sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

O Folclore

A Linguagem criptologica

A palavra é o mais notável privilégio do homem e se transmite de geração a geração, alterando-se, as conservando o seu sentido original.

Para que se crie una linguagem, a vida social é absolutamente necessária.

O homem é dotado da faculdade de linguagem, isto é, da comunicação de seus pensamentos.

Falando, nós podemos fazer com que o nosso interlocutor nos entenda a mensagem. Nossa língua tem sons característicos, seus gestos e seus artifícios de linguagem. A linguagem é exercida, principalmente, pelos sons da voz humana.

A Linguagem Criptológica (Conversa Criptológica, Idioma Criptofônico ou Falar em Língua) é tradição popular e lembra costumes da coletividade infanto-juvenil de épocas remotas que persistem até hoje. É convencional e resulta de um prévio entendimento e conhecimento de seus adeptos.

Sua fonte natural é o povo que transmite suas experiências, isto é, sua fonte é folclore.

Sua manifestação primitiva é a linguagem oral, então é evidente que não se possa fixar a sua origem, dizendo de onde veio ou quem a inventou. É transmitida de boca em boca pelas criaturas. É anônima, pois não é de ninguém. Pertence ao povo.

A civilização pouco a pouco vem instruindo, educando e disciplinando a inteligência do homem, cerceando-lhe a imaginação, a ingenuidade e simplicidade, porém, não lhe destrói a feição folclórica, o que nos permite encontrar a linguagem criptológica como extraordinário legado de ontem à geração de hoje.

Enquanto o povo, desejando sempre uma clareza maior, simplifica, instintivamente, a língua que fala, sem se preocupar com a simples correção; de outro lado, integrantes deste mesmo povo, procuram complicá-la, com o sentido de confundir ou tomar sigilosa a emissão do pensamento.
O êxito da linguagem criptológica consiste no surpreendente segredo de transformar as variantes dos fonemas, isto é, os sons reais da palavra escapam a nossa observação; não podem ser, portanto, compreendidos pelo ouvinte destreinado. O ato complica a comunicação.

O único recurso empregado é a repetição, pois é incontestável esse valor.

Com método, com atenção, com interesse inspirado sempre no pensamento reflexivo, este passatempo revela a criança e a criança revela-se neste passatempo.

Os pré-adolescentes, os adolescentes e mesmo alguns adultos participam do Falar em Língua, porque adentra-lhes a alma, captando-lhes as reações.

E um tipo de argô (língua completamente adulterada, pois as “palavras” têm sentido só compreensível pelos que as usam ou têm interesse em conhecê-las). Só os iniciados são capazes de praticá-la, pois criam-se novos sons no sistema.

Não deixa de ser um ato de comunicação, pois há alguém que transmite a mensagem: o Emissor, e alguém que recebe essa mensagem e a compreende: o Receptor; os quais obedecem a regras certas, pré-estabelecidas, para essa linguagem fechada.

O papel do curioso é observar os fatos de linguagem para descobri-los, somente ouvindo quem fala, pois para consolidar os conhecimentos adquiridos, sem treino, só há o meio de ouvir freqüentemente os que falam, isto é, dependendo da inteligência, do raciocínio e da observação.

Existe um rico material de observação no que diz respeito a linguagem criptológica, com embaraços (sons intermediários articulados antes, depois ou no meio das sílabas da. palavra que gera esse exótico linguajar).

A linguagem criptológica é uma arte e uma técnica. Arte, porque estabelece os preceitos de uma ação prática. Técnica, porque racionaliza os preceitos desta arte. Apresenta várias funções, das quais apontamos:

a) Preparadora - coordena noções principais, totalizando particularidades que são necessárias para a comunicação. Prepara o falante para receber a instrução.

b) Motivadora - desperta entre os falantes o interesse pelo assunto. Apresenta a experiência.
c) Disciplinadora - alerta os falantes, chama-lhes a atenção para o assunto.
d) Reflexiva - leva a raciocinar e refletir sobre o assunto. Esclarece dúvidas.
e) Diagnosticadora - apura se os talantes estão ou não preparados para a conversação.
f) Recapituladora - encoraja as atividades dos falantes. Orienta a formação de hábitos. Toca nos pontos fundamentais já tratados.
g) Aplicadora - usa a teoria nos exercícios práticos.

A aprendizagem deste divertimento popular, depende, sobretudo, da associação de novos estímulos sensitivos, com padrões de memória que existem anteriormente.

Apresenta algumas vantagens:

Prende a atenção e desperta o interesse dos que a falam. Aproxima as amizades. Torna o assunto movimentado e alegre. Distrai. Educa a atenção. Toma a comunicação secreta. Exerce o autocontrole. Desenvolve um sistema de treinar a memória. É analítica e exige memória auditiva, vocal ou fônica, desenvolvendo a facilidade, tenacidade e exatidão. Vence dificuldades. Consolida os conhecimentos adquiridos. Forma o hábito de falar e ouvir.

Salvo os casos de gravidade, próprios de especialistas e psiquiatras, os exercícios freqüentes da conversa criptológica servem de terapêutica na correção de algumas anomalias da linguagem - comunicação, como algumas perturbações não muito graves:

A) Dislalia: articulação imperfeita por deficiência de estrutura nos nervos glóssicos.
B) Mogilalia: dificuldade de articulação de muitos sons, por falta do domínio dos órgãos periféricos da palavra:
-gamacismo (dificuldade de pronunciar fonemas constritivos : C, G e X = cs);
-sigmatismo (dificuldade na pronunciação do S);
-rotacismo (dificuldade de pronunciação do R)
-Lambdacismo (dificuldade de pronunciação do L).
C) Bradilalia: articulação lenta e defeituosa da palavra.

D) Bradiartria: Articulação lenta e defeituosa da sílaba.

O sigilo produz-se quando o som interposto às sílabas torna confusa a compreensão do vocábulo. Esta compreensão só é possível apenas por um esforço de atenção. A causa das transformações do som da palavra reside nas modificações impostas (determinadas) pela intercalação do vocábulo - obstáculo.

Quando pronunciamos uma palavra, com os sons partitivos da sílaba, produz-se a abertura de um caminho para a classe de fatores que vêm perturbar a regularidade da prolação dessa palavra.

Estas alterações constituem variantes extrafonológicas de uma cadeia sonora vocabular e somente, com dificuldade, se atinge o sistema fonológico da língua, pois se perde o reflexo e a generalização, na consciência social, da palavra emitida.

A alteração vai interessar somente às pessoas que fizeram os treinos, que descobriram o segredo. Pode-se comparar ao idioleto - linguagem especial, fechada, de um grupo, ou melhor, de até somente duas pessoas.

Assim sendo, a língua passará a um estágio monossilábico. A palavra se produzirá completamente pela eliminação dos vocábulos - dificuldade, na maioria dos casos artificiais, com raríssimas exceções não constituídas de vocábulos onomatopaicos, tornando-se o som da voz pelo signo dos sons da natureza, com variedades caprichosas de uma língua inteiramente “estranha”.

Pode-se, pois, afirmar que sob a influência da intromissão de vocábulos - chave, só através de maiores estorços para organizar esse tipo de língua, pode a pessoa aprender os seus segredos.

O som que se intercala, apresenta dificuldade de pronúncia para o emissor (o codificador) e também para o recebedor (o decodificador).

Com isto há uma série de fatores que perturbam a marcha normal da comunicação. Mas há palavras que não sofrem alterações. Passam a exceções. Nelas estão as partículas, palavras monossilábicas da língua.

Se o que é emitido pelo sujeito falante for compreendido por um interlocutor, constatamos um ato de comunicação pela língua (secreta), pois equivale a uma ação e é um ato da linguagem individual; o circuito lingüístico estabelecido entre o sujeito falante e o interlocutor, não deixa de representar, para eles, uma instituição social: uma língua.

Pelo estabelecimento de uma norma adotada pelos sujeitos falantes do grupo ensaiado, passa da linguagem individual à língua, e serve para um grupo de pessoas se comunicar.

É preciso que o receptor compreenda o código usado pelo emissor, pois haverá efetivamente comunicação se os dois conhecerem o mesmo código, isto é, é preciso que eles usem a mesma linguagem secreta, para a transmissão de mensagens e de comunicação.

Se ouvirmos alguém conversar numa língua que não entendemos, somos capazes de perceber os significantes, isto é, os sons que a pessoa emite, porém, não conseguimos associá-los a nenhum significado. Podemos combinar de modo pessoal o material lingüístico e dessa forma, criar a fala. Por outro lado, se houver alguém ouvindo aquela transmissão criptológica, mas que não conheça o código, poderá perceber alguma coisa, mas não poderá decifrar a mensagem, pois não é capaz de relacionar os sons a nenhum significado.

Como “coisas” de crianças e jovens, é um divertimento que se caracteriza pela vivacidade e parece misterioso. Utilizada como língua secreta e com extraordinária rapidez, maior é o desafio à perplexidade dos circunstantes.

Depois de haver aprendido, racionalmente, toda a parte básica dos truques, o participante assenhorar-se-á dos pormenores e das particularidades, formando um bom alicerce, e isto servirá para a combinação de brinquedos, recreação e distrações: jogar bola, nadar, caçar, pescar ou, ainda, para marcar encontro de rua aos namorados.

Apresenta algumas desvantagens: é cansativa, enervante. Irrita os adultos, principalmente os mais idosos, que se aborrecem por desconhecerem os segredos dessa comunicação verbal.

Hoje os tempos estão mudando. Poucas são as pessoas que ainda cultivam o passatempo da comunicação criptológica, porque precisam instruir-se, realizando ensaios. E a criançada só quer moleza.

História do Folclore

Folclore é um gênero de cultura de origem popular, constituído pelos costumes, lendas, tradições e festas populares transmitidos por imitação e via oral de geração em geração. Todos os povos possuem suas tradições, crendices e superstições, que se transmitem através de lendas, contos, provérbios e canções.

O termo folclore (folklore) aparece pela primeira vez cunhado por Ambrose Merton - pseudônimo de William John Thoms - em uma carta endereçada à revista The Athenaeum, de Londres, onde os vocábulos da língua inglesa folk e lore (povo e saber) foram unidos, passando a ter o significado de saber tradicional de um povo. Esse termo passou a ser utilizado então para se referir às tradições, costumes e superstições das classes populares. Posteriormente, o termo passa a designar toda a cultura nascida principalmente nessas classes, dando ao folclore o status de história não escrita de um povo.

À medida que a ciência e a tecnologia se desenvolveram, todas essas tradições passaram a ser consideradas frutos da ignorância popular. Entretanto, o estudo do folclore é fundamental de modo a caracterizar a formação cultural de um povo e seu passado, além de detectar a cultura popular vigente, pois o fato folclórico é influenciado por sua época.
No século XIX, a pesquisa folclórica se espalha por toda a Europa, com a conscientização de que a cultura popular poderia desaparecer devido ao modo de vida urbano. O folclore passa então a ser usado como principal elemento nas obras artísticas, despertando o sentimento nacionalista dos povos.

Características do fato folclórico

Para se determinar se um acontecimento é folclórico, ele deve apresentar as seguintes características:

- Tradicionalidade: vem se transmitindo geracionalmente.
- Oralidade: é transmitido pela palavra falada.
- Anonimato: não tem autoria.
- Funcionalidade: existe uma razão para o fato acontecer.
- Aceitação coletiva: há uma identificação de todos com o fato.
- Vulgaridade: acontece nas classes populares e não há apropriação pelas elites.
- Espontaneidade: não pode ser oficial nem institucionalizado.

As características de tradicionalidade, oralidade e anonimato podem não ser encontrados em todos os fatos folclóricos como no caso da literatura de cordel, no Brasil, onde o autor é identificado e a transmissão não é feita oralmente.

Linguagem

As principais manifestações do folclore na linguagem popular são as seguintes:

Adivinhas. Consistem em perguntas com conteúdo dúbio ou desafiador, do tipo “O que é o que é???”Como por exemplo: 1. Está no meio do começo, está no começo do meio, estando em ambos assim, está na ponta do fim? 2. Uma casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato, cada gato vê três gatos, quantos gatos têm na casa?


Parlenda: são palavras ordenadas de forma a ritmar, com ou sem rima.

Provérbios: ditos que contém ensinamentos. Dinheiro compra pão, mas não compra gratidão. A fome é o melhor tempero. Ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão. Pagar e morrer é a última coisa a fazer.

Quadrinhas: estrofes de quatro versos sobre o amor, um desafio ou saudação.

Literatura de Cordel: livrinhos escritos em versos, no nordeste brasileiro, e pendurados num barbante (daí a origem de cordel), sobre assuntos que vão desde mitos sertanejos às situações social, política e econômica atuais.

Frases prontas: frases consagradas de poucas palavras com significado direto e claro.

Frase de pára-choque: Trabalho com minha família para servir a sua

Frases de pára-choque de caminhão: frases humorísticas ou religiosas que caminhoneiros pintam em seus pára-choques.

Trava-Língua: É um pequeno texto, rimado ou não, de pronunciação difícil.

Campos do Folclore

Música

Caracteriza-se pela simplicidade, monotonia e lentidão. Sua origem pode estar ligada a uma música popular cujo autor foi esquecido ou pode ter sido criada espontaneamente pelo povo. Observa-se a música folclórica, sobretudo em brincadeiras infantis, cantos religiosos, ritos, danças e festas.

São exemplos: cantigas de roda; Ciranda cirandinha; acalantos; modinhas; cantigas de trabalho; serenatas; velório; cemitério; canto[ciranda cirandinha];

Danças e festas

As danças acompanham as músicas em vários rituais folclóricos, sendo as principais danças folclóricas brasileiras samba, baião, frevo, xaxado, maracatu, tirana, catira, quadrilha.
As principais festas são Carnaval, Festas juninas, Festa do Rosário e Congado.

Algumas lendas, mitos e contos folclóricos do Brasil

Boitatá : Representada por uma cobra de fogo que protege as matas e os animais e tem a capacidade de perseguir e matar aqueles que desrespeitam a natureza. Acredita-se que este mito é de origem indígena e que seja um dos primeiros do folclore brasileiro. Foram encontrados relatos do boitatá em cartas do padre jesuíta José de Anchieta, em 1560. Na região nordeste, o boitatá é conhecido como "fogo que corre".

Boto: Acredita-se que a lenda do boto tenha surgido na região amazônica. Ele é representado por um homem jovem, bonito e charmoso que encanta mulheres em bailes e festas. Após a conquista, leva as jovens para a beira de um rio e as engravida. Antes de a madrugada chegar, ele mergulha nas águas do rio para transformar-se em um boto.

Curupira: Assim como o boitatá, o curupira também é um protetor das matas e dos animais silvestres. Representado por um anão de cabelos compridos e com os pés virados para trás. Persegue e mata todos que desrespeitam a natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do curupira.

Lobisomem: Este mito aparece em várias regiões do mundo. Diz o mito que um homem foi atacado por um lobo numa noite de lua cheia e não morreu, porém desenvolveu a capacidade de transforma-se em lobo nas noites de lua cheia. Nestas noites, o lobisomem ataca todos aqueles que encontra pela frente. Somente um tiro de bala de prata em seu coração seria capaz de matá-lo.

Iara: Encontramos na mitologia universal um personagem muito parecido com a mãe-d'água : a sereia. Este personagem tem o corpo metade de mulher e metade de peixe. Com seu canto atraente, consegue encantar os homens e levá-los para o fundo das águas.

Corpo-seco:É uma espécie de assombração que fica assustando as pessoas nas estradas. Em vida, era um homem que foi muito malvado e só pensava em fazer coisas ruins, chegando a prejudicar e maltratar a própria mãe. Após sua morte, foi rejeitado pela terra e teve que viver como uma alma penada.

Pisadeira: É uma velha de chinelos que aparece nas madrugadas para pisar na barriga das pessoas, provocando a falta de ar. Dizem que costuma aparecer quando as pessoas vão dormir de estômago muito cheio.

Mula-sem-cabeça: Surgido na região interior, conta que uma mulher teve um romance com um padre. Como castigo, em todas as noites de quinta para sexta-feira é transformada num animal quadrúpede que galopa e salta sem parar, enquanto solta fogo pelas narinas.

Mãe-de-ouro: Representada por uma bola de fogo que indica os locais onde se encontra jazidas de ouro. Também aparece em alguns mitos como sendo uma mulher luminosa que voa pelos ares. Em alguns locais do Brasil, toma a forma de uma mulher bonita que habita cavernas e após atrair homens casados, os faz largar suas famílias.

Saci Pererê: O saci-pererê é representado por um menino negro que tem apenas uma perna. Sempre com seu cachimbo e com um gorro vermelho que lhe dá poderes mágicos. Vive aprontando travessuras e se diverte muito com isso. Adora espantar cavalos, queimar comida e acordar pessoas com gargalhadas.

TRAVA LÍNGUAS

O que são

Podemos definir os trava línguas como frases folclóricas criadas pelo povo com objetivo lúdico (brincadeira). Apresentam-se como um desafio de pronúncia, ou seja, uma pessoa passa uma frase difícil para um outro indivíduo falar. Estas frases tornam-se difíceis, pois possuem muitas sílabas parecidas (exigem movimentos repetidos da língua) e devem ser faladas rapidamente. Estes trava línguas já fazem parte do folclore brasileiro, porém estão presentes mais nas regiões do interior brasileiro.


Crenças e superstições

Sabença: sabedoria popular utilizada na cura de doenças e solução de problemas pessoais através de benzeduras.

Crendice: crença absurda, também chamada de ablusão.

Superstição: explicações de fatos naturais como conseqüências de acontecimentos sobrenaturais.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Folclore

SANT’ANNA, José. Linguagem Criptológica. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/verbal/index.htm

SANT’ANNA, José. Anuário do Folclore. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/folclore/index.htm

Como saber se um fato é folclore?

O fato folclórico tem uma série de características próprias:

A) A primeira é o anonimato, isto é, não tem autor conhecido. Naturalmente tudo tem um autor, foi feito por alguém, pela primeira vez, mas o nome desse alguém, desse autor, se perdeu através dos tempos, despersonalizando-se, assim, a autoria. A estória de Dona Baratinha que se considerou muito rica ao encontrar um vintém e, por isso, saiu à procura de quem com ela desejasse casar-se - nos parece, pelos seus elementos, essencialmente brasileira, pois o noivo é o nosso conhecido João Ratão, que no dia do casório, por gula, morre num caldeirão que continha nossa feijoada. Mas já havia sido registrada em uma coleção de estórias da Índia, há quase dois mil anos. Quem foi seu autor? Ninguém sabe. E quem inventou os brinquedos de roda com suas cantigas, as danças, as adivinhas, as trovas, os ditados? Quem disse, pela primeira vez: quem quer vai, quem não quer manda?

B) A segunda característica é a aceitação coletiva, é a aceitação do fato pelo povo e é essa aceitação que despersonaliza o autor. O povo, aceitando o fato, toma-o para si, considerando-o como seu, e o modifica e o transforma, dando origem a inúmeras variantes. Assim, uma estória é contada de várias maneiras, uma cantiga tem trechos diferentes na melodia, os acontecimentos são alterados e o próprio povo diz: "Quem conta um conto acrescenta um ponto". A mesma coisa acontece com as danças, os teatros, a técnica. Tudo pode ser modificado, porque o povo dança, mas suas danças não têm regulamento, não são codificadas, tanto pode o conjunto de dançadores dar três voltas como apenas uma, a indumentária tanto pode ser rica e colorida como simples e ingênua. Há, contudo, uma certa estrutura que determina aquela dança, aquela estória, aquela indumentária, aquela cerâmica e as modificações não invalidam o modelo.

C) A terceira característica é a transmissão oral, isto é, a que se faz de boca em boca, pois os antigos não dispunham de outros meios de comunicação. Não havia imprensa, não havia, portanto, nem livros, nem jornais, todos os conhecimentos eram transmitidos oralmente. Essa forma de transmissão, a oral, ainda persiste em meios primitivos e no interior de nosso país, nos povoados distantes, nas vilazinhas esquecidas, nos bairros longínquos. Só se aprende, nessas circunstâncias, por ouvir dizer e, no que se refere à técnica, feitura de aparelhos rudimentares, de rendas, de trançados, se aprende também por imitação, dispensado, muitas vezes, o ensinamento oral.
Na transmissão oral vive toda a história daquele grupo, daquele povo, e, em qualquer das modalidades particulares (lendas, contos com preceitos morais e normas de procedimento, narrativas imaginosas sobre a natureza e o sobrenatural, cantos, provérbios, parlendas, adivinhas, brinquedos, poesia, etc.) em conexão com o objetivo, facilita a apreensão e a conservação. A aquisição do conhecimento dá a cada qual a possibilidade de difundi-lo, de propagá-lo, cabendo, evidentemente, aos bem dotados, a responsabilidade maior nas cantorias, nas danças e nas técnicas, que se fixam pela prática freqüente, comunicação do exemplo e imitação espontânea.

D) A quarta característica é a tradicionalidade, não no sentido de um tradicional acabado, perimido, coisa passada, sem vida, mas de uma força de coesão interna que define o modelo do conglomerado, da região, do povo, e lhe dá uma unidade. Sem se poderem valer de outros expedientes, como professores, escolas, imprensa, as pessoas do povo se valem da tradição, veiculada pela transmissão oral, a fim de resolver suas situações, buscando na lição vinda do passado o que precisam saber no presente, já que suas possibilidades as endereçam mais A sabedoria constituída que à inventiva. A tradição, que é o modo vivo e atual pelo qual se transmitem os conhecimentos, não ensinados na escola, rege todo o saber popular, seja o desenvolvimento de um jogo, de uma dança, de uma técnica, seja uma atitude ante qualquer agente que exija definição de comportamento. Essa força, que age no sentido de garantir a permanência dos valores de uma cultura, não segue seu destino nem cumpre sua missão sem lutas e empecilhos. Elementos de outras culturas a submetem a pressão, e isto provém de não ser absolutamente fechado o campo da cultura, antes, é um campo aberto onde se agitam as influências do próprio meio e as externas. Somente a inércia poderá retardar essas modificações, mas a cultura é viva, é dinâmica, e sofre evidentemente, impacto em todos os setores.

E) A quinta característica é a funcionalidade. Tudo quanto o povo faz tem uma razão, um destino, uma função. O povo nada realiza sem motivo, sem determinante estritamente ligada a um comportamento, a uma norma psico-religiosa-social, cujas origens talvez se perderam nos tempos. A dança, por exemplo, não é apenas uma repetição de gestos com feição harmoniosa. Inicialmente teria tido um destino, seja decorrente de rito religioso, seja de cerimônia do grupo, e, assim, deve ser vista como pane de um todo, da cultura do povo, é uma expressão a ser analisada como integrante de um contexto.

Por que o povo canta? Canta para rezar, canta para adormecer a criança, canta para trabalhar, canta para festejar as colheitas e os acontecimentos, canta para ajudar a morrer e para enterrar seus mortos. Mas não dão concertos, recitais, audições como os eruditos; as suas festas têm épocas marcadas, com seus cantos e danças próprias. Assim, o Natal é comemorado com grupos de Pastorinhas, Bailes Pastoris e Folias de Reis; o Bumba-meu-boi aparece em datas distintas, variando conforme a região; Congadas e Moçambiques louvam a Senhora do Rosário e São Benedito, e ainda as Danças de São Gonçalo e de Santa Cruz, com destino certo.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Folclore

SANT’ANNA, José. Anuário do Folclore. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/folclore/index.htm

Como o Folclore pode ser utilizado na Escola

Muitas ciências e disciplinas e artes estão intensamente ligadas ao Folclore, e, assim, a escola primária dele pode e deve servir-se, como excelente meio de transmissão de conhecimentos, ao mesmo tempo em que revelador da cultura do povo. A sua maior aplicação será no setor de Linguagem oral e escrita, com a amplitude dos contos, nos objetivos éticos, morais e estéticos a serem por meio deles atingidos. A Criança é conduzida a um mundo de fantasias, no qual o espírito repousa e se encanta. O conto é um veiculo educativo, usado nas mais antigas civilizações e do mesmo modo entre os povos naturais, para realce dos feitos dos seus heróis e das virtudes de seus antepassados. Os provérbios, que representam uma condensação de sabedoria, as adivinhas, que são testes de conhecimentos, as parlendas, os jogos, os brinquedos, recreiam, estimulam as relações sociais e reafirmam a unidade grupal.

Na História do Brasil, na Geografia e nas Ciências, as lendas relativas à escravidão, mineração, bandeiras, heróis, os tipos brasileiros e seus traços culturais, os ambientes em que vivem, as serras e lagoas e mares com seus mitos, animais, vegetais e minerais.

Em Matemática, inúmeras fórmulas e outras contribuições, em parlendas ou poesias e jogos;
no Desenho, Trabalhos Manuais, Artes e Artesanatos, o uso do material local, com revalorização de seus usos e seus motivos típicos ornamentais;

na Música, as nossas melodias, ritmo e instrumentos; ainda a dança e o teatro, com apresentações da beleza que possuímos nesses campos. O aproveitamento do Folclore na escola primária é das mais válidas contribuições, pela intenção formativa e pelo caráter de nacionalidade que imprime.

No ensino médio e no secundário, passa o Folclore ao plano informativo, numa prospecção profunda da cultura, que levará à conclusão consciente de que "toda cultura tem uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e protegidos; em sua fecunda variedade, em sua diversidade e pela influência recíproca que exercem uma sobre as outras, todas as culturas fazem pane do patrimônio comum da humanidade".

Na Universidade, o Folclore deve ser estudado como disciplina autônoma, através de suas implicações antropológicas, sociais, psicológicas e estéticas, para o conhecimento, e profundidade, da cultura popular.

No Brasil, é antiga a lição do aproveitamento do Folclore no ensino. Já nas primeiras décadas de nossa vida, os jesuítas o aplicaram com extrema sabedoria na catequese, utilizando as danças e os cantos indígenas, e encenando seus autos. Anchieta, nosso primeiro mestre, nos legou esse exemplo, nos campos de Piratininga. A cultura do povo precisa ser estudada, porque é objetivo de todos os governos dar ao povo melhores condições de vida. Ao comentar a revolução dos nossos tempos, da qual um aspecto é "a luta pelo domínio tanto quanto possível científico do destino humano", Gilberto Freyre considera esse domínio de modo algum absoluto, 'pois deve conciliar-se com o daqueles valores de sempre, às vezes superiores à própria ciência e guardados pelos clássicos, pelas igrejas e pelo próprio folclore.

Fonte:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Folclore

Folclore (Recomendações sobre seu estudo, segundo a Unesco)

Preservar E Revitalizar

O patrimônio cultural do mundo compreende também as tradições orais, as línguas, a música, a dança, as artes do espetáculo, o artesanato, os costumes, as crenças, etc. Para numerosas sociedades, inclusive as minorias culturais e as populações autóctones, estas dimensões do tecido cultural evoluem ao contato com outras culturas, através das migrações, da mídia, e mais recentemente da Internet. A mudança é fonte de riqueza , mas também de empobrecimento. Às vezes, por força de empréstimos, ou porque submetidas a fortes pressões de outras culturas, algumas desaparecem para sempre. Já desde muito tempo a UNESCO está atenta à preservação de certas formas frágeis de expressão cultural, e hoje sua missão adquire maior amplidão.

Como o lembra a célebre frase do filósofo mali Hampaté Bâ: "Quando morre um velho na África, é uma biblioteca inteira que se queima", a expressão tradicional e popular é salvaguardada na memória dos homens. Ela só pode sobreviver pelos elos humanos da transmissão de geração em geração ou, mais recentemente, graças aos registros mecânicos. A natureza efêmera do patrimônio imaterial o faz vulnerável. Portanto, é urgente agir.

Orientações Principais

O programa consagrado ao patrimônio imaterial apresenta duas orientações principais. A primeira concerne às línguas, à segunda interessa mais particularmente ao "savoir-faire" [música, dança, folclore..]. No domínio do patrimônio oral, música, dança, folclore e "savoir-faire" dos artesãos tradicionais, a UNESCO ajuda os Estados-membros a desenvolver uma estratégia para a salvaguarda do patrimônio imaterial através da implementação da Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e do folclore.

No domínio das línguas a UNESCO concentra suas ações sobre a salvaguarda das línguas em perigo, a promoção das línguas de grande comunicação, e o encorajamento à adoção, a nível nacional, de políticas lingüísticas multilinguais, para que todo indivíduo possa falar uma língua local, uma língua nacional e uma língua internacional. É por isto que a Organização ajuda os Estados-membros a preservar seu patrimônio cultural imaterial, notadamente aplicando as diretivas da Recomendação sobre a salvaguarda da cultura tradicional e popular. Favorecendo a adoção de formas de arte e de expressão tradicionais aos necessitados do mundo moderno, a UNESCO espera enriquecer o presente e o futuro com os tesouros do passado.

Viver As Culturas

A cultura é o fluxo de significações criadas, co-produzidas e permutadas pelos povos. É ela que nos torna capazes de edificar patrimônios culturais e viver em suas lembranças.

Ela nos permite reconhecer nossos elos com nossa linhagem, nossa comunidade, nossa família lingüística, nossa nação – sem falar da própria humanidade. Ela nos ajuda a dar sentido a nossa vida. Mas a cultura pode também nos levar a fazer de nossas diferenças os estandartes da guerra e do extremismo. Ela não deve pois jamais ser considerada como uma evidência, mas traduzida com cuidado em formas de complementação positiva. A cultura não é nunca estática: cada indivíduo produz obras e imagens que se fundam no fluxo da história. Hoje, quando povos pertencentes a todas as culturas entram em contato mais estreitos que nunca, se observam mutuamente e se colocam as mesmas questões: como preservar nosso patrimônio cultural? Como nossas culturas plurais podem coexistir num mundo interativo? A missão do Setor de cultura da UNESCO é ajudar os povos do mundo a responder a estas questões.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Folclore

SANT’ANNA, José. Linguagem Criptológica. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/verbal/index.htm

SANT’ANNA, José. Anuário do Folclore. Disponível em http://ifolclore.vilabol.uol.com.br/div/folclore/index.htm

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Carmélia Maria Aragão (1983)

Carmélia Maria Aragão, mestranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC – como bolsista da Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa – FUNCAP. É natural de Sobral, Ceará, 1983. Tem diversos contos e crônicas publicados em revistas impressas (CAOS Portátil, Carta Capital, etc) e eletrônicas (Famigerado, Cronópios, etc.) no Ceará ou em outros estados do país. Seu conto 2003 (Carmina) foi agraciado com o Prêmio Domingos Olímpio (Secretaria de Cultura de Sobral). E Eu Vou Esquecer Você em Paris, seu primeiro livro, foi premiado na categoria Contos do III Edital de Incentivo às Artes da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará (SECULT/CE) em 2006. [abril 2007]


Carmélia Aragão: literatura como paixão
por Nilto Maciel

As quinze peças ficcionais que compõem Eu vou esquecer você em Paris (Fortaleza: Imprece, Edição do Caos, 2006), de Carmélia Aragão, mostram uma escritora madura. E isso se deve a dois fatores: muita leitura e talento. O primeiro se pode constatar pelas epígrafes (Neruda, Salman Rushidie, Cortazar), pela menção a nomes fundamentais da literatura (Dostoievski, Flaubert, Emily Brontë, Virgínia Woolf, Goethe, George Orwell e outros), sem falar na composição “Página 12224”, de feição policial e ao mesmo tempo fantástica, a nos lembrar “O homem que sabia javanês”, de Lima Barreto.

Como ser madura, aos vinte anos de idade? Ou antes? Pois não se sabe quando as composições de Carmélia (1983) foram escritas. Ora, os exemplos de jovens escritores são muitos. Assim como de escritores idosos que nunca conseguiram atingir a maturidade literária, e morreram inacabados, incompletos, depois de dez, vinte, trinta livros publicados.

Claro, nem tudo é ótimo em Eu vou esquecer você em Paris. Mas o que não é ótimo para uns é aceitável para outros. Como a linguagem das narrativas, ora mais coloquial, ora próxima do rigor literário. O próprio título do livro é frase de uso comum no falar. Isso, porém, já nem se discute no Brasil, desde o início do século XX, desde os modernistas. Ignácio de Loyola Brandão escreveu a obra “Pega ele, Silêncio” (parece poético, mas Silêncio é o nome de um personagem), que deu título a um livro.

As narrativas de Carmélia são densas, mesmo quando os diálogos se estendem. Quase sempre ela se vale da narração e faz uso da economia de detalhes. Não se perde em descrições desnecessárias. Muitas vezes nem enredo há. E, se há, não obedece aos ditames do tradicional “descritivo narrativo linear”. Veja-se a construção de “Seja feliz (fragmentos da felicidade)”, disposta em quatro “fragmentos” independentes, como se fossem quatro histórias. No último, intitulado “O contista”, o narrador se refere aos três primeiros fragmentos: “Sim, um conto novo. Três crônicas que se unem em um conto.”

Apesar da modernidade das narrativas, Carmélia ainda usa o tradicional travessão nos diálogos, assim como os verbos introdutores do relato do discurso, como “dizer”, “afirmar”, “responder”, etc., há muito abolidos na prosa de ficção. O “ainda usa” acima pode ser substituído por “também usa”, pois a contista sabe disso e sabe se livrar dos tais pobres “verbos introdutores”, como se vê em “Quase” e “Felis catus”.

Mas isso é de pouca importância.

E onde vivem os seres fictícios de Carmélia? São quase todos suburbanos, vivem em grandes cidades, embora oriundos de pequenos burgos, como o contista de “Seja feliz” (“Sempre fôramos vizinhos de frente, mas separados pela praça da Matriz. Cidadezinha pequena: ‘Eita vida besta, meu Deus!’”). Andam de ônibus, moram em prédios de apartamentos, caminham por ruas longas, repletas de carros. Vejam esta descrição em “Pulsos intactos”: “Os olhos dele eram azuis refletidos no vidro da sorveteria. Eram azuis sob as janelas dos edifícios, das repartições, das barbearias, dos cafés, das vitrines, das lojas.” Seres perdidos, isolados, solitários. Mesmo quando o ambiente é “uma cidadezinha que vivia em torno de uma biblioteca”, cidade sem nome explícito, a não ser pela letra inicial “C”, do insólito conto “Página 12224”, cujos personagens parecem inspirados em alfarrábios medievais.

Curioso ainda é o grande número de escritores fictícios na obra da contista. Em “Seja feliz” há um contista. Em “2003 (Carmina)” uma professora conhece Marco Santiago, professor de literatura, autor do romance “linear e trágico” Carmina. Em “Página 1224” os personagens “vivem” numa biblioteca, na qual há uma sessão exclusiva de Literatura Baltusanesa, “da tribo Kaywa da extinta Baltúsia”. Em “Meu reino por uma fivela” a narradora participa de um curso intitulado “Mulheres escritoras”, lê O morro dos ventos uivantes, em composição de características policiais. Em “Escrevia e apagava” (título sugestivo para uma história de personagem escritor) a protagonista escrevia contos para uma revista feminina. Em “Quase” a narradora se iniciara como leitora de romances policiais, passara aos “grandes mestres da literatura local, depois da nacional e, por fim, da universal”, estudara “línguas exóticas”, como baltusanês. Em “Filis catus” a mulher que narra se refere a um contista que conhecera e transcreve trechos de um de seus livros. Também os títulos de algumas peças remetem à literatura: “Romance russo”, “Página 1224”, “Escrevia e apagava”, “Crônica do 2º andar”.

Pois essa paixão pela literatura é fundamental para o escritor: para viver, aprender e escrever cada vez melhor. Sem ela, teremos bons médicos, advogados, funcionários públicos, etc, que namoram a literatura nos fins de semana e escrevem de vez em quando algumas memórias ou uns versos capengas. Carmélia Aragão é do primeiro grupo e, sem dúvida, escreverá mais e cada vez melhor.


Autor: Nilto Maciel
Fortaleza, março de 2007.
Fonte:

Carmélia Maria Aragão (Cronica: O homem que C. esperava)

“Todas as histórias são perseguidas pelo fantasma das histórias que poderiam ter sido”
Salman Rushidie


O homem que C. esperava pediria um expresso? Sim, pediria.

Eram tão insuspeitos que ninguém imaginaria que ela entrava no café às 16:45, quase todos os dias, para vê-lo e saísse antes dele, embora o seguisse andando pelo lado contrário da rua. Também, quase todos os dias, os pais de C. a esperavam na sala às 17:50 quando ela entrava e dizia que tinha ido comprar qualquer coisa, mesmo que depois encontrassem no lixo da cozinha num guardanapo escrito: PARE DE ME SEGUIR, entregue a ela pelo garçom F. às 16:50. Na cama, as mãos postas e os olhos fechados. C. branca, branca, branca, retirava um outro guardanapo do bolso entregue a ela pelo garçom F. às 16:50. Ria, pois a mentira, se lhe perguntassem, também era branca, branca, branca.

Subindo as escadas para o quarto mais barato do centro da cidade, C. não estava entre as coisas mais deslocadas, havia também as xerox P&B de Van Gogh decorando uma parede sem importância. O homem que C. esperava abriu a porta. Sentaram-se na cama. Haveria um dia em que a desobediência, a loucura e os mitos obsessivos teriam sua vez.

E eu, que sempre os observei, saí de meu olhar distante e bato à porta. Eles nunca me viram antes, mas sempre estive ao lado deles recolhendo suas histórias, os olhos são muitos, não se sabe quantos, assustadores.

— Quem é?— perguntaram

— Uma mulher — respondi.

Lá fora, os pais de C. e o garçom F. chegavam. Escondo-me. São 12:45. Eu, pessoa comum, já me esperam no trabalho. Desço as escadas, ainda os observo, mas quem me vê?

Fonte:
http://www.secrel.com.br/jpoesia/carmelia.html#homem

Fernando Pessoa e seus Heterônimos (George Steiner)

O crítico George Steiner situa Fernando Pessoa entre os mestres da modernidade em artigo que inicia o leitor de língua inglesa na obra do poeta e seus três heterônimos.

É raro um país e uma língua adquirirem quatro grandes poetas em um dia. Foi precisamente o que ocorreu em Lisboa a 8 de março de 1914.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu naquela capital provinciana e algo lúgubre a 13 de junho de 1888. O Exército, o serviço público e a música figuravam no passado da família. Já em janeiro de 1894, após a morte do pai e do irmão caçula, Pessoa começou a inventar "heterônimos" — "personas" imaginárias para povoar um "teatro íntimo do eu". O garoto de seis anos trocava cartas com um correspondente fictício. Sua mãe casou-se novamente, e a família mudou-se para Durban, África do Sul. No Natal veio à luz um certo Alexander Search, invenção para quem Pessoa criou uma biografia, traçou o horóscopo e em cujo nome calmamente translúcido escreveu poesia e prosa em língua inglesa. Seguir-se-iam outros 72 personagens em busca de um autor. De início, eles tendiam a escrever na esteira de Shelley e Keats, de Carlyle, Tennyson e Browning.

Em 1905, o jovem empresário de "eus" retornou a Lisboa. Logo abandonou a universidade e tornou-se autodidata. No restante de sua vida, Pessoa escolheu uma renda módica, em empregos de meio período. Serviu como correspondente de comércio estrangeiro, traduzindo e compondo cartas em inglês e francês. De vez e quando, traduzia uma antologia literária. Essa existência marginal e autônoma vincula Pessoa a outros mestres da modernidade urbana, como James Joyce, Ítalo Svevo (Trieste e Lisboa partilham uma vívida fantasmagoria) e, de certo modo, Franz Kafka.

Até 1909, a poesia imputada a Alexander Search permanece em inglês, à exceção de seis sonetos portugueses. O ano de 1912 marcou uma reviravolta. Pessoa envolveu-se nos incontáveis círculos, conventículos e publicações efêmeras de cunho lítero-estético-político-moral que surgiram da crescente crise social portuguesa. (77 mil habitantes emigraram só naquele ano). A vida íntima de Pessoa — a alternância entre o mundo dos cafés lisboetas e o isolamento radical — encontrou expressão num secreto "Livro do Desassossego" e no primeiro rascunho de um longo poema inglês. A fissão em incandescência quadri-partida teve lugar naquele dia de março de 1914. Até hoje ele permanece um dos fenômenos mais notáveis da história da literatura. Ao rememorar o fato (numa carta de 1935), Pessoa fala de um "êxtase cuja natureza não conseguirei definir (...) aparecera em mim o meu mestre".

Alberto Caeiro escreveu 30 e tantos poemas a toque de caixa. A estes se seguiram, "imediatamente e totalmente", seis poemas de Fernando Pessoa ele só. Mas Caeiro não saltara à existência sozinho. Viera acompanhado de dois discípulos principais. Um era Ricardo Reis; o outro: "De repente, em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem. Criei, então, uma "coterie" inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa".

Pseudônimos, "noms de plume", anonimato e toda forma de máscara retórica são tão velhos quanto a literatura. Os motivos são muitos. Eles se estendem desde a escrita política clandestina à pornografia, desde o ofuscamento brincalhão a sérios distúrbios de personalidade. O "companheiro secreto" (íntimo de Conrad), o "duplo" prestativo ou ameaçador, é um motivo recorrente — veja-se Dostoiévski, Robert Louis Stevenson e Borges. Assim também é o tema — antigo como a rapsódia homérica — da poesia "tomada sob ditado", sob o assalto literal e imediato das Musas, ou seja, das vozes divinas ou dos finados.

Nesse sentido de "inspiração", de "ser escrito em vez de escrever", as técnicas de escrita automática antecedem em muito o surrealismo. Muitos dos grandes escritores voltaram-se abertamente contra si próprios, contra sua obra ou seu estilo anteriores, a ponto de buscar sua destruição. A multiplicidade, o ego convertido em legião, pode ser festiva, como em Whitinan, ou sombriamente auto-irônica, como em Kierkegaard.

Há disfarces e paródias que a erudição mais minuciosa jamais penetrou. Simenon era incapaz de recordar quantos romances criara ou sob quais antigos e múltiplos pseudônimos. Em idade avançada, o pintor De Chirico prorrompia em museus e galerias de arte declarando falsos os prestigiosos quadros que havia muito lhe eram atribuídos. Agiu assim porque passou a antipatizá-los ou porque não podia mais identificar sua própria mão? Como proclamou Rimbaud, em sua renovação da modernidade, "Eu é um outro".

Entretanto o caso de Pessoa permanece sui generis. Ele não tem nenhum paralelo próximo, não apenas por causa de sua estrutura quadri-partida, mas também por diferenças mercantes entre suas quatro vozes. Cada uma tem sua própria biografia e físico detalhados. Caeiro é loiro, pálido e de olhos azuis; Reis é de um vago moreno mate; e "Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo", como nos diz Pessoa. Caeiro quase não dispôs de educação e vive de pequenos rendimentos. Reis, educado num colégio de jesuítas, é um médico auto-exilado no Brasil desde 1919, por convicções monárquicas. Campos é engenheiro naval e latinista.

O inter-relacionamento dos três, seja na atitude ou no estilo literário, é de uma densidade e sutileza jamesianas, a exemplo de seus vários laços de parentesco com o próprio Pessoa. O Caeiro em Pessoa faz poesia por pura e inesperada inspiração. A obra de Ricardo Reis é fruto de uma deliberação abstrata, quase analítica. As afinidades com Campos são as mais nebulosas e intricadas. "É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu, menos o raciocínio e a afetividade".

A língua de Campos é bastante parecida à de Pessoa; Caeiro escreve um português descuidado, por vezes com lapsos; Reis é um purista cujo linguajar Pessoa considera exagerado.

O labirinto é explorado na introdução de Octavio Paz a "A Centenary Pessoa" ("Um Pessoa Centenário"), uma antologia com bela produção editada por Eugênio Lisboa e L. C. Taylor. Paz vê Caeiro, Reis e Campos como "os protagonistas de um romance que Pessoa jamais escreveu". Pessoa não é entretanto "um inventor de poetas-personagens, mas um criador de obras de poetas", argumenta Paz. "A diferença é crucial". As biografias imaginárias, as anedotas, o "realismo mágico" do contexto histórico-político-social em que cada máscara se desenvolve são um acompanhamento, uma elucidação para os textos. O enigma da autonomia de Reis e Campos é tal que, vez por outra, eles chegam a tratar Pessoa com ironia ou condescendência. Caeiro, por sua vez, é, como vimos, o mestre cuja brusca autoridade e salto para a vida generativa desencadeiam todo o projeto dramático. Paz distingue com acurácia estes fantasmas animados.

Caeiro é um agnóstico que deseja anular a morte por negar a consciência. Sua postura é de um paganismo existencial. Há em seus textos e sua "persona" retoques de quietude e sagacidade orientais. Sua fraqueza, sugere Paz, é a qualidade esfumada da experiência que alega encarnar. Ele morre jovem. Como Caeiro, Campos pratica versos livres e lida de modo irreverente com o português clássico ou castiço. Ambos são pessimistas, apaixonados pela realidade concreta. Mas Caeiro é um ingênuo que cultiva a abstinência e o retraimento filosóficos, ao passo que Campos é um dândi peregrino.

De novo,é Paz quem formula de modo incisivo:"Caeiro pergunta-se : o que sou? Campos: quem sou?". Para Campos, essa questão é quase abafada pelo clamor da máquina, pelo bramido da nova tecnologia na fábrica e nas ruas da metrópole moderna. Partindo da premissa de que a única realidade é a sensação, Campos acabará por se perguntar se ele próprio é real (uma modulação irônica, em vista de seu primeiro e mais celebrado poema, a "Ode Triunfal").

Ricardo Reis é o mais complexo destes disfarces. Anacoreta, ele privilegia os gêneros neoclássicos altamente elaborados, como o epigrama, a elegia e a ode. Raríssima mescla de esteta estóico (um eco talvez de Walter Pater?), a perfeição técnica de seus poemas curtos busca a tranqüila resignação ao destino. Pessoa chama atenção para as obras não publicadas de Reis; elas incluem "Um Debate Estético entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos" e notas críticas sobre Caeiro e Campos, qualificadas por Pessoa como "modelos de precisão verbal e equívoco estético". (Tão encantadoramente tortuosos são o dédalo e o quarto de espelhos de Pessoa que mesmo um Borges ou um Paz, ambos mestres em labirintos, parecem simples em comparação). E a respeito do titereiro ele próprio (apesar dessa comparação grosseira)?

Paz o imagina como essencialmente ausente: "Ele nunca aparecerá: não há um outro. O que aparece insinua a si próprio sua alteridade, que não tem nome, que não é dito e nossas pobres palavras invocam. Isto é poesia? Não: poesia é o que resta e nos consola, a consciência das ausências. E, mais uma vez, quase imperceptivelmente, um rumor de algo. Pessoa ou a iminência do desconhecido".

A silhueta que Paz traça de Pessoa, sendo palavras de despedida tão sutis, correm o risco de obscurecer um fato básico. Do jogo espectral dos heterônimos emerge uma poesia com força de primeira grandeza. Pessoa é com justiça arrolado entre as 26 figuras centrais do sugestivo, embora um tanto pueril, "Cânone Ocidental" (de Harold Bloom).

O português é uma língua resistente. Suas guturais o fazem como que o membro eslavo da família das línguas românicas. Na ausência, ademais, de uma tradução adequada para, o inglês dos "Lusíadas", de Camões, essa grande epopéia de um império trágico e conquistador, para a maioria de nós a literatura portuguesa (que inclui, naturalmente, a do Brasil) permanece estranha.

Somos por isso gratos às traduções e seleções de nosso quarteto a cargo de Keith Bosley. Primeiro, a voz de Pessoa: "Não sei quem me sonho..."; "Ditosos a quem acena/ Um lenço de despedida!" ; "Dá a surpresa de ser". Ou o característico "O mais do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada de finanças/ Nem consta que tivesse biblioteca..." Há este registro irônico e incerto, com seu constante apelo ao mar, a um Portugal quase liberto de suas amarras européias:

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu".

Ouvimos a seguir a sensualidade filosófica de Caeiro:

"Não me importo com às rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior".

Há laconismos inesquecíveis (uma distante melodia de Emily Dickinson): "Li hoje quase duas páginas/ Do livro dum poeta místico,/ E ri como quem tem chorado muito". Caeiro saúda o transitório. Para ele a "recordação é uma traição à Natureza", já que ela muda constantemente. Ele ordena aos, pássaros em vôo que lhe ensinem a arte de passar sem deixar rastro. A busca da individualidade, de verdades absolutas — o modelo platônico tão peremptório na poesia ocidental — é meramente "uma doença das nossas idéias". Suas reflexões sobre a morte e a posteridade são dotadas de um orgulho agridoce pois ele foi "gentil como o sol e a água" e, por fim, veio-lhe o "sono como a qualquer criança".

Absolutamente diverso é Ricardo Reis: rato de biblioteca, entendido em mitologia antiga, perito em formas métricas elaboradas e estilo mandarim. De certo modo, uma versão mais austera de Swinburne e Gautier, de ouvidos atentos e imitando "O ritmo antigo que há em pés descalços,/ Esse ritmo das ninfas repetido". Um esteta "fin de siècle" que prefere "rosas à pátria" e vê em Cristo não "mais que um deus a mais no eterno". Todavia um poeta lírico capaz desta rara mordacidade epigramática que conhecemos também de Walter Savage Landor (talvez o verdadeiro modelo de Reis):

"Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele,
Preservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo atual que as folhas vivem
E as torna diferentes
".

Campos é o retórico loquaz, o bardo à maneira clássica. É capaz porém de ridicularizar-se com ousada satisfação. Sua "Ode Triunfal" pode ser equiparada a "A Ponte", de Hart Crane, como um dos textos-chave das paisagens industriais da modernidade. "Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!" Como o ranzinza e fantasmagórico Pessoa deve ter refugido da robusta democracia de Campos! Como Reis, o alusivo helenista vitoriano, deve ter-se esquivado!

"Ah, e agente ordinária e suja,
que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos — e eu acho isto belo e
amo-o!
Masturbam homens de aspecto
decente nos vãos da escada.
"

"Tabacaria" consta entre os mais prestigiados poemas da língua. Não é cinismo, mas antes uma espécie de revigorante desalento que ordena à pequena garota "comer chocolates", pois "que não há mais metafísica no mundo senão chocolates", após o que o poeta deita o papel laminado "para o chão, como tenho deitado a vida". E já que "toda gente sabe como as grandes constipações/ Alteram todo o sistema do universo/ Zangam-nos contra a vida,/ E fazem espirrar até à metafísica", o poeta receita um único remédio: "Preciso de verdade e da aspirina". Hazlitt fala com reverência de uma sensibilidade capaz de imaginar e dar articulação a um lago e a uma Cordélia. A simples amplitude de vozes e temperamentos alternados de Pessoa dificilmente é menos admirável.

Essa homenagem centenária elegantemente ilustrada oferece passagens representativas da prosa de Pessoa acrescidas de críticas, perfis e documentos. Omitido porém foi o leviatânico drama filosófico "Fausto". Pessoa começou a trabalhar nesta suma em 1908 e — em analogia a Goethe — continuou a elaborá-lo até 1933. Há críticos, notadamente na França, que o tomam por uma obra-chave, um arquipélago ainda a ser descoberto.

Os editores incluíram duas imaginárias entrevistas póstumas, mas o supra-sumo nessa veia parece que lhes passou despercebido: "O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago, traduzido para o inglês em 1991 por Giovanni Pontiero, está entre os melhores romances da recente literatura européia. o livro fala do regresso de Ricardo Reis de seu exílio no Brasil, de Eros e fascismo em Lisboa e do encontro entre Reis e seu genitor morto. Nada mais perceptivo foi escrito sobre Pessoa e suas sombras contrastantes. Nas palavras de Fernando Pessoa:
"Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram
".


Fonte:
Folha de São Paulo, Caderno Mais! Disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/gs01.html

Alvaro de Campos (Nota Preliminar)

Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.

Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual.

A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo.
Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.

Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura - "Ah ", digamos — não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um "ah ", assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o "ah " como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a idéia ligada à definição desse sentimento; ou o "ah " responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma idéia que essa frase provocou.

Em tudo que se diz — poesia ou prosa — há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém meno que uma só não creio que possa ser.

A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.

É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A idéia serve a emoção, não a domina. E o homem — poeta ou não poeta — em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.

A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.

Como o estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios — o ritmo, a rima, a estrofe — são instrumentos de tal disciplina.

No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que reduz os egoísmos à forma sociável.

Na prosa mais propriamente prosa — a prosa científica ou filosófica —, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva — aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia — há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso. O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação — digamos o traço vertical ( ) — para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.

A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia.

Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até fícar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.

Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.


Fonte:
http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam14.html

Álvaro de Campos (Poesias)

A Casa Branca Nau Preta

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...

Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois...
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...

As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...

Que sonhos? ... Eu não sei se sonhei ... Que naus partiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...

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A Frescura

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

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A Praça

A praça da Figueira de manhã,
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui ... Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante ...

Isto de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena...

De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.

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Acaso

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

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Acordar

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.

Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.

Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja

A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas...
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara...
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar-se e fundir-se
Na minha alma.

Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê-la sentindo-a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.

Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca.

Dá-me lírios, lírios
E rosas também.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores...

Deita-me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando-me na alma,
Através do pranto.
Dá-me rosas, rosas,
E llrios também...

Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palác ios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também...

Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar-me-á sempre qualquer coisa,
Sobrar-me-á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.

Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá-me rosas, rosas,
E lírios também..

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Fonte:
Álvaro de Campos. Obra poética disponível em http://www.secrel.com.br/jpoesia/facam.html

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Clarice Lispector (1920 - 1977)

CONTEXTUALIZAÇÃO

O fim da 2ª Grande Guerra trazia consigo duras e importantes lições: o homem, na sua insanidade, era capaz de por em risco a sobrevivência do planeta; em nome da crença na superioridade de uma “raça”, um povo podia ser aniquilado; a busca da paz poderia justificar o uso de bombas com poder de destruição inimaginável. Como evitar que esses erros se repetissem? O que fazer para remediar tantas injustiças? Era preciso que a humanidade assumisse a responsabilidade pela condução de problemas que dizem respeito a todos os seres humanos. Os problemas não podiam mais ser tratados isoladamente, em seus contextos nacionais. Preocupados em construir uma paz duradoura, mediada por gente de todas as Nações, foi criada a ONU (Organização das Nações Unidas). Mais tarde, discutia-se a Declaração dos Direitos do Homem, a criação do Estado de Israel. Tudo parecia caminhar bem, mas a disputa pelo poder entre as nações e suas ideologias dividiria o mundo em dois blocos: a democracia e o capitalismo selvagem dos americanos contra o autoritarismo socialista da União Soviética. Era a chamada Guerra Fria.

No Brasil, a queda da ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, criava grandes expectativas de redemocratização. Os partidos são legalizados, sem exceção, e convoca-se eleição geral. Mas a sociedade ainda não estava madura para considerar as reais necessidades do povo antes dos privilégios de uma minoria. Voltam os tempos de perseguições políticas, ilegalidades, exílios.

A literatura manifestaria, também, significativas mudanças, retrocedendo em seus processos, em alguns casos, e avançando rumo às vanguardas artísticas em outros casos. Na prosa, o regionalismo pitoresco seria banido pela ficção inquietante de Guimarães Rosa. Clarice Lispector, não menos intrigante, rumaria em direção a uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva.

Na poesia, um rigor crítico mais apurado, a busca de soluções mais dinâmicas daria origem à poesia de João Cabral de Melo Neto, onde se vê rigor formal, riqueza expressiva, visão clara dos problemas do homem na sociedade.

É a chamada 3ª Geração Modernista.

BIOGRAFIA CRONOLÓGICA

1920 - Clarice Lispector nasce em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro, tendo recebido o nome de Haia Lispector, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Seu nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América.

1922 - Seu pai consegue, em Bucareste, um passaporte para toda a família no consulado da Rússia. Era fevereiro quando foram para a Alemanha e, no porto de Hamburgo, embarcam no navio "Cuyaba" com destino ao Brasil. Chegam a Maceió em março desse ano, sendo recebidos por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin, que viabilizara a entrada da biografada e de sua família no Brasil mediante uma "carta de chamada". Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania — irmã, todos mudam de nome: o pai passa a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia — irmã, Elisa; e Haia, em Clarice. Pedro passa a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.

1925 - A família muda-se para Recife, Pernambuco, onde Pedro pretende construir uma nova vida. A doença de sua mãe, Marieta, que ficou paralítica, faz com que sua irmã Elisa se dedique a cuidar de todos e da casa.

1928 - Passa a freqüentar o Grupo Escolar João Barbalho, naquela cidade, onde aprende a ler. Durante sua infância a família passou por sérias crises financeiras.

1930 - Morre a mãe de Clarice no dia 21 de setembro. Nessa época, com nove anos, matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde termina o terceiro ano primário. Estuda piano, hebraico e iídiche. Uma ida ao teatro a inspira e ela escreve "Pobre menina rica", peça em três atos, cujos originais foram perdidos. Seu pai resolve adotar a nacionalidade brasileira.

1931 - Inscreve-se para o exame de admissão no Ginásio Pernambucano. Já escrevia suas historinhas, todas recusadas pelo Diário de Pernambuco, que àquela época dedicava uma página às composições infantis. Isso se devia ao fato de que, ao contrário das outras crianças, as histórias de Clarice não tinham enredo e fatos — apenas sensações. Convive com inúmeros primos e primas.

1932 - É aprovada no exame de admissão e, junto com sua irmã Tania e sua prima Bertha, ingressa no tradicional Ginásio Pernambucano, fundado em 1825. Passa a visitar a livraria do pai de uma amiga. Lê "Reinações de Narizinho", de Monteiro Lobato, que pegou emprestado, já que não podia comprá-lo.

1933 - Seu pai prospera e mudam-se para casa própria, no mesmo bairro.

1934 - Pedro, pai de Clarice, em Dezembro desse ano, decide transferir-se para a cidade do Rio de Janeiro.

1935 - Viaja para o Rio, em companhia de sua irmã Tania e de seu pai, na terceira classe do vapor inglês "Highland Monarch". Vão morar numa casa alugada perto do Campo de São Cristóvão. Ainda nesse ano, mudam-se para uma casa na Tijuca, na rua Mariz e Barros. No colégio Sílvio Leite, na mesma rua de sua casa, cursa o quarta série ginasial. Lê romances adocicados, próprios para sua idade.

1936 - Termina o curso ginasial. Inicia-se na leitura de livros de autores nacionais e estrangeiros mais conhecidos, alugados em uma biblioteca de seu bairro. Conhece os trabalhos de Rachel de Queiroz, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Dostoiévski e Júlio Diniz.

1937 - Matricula-se no curso complementar (dois últimos anos do curso secundário) visando o ingresso na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1938 - Transfere-se para o curso complementar do colégio Andrews, na praia de Botafogo. Às voltas com dificuldades financeiras, dá aulas particulares de português e matemática. A relação professor/aluno seria um dos temas preferidos e recorrentes em toda a sua obra — desde o primeiro romance: Perto do Coração Selvagem. Ao mesmo tempo, aprende datilografia e faz inglês na Cultura Inglesa.

1939 - Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito. Faz traduções de textos científicos para revistas em um laboratório onde trabalha como secretária. Trabalha, também como secretária, em um escritório de advocacia.

1940 - Seu conto, Triunfo, é publicado em 25 de maio no semanário "Pan", de Tasso da Silveira. Em outubro desse ano, é publicado na revista "Vamos Ler!", editada por Raymundo Magalhães Júnior, o conto Eu e Jimmy. Esses trabalhos não fazem parte de nenhuma de suas coletâneas. Após a morte de seu pai, no dia 26 de agosto, a escritora — talvez motivada por esse acontecimento — escreve diversos contos: A fuga, História interrompida e O delírio. Esses contos serão publicados postumamente em A bela e a fera, de 1979. Passa a morar com a irmã Tania, já casada, no bairro do Catete. Consegue um emprego de tradutora no temido Departamento de Imprensa e Propaganda - DIP, dirigido por Lourival Fontes. Como não havia vaga para esse trabalho, Clarice ganha o lugar de redatora e repórter da Agência Nacional. Inicia-se, ai, sua carreira de jornalista. No novo emprego, convive com Antonio Callado, Francisco de Assis Barbosa, José Condé e, também, com Lúcio Cardoso, por quem nutre durante tempos uma paixão não correspondida: o escritor era homossexual. Com seu primeiro salário, entra numa livraria e compra "Bliss - Felicidade", de Katherine Mansfield, com tradução de Erico Verissimo, pois sentiu afinidade com a escritora neozelandesa.

1941 - Em 19 de janeiro, publica a reportagem "Onde se ensinará a ser feliz", no jornal "Diário do Povo", de Campinas (SP), sobra a inauguração de um lar para meninas carentes realizada pela primeira-dama Darcy Vargas. Além de textos jornalísticos, continua a publicar textos literários. Cursando o terceiro ano de direito, colabora com a revista dos estudantes de sua faculdade, "A Época", com os artigos Observações sobre o fundamento do direito de punir e Deve a mulher trabalhar? Passa a freqüentar o bar "Recreio", na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro, ponto de encontro de autores como Lúcio Cardoso, Vinicius de Moraes, Rachel de Queiroz, Otávio de Faria, e muitos mais.

1942 - Começa a namorar com Maury Gurgel Valente, seu colega de faculdade. Com 22 anos de idade, recebe seu primeiro registro profissional, como redatora do jornal "A Noite". Lê Drummond, Cecília Meireles, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira. Realiza cursos de antropologia brasileira e psicologia, na Casa do Estudante do Brasil. Nesse ano, escreve seu primeiro romance, Perto do coração selvagem.

1943 - Casa-se com o colega de faculdade Maury Gurgel Valente e termina o curso de Direito. Seu marido, por concurso, ingressa na carreira diplomática.

1944 - Muda-se para Belém do Pará (PA), acompanhando seu marido. Fica por lá apenas seis meses. Seu livro recebe críticas favoráveis de Guilherme Figueiredo, Breno Accioly, Dinah Silveira de Queiroz, Lauro Escorel, Lúcio Cardoso, Antonio Cândido e Ledo Ivo, entre outros. Álvaro Lins publica resenha com reparos ao livro mesmo antes de sua publicação, baseado na leitura dos originais. Qualifica o livro de "experiência incompleta". Há os que pretendem não compreender o romance, os que procuram influências — de Virgínia Wolf e James Joyce, quando ela nem os tinha lido — e ainda os que invocam o temperamento feminino. Nas palavras de Lauro Escorel, as características do romance revelam uma "personalidade de romancista verdadeiramente excepcional, pelos seus recursos técnicos e pela força da sua natureza inteligente e sensível." O casal volta ao Rio e, em 13/07/44, muda-se para Nápoles, em plena Segunda Guerra Mundial, onde o marido da escritora vai trabalhar. Já na saída do Brasil, Clarice mostra-se dividida entre a obrigação de acompanhar o marido e ter de deixar a família e os amigos. Quando chega à Itália, depois de um mês de viagem, escreve: "Na verdade não sei escrever cartas sobre viagens, na verdade nem mesmo sei viajar." Termina seu segundo romance, O lustre. Recebe o prêmio Graça Aranha com Perto do coração selvagem, considerado o melhor romance de 1943. Conhece Rubem Braga, então correspondente de guerra do jornal "Diário Carioca".

1945 - Dá assistência a brasileiros feridos na guerra, trabalhando em hospital americano. O pintor italiano Giorgio De Chirico pinta-lhe um retrato. Viaja pela Europa e conhece o poeta Giuseppe Ungaretti. O lustre é publicado no Brasil pela Livraria Agir Editora.

1946 - Após o lançamento do livro, Clarice vem ao Brasil como correio diplomático do Ministério das Relações Exteriores, aqui ficando por quase três meses. Nessa época, apresentado por Rubem Braga, conhece Fernando Sabino que a introduz a Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e, posteriormente, a Hélio Pellegrino. De volta à Europa, vai morar com a família em Berna, Suíça, para onde seu marido havia sido designado como segundo-secretário. Sua correspondência com amigos brasileiros a mantinha a par das novidades, em especial as trocadas com Fernando Sabino. A troca de cartas com o escritor, quase que diariamente, duraria até janeiro de 1969. A convite, passam as festas de fim de ano com Bluma e Samuel Wainer, em Paris.

1947 - Em carta às irmãs, em janeiro de 47, de Paris, Clarice expõe seu estado de inadaptação:"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma." Em carta a Lúcio Cardoso, que havia lhe enviado seu livro "Anfiteatro", demonstra sua admiração pelas personagens femininas da obra.

1948 - Clarice fica grávida de seu primeiro filho. Para ela, a vida em Berna é de miséria existencial. A Cidade Sitiada, após três anos de trabalho, fica pronto. Terminado o último capítulo, dá à luz. Nasce então um complemento ao método de trabalho. Ela escreve com a máquina no colo, para cuidar do filho. Na crônica "Lembrança de uma fonte, de uma cidade", Clarice afirma que, em Berna, sua vida foi salva por causa do nascimento do filho Pedro, ocorrido em 10/09/1948, e por ter escrito um dos livros "menos gostados" (a editora Agir recusara a publicação).

1949 - Clarice volta ao Rio. Seu marido é removido para a Secretaria de Estado, no Rio de Janeiro. A cidade sitiada é publicado pela editora "A Noite". O livro não obtém grande repercussão entre o público e a crítica.

1950 - Escrevendo contos e convivendo com os amigos (Sabino, Otto, Lúcio e Paulo M. Campos), vê chegar a hora de partir: seguindo os passos de seu marido, retorna à Europa, onde mora por seis meses na cidade de Torquay, Inglaterra. Sofre um aborto espontâneo em Londres. É atendida pelo vice-cônsul na capital inglesa, João Cabral de Melo Neto.

1951 - A escritora retorna ao Rio de Janeiro, em março. Publica uma seleta com seis contos na coleção "Cadernos de cultura", editada pelo Ministério da Educação e Saúde. Falece sua grande amiga Bluma, ex-esposa de Samuel Wainer.

1952 - Cola grau na faculdade de direito, depois de muitos adiamentos. Volta a trabalhar em jornais, no período de maio a outubro, assinando a página "Entre Mulheres", no jornal "Comício", sob o pseudônimo de "Tereza Quadros". Atendeu a um pedido do amigo Rubem Braga, um dos fundadores do jornal. Nesse setembro, já grávida, embarca para a capital americana onde permanecerá por oito anos. Clarice inicia o esboço do romance A veia no pulso, que viria a ser A Maçã no Escuro, livro publicado em 1961.

1953 - Em 10 de fevereiro, nasce Paulo, seu segundo filho. Ela continua a escrever A Maçã no Escuro, em meio a conflitos domésticos e interiores. Mãe, Clarice Lispector divide seu tempo entre os filhos, A Maçã no Escuro, os contos de Laços de Família e a literatura infantil. Nos Estados Unidos, Clarice conhece o renomado escritor Erico Veríssimo e sua esposa Mafalda, dos quais torna-se grande amiga. O escritor gaúcho e sua esposa são escolhidos para padrinhos de Paulo. Não tem sucesso seu projeto de escrever uma crônica semanal para a revista "Manchete". Tem a agradável notícia de que seu romance Perto do coração selvagem seria traduzido para o francês.

1954 - É lançada a primeira edição francesa de Perto do coração selvagem, pela Editora Plon, com capa de Henri Matisse, após inúmeras reclamações da escritora sobre erros na tradução. Em julho, com os filhos, viaja para o Brasil, aqui ficando até setembro. De volta aos Estados Unidos, interrompe a elaboração de A maçã no escuro e se dedica, por cinco meses, a escrever seis contos encomendados por Simeão Leal.

1955 - Retorna a escrever o novo romance e contos. Sabino, que leu os seis contos feitos sob encomenda, os acho "obras de arte".

1956 - Termina de escrever A Maçã no Escuro (até então com o titulo de A veia no pulso). Érico Veríssimo e família retornam ao Brasil, não sem antes aceitarem serem os padrinhos de Pedro e Paulo. Entre os escritores, inicia-se uma vasta correspondência. A escritora e filhos vêm passar as férias no Brasil e Clarice aproveita para tentar a publicação de seu novo romance e os novos contos. Apesar de todo o empenho de Fernando Sabino e Rubem Braga, os livros não são editados. A escritora dá sinais de sua indisposição para com o tipo de vida que leva.

1957 - Rompe unilateralmente o contrato com Simeão Leal e autoriza Sabino e Braga a encaminharem seus contos — nessa altura em número de quinze — para serem publicados no "Suplemento Cultural" do jornal "O Estado de São Paulo". Seu casamento vive momentos de tensão.

1958 - Conhece e se torna amiga da pintora Maria Bonomi. É convidada a colaborar com a revista "Senhor", prevista para ser lançada no início do ano seguinte. Erico Verissimo escreve informando estar autorizado a editar seu romance e, também, seus contos pela Editora Globo, de Porto Alegre. 1.000 exemplares — dos mais de 1.700 remanescentes — de "Près du coeur sauvage" são incinerados, por falta de espaço de armazenamento. O casamento de Clarice dá sinais de seu final.

1959 - Separa-se do marido e, em julho, regressa ao Brasil com seus filhos. Seu livro continua inédito. A escritora resolve comprar o apartamento onde está residindo, no bairro do Leme, e, para isso, busca aumentar seus ganhos. Sob o pseudônimo de "Helen Palmer", inicia, em agosto, uma coluna no jornal "Correio da Manhã", intitulada "Correio feminino — Feira de utilidades".

1960 - Publica, finalmente, Laços de Família, seu primeiro livro de contos, pela editora Francisco Alves. Começa a assinar a coluna "Só para Mulheres", como "ghost-writer" da atriz Ilka Soares, no "Diário da Noite", a convite do jornalista Alberto Dines. Assina, com a Francisco Alves, novo contrato para a publicação de A maçã no escuro. Torna-se amiga da escritora Nélida Piñon.

1961 - Publica o romance A maçã no escuro. Recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, por Laços de família

1962 - Passa a assinar a coluna "Children's Corner", da seção "Sr. & Cia.", onde publica contos e crônicas. Visita, com os filhos, seu ex-marido que se encontra na Polônia. Recebe o prêmio Carmen Dolores Barbosa (oferecido pela senhora paulistana de mesmo nome), por A maçã no escuro, considerado o melhor livro do ano.

1963 - A convite, profere no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de Literatura Ibero-Americana, realizado em Austin - Texas, conferência sobre o tema "Literatura de vanguarda no Brasil. Conhece Gregory Rabassa, mais tarde tradutor para o inglês de A maçã no escuro. A paixão segundo G. H. é escrito em poucos meses, sendo entregue à Editora do Autor, de Sabino e Braga, para publicação. Compra um apartamento em construção no bairro do Leme.

1964 - Publica o livro de contos A legião estrangeira e o romance A Paixão Segundo G. H., ambos pela Editora do Autor. Em dezembro, o juiz profere a sentença que poria fim ao processo de separação de Clarice e Maury.

1965 - Em maio, muda-se para o apartamento comprados em 1963. Sua obra passa a ser vista com outros olhos — pela crítica e pelo público leitor — após A paixão segundo G. H. Resultado de uma seleta de trechos de seus livros, adaptados por Fauzi Arap, é encenada no Teatro Maison de France o espetáculo Perto do coração selvagem, com José Wilker, Glauce Rocha e outros. Dedica-se à educação dos filhos e com a saúde de Pedro, que apresenta um quadro de esquizofrenia, exigindo cuidados especiais. Apesar de traduzida para diversos idiomas e da republicação de diversos livros, a situação financeira de Clarice é muito difícil.

1966 - Na madrugada de 14 de setembro a escritora dorme com um cigarro aceso , provocando um incêndio. Seu quarto ficou totalmente destruído. Com inúmeras queimaduras pelo corpo, passou três dias sob o risco de morte — e dois meses hospitalizada. Quase tem sua mão direita — a mais afetada — amputada pelos médicos. O acidente mudaria em definitivo a vida de Clarice.

1967 - As inúmeras e profundas cicatrizes fazem com que a escritora caia em depressão, apesar de todo o apoio recebido de seus amigos. Não foi só um ano de acontecimentos ruins. Começa a publicar em agosto — a convite de Dines — crônicas no "Jornal do Brasil", trabalho que mantém por seis anos. Lança o livro infantil O mistério do coelho pensante, pela José Álvaro Editor. Em dezembro, passa a integrar o Conselho Consultivo do Instituto Nacional do Livro.

1968 - Em maio, o livro O mistério do coelho pensante é agraciado com a "Ordem do Calunga", concedido pela Campanha Nacional da Criança. Entrevista personalidades para a revista "Manchete" na seção "Diálogos possíveis com Clarice Lispector". Participa da manifestação contra a ditadura militar, em junho, chamada "Passeata dos 100 mil". Morrem seus amigos e escritores Lúcio Cardoso e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta). É nomeada assistente de administração do Estado. Profere palestras na Universidade Federal de Minas Gerais e na Livraria do Estudante, em Belo Horizonte. Publica A mulher que matou os peixes, outro livro infantil, ilustrado por Carlos Scliar.

1969 - Publica seu "hino ao amor": Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, pela Editora Sabiá. O romance ganha o prêmio "Golfinho de Ouro", do Museu da Imagem e do Som. Viaja à Bahia onde entrevista para a "Manchete" o escritor Jorge Amado e os artistas Mário Cravo e Genaro. Em 14/08 é aposentada pelo INPS - Instituto Nacional de Previdência Social. Seu filho Paulo, mora nos Estados Unidos desde janeiro, num programa de intercâmbio cultural. Seu irmão Pedro, em tratamento psiquiátrico, esteve internado por um mês, em junho.

1970 - Começa a escrever um novo romance, com o título provisório de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Mais adiante, é chamado Objeto gritante. Foi lançado com o título definitivo de Água viva. Conhece Olga Borelli, de que se tornaria grande amiga.

1971 - Publica a coletânea de contos Felicidade clandestina, volume que inclui O ovo e a galinha, escrito sob o impacto da morte do bandido Mineirinho, assassinado pela polícia com treze tiros, no Rio de Janeiro. Há, também, um conjunto de escritos em que rememora a infância em Recife. Encarrega o professor Alexandre Severino da tradução, para o inglês, de Atrás do pensamento: monólogo com a vida. Dez de seus contos já publicados constam de "Elenco de cronistas modernos", lançado pela Editora Sabiá.

1972 - Retoma a revisão de Atrás do pensamento, com o qual não estava satisfeita. Faz inúmeras alterações no texto e passa a chamá-lo Objeto gritante. Repensando o romance, procura distrair-se. Durante um mês posa para o pintor Carlos Scliar, em Cabo Frio (RJ).

1973 - Publica o romance Água viva, após três anos de elaboração, pela Editora Artenova, que lançaria também, nesse ano, A imitação da rosa, quinze contos já publicados anteriormente em outras coletâneas. Alberto Dines, em carta à escritora, diz sobre Água viva: "[...] É menos um livro-carta e, muito mais, um livro música. Acho que você escreveu uma sinfonia". Viaja à Europa com a amiga Olga Borelli. Clarice deixa de colaborar com o "Jornal do Brasil", face à demissão de Alberto Dines, no mês de dezembro.

1974 - Para manter seu nível de renda, aumenta sua atividade como tradutora. Verte, entre outros, "O retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, adaptado para o público juvenil, pela Ediouro. Publica, pela José Olympio Editora, outro livro infantil, A vida íntima de Laura e dois livros de contos, pela Artenova: A via crucis do corpo e Onde estivestes de noite. Uma curiosidade: a primeira edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado, erroneamente, um ponto de interrogação no título. Seu cão, Ulisses, lhe morde o rosto, fazendo com que se submeta a cirurgia plástica reparadora reparadora realizada por seu amigo Dr. Ivo Pitanguy. Lê, em Brasília (DF), a convite da Fundação Cultural do Distrito Federal, a conferência "Literatura de vanguarda no Brasil", que já apresentara no Texas. Participa, em Cali — Colômbia, do IV Congresso da Nova Narrativa Hispano-americana. Seu filho, Paulo, vai morar sozinho, em um apartamento próximo ao da escritora. Pedro vai morar com o pai, em Montevidéu — Uruguai.

1975 - Tendo como companheira de viagem a amiga Olga Borelli, participa do I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia. No dia de sua apresentação sente-se indisposta e pede a alguém que leia o conto O ovo e a galinha, não apresentando a fala sobre a magia que havia preparado para a introdução da leitura. Muito embora minimizada, essa participação tem muito a ver com as palavras ditas por Otto Lara Resende, conhecido escritor, em um bate-papo com José Castello: "Você deve tomar cuidado com Clarice. Não se trata de literatura, mas de bruxaria." Otto se baseava em estudos feitos por Claire Varin, professora de literatura canadense que escreveu dois livros sobre a biografada. Segundo ela, só é possível ler Clarice tomando seu lugar — sendo Clarice. "Não há outro caminho", ela garante. Para corroborar sua tese, Claire cita um trecho da crônica A descoberta do mundo, onde a escritora diz: "O personagem leitor é um personagem curioso, estranho. Ao mesmo tempo que inteiramente individual e com reações próprias, é tão terrivelmente ligado ao escritor que na verdade ele, o leitor, é o escritor." Traduz romances, como "Luzes acesas", de Bella Chagall, "A rendeira", de Pascal Lainé, e livros policiais de Agatha Christie. Ao longo da década, faz adaptações de obras de Julio Verne, Edgar Allan Poe, Walter Scott e Jack London e Ibsen. Lança Visão do esplendor, com trabalhos já publicados na coluna "Children's Corner", da revista "Senhor" e também no "Jornal do Brasil". Publica De corpo inteiro, com algumas entrevistas que fizera anteriormente para revistas cariocas. É muito elogiada quando visita Belo Horizonte, fato que a deixa contrariada. Passa a dedicar-se à pintura. Morre, dia 28 de novembro, seu grande amigo e compadre Erico Verissimo. Reúne trabalhos de Andréa Azulay num volume artesanal ilustrado por Sérgio Mata, intitulado "Meus primeiros contos". Andréa tinha, então, dez anos de idade.

1976 - Seu filho Paulo casa-se com Ilana Kauffmann. Participa, em Buenos Aires, Argentina, da Segunda Exposición — Feria Internacional del Autor al Lector, onde recebe muitas homenagens. É agraciada, em abril, com o prêmio concedido pela Fundação Cultural do Distrito Federal, pelo conjunto de sua obra. Grava depoimento no Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, em outubro, conduzido por Affonso Romano de Sant'Anna, Marina Colasanti e por João Salgueiro, diretor do MIS. Em maio, corre o boato de que a escritora não mais receberia jornalistas. José Castello, biógrafo e escritor, nessa época trabalhando no jornal "O Globo", mesmo assim telefona e consegue marcar um encontro. Após muitas idas e vindas é recebido. Trava então o seguinte diálogo com Clarice:

J.C. "— Por que você escreve?
C.L. "— Vou lhe responder com outra pergunta: — Por que você bebe água?"
J.C. "— Por que bebo água? Porque tenho sede."
C.L. "— Quer dizer que você bebe água para não morrer. Pois eu também: escrevo para me manter viva."

Enquanto escreve A hora da estrela com a a ajuda da amiga Olga, toma notas para o novo romance, Um sopro de vida. Revê Recife e visita parentes. Em dezembro, "Fatos e Fotos Gente", revista do grupo "Manchete", publica entrevista feita com a artista Elke Maravilha, a primeira de uma série que se estenderia até outubro de 1977.

1977 - A revista "Fatos e Fotos Gente" publica, em janeiro, entrevista feita pela escritora com Mário Soares, primeiro-ministro de Portugal. O jornal "Última Hora" passa a publicar, a partir de fevereiro, semanalmente, as suas crônicas. Ainda nesse mês, é entrevistada pelo jornalista Júlio Lerner para o programa "Panorama Especial", TV Cultura de São Paulo, com o compromisso de só ser transmitida após a sua morte. Escreve um livro para crianças, que seria publicado em 1978, sob o título Quase de verdade. Escreve, ainda, doze histórias infantis para o calendário de 1978 da fábrica de brinquedos "Estrela", intitulado Como nasceram as estrelas. Vai à França e retorna inesperadamente. Publica A hora da estrela, pela José Olympio, com introdução — "O grito do silêncio" — de Eduardo Portella. Esse livro seria adaptado para o cinema, em 1985, por Suzana Amaral. A editora Ática lança nova edição de A legião estrangeira, com prefácio de Affonso Romano de Sant'Anna. Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário vitimada por uma súbita obstrução intestinal, de origem desconhecida que, depois, veio-se a saber, ter sido motivada por um adenocarcinoma de ovário irreversível. O enterro aconteceu no Cemitério Comunal Israelita, no bairro do Caju, no dia 11. Vai ao ar, pela TV Cultura, no dia 28/12, a entrevista gravada em fevereiro desse ano.

1978 - Três livros póstumos são publicados: o romance Um sopro de vida — Pulsações, pela Nova Fronteira, a partir de fragmentos em parte reunidos por Olga Borelli; o de crônicas Para não esquecer, e o infantil, Quase de verdade, em volume autônomo, pela Ática. Para não esquecer é composto de crônicas que haviam sido publicadas na segunda parte do livro A legião estrangeira, em 1964, que compunham a seção "Fundo de Gaveta" do citado livro. A hora da estrela é agraciada com o prêmio Jabuti de "Melhor Romance". A paixão sendo G. H. é publicada na França, com tradução de Claude Farny.

1979 - É publicado A bela e a fera, pela Nova Fronteira, contendo contos publicados esparsamente em jornais e revistas. Estréia, no teatro Ruth Escobar, em São Paulo, Um sopro de vida, baseado em livro de mesmo nome, com adaptação de Marilena Ansaldi e direção de José Possi Neto.
1981 - "Clarice Lispector — Esboço para um retrato", de Olga Borelli, é lançado pela Nova Fronteira.

1984 - Reunindo a quase totalidade de crônicas publicadas no Jornal do Brasil, no período de 1967 a 1973, é lançado "A descoberta do mundo", organização de Paulo Gurgel Valente, filho da autora. A Éditions des Femmes, da França, lança, em sua coleção "La Bibliotèque des voix", fita cassete com trechos de La passion selon G. H., lidos pela atríz Anouk Aimée.

1985 - A hora da estrela recebe dois prêmios na 36ª edição do Festival de Berlim: da Confederação Internacional de Cineclubes — Cicae, e da Organização Católica Internacional do Cinema e do Audiovisual — Ocic. O longa-metragem de mesmo nome, dirigido por Suzana Amaral, com roteiro de Alfredo Oros também é premiado: Marcélia Cartaxo recebe o Urso de Prata de "Melhor Atriz".
Características

Junto com Guimarães Rosa, Clarice Lispector representa o melhor da ficção pós-45. Em sua obra, ela aceita a provocação que o mundo ao redor faz à sua sensibilidade e procura recriá-lo partindo de suas próprias emoções, da sua própria capacidade de interpretação. Ao escrever, ela pretende buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o homem. Para isso, ela é obrigada a levar nossa língua a domínios pouco explorados, transformando-a num instrumento real do espírito. Seu texto assume um ritmo de procura, de penetração, amoldando-se às necessidades de uma expressão tensa e sugestiva. O espaço e o tempo cronológico têm pouca importância, o que vale é o espaço interior e a duração interior do tempo.

Curiosidades

Os 10 anos da morte da escritora são lembrados com diversas homenagens em sua memória. É aberto ao público o conjunto de documentos que viria a constituir o Arquivo Clarice Lispector do Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB, no Rio de Janeiro, constituído de documentos doados por Paulo Gurgel Valente.

Em 1990, a Francisco Alves Editora inicia a reedição da obra da escritora. A paixão segundo G. H. é encenada na capital francesa, no teatro Gérard Philippe, em montagem de Alain Neddam. Diane E. Marting, em 1993, publica "Clarice Lispector. A Bio-Bibliography", pela Westport: Greenwood Press, nos Estados Unidos. Em 1996, é lançada a antologia "Os melhores contos de Clarice Lispector", pela editora Global.

Estréia no Rio de Janeiro "Clarice — Coração selvagem", adaptado e dirigido por Maria Lúcia Lima, com Aracy Balabanian, em 1998.

No ano seguinte, "Que mistérios tem Clarice", adaptado por Luiz Arthur Nunes e Mário Piragibe estréia no teatro N. E. X. T.

Fernando Sabino, em 2001, organiza e publica, pela Record, "Cartas perto do coração", contendo correspondência que manteve com a escritora de 1946 a 1969.

A editora Rocco lança, em 2002, "Correspondências — Clarice Lispector", antologia de cartas de e para a escritora, seleção de Teresa Montero.

No aniversário de Clarice, 10/12/2002, a Embaixada do Brasil na Ucrânia e a Prefeitura de Tchetchelnik se associam em homenagem à memória da escritora, inaugurando uma placa com dados biográficos gravados em russo e em português, que é afixada na entrada da sede da administração municipal.

Em 2004, os manuscritos de A hora da estrela e parte dos livros que pertenciam à biblioteca pessoal de Clarice Lispector são confiadas por Paulo Gurgel Valente à guarda do Instituto Moreira Salles, que lança, em dezembro, edição especial dos "Cadernos de Literatura Brasileira", dedicada à vida e à obra da autora.

Em artigo publicado no jornal "The New York Times", no dia 11/03/2005, a escritora foi descrita como o equivalente de Kafka na literatura latino-americana. A afirmação foi feita por Gregory Rabassa, tradutor para o inglês de Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e de Clarice. No dia 13/01, foi discutido o viés judaico na obra da autora no Centro de História Judaica em Nova York.

Clarice traduziu para língua portuguesa falada no Brasil, em 1976, o livro Entrevista com o Vampiro, da autora estadunidense Anne Rice.

A primeira edição de Onde estivestes de noite foi recolhida porque foi colocado, erroneamente, um ponto de interrogação no título.

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector
LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
MONTEIRO, Tereza. http://www.claricelispector.com.br/
NOGUEIRA JR., Arnaldo. Clarice Lispector. Disponível em http://www.releituras.com/clispector_bio.asp
SANTOS, Eberth. MOURA, Josana de. Literatura e Filosofia (Palavra em Ação). 2.ed. Uberlândia: Ed. Claranto, 2004