
o abraço que me une a ti
                                      ó mar
deus pagão de olhar luminoso e belo!

 Recebe ó mar este afluente silencioso
que para ti corre
     e contigo se confunde:
o líquido cantão canto a quem me ligo
pelo drama de não ser só teu.

 PORTUGAL

(campo de concentração)

 Ocupado país ocupado e seco
  pelas unhas do sono
    e da usura
  pelo espinhento abandono
    da terra
pelas grades agressivas da Espanha
   e do mar
  sempre em volta

                           (a caminho da Europa)

 Transparente país despovoado
ao sol deitado

    Transparente país por fazer

    Entre paredes deixado
a apodrecer

LIBERDADE

 Como se de asas de tratasse
invoco teu nome liberdade.

 Procuro nos teus seios de lava
palavras nuas à beira da morte.

 Âncoras de sol,
frutos indistintos que prometam
um porto com a forma do corpo.

DA PEQUENA MORTE

 Alimento a tua pele silenciosa
enquanto renovas a paz do meu sangue
a morte o sismo a transparente crueldade
onde naufragamos agora

o pão e o sol e o canto inventamos

 A noite convoca o arco distendido
a ponte reconstruída dos corpos

Alimento com minha armas vagarosas
âncoras de sangue do mar libertas
a luz que nos unes até aos ossos até
ao núcleo em que terra e fogo desfazem
no corpo a pequena visitação da morte

 ESPAÇO CRUEL
 Neste espaço cruel
onde me perco onde encontro
neste espaço cruel onde o deserto
nos dá por companhia os próprios ossos
e a morte reflete a nudez de quem
no amor viajado contempla
de frente o sol

 Neste espaço cruel onde dos ossos somos deserto a própria companhia
e nos perdemos se nos
encontramos

 Neste espaço cruel
a morte nos domina e a morte
dominamos

DISSOLUÇÃO DO CORPO

Que mais tens para vender (estátua
De pequena estatura) além
Do pó? O que tens de comum com a morte
De teus irmãos? Viveste
Em caves sem lenha, bebeste
O vinho da ira, a neve
Do exílio — mas canta! Nem só pelo pão
Vive o homem; nem só de
Música. Também a posse mineral do silêncio
Te alimenta — a sombra venerável
Do sangue. Assim se destilam
Medo & cólera — bússolas esculpidas
Nas praias desertas
Do corpo. Ajustam-se
Os elementos cruciais
Da guerrilha; a explosão
Do sono; a vertigem colectiva desse fogo
Em oceanos de usura roubado, em ácidas matérias
 Silenciado— cinza pobre, arestas de cristal
Num corpo indissoluto. Armas
Sem lirismo
As tuas! Lâminas nuas
À beira da morte ah mas eu já não sei
Se vida ou morte existe — sílabas
Aguçadas no fermento quotidiano! Cantas —
Canto para limpar o tempo mínimo
Da estátua mais feminina, espátula
Sem repouso. Denuncias a memória
Dos tempos — desenvolves a fórmula
De onde se desprendem o júbilo, frutos luminosos e sal
Fresco
Por lacónicos materiais violentado. Águas
Sentadas
De povos, nações e línguas. Armas
Do vento as tuas — árida
Ariadna…

Fontes:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/068-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html
http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/casimiro_de_brito.html

Casímiro de Brito (1938)

Nasceu a 14 de janeiro de 1938, em Loulé (Algarve), Portugal.

Estudou em Londres "Westfield College".

Integrou, o Movimento "Poesia 61".

Foi, Presidente da "Associação Européia para a Promoção da Poesia".

Viajou para Bélgica, França, Espanha, Itália, Inglaterra, Canadá, África . . . divulgando a poesia e a leitura por ela.

Prémios como da "Imprensa Literária", "Associação Portuguesa de Escritores e da Secretaria de Estado e Cultura".

"Prémio Internacional de Poesia Versília (Viareggio). . .

Livros:
Ode & Ceia, 1955;
Prática da Escrita (ensaio), 1977;
Dom Quixote, 1985;
Imitação do Prazer (romance), 1980;
Labyrinthus, 1981;
Pátria Sensível (romance), 1983;
Contos da Morte Eufórica (ficção), 1984;
Duas Águas, um Rio, 1989;
Súbitamente o Silêncio, 1991 . . .

Fonte:
http://cantoepalavras.blogspot.com.br/2009/06/068-os-eternos-momentos-de-poetas-e.html

Betty Mindlin (O Céu Ameaça a Terra)

Meninos e meninas do povo ikolen-gavião, de Rondônia, sentam-se à noite ao redor da fogueira e olham o céu estrelado. Estão maravilhados, mas têm medo: um velho pajé acaba de contar como, antigamente, o céu quase esmagou a Terra. Era muito antes dos avós dos avós dos meninos, era no começo dos tempos. A humanidade esteve por um fio: podia ser o fim do mundo. Nessa época, o céu ficava muito longe da Terra, mal dava para ver o seu azul.

Um dia, ouviu-se trovejar, com estrondo ensurdecedor. O céu começou a tremer e, bem devagarinho, foi caindo, caindo. Homens, mulheres e crianças mal conseguiam ficar em pé e fugiam apavorados para debaixo das árvores ou para dentro de tocas. Só coqueiros e mamoeiros seguravam o céu, servindo de esteios, impedindo-o de colar-se à Terra. Talvez as pessoas, apesar do medo, estivessem experimentando tocar o céu com as mãos...

Nisso, um menino de 5 anos pegou algumas penas de nambu, mawir na língua tupi-mondé dos índios ikolens, e fez flechas. Crianças dos ikolens não podem comer essa espécie de nambu, senão, diz-se, ficam aleijadas. Era um nambu redondinho, como a abóbada celeste.

O céu era duríssimo, mas o menino esperto atirou suas flechas adornadas com plumas de mawir. Espanto e alívio! A cada flechada do garotinho, o céu subia um bom pedaço. Foram três, até o céu ficar como é hoje.

Em muitos outros povos indígenas, do Brasil e do mundo, há narrativas parecidas ou diferentes sobre o mesmo assunto. Fazem-nos pensar por que céu e Terra estão separados agora... O povo tupari, de Rondônia, por exemplo, conta que era a árvore do amendoim que segurava o céu. (Bem antigamente, dizem, o amendoim crescia em árvore, em vez de ser planta rasteira).

Antes do céu subir para bem longe, os ikolens podiam deixar a Terra e ir morar no alto. Iam sempre que ficavam aborrecidos com alguém, ou brigavam entre si, e subiam por uma escada de cipó. Gorá, o criador da humanidade, cansou de ver tanta gente indo embora e cortou o cipó, para a Terra não se esvaziar demais.

Fonte:
Revista Nova Escola: Contos

Lino Mendes (Pontos de Vista: Folclore, Cultura Tradicional)

Lino Mendes é de Montargil/Portugal
–––––––––––
Não obstante a UNESCO em 1989 ter definido o conceito de folclore, o respectivo entendimento não é o mesmo em todo o lado. Certo que cada país estará no direito de traçar as linhas do seu projecto cultural, mas torna-se necessário que se expliquem as coisas.

 Pessoalmente entendo que verdadeiramente identitário é o conceito que é regra no nosso país, onde como tradicional se devem entender os comportamentos, os usos, as vivências, os valores que qualquer grupo social, relevante culturalmente, utilizou durante o tempo suficiente para impor a marca local, independentemente da sua origem e natureza. Ora, e por exemplo, no Brasil, a tradicionalidade é entendida como uma continuidade através das gerações, onde os factos novos se inserem sem ruptura com o passado, e se constroem sobre esse passado. Mas o que me deixa confuso é  a afirmação de que para a elaboração da “Carta do Folclore Brasileiro” foram consideradas as Recomendações da UNESCO em 1989, quando os conceitos se enquadram e  Convenção de 2003.

É meu entendimento— atenção que não digo que é ou tem que ser assim, mas que é assim que eu o entendo, sendo bem vindas todas as achegas — que a CONVENÇÃO PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL nada tem a ver com o Folclore ,que aliás a mesma UNESCO definiu em 1984. Tampouco define Património Imaterial, em que o folclore também  se integra ,fundamentalmente condiciona  as candidaturas ,pois nem todo o imaterial se pode candidatar, caso do folclore, pois logo na alínea 1 do Artº 2 da respectiva Convenção, é dito que para efeitos da mesma “o património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interação com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana”

Ora, e a terminar por hoje, com estes meus pontos de vista, o que pretendo é a clarificação das coisas e não impor a “minha verdade”, pois para além de ser um aprendiz compulsivo, “aprender” é para mim um prazer. Como um grande amigo me dizia recentemente, ”embora sem subserviência o folclore precisa de humildade”

Fonte:
O Autor

Soares de Passos (Um Sonho)

Ah! si jamais le ciel j'était entre mes bras
un des songes vivants attachés à mes pas
LAMARTINE, Jocelyn.

Inefável sentir, branda tristura
Oh! quero-te sozinho aqui gozar...
Eu te amo, tu não tens essa amargura
Que nos seios, a mão da desventura
Costuma derramar.
Eu te amo qual amara a melodia
De terna e melancólica canção,
Ou o raio que o sol no fim do dia
Como um beijo d'adeus, saudoso envia
À rosa da soidão...
Oh! sim, eu te amo, ó mística saudade
Vem, quero no teu seio reclinar
A minha fronte, aqui na soledade
Como o lírio a que falta a humidade...
Sim... quero aí chorar...
Quantas vezes meu espírito elevando
Ao céu em tuas asas de marfim,
Os anjos um por um me andas mostrando!
Oh! se desse gentil, celeste bando
Tivesse um junto a mim!...
Qual fonte que em deserto ressequido
Dá conforto ao exausto viajor,
Se houvesse sobre a terra um ente qu'rido
Que terno respondesse a meu gemido
Com meigo hino d'amor!..

Que vejo? as auras fendendo
Nívea pomba eis desce a mim,
Do céu à terra descendo!...
«um génio, um querubim,
Já desceu e a mim chegando,
E meu pranto contemplando,
Já me uniu ao coração...,
E dois seios se entenderam,
E dois corações bateram
Em uma só pulsação...

Virgem que à terra vieste
Lá do seio do Senhor,
Deixaste o coro celeste
Pra vir dar-me o teu amor?
Vens os prantos enxugar-me
Vens no teu sorriso dar-me
O que ainda não senti?
Vens do amor e da ternura
Receber essa flor pura
Que eu guardava para ti?

Vem; tu surges qual estrela
Que surge meiga no céu
Quando após uma procela,
Se mostra pura e sem véu;
Tu surges qual meiga aurora,
Qual ao Nauta que o implora
Surge seu berço natal;
Oh! quero pois adorar-te...
Quero só viver d'amar-te...
A vida sem ti que vale?

Sim, aqui junto ao teu seio
Tudo o mais quero esquecer...
Nada no mundo receio;
Junto a ti que hei-de temer?
Este amor puro e ardente
Só bem o conhece e sente
Quem vive do coração,..
Cá na terra não no entendem,
Só os anjos o compreendem,
Só tu tens esse condão.

Tu eras, anjo, tu eras
Quem ao mundo em vão pedi:
Oh! escuta, se souberas
Todo o pranto, que verti!...
Mas meu pranto que importava?
O coração que eu buscava
No mundo não no achei...
Era em vão que lho pedia
O que só em ti havia,
O que em ti só encontrei.

Mas nós somos tão felizes!
É tão doce este viver!...
Oh! essas falas que dizes,
Torna-as, torna-as a dizer;
Essas falas de ternura
D'inocência e de candura
Quero escutá-las sem fim...
Diz-me, virgem celeste:
Os anjos, donde vieste,
São inocentes assim?

Tu és inocente e pura
Como a cecém ao abrir
Quando a aurora na candura
Lhe vem um beijo imprimir...
Por uma manhã formosa.
Quando desabrocha a rosa,
Quando o prado rescender,
Hei-de ir em cada florinha,
Em cada tenra folhinha,
A tua inocência ler...

Mas, repara neste dia
Como é lindo o seu fulgor!
Tudo nele é alegria,
Tudo palpita d'amor...
Não vês tu a natureza
Revestida de beleza
Nosso amor a festejar?
Não vês como nos convida
A lançarmo-nos na vida,
A vivermos para amar?

Eis pois, tudo olvidemos
Vivendo juntos aqui:
Eia, nosso amor gozemos;
Sê minha, vivo pra ti...
Sim, és minha, as nossas vidas,
As nossas almas unidas,
Quem as pode separar?
Até no último suspiro,
Como um anjo em leve giro,
Hão-de ao céu juntas voar!...

Um sonho... sim, um sonho e... feliz que ele era
Porém cedo fugiu...
Ai! não sei que terror, que medo gera
Esta mudez que impera
Dês que ele se esvaiu...
Pra quem sonhou na terra um céu d'amores
É tão triste o acordar!
E, qual apaga o íris suas cores,
Qual se vêem desbotar numerosas flores
Ver o sonho expirar!...
Meu Deus! só vejo um ermo onde caminho
Sem protectora mão,
Qual triste o peregrino vê sozinho,
Longe do pátrio ninho,
Do deserto que pisa a solidão!

Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource