sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Rachel de Queiroz (O Amigo do Homem)


O nosso correligionário vinha vindo pelo saguão do aeroporto com um grande sorriso lhe clareando o rosto magro e, mal deu bom dia, foi logo dizendo:

― Felizmente chegou o 15 de março, que alívio!

Era de estranhar a exclamação, porque como nós, “golpista histórico”, o homem atravessara os três anos revolucionários como castellista irredutível. Será que agora ia na onda do tempo das falas novas?

― Sim, que alívio! ― Dois amigos mais tinham chegado, formara-se um pequeno círculo em torno do correligionário, que agora explicava:

― Eh, não me olhem assim de lado, que eu não estou renegando nada. Pelo contrário, nunca fui mais amigo do homem do que sou hoje. (A roda respirou, aliviada.) Estivesse em mim, andava com uma banda de música atrás dele, tocando o Hino Nacional. Não, meu alívio é outro. O que eu comemoro é o fim da minha função oficiosa de amigo particular do presidente. Vocês sabem lá o que é isso! Não se dá um passo, não se vê uma cara, ninguém fala com a gente pela gente mesmo...

― É mesmo, os pedidos de emprego são terríveis ― comentou alguém.

― Bem, os pedidos de empregos e vantagens são um capítulo à parte. Eles confundem amigo com valido; e acham que pelo fato de você poder de vez em quando falar cordialmente com o homem, isso lhe dá condições de a toda hora estar importunando, pedindo coisas ― promoções, remoções, empregos, pensões. E para se explicar que nada nos autoriza a fazer os pedidos, e nada garante que ele faça o que se pede, é um drama. Mas, esses que pedem, ao menos tentam satisfazer um direito, ou curar uma necessidade; ainda não são os piores. Os danados são os conselheiros, os entendidos, os assessores espontâneos... internacionalistas amadores, militares amadores, economistas amadores.... Mal você vai botando um salgadinho na boca, num coquetel, eles lhe puxam para um canto e começam: “Escute aí, assim não é possível! Diga ao seu amigo que essa alteração nas letras de câmbio é um absurdo! A medida só se justificava se a taxa do dólar em relação ao cruzeiro etc, etc.” Ou então: “Meu caro, numa das suas conversas com o presidente, você precisa fazer uma advertência muito séria a ele. Esse caso no Ministério do Trabalho foi realmente clamoroso...

E os especialistas em política internacional? “Olhe, meu velho, dê um conselho a esse homem: a nossa posição nessa questão do Vietnã foi uma vergonha... E do Paraguai, então! O presidente não pode deixar o Itamarati seguir esse caminho!” Há os que têm um plano rodoviário pronto, inteiramente oposto a “essa besteira que o presidente está deixando o Juarez fazer...” E os que são contra a erradicação dos cafezais e querem que você explique direitinho ao homem o crime que se está cometendo contra o nosso principal produto; e há o que lhe entrega um memorial de cem páginas “para o homem ler”, onde se prega a total diversificação da lavoura. E depois ficam cobrando: “Você entregou? Que é que ele disse?” E a verdade é que, naturalmente, o homem nunca me pediu conselhos para governar...

― Deve ser chato.

― Ah, mas ainda tem piores. E os provocadores? Esses, justamente porque sabem que você é amigo do homem, mal lhe avistam, entram logo na ignorância. Pode até ser uma pessoa bem-educada — mas em matéria de política ninguém tem educação. “Ah, meu caro, esse tal de seu amigo é mesmo de arder!” E sentam a ripa. Normalmente, jamais ocorreria àquele camarada insultar um amigo nosso, mas quando esse amigo é o presidente, até fica bem, é sinal de independência de caráter... E os que sabem de fonte limpa as piores falcatruas, a que o homem, se não participou, pelo menos fechou os olhos? E os que querem que a gente vá denunciar fabulosas negociatas; e os dedos-duros que exigem que a gente desmascare certos corruptos e subversivos, enquanto eles se mantêm corajosamente anônimos: “Eu lhe digo isso em particular, para você abrir os olhos do homem, mas por favor não cite o meu nome...

Nesse instante aproximou-se da roda uma senhora gorda, comboiando uma moça magra, e se dirigiu ao nosso correligionário:

― Dr., esta minha nora tem um assunto muito sério para tratar. E como sei que o senhor é muito chegado ao governo, amigo do presidente...

O correligionário ficou inteiramente histérico:

― Fui, minha senhora, fui! Isto, sou amigo do presidente que foi! Esse agora só conheço de retrato ― e nem de retrato direito, só retrato impresso, retrato de jornal! Com esse eu nunca falei, graças a Deus!

Fonte:
O Cruzeiro. RJ: 22 abr 1967.

Estante de Livros (A Loja de Antiguidades, de Charles Dickens)


A Loja de Antiguidades (The Old Curiosity Shop) é um romance de Charles Dickens. O enredo centra-se na vida de Nell Trent e do seu avô, ambos residentes na Old Curiosity Shop em Londres.

Foi um dos dois romances (o outro é Barnaby Rudge) que Charles Dickens publicou, em conjunto com outros pequenos contos, no Master Humphrey's Clock, um periódico semanal que foi publicado entre 1840 e 1841. A história foi tão popular que os leitores de Nova Iorque invadiram o cais quando o navio com a última publicação chegou à América em 1841.

O romance foi publicado em formato de livro em 1841. Existe em Londres uma loja chamada The Old Curiosity Shop. Fica nos números 13-14 na Portsmouth Street em Westminster e acredita-se que tenha sido a inspiração para o romance. O edifício é do século XVI e o nome da loja foi mudado depois da publicação do livro de Charles Dickens.

A história concentra-se na personagem de Nell Trent, uma menina com quase catorze anos. Ela é orfã e vive com o seu avô materno (cujo nome nunca é revelado) na sua loja de quinquilharias. O seu avô gosta muito dela e Nell não se queixa, mas ela tem uma vida muito solitária e quase não tem amigos da sua idade. O seu único amigo é Kit, um rapaz honesto que é empregado da loja e a quem Nell está a ensinar a escrever. O avô de Nell vive secretamente obcecado com a ideia de garantir que ela não morra na pobreza, como aconteceu com os seus pais, pelo que tenta dar-lhe uma boa herança através do jogo. Ele guarda o segredo dos seus jogos noturnos, mas contrai empréstimos bastante vultuosos de Daniel Quilp, um agiota corcunda e anão malicioso, com deformações grotescas. O avô de Nell acaba por perder o pouco dinheiro que tem no jogo e Quilp aproveita para se apoderar da loja e expulsar Nell e o seu avô de lá. O avô acaba por sofrer um esgotamento e fica louco, isto faz com que Nell o leve para as Midlands de Inglaterra onde se tornam pedintes.

Convencido de que o avô de Nell tem uma grande fortuna escondida, Frederick, o irmão vagabundo dela, convence Dick Swiveller, um rapaz amável, mas muito influenciável, a procurar Nell para que Swiveller se possa casar com ela e, assim, partilharem a riqueza entre eles. Para tal, eles juntam-se a Quilp, que sabe que não existe qualquer fortuna, mas decide ajudá-los de forma sádica para aproveitar a tristeza que irá causar a todos os envolvidos. Quilp começa a tentar encontrar Nell, mas os fugitivos não são fáceis de encontrar. Para manter Dick Swiveller sob a sua vigia, Quilp arranja uma forma de o empregar como escriturário do seu advogado, Mr. Brass.

Na firma de Brassm Dick trava amizade com uma empregada mal tratada e dá-lhe a alcunha de "a Marquesa". Nell, depois de conhecer várias pessoas, algumas que a tratam mal e outras amáveis, consegue finalmente arranjar um abrigo seguro para o seu avô numa vila isolada (identificada por Dickens como Tong, Shropshire), mas isto tem um custo na saúde dela. Entretanto, Kit, uma vez que perdeu o seu emprego na loja de antiguidades, encontra um novo trabalho com os simpáticos Mr. e Mrs. Garland. Aqui, um misterioso cavalheiro entra em contacto com ele para saber de notícias de Nell e do seu avô. O cavalheiro e a mãe de Kit procuram-nos sem sucesso e encontram Quilp que também procura os fugitivos. Quilp ganha rancor a Kit e faz com que ele seja preso por roubo. Kit é condenado a desterro. Porém, Dick Swiveller prova a inocência de Kit com a ajuda da sua amiga "Marquesa". Quilp é perseguido e morre enquanto tenta escapar.

Ao mesmo tempo, uma coincidência leva o Mr. Garland a descobrir o paradeiro de Nell e ele, Kit e o cavalheito (que se descobre ser o irmão mais novo do avô de Nell) vão procurá-la. Infelizmente, quando eles chegam, Nell está morta devido à sua difícil viagem. O seu avô, já mentalmente instável, recusa-se a aceitar que ela está morta e senta-se todos os dias na sua campa à espera que ela volte até que, alguns meses mais tarde, também ele acaba por morrer .

Os acontecimentos do livro devem ter lugar por volta do ano 1825.

No Capítulo 29, Miss Monflathers fala da morte de Lord Byron, que faleceu a 19 de abril de 1824. Quando um inquérito conclui (incorretamente) que Quilp cometeu suicídio, ordena-se que o seu corpo deverá ser enterrado numa encruzilhada com uma estaca no seu coração, uma prática que foi banida em 1826. Após sofrer um esgotamento, o avô de Nell teme que o enviem para um manicômio e que aí seja acorrentado a uma parede e açoitado; estas práticas foram abandonadas depois de 1830.

No capítulo 13, diz-se que Mr. Bass, o advogado, é um dos advogados da rainha, o que o coloca no reinado da rainha Vitória, que teve início em 1837. Porém, tendo em conta as provas restantes e o fato de se considerar no seu julgamento que Kit "agiu contra a paz do nosso Soberano, o Rei" (uma referência a Jorge IV), este pode ter sido um erro.

O Master Humphrey's Clock era um periódico semanal que continha pequenos contos e dois romances (A Loja de Antiguidades e Barnaby Rudge). Alguns dos contos servem de histórias complementares aos romances. Originalmente, o conceito da história era o de que esta era lida em voz alta pelo mestre Humphrey a um grupo de amigos que se juntava na sua casa à volta do relógio do avô, onde Humphrey guardava os seus manuscritos.

Como consequência, quando o romance começa, este é contado na primeira pessoa, sendo o mestre Humphrey o narrador. Porém, Dickens mudou de ideia em relação a qual seria a melhor forma de mudar a história pouco depois de esta começar a ser publicada e abandonou a narração na primeira pessoa depois do terceiro capítulo. Quando o romance terminou, foi acrescentada uma cena de conclusão no Master Humphrey's Clock. Nesta cena, os amigos do mestre Humphrey queixam-se (depois de este acabar de o ler) que nunca é dado um nome ao "cavalheiro" . O mestre Humphrey diz-lhes que a história do romance era verídica e que o "cavalheiro" era ele e ainda que os acontecimentos dos primeiros três capítulos eram fictícios e serviram apenas para apresentar as personagens.

Esta foi a explicação de Dickens para justificar o porquê de o narrador ter desaparecido e porque, visto que era parente das personagens principais do livro, nunca deu qualquer indicação de as conhecer. É uma técnica desajeitada e pelo menos um editor achou que esta explicação não devia ser levada a sério.

Personagens


Nell Trent. É a personagem principal do romance. Descrita como infalivelmente boa e angélica, ela conduz o seu avô na viagem que os dois fazem para se salvarem da miséria. Ela vai ficando cada vez mais fraca ao longo do romance e, ainda que encontre uma casa com a ajuda do mestre-escola, ela não recupera e morre antes de os seus amigos de Londres a encontrarem.

Avô de Nell. É o guardião de Nell. Depois de perder a mulher e a filha, ele vê Nell como a reencarnação dos seus espíritos bons. O seu neto, Fred, é visto como o sucessor do seu genro, que ele não via como merecedor da sua filha. Assim, ele não lhe mostra qualquer afeto. Ele fica paranoico em relação à ideia de cair na pobreza e joga para tentar que isso não aconteça. Quando fica sem dinheiro, ele recorre a Quilp para fazer empréstimos e tentar garantir que Nell tenha a vida que ele acha que ela merece. Quando acha que Kit revelou o seu vício secreto a Nell, ele fica doente e fica mentalmente instável como consequência. Depois disto, Nell protege-o, tal como ele a tinha protegido a ela. Apesar de saber que Nell morreu, ele recusa aceitar esse facto e não reconhece o seu irmão que tinha protegido na infância. Ele morre pouco depois de Nell e é enterrado ao seu lado.

Christopher 'Kit' Nubbles. O amigo de Nell e empregado na loja. Ele protege Nell quando ela fica na loja sozinha à noite (apesar de ela não saber que ele está lá, e nunca vai para casa até se certificar que ela está segura na sua), Quando Quilp ocupa a loja, ele oferece a Nell a oportunidade de ficar na sua casa. A mãe dele está preocupada com a ligação do filho a Nell e, a certo ponto, brinca com a situação e diz: "algumas pessoas diriam que te apaixonaste por ela", o que faz com que Kip fique envergonhado e tente mudar o assunto. Mais tarde, é lhe oferecido um emprego na casa dos Garland e ele torna-se num elemento importante desta casa. A sua dedicação à sua família faz com que ele conquiste o respeito de muitas personagens e o ressentimento de Quilp. Ele é acusado de roubo, mas acaba por ser libertado e acaba por se juntar ao grupo que procura Nell.

Daniel Quilp. É o vilão principal do romance. Ele trata mal a sua mulher , Betsy, e manipula os outros para conseguir o que quer através do charme falso que foi desenvolvendo ao longo da sua vida. Ele empresta dinheiro ao avô de Nell e apodera-se da loja de antiguidades enquanto o idoso está doente (que ele tinha causado ao revelar que tinha conhecimento do seu vício no jogo). Ele usa o sarcasmo para apequenar quem o quer controlar, principalmente a sua mulher , e sente prazer ao ver os outros sofrerem. Ele ouve conversas alheias para saber todos os pensamentos do "velho" e importuna-o quando diz: "já não tens mais segredos para mim". Ele também cria um conflito entre Kit e o idoso (e consequentemente entre Kit e Nell) ao fingir que foi Kit quem lhe falou do vício no jogo.

Richard 'Dick' Swiveller. É o amigo manipulado de Frederick Trent, escriturário de Sampson Brass e o guardião da Marquesa, acabando depois por se casar com ela. Ele adora citar e adaptar trabalhos literários para descrever as situações por que passa. Ele é muito descontraído e parece não se preocupar com nada, apesar do facto de dever dinheiro a praticamente toda a gente. Quando Fred desaparece da história, ele torna-se mais independente e acaba por ser visto como uma boa pessoa, acabando mesmo por garantir a libertação de Kit da prisão e o futuro da Marquesa.

Cavalheiro. Não é dado um nome a esta personagem. Ele é o irmão mais novo do avô de Nell e lidera a procura dos viajantes depois de ficar alojado na Sampson Brass e de travar amizade com Dick, Kit e os Garlands.

COMENTÁRIOS

A crítica a Dickens que provavelmente se repete mais pode resumir-se numa frase supostamente proferida por Oscar Wilde: "Era preciso ter um coração de pedra para ler a morte da pequena Nell sem derramar algumas lágrimas...de riso".

Daniel O'Connel, um político irlandês, teve um episódio famoso no qual ficou em lágrimas com o final do livro e, em seguida, atirou o mesmo pela janela do comboio onde viajava.

O entusiasmo à volta da conclusão da série não teve precedentes. Segundo relatos, os fãs de Dickens invadiram os portos de Nova Iorque e gritavam aos marinheiros que chegavam (que já podiam ter lido a última publicação no Reino Unido): "A Pequena Nell está viva?".

Em 2007, muitos jornais afirmaram que o entusiasmo relativo ao lançamento do último volume de The Old Curiosity Shop era o único equivalente histórico do entusiasmo sentido quando foi lançado o último livro da série Harry Potter.

A autora norueguesa Ingeborg Refling Hagen disse que pediu uma cópia emprestada de The Old Curiosity Shop na sua juventude e afirmou que ninguém merecia ler sobre Nell porque nunca ninguém poderá compreender a sua dor. Ela chegou mesmo a comparar-se a Nell devido às suas próprias circunstâncias miseráveis.

Houve várias adaptações deste romance ao cinema mudo, incluindo duas realizadas por Thomas Bentley:
The Old Curiosity Shop (1914)
The Old Curiosity Shop (1921)

O primeiro filme sonoro baseado nesta obra foi feito em 1934 e contava com Hay Petrie no papel de Quilp.

A BBC transmitiu uma série baseada no romance em 1960.

Em 1975 houve um filme formato de musical intitulado Mr. Quilp in the United States. Os produtores queriam aproveitar o sucesso do musical Oliver!, também baseado no romance homônimo de Charles Dickens, mas o filme acabou por ser um fracasso.

Em 1979, foi transmitida uma série de 9 episódios na BBC. Esta versão foi lançada mais tarde em DVD. A personagem de Frederick não aparece nesta série e a história acaba com o avô a chorar na campa de Nell.

Em 1990 foi feita uma versão do romance para rádio, transmitida na BBC Radio 4. Esta versão foi narrada por Alex Jennings e conta com Emily Chenery (Nell), Phill Daniels (Quilp), Daniel Bliss (Kit), Trevor Peacock (Avô), Clive Swift, Anna Massey e Julia McKenzie no elenco.

Em 1998 a BBC Radio 4 produziu mais uma versão deste romance. Tom Courtnay (Quilp), Denis Quilley, Michael Maloney e Teresa Gallagher fazem parte do elenco.

Em 1995, Tom Courtnay e Peter Ustinov protagonizaram um telefilme da Disney. Estes atores faziam o papel de Quilp e de Avô respetivamente e Sally Walsh o papel de Nell.

A 26 de dezembro de 2007, a ITV transmitiu um telefilme baseado no romance.

Fonte
Wikipedia

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 443

 


Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 5: Aula Prática de Português


A Emília avista  o professor Bebeto da licenciatura de Português no corredor, a caminho do refeitório.  Lindamente bonita e extrovertida, acondicionada numa sainha muito curta e acima dos joelhos, recém chegada na casa dos dezoito, dá um jeito de despistar  as colegas e puxar conversa, despachando as chatas  e se colocando ao lado do professor.

O mestre Bebeto, como é conhecido por todos seus alunos, esperto, macaco velho na cadeira que mantém há anos, e sobretudo, sabendo das intenções da jovem, procura tirar por menos   levando tudo o que ela fala, na brincadeira. Por assim, as conversações da moça entram por um ouvido e saem pelo outro.

Toda vez que  o encontra, Emília dá um jeito de atacar, indo direito ao ponto, não se importando com o que seus amigos de sala ou mesmo os demais restantes da escola venham a pensar ou a fofocar depois. Aliás, o estabelecimento de ensino  em peso (da galera da cantina às faxineiras), sabem que ela se joga leve e solta, para o charmosíssimo  e muy encantador  amado mestre tentando entabular, com ele, um romance, custe o que custar:

- Bom dia, meu amado professor. Estava com saudades. Desde ontem não o vejo.  Sei que o senhor é duro na queda, mas procuro levar em conta aquela velha frase que ensina: ‘água dura em pedra mole, tanto bate até que sai molhada’.

O professor Bebeto sorri um sorriso encantador e envolvente e trata de dar um fora na musa, sem ferir seus brios:

- Emília, a frase está errada. ‘Agua mole, em pedra dura, tanto bate até que fura’.

Emília bate palmas e em seguida devolve a resposta do professor, se abrindo numa magia divinal e mais aconchegante ainda:

- Estou gostando de ver, meu très charmant (formosíssimo) e amado mestre. Está prestando mais atenção ao que digo.

- Nada disso: só estou lhe corrigindo o erro da oração como foi posta e mostrando como se pronuncia  o enunciado corretamente.

Ela não quer saber do papo furado. Enlaça o professor  pelo braço e segue atentando o seu lado homem, objetivando acertar uma flechada naquele lugarzinho secreto que ele não deixa brecha para que ninguém ultrapasse os limites. Encostada a seu ouvido, a deusa sussurra numa vozinha doce e gostosa de ouvir:

- Vou prender o senhor com meu laço. Saiba, meu príncipe encantado, que até hoje ninguém... Eu disse ninguém escapou nem resistiu ao meu charme.

O professor Bebeto, seguro de si e sem deixar de lado o seu melhor sorriso (exatamente aquele que cativou a Emília, desde a primeira vez em que o viu), rebateu, de pronto:

- Asseguro que a senhorita não conseguirá, ainda que leve em consideração todas as hipóteses que poderiam acontecer entre um homem e uma mulher...  Ah, quase me esquecia do mais importante. Leve em acolhimento que pelo fato de ter sido a única da sua sala a ganhar nota máxima na redação, sempre haverá um enorme distanciamento entre nós.

- E por que o meu amado mestre acha que eu não terei sucesso em meu empreendimento? Lembra, meu gato: a carne é fraca. Sei que  o senhor está doido para me levar para uma aventura esplendorosa, inimitável, inesquecível. E ela acontecerá mais rápido que o senhor pensa...

- Isto jamais se tornará real e palpável.

- Qual o quê! Logo o senhor estará preso em meu laço.  

- Emília, desde que entrei para esta escola... Há exatos dez anos atrás, eu me tornei um sujeito lasso.  

Com estas palavras, o professor Bebeto se desvencilhou carinhosamente  da esfuziante e tentadora aluna e entrou correndo na sala dos professores.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Prof. Garcia (Pantuns) II


PANTUN DA OGIVA DO AMOR

Trova tema:
Lanço a bomba do meu sonho,
ogiva de paz e amor,
e o cogumelo medonho
ganha formato de flor.
(Cézar Defilippo – MG)


Ogiva de paz e amor
se eu lanço aos céus, todo dia,
ganha formato de flor
entre ogivas de poesia.

Se eu lanço aos céus, todo dia,
conselhos bons aos perversos,
entre ogivas de poesia
eu mostro a paz nos meus versos.

Conselhos bons aos perversos,
não peçam mais, por favor,
eu mostro a paz nos meus versos,
ante os sobejos do amor.

Não peçam mais, por favor,
que eu faça um verso tristonho;
ante os sobejos do amor,
lanço a bomba do meu sonho.
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PANTUN DO LENÇO DO CAIS

Trova tema:
Mar adentro, mundo afora,
a distância aumenta mais...
e enquanto a saudade chora,
"um lenço acena no cais"
(Mara Melinni – RN)


A distância aumenta mais...
lamentando essa distância,
"um lenço acena no cais"
despedindo-se da infância.

Lamentando essa distância,
vê-se a saudade tristonha,
despedindo-se da infância,
num cenário de quem sonha,

Vê-se a saudade tristonha,
e essa tristeza é medida,
num cenário de quem sonha
no instante da despedida.

E essa saudade é medida,
nos acenos de quem chora,
no instante da despedida,
mar adentro, mundo afora!
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PANTUN DA SORTE INGRATA

Trova tema:
Festeiro de alma iludida,
disfarçando a sorte ingrata,
faço uma festa da vida
mesmo que a vida me bata!...
(José Tavares de Lima – MG)


Disfarçando a sorte ingrata,
eu me entrego ao desafio;
mesmo que a sorte me bata,
não bate em peito vazio.

Eu me entrego ao desafio
e em tudo mantendo a calma;
não bate em peito vazio,
pois ninguém bate em minha alma.

E em tudo mantendo a calma,
sigo em minha caminhada
pois ninguém bate em minha alma
que é mais feliz sem ter nada.

Sigo em minha caminhada
alma de cabeça erguida,
que é mais feliz sem ter nada,
festeiro de alma iludida!
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PANTUN DO VELHO SEGREDO

Trova tema:
Já sofri muito, em segredo,
e agora que me refiz,
sou feliz, mas tenho medo
de dizer que sou feliz!
(Maria Nascimento – AL)


E agora que me refiz,
não tenho mais o receio
de dizer que sou feliz,
na vida, por qualquer meio.

Não tenho mais o receio
do que tive no passado,
na vida, por qualquer meio
carrego a paz ao meu lado.

Do que tive no passado,
nada tenho no presente,
carrego a paz ao meu lado
e em nada mais sou descrente.

Nada tenho no presente,
para esconder por ter medo,
e em nada mais sou descrente,
já sofri muito, em segredo!
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PANTUN DO DESTEMOR

Trova tema:
Sem temor, meu barco avança,
seja qual for a maré,
pois, no mastro da esperança,
iço a bandeira da fé.
(Wanda de Paula Mourthé – MG)


Seja qual for a maré,
maré baixa, maré cheia,
iço a bandeira da fé,
enfrento o mar, que se alteia.

Maré baixa, maré cheia,
seja do jeito que for,
enfrento o mar, que se alteia,
como eterno viajor.

Seja do jeito que for,
mar aberto, mundo afora,
como eterno viajor
remo em busca de outra aurora.

Mar aberto, mundo afora,
braços cheios de esperança,
remo em busca de outra aurora,
sem temor, meu barco avança.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Isabel Furini (Poema 22) Do amor ao ódio ao amor

 


quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 442

 


Rubem Braga (Um Sonho de Simplicidade)


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providencias a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?

Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.

A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.

Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chegamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.

Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?

Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.

Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.

Fonte:
Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas.

Roberto Correia (Epigramas)


Adula! - Mas tem cuidado,
porque, às vezes, Sabujão,
repugna ao próprio adulado
a excessiva adulação.
- - - - - -
Às vezes a voz da fama
tem um quê de voz divina:
Dá forças de intensa chama
à luz de uma lamparina...
- - - - - -
Burro, a cegueira da sorte
elevou-te e, ao sol, espelhas,
mas guardas o mesmo porte
e as mesmíssimas orelhas.
- - - - - -
Carroceiro, desalmado,
- Diz o burro - vê que tu és
meu irmão! Mas, aleijado,
que nasceste com dois pés!
- - - - - -
De muitos "doutores" sei
Que fundamente acatamos,
Aos quais, se dizem: - "cheguei",
Retruca a Morte: - "chegamos".
- - - - - -
É "doutor", mas a vaidade
empina-o tanto, que até
quisera eu ser a metade
do que ele pensa que é...
- - - - - -
Muita gente sem cachola
de jornalista se doura,
tendo um frasquinho de cola,
um arquivo e uma tesoura...
- - - - - -
Nesse vestido apertado,
teu corpo, essa perfeição
faz do que não tem pecado
pecador de profissão...
- - - - - -
No Brasil, é pragmática,
Das discussões na fervura,
Entrar - no meio - a gramática,
No fim a descompostura.
- - - - - -
Os artistas consagrados
Não escapam nunca às afrontas
dos cascos mal aparados
dos mestres das obras prontas...
- - - - - -
Político e sempre graúdo,
de moço a quase senil,
do Brasil tem tido tudo!
Nada tem dado ao Brasil...
- - - - - -
Por serem longas e rudas
as vias que levam à Cruz,
todo dia nascem Judas
mas não vem outro Jesus.
- - - - - -
Só usam mangas compridas,
seguindo as normas da igreja,
mas as pernas mal vestidas,
quem tiver olhos que as veja...
- - - - - -
Se espichas (vou ser-te franco)
os teus cabelos, ó João,
se pretendes é ser branco,
ao menos em comissão...
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Roberto Correia (1876 – 1937)
Este epigramista baiano nasceu na cidade do Salvador, a 10 de maio de 1876. Estudou no Liceu de Artes e Ofícios, onde aprendeu o ofício de tipógrafo. Trabalhou, nessa condição, no Jornal de Notícias, dirigido pelo popularíssimo Lulu Parola. Foi para o Rio, onde exerceu a mesma profissão no Jornal do Brasil e no Jornal do Comércio. De regresso à sua terra natal, matriculou-se, em 1895, no Instituto Normal, da Bahia, e se diplomou em 1898, passando a servir no magistério, até aposentar-se, em 1937. Morreu no dia 24 de dezembro do mesmo ano. Sua obra não foi apenas poética. Escreveu igualmente contos, humorísticos e sentimentais, para os quais a crítica teve palavras de louvor. Mas publicou apenas um livro, Epigramas, editado em 1928.


Fonte:
R. Magalhães Júnior. Antologia de Humorismo e Sátira. RJ: Civilização Brasileira, 1957.

Monteiro Lobato (Meu Conto de Maupassant)


CONVERSAVAM NO TREM DOIS SUJEITOS. Aproximei-me e ouvi:

— Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos Guy s...

— Por que Maupassant e não Kipling, por exemplo?

— Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância persiste — o amor, sob a única face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendido de luxúria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo fisiológico. A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico.

— ?

— Não te rias. Não componho frases. Justifico-me... Na vida, só deixamos de ser uns palhaços inconscientes a mentirmos à natureza quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o “basta” final que recolhe o mau ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e “seriedade”, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado e dirigido por morais, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua invenção — e entra em cena a natureza bruta.

— A propósito de quê tanta filosofia, com este calor de janeiro?...

O comboio corria entre São José e Quiririm. Região arrozeira em plena faina do corte. Os campos em sega tinham o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.

A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, se longe, ou rápida, se perto. Vultos femininos de cesta à cabeça, que paravam a ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. E como caía a tarde e a Mantiqueira já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do “Angelus”...

— Já te digo a propósito de quê vem tanta filosofia.

E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaraji (árvore) avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:

— A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no “meu conto de Maupassant”.

— Conta lá, se é curto.

O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição foi logo narrando.

— Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal-encarado e ruim. Bebia, jogava, e por várias vezes andou às voltas com as autoridades. Certo dia — eu era delegado de polícia — uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia o “corpo morto” de uma velha, picado a foice.

“Organizei a diligência e acompanhei-os. ‘É lá naquele saguaraji’, disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha, semioculta sob folhas secas. Porque o malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns metros de distância.

“Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. Havia contra ele indícios fortes. Viram-no sair com a foice, a lenhar, na tarde do crime.

“Entretanto, por falta de provas foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois cada vez mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo — e negue-se valor ao pressentimento! — o miserável matador da pobre velha.”

— Que interesse tinha no crime?

— Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda gente. Não obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o homicida.

“O patife, não demorou muito, traspassou o negócio e sumiu-se. Eu do meu lado deixei a polícia e do crime só me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da velha.

“Anos depois o caso reviveu. A polícia obteve indícios veementes contra o italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá, onde o júri iria decidir da sua sorte.”

— Os teus pressentimentos...

O sujeito sorriu com malícia e continuou.

— Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Brás e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra, até São José; daí por diante (quem o conta é um soldado da escolta) metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado em ver qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. Nesse ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio rachado, a escorrer a couve-flor dos miolos perto da árvore fatal.

— O remorso!

— Está aqui o “meu conto de Maupassant”. Tive a impressão dele nas palavras do soldado da escolta: “Veio de cabeça baixa até São José, daí por diante enfiou os olhos pela janela até enxergar a árvore e pinchou-se”. No progresso ingênuo da narrativa li toda a tragédia íntima daquele cérebro, senti todo um drama psicológico que nunca será escrito...

— É curioso! — comentou o outro, pensativamente.

Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada lentidão:

— O curioso é que mais tarde um dos piraquaras denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas, confessou-se também o assassino da velhinha, sua mãe...

— ?

Meu caro, aquele pobre Oscar Fingal O’ Flahertie Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor imitar a arte do que a arte sabe imitar a vida.

Fonte:
Monteiro Lobato. Urupês. Publicado em 1915.

Estante de Livros (Louco do Cati, de Dyonélio Machado)


O personagem “O Louco do Cati” é um sujeito misterioso, tratado como louco numa cidadezinha do interior gaúcho. As pessoas do lugar dão ao louco pequenos serviços de limpeza ou de jardinagem que pagam com comida ou hospedagem.

Perambulando pela região num “borboleta” (caminhão que levava passageiros na carroceria), Nestor, um dos passageiros, acaba aos poucos, tornando-se protetor desse personagem. Nestor tem a intenção de ir para Florianópolis e acaba levando o louco como companhia, sem saber bem o porquê. O caminho é feito por estradas interrompidas, desvios, chuva, lama, barreiras. Próximo a Araranguá, Nestor é preso, sem muitas explicações pela polícia, que o identifica como um terrorista. Junto com Nestor é preso o louco, mais por estar em companhia de Nestor do que por qualquer outro motivo.

Na prisão, Nestor sofre privações e torturas psicológicas. O louco, por sua vez, mostra-se plenamente adaptado ao lugar. A polícia recebe ordens superiores para transferir Nestor e seu companheiro louco para o Rio de Janeiro. A viagem é feita de navio. No Rio de Janeiro, depois de um penoso período na prisão, são soltos de modo tão estranho quanto o que foram presos.

Nestor e seu amigo louco decidem ficar numa pensão. Em dado momento, Nestor resolve mandar o louco de volta para o interior do Rio Grande do Sul e para tal intento contará com a ajuda de pessoas amigas que vão para São Paulo e de lá, o louco seria entregue a outras pessoas que o levariam de volta para sua origem.

O capitalista e sua mulher são os responsáveis pela primeira parte da viagem. Depois, o dr. Valério é que se encarrega de levar o louco até o seu destino final. O louco e o Dr. Valério pegam um ônibus de Florianópolis até Lajes. A estrada é cheia de precipícios, curvas perigosas, barrancos. Depois de Lajes, o louco já está em companhia de outras pessoas. Numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, o louco fica como agregado de uma família que o destina a trabalhos simples de limpeza. Depois desse período, o louco aparece seguindo viagem de trem entre algumas cidades do interior gaúcho (Livramento, Santa Maria).

Um certo “coronel” era o “tutor” do louco nesse trecho da viagem, porém, o percurso não é terminado, uma vez que a ferrovia está interrompida devido às fortes chuvas. O comandante Amilívio acaba por convencer o Coronel da possibilidade de se completar o percurso de avião, o que é feito. Porém, uma tempestade força o avião a um pouso de emergência num lugar chamado Santa Cecília, numa clareira na vegetação. O louco então desaparece na mata, o comandante e o coronel saem em busca do louco. O louco é encontrado junto às ruínas de um presídio político e revela-se o seu segredo: O Louco do Cati era assim chamado, pois, eventualmente tinha crises em que balbuciava a expressão “É o cati! É o cati!” e saía correndo, sem rumo. O “cati” é o cativeiro, a prisão em ruínas que o louco, pelo acaso do destino, reencontrara. Ali, diante dos tijolos que se esfarelam em sua mão, o louco recobra sua sanidade e passa a lembrar que fora preso político, que ali sofrera muitas torturas.

O período histórico retratado na obra é o período da ditadura de Getúlio Vargas. Na obra todos os percursos de viagens realizados pelo louco no seu itinerário sem destino, estão interrompidos por algum motivo: barreiras, pontes caídas, chuvas, estradas incompletas que não levam a lugar algum, etc... Metáfora do regime ditatorial. O personagem principal, e herói da obra, não tem outra fala do que a expressão repetitiva: “É o cati!”, palavra incompleta, que na sua incompletude revela a censura e à restrição à liberdade. O segundo personagem mais importante da obra, Nestor, ficamos sem saber de seu destino e se ele era mesmo um terrorista, um revolucionário, ou tudo não passara de um engano da polícia. Desse modo, Dyonélio Machado constrói um romance cuja arquitetura é a própria denúncia dos dramas psicológicos decorrentes da opressão ditatorial.

Fonte:
Jayro Luna, no site Orfeu Spam Apostilas

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 441

 


Carina Bratt (Brasa Enganosa)


Dias após dias, noites após noites, acabei por me acostumar a vê-lo por aqui, todos os instantes. Virou rotina. A protelação habitual dos mesmos hábitos. Mas meu Deus, aqui aonde?! Nas redes sociais. Quando abria o WhatsApp lá estava ele. O moço do sorriso bonito, do rostinho de príncipe e do olhar penetrante.

Não importava o instante em que eu chegasse. Tanto podia ser às vinte e duas horas, como às duas da manhã. Às cinco da tarde, ou as oito, bem ainda na consumação do almoço ou do lanche da tarde.  Ele sempre estava lá, “Online”. Como eu sabia? Simples! Não há nenhum segredo, hoje em dia, por detrás de uma situação ainda que ela seja considerada corriqueira. A tecnologia não deixa.  
 
Sabia que ele estava, porque ao cumprimentá-lo com um “Oi, lindo”, ele imediatamente me respondia, com ênfase: “Oi, fofinha!”. A mesma coisa acontecia nos e-mails.

Havia comumente uma mensagem nova, uma palavra de incentivo, uma música pinçada do YouTube que marcava pela profundidade do tema.

O último que abri, com um “Oi moço”, a resposta recebida tanto mexeu comigo, uau!, lembro que repassei para quase toda a galera dos meus contatos. Acreditem. Minha lista de amizades não é pequena...

Também no Facebook trocávamos impressões, discorríamos sobre os temas mais atuais. Quando não, a comunicação se completava pelo Instagram ou pelo Linkedin. Havia, inevitavelmente, o contato e as respostas imediatas às minhas chamadas.

Acostumei a dizer “Bom dia”, ou “Boa tarde”. Se fosse a noite, adicionava ao jargão, uma “Boa noite, durma com os anjos”. E ele, carinhoso e amável, se abria em festa: “Você também, minha princesa”.

Brincava: “Não vá cair nos braços de Morfeu e perder, amanhã, a hora de ir para o trabalho”, seguido de um “Que Deus te proteja e guarde com Teu manto sagrado”.

De repente, num sopro, não o vi mais. Em lugar da foto de perfil, o branco vazio de aparência fria do WhatsApp. A ausência dele se fez tão grande, que o “Zap”, o Face, o Instagram, perderam o brilho, a graça, o sabor, o objetivo.

O seu não estar ali, nem em canto algum onde nos falávamos, no “online”, em hora nenhuma, se fundiu numa espécie de saudade pesada, densa, dolorida, destituída do carinho que emanava da alegria que fluía dele e contagiava meus olhos e mais que isto, alegrava a minha alma por inteira.

Tudo o que ele falava ou escrevia em respostas às perguntas que eu fazia, tinha um quê de especial. Havia uma harmonia que se entrelaçava, num ritmo único, e deixava, no ar, espalhada, uma espécie de paz tranquilizadora e inverossímil.

Com o vazio da sua presença, porém, o conjunto das emoções se cobriu com uma espécie de túnica inconsútil.

Em razão disto quando acesso meu E-mail, Zap, Facebook ou qualquer outro site de relacionamento social, sinto crestar os passos do vazio na solidão que teima em gritar mais alta e se fazer ouvir, seja a que custo for dentro da minha cabeça em frangalhos.

Perdida esta conexão, sem motivos aparentes, com o meu amigo (amigo? Eu já o amava como se fizesse parte de mim) de todas as horas, me peguei, e, desde então, me vejo vazia, me sinto oca por dentro.

Me pego obstinada, cheia de elipses mentais, perplexa, atônita, sem chão, como se tivesse morrido e deixado à alma errante a caminho de algum lugar escondido no horizonte.

A inquietação do meu espírito se agiganta. Evolui, e não só evolui, cria barreiras intransponíveis. São estas situações estranhas que me tiram do sério e me deixam embaraçada, sem saber para onde ir ou como agir.

Seria maravilhoso, se nestas horas de pura angustia, quando a dor inquietante da saudade se faz presente e pujante, a gente pudesse se desligar da tomada, se desplugar do mundo, entrar em “off” e apagar, por dentro, os filamentos...

Simplesmente assim, e claro, o mais importante: não mais existir.

Fonte:
texto enviado pela autora.

V Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul (Trovas Premiadas)

 
NACIONAL/INTERNACIONAL
VETERANOS
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VENCEDORES
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Quem dera que a Humanidade,
que de mil glórias se ufana,
tivesse a simplicidade
que há nos versos de Quintana!
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora - MG

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O simples, do dia a dia,
o real com bom humor...
Assim Quintana escrevia,
para encantar o leitor!
Glória Tabet Marson
São José dos Campos - SP
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Mário Quintana sabia,
se atravancado o caminho,
buscar asas na poesia
para virar passarinho.
Edweine Loureiro da Silva 
Saitama – Japão

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Relembro, com nostalgia,
Mário Quintana dizendo:
Morrer de amor todo dia
é continuarmos vivendo!
Venceslau Olival
Nova Friburgo – RJ  

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Hoje em outra dimensão
Mário tem nosso carinho,
porque muitos passarão
mas só ele passarinho.
 Antônio Francisco Pereira
Belo Horizonte – MG

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MENÇÕES HONROSAS
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Ele, em tão pouco, diz tanto
que mais parece um profeta.
Merece aplausos, portanto,
Mario Quintana – o poeta!
Maria Dulce Lima Peesoa
Tabira - PE

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Cada verso que emoldura
a saudosa filigrana,
é um traço da alma pura
do bardo Mario Quintana...
Paulo Mauricio G. Silva
Teresópolis - RJ

- - - - - - 
Bacana,simples,sutil,
estro do momento eterno.
Mário Quintana é Brasil
presente em qualquer caderno.
Nilton Manoel  
Ribeirão Preto – SP

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Das coisas simples, poeta...
Mario Quintana é, da gente,
um sonho que se completa
e um sonho, que segue em frente...!
Mara Melinni
Caicó – RN


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MENÇÕES ESPECIAIS
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Li as obras, vi os espaços,
de Quintana, os seus amores...
Parecia ouvir seus passos,
entre aqueles corredores!
 Silvia Maria Svereda
Irati – PR

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Quintana, sois imortal...
Os versos ditam tendências,
dando a alguns, ponto final,
e aos poetas... reticências...
Cezar Augusto Defilippo
Astolfo Dutra – MG 

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As palmas são pra você 
Mário Quintana, escritor. 
Mas vou dizer o porquê: 
Pelos poemas de amor! 
Maria Eunice Silva de Lacerda  
Toledo - PR

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Dotado de tal magia
foi só ele... mais ninguém:
os outros fazem poesia;
Quintana foi muito além!
José Ouverney
Pindamonhangaba – SP

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O seu talento perdura,
pois, das letras, é fanal,
ganhando a literatura
Mario Quintana, o imortal.
Relva do Egypto Rezende Silveira
Belo Horizonte – MG


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NOVOS TROVADORES
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 Amizade veterana,
é antiga e anos percorre.
E já dizia o Quintana:
“É o amor que nunca morre”.
Caio Gomes
Campos dos Goytacazes – RJ

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Em jardins de poesia
sinto um aroma que emana
de uma planta que irradia
versos de Mário Quintana.
 Edson Paiva
Natal – RN


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MENÇÕES HONROSAS
===============
 
Vou beber sabedorias,
nos seus versos me esbaldar...
Vou cantar mil alegrias,
eu vou "mário-quintanar".
Fabio Peters Sabino
Florianópolis – SC

 
Em Mário Quintana aponho
ao brilhantismo, a vontade
de tornar a vida um sonho
e do sonho, realidade.
Rachel Santo Antônio
São Gonçalo – RJ


__________________________
COMISSÃO JULGADORA:
Flávio Stefani,
Ary Cardoso E
Paulo Roberto de Fraga Cirne.


Os diplomas serão enviados aos premiados até o início de dezembro.

ESTADUAL

1.
Flávio Roberto Stefani
(Porto Alegre)

Quintana...um poeta...um anjo  
flutuando pelas ruas,
fez poema ...fez arranjo...
criou sóis e criou luas!...
- - - - - -
2.
Ary Cardoso
(Porto Alegre)

O Quintana foi decano
no júri simplicidade;
passarinho neste plano,
cantador na eternidade.
- - - - - -
3.
Lucêmio Lopes da Anunciação
(Canela)

O olhar de Mário Quintana
abre a janela e o portão,
atravessa a persiana,
chega ao nosso coração.

===============
MENÇÕES HONROSAS
===============

Sérgio Becker
(Porto Alegre)

O poeta Mário Quintana,
anjo com asas e véu;
hoje brinca, que bacana!
com outros anjos no céu.
- - - - - -
Marilia Oliveira
(Porto Alegre)

Quintana, em sua humildade,
tendo a alma livre e irrequieta,
com as penas da liberdade,
foi 'passarinho' e poeta!
- - - - - -
Jaqueline Machado
(Cachoeira do Sul)

Quintana ... servo do amor!
Poeta dos sonhos mil...
Escrevendo com louvor,
emocionou o Brasil!
________________________
COMISSÃO JULGADORA:
Francisco Garcia,
José Feldman,
Arlindo Tadeu Hagen e
Carolina Ramos.


Fonte:
Jaqueline Machado

Contos e Lendas do Mundo (O País dos Poços)

Era uma vez o país dos poços. Qualquer visitante que chegasse, enxergaria somente poços: grandes, pequenos, feios, lindos, ricos, pobres...

Os poços falavam entre si, mas à distância, porque havia terra seca entre um poço e outro. Na realidade, quem falava era a boca do poço, ao nível da terra. E como a boca era oca, o poço dava uma sensação de vazio, de angústia, criando eco (eco vazio que vai sem levar nada e volta sem trazer nada).

Havia poços com bocas muito largas permitindo receber um monte de coisas inúteis. Quando estas passavam da moda, era só mudar para outras, também inúteis e passageiras...

E as bocas continuavam vazias, ressequidas, bem como a terra ao seu redor.

E no fundo... O poço não estava contente!

E, por falar em fundo: bem, a maioria dos poços, entre as frestas deixadas pelas coisas, permitia de vez em quando, sentir entre os dedos algo diferente: eram os momentos em que percebiam água no fundo. Diante desta sensação tão rara, alguns até tinham medo e procuravam evitar o contato.

Outros, porque tinham coisas demais, abarrotando a boca, esqueciam logo a "sensação de profundo", e se ocupavam novamente com a superfície.

Mas esta superfície, às vezes algum poço falava desta experiência diferente. Até que houve um poço que, olhando bem para o seu interior, entusiasmou-se e quis continuar.

Como as coisas que abarrotavam sua boca o incomodassem, procurou libertar-se delas, lançando-as corajosamente para longe. E o silêncio chegou! E ele começou a ouvir o borbulhar da água lá no fundo, e sentiu uma paz profunda, viva e duradoura, refrescante e salutar. E este poço descobriu que sua razão de ser era esta: a vida que se encontra na profundidade de si mesmo, e não na multidão de coisas que se acumulavam antes em sua boca.

E se tornava mais poço quanto mais profundidade tinha!

Feliz com a descoberta, procurou tirar água de seu interior, e a água, ao sair, refrescou a terra seca ao seu redor e tornou-a fértil e boa, e as flores começaram a brotar.

A notícia se espalhou. E as reações foram diversas: uns se mostraram incrédulos, outros sentiam o impulso por também fazer a experiência do profundo de si mesmo. Mas muitos desprezaram a novidade porque era difícil. Era mais fácil deixar tudo como estava...

Sem dúvida, alguns tentaram fazer a experiência e começaram a libertar-se dos objetos inúteis que abarrotavam a sua boca. Finalmente encontraram água em seu interior.

A partir de então, as surpresas aconteceram: por mais água que se retirasse para regar ao redor, o poço não se esvaziava! E aprofundando ainda mais, descobriram que eles estavam unidos entre si por água comum; a água era a mesma! E começou a comunicação profunda, porque as paredes dos poços deixaram de ser limites...

Mas a descoberta mais sensacional veio depois: a água que lhes dava vida vinha de um mesmo lugar: o manancial...

O manancial estava bastante longe, na montanha que dominava o país dos poços. Lá estava a montanha: majestosa, serena, pacífica! E com o segredo da vida em seu interior.

A montanha estava sempre lá. Algumas vezes apenas visível entre as nuvens; outras vezes radiante de esplendor...

O manancial não tinha sido percebido antes, porque os poços se preocupavam somente com sua superfície. A partir da nova descoberta, esforçavam-se por aumentar seu interior crescendo em profundidade, para que o manancial chegasse mais facilmente. E a água que tiravam deles tornou a terra bela.

Enquanto isso, lá fora, os que não faziam a experiência do profundo continuaram a aumentar sua boca, procurando inutilidades.

Fonte:
Universo das Fábulas

Estante de Livros (Ubirajara, de José de Alencar)


Produzido em 1874, Ubirajara é parte fundamental do conjunto de obras indianistas de José de Alencar, nosso maior prosador romântico, que produziu, também, romances urbanos (de costumes), regionalistas e históricos.

O romance revela, do ponto de vista de José de Alencar, o caráter da nação indígena, um relato dos costumes e da própria índole do selvagem - o bom selvagem - oposto àquilo que informam os textos de missionários jesuítas e viajantes aventureiros. Trata-se de uma releitura do homem nativo. O próprio romancista afirma, na "Advertência" que abre o romance:

"Este livro é irmão de Iracema. Chamei-lhe lenda como ao outro. Nenhum título responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da pátria indígena.

Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.

Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação? [...]
"

A temática amorosa revela tanta importância quanto a temática da honra. Durante todo o romance o amor supera todas as dificuldades.

O romance é narrado em terceira pessoa, por um narrador todo-poderoso que sabe e vê tudo ao seu redor. A história passa-se no século XV, o que podemos ver no fato da ausência do homem branco. Apresenta como espaço a natureza selvagem de um Brasil primitivo.

A ação externa é a que predomina a obra. O romance com tom épico é dividido em nove capítulos:

I. O caçador
Jaguarê sai de sua taba em busca de um inimigo para conseguir o título de guerreiro.

II.O guerreiro
Tendo vencido Pojucã, Jaguarê adota o nome guerreiro de Ubirajara, senhor da lança.

III. A noiva
Jandira, noiva de Ubirajara, espera por ele, mas ele não a procura. Informa ao povo sua intenção de não ficar com ela e vai em busca de Araci, filha do chefe da nação tocantim.

IV. A hospitalidade
Mudando o nome para Jurandir, para não se deixar reconhecer, Ubirajara hospeda-se na taba dos tocantins.

V. Servo do amor
Ubirajara, ainda como Jurandir, revela suas intenções e é aceito na casa de Itaquê para servi-lo e adquirir o direito de combater para ganhar a mão de Araci.

VI. O combate nupcial
Jurandir (Ubirajara) compete com os demais e ganha o direito de casar-se com Araci.

VII. A guerra
O cunhado de Ubirajara, Pojucã, torna-se seu prisioneiro de guerra, por isso terá de matá-lo. Ubirajara então se identifica, desencadeando a guerra entre araguaias e tocantins.

VIII. A batalha
Quando Ubirajara chega com o seu povo, os tocantins são atacados pelos tapuias.Uma criança tapuia cega o chefe tocantim e ficam sem liderança.

IX - União dos arcos
Ubirajara consegue dobrar o arco de Itaquê e torna-se assim o novo chefe da nação de Pojucã e Araci, fazendo com isso a união das nações de guerreiros.

PERSONAGENS

Ubirajara: Protagonista. No início do romance seu nome é Jaguarê. Herói romântico, forte, corajoso e bonito.

Jandira: Virgem araguaia, prometida para Jaguarê, em casamento, e desprezada por ele.   

Araci: Virgem filha do chefe dos Tocantins.

Pojucã: Guerreiro tocantim, filho de Itaquê.

Itaquê: Chefe da nação tocantim e pai de Pojucã e Araci.

Jacamim: Mulher de Itaquê.

Camacã: Pai de Ubirajara.

Canicram: terrível chefe dos tapuias.

Pahã: Filho mais moço de Canicram, chefe dos tapuias.

 RESUMO

Jaguarê, jovem caçador araguaia, procura em outras terras um inimigo com quem possa lutar, pois levando um prisioneiro para sua taba ele conseguiria o título de guerreiro. Mas ao invés de um guerreiro, ele encontra uma índia tocantim de nome Araci, que era filha do chefe da tribo. Ela diz que em sua nação existem cem guerreiros que vão disputá-la em casamento e Jaguarê é convidado a ser mais um deles. Jaguarê prefere dizer a Araci que ela mande todos eles para combater com ele e assim ela fez.

Logo aparece Pojucã para combater com Jaguarê e é vencido por ele. Jaguarê torna-se então Ubirajara, o senhor da lança.

Sendo levado para a taba de Ubirajara, Pojucã tem a oportunidade de ficar com a antiga prometida à Jaguarê, a jovem Jandira. Esta se recusa ficar com Pojucã e foge para a floresta.

Ubirajara chega à taba de Araci e, como permite a lei da hospitalidade, não se identifica, adotando o nome de Jurandir, o que veio trazido da luz.

Compete com os demais pretendentes de Araci e ganha a mão da jovem tocantim em casamento, mas antes de casa-se é obrigado a identificar-se. Faz-se ali uma situação constrangedora, pois seu prisioneiro é Pojucã, irmão de Araci.

Estava assim declarada a guerra. Pojucã é libertado para que pudesse lutar junto com o seu povo, os tocantins.

Quando os araguaias vão atacar, surgem os tapuias, que têm o direito de atacar antes dos araguaias, que têm que esperar.

Itaquê, chefe dos tocantins, vence o chefe dos tapuias mas fica cego perdendo assim a liderança de seu povo.

Para que possa haver uma sucessão os guerreiros tocantins devem pegar o arco de Itaquê, dobrá-lo e atirar com ele. Nenhum guerreiro tocantim consegue o feito, inclusive Pojucã, filho de Itaquê. Por isso convidam Ubirajara para fazê-lo.

Este o faz com tal destreza e habilidade que emociona Itaquê.

Ubirajara enfim, une os dois arcos das duas nações, araguaia e tocantim, dando origem à nação Ubirajara.

COMENTÁRIO

Ubirajara é um romance que narra a história de um índio guerreiro, que por sua força e garra conquistava tudo que queria. O autor começa a narração falando das nações indígenas existentes na época, e que Ubirajara era irmão de Iracema. Sua primeira atividade foi a caça, e como obtinha muito sucesso nesta atividade, recebeu o nome de Jaguaré, tipo de onça feroz que não deixava escapar suas presas.

Era admirado por todos, e as virgens disputavam o seu amor, mas havia uma moça que se chamava Jandira, que fora prometida para ele seu nome Jandira, tinha o significado "Jandaíra" relativo a um tipo de abelha.

Um dia, Jaguaré, estava caçando e encontrou outra virgem muito bela, que pertencia a tribo Tupi, e logo apaixonou-se por ela, seu nome era Araci, que significa estrela do dia. Ela também gostou dele e lançou um desafio para a sua conquista: aquele que fosse melhor guerreiro teria o seu amor. Jaguaré, aceitou o desafio, e quando se preparava para a luta, encontrou um guerreiro da tribo tupi e travou com ele uma luta que durou muitas horas, porém Jaguaré, saiu vencedor e levou seu inimigo preso para ser morto no tempo certo. Todos da tribo Araguaia, festejaram a vitória de Jaguaré.

Depois ele voltou para lutar pela Araci, na tribo dos Tocantins. Lá foi recebido com honras, como qualquer hóspede, os anciões deram-lhe o nome de Jurandi, que significa “aquele que veio da luz ou trazer luz”.

Logo ele viu Araci, e ambos ficaram encantados; Jurandi revelou a seu pai que queria a virgem por esposa, e foi lançado as provas de coragem entre todos os pretendentes e Jurandi venceu todas e obteve o consentimento do pai, mas quando Jurandi, revelou sua verdadeira identidade, tudo ficou complicado, porque o guerreiro inimigo que era seu prisioneiro, era o irmão de Araci. Foi aí que a luta seria maior. Ubirajara voltou à sua tribo, libertou o prisioneiro, e convocou a todos os guerreiros de seu povo para atacar os Tocantins, mas quando eles se preparavam para a batalha, souberam que os tapuias, estavam em guerra com os Tocantins e ofereceram ajuda aos araguaias, porém Ubirajara mandou um recado que não precisava de nenhum aliado para vencer aos dois grupos.

Na guerra dos tapuias com os Tocantins, resultou na morte do maior guerreiro dos tapuias e o chefe dos Tocantins perdeu a visão. Quando os araguaias chegaram na tribo tupi, Ubirajara pediu ao guerreiro cego que lançasse seu arco e duas setas se cruzaram no espaço e a paz foi feita entre as duas tribos, e assim Araci, foi com o seu marido para as núpcias em sua cabana, ela rompeu a liga da virgindade e colocou-a no braço do marido. Estendeu a rede nupcial e foi buscar Jandira, que fora dada a ela por escrava pelo Ubirajara, e deu ao marido como esposa, as duas se tornaram esposas do maior guerreiro Araguaia Tocantins.

A união dessas duas nações resultou no surgimento de uma nova nação que recebeu o nome de Ubirajara, eles dominaram o deserto, por muito tempo.

Fonte:
Texto de Jayro Luna, no site Orfeu Spam Apostilas

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 440

 


Eduardo Affonso (Nada Além)


Quando eu morrer, assim que chegar do lado de lá e confirmar que não há lado de lá, faço questão de baixar em algum centro só para dar a má notícia.

– Se houver algum espírito entre nós, que se manifeste.

– Não tem espírito nenhum porque espírito não existe. Vim só para dizer que não tem nada do lado de cá. O Além é uma ilusão.

– Se não tem nada desse lado daí, onde é que tu estás?

– Em lugar nenhum. Ateus são como a Buzina do Chacrinha: acabam quando terminam. Morreu, zefini. E não precisa me tratar na segunda pessoa porque sei que este centro é em Magé, não em Bagé.

– Mas se tu, quer dizer, se você acabou e não está em lugar nenhum como é que estamos conversando neste momento. Não faz sentido…

– Exatamente. Sabe qual a diferença entre o unicórnio de 4 chifres e o de 7 chifres?

– Um tem 3 chifres a mais.

– Não, não tem diferença nenhuma. Nenhum dos dois existe. Você estar falando agora com um espírito ateu inexistente é a mesma coisa de estar falando com um espírito de luz, que também não existe. É tudo uma projeção do seu inconsciente, tudo sua imaginação.

– Você está insinuando que isto aqui é uma armação?

– Uma armação, eu não digo. Um delírio, com certeza. Mas acredito que seja uma forma de consolar as pessoas, e nada mais consolador que a fantasia. Então, tá de boa.

– Mas não tem mesmo nada aí?

– Nadica.

– “Nosso lar” então era…

– … licença poética. Onde já se viu passarela para espírito, que não tem corpo, ter guarda-corpo? Tinha que ter guarda-espírito…

– É que os espíritos…

– Nem vem. Espírito é espírito, corpo é corpo. Uma coisa é o relógio, outra é a corda do relógio.

– Você não está comparando a alma humana com a corda do relógio, está? A corda é uma coisa mecânica…

– … e a alma é uma coisa química. Ou quer que eu acredite que, quando um relógio para, a corda do relógio vai para a “Nossa relojoaria”, onde continua tendo a forma de despertador, cuco, carrilhão, Casio, Rolex? E que depois um reloginho desses de ponteiro, se nunca tiver se atrasado na vida, pode reencarnar – quer dizer, reenrelojar – num relógio digital ou mesmo num celular…. me poupe.

– Mas é que a alma, o espírito, o perispírito, a psique, princípio vital…

– Mano, eu só vim para avisar que vocês vão se decepcionar quando chegarem aqui e não for nada do que imaginam. Porque aqui não existe. É só um imenso Nada, um Nada absoluto. Até eu, que sabia que ia encontrar o Nada fiquei abismado com um o tamanho do Nada que encontrei. Vazião mesmo.

– Ok, o papo tá ótimo, mas tem outros ectoplasmas na fila de espera para se manifestar e o pessoal aqui do centro tá ficando meio indócil com essa nossa conversa. Ide em paz, espírito ateu!

– Valeu, irmão! E obrigado pela segunda do plural. Pena que não exista nenhum centro espírita ateu. Ia ser divertido baixar lá com Freud, Einstein, da Vinci, Hawking, Sagan, Sartre, Niemeyer – que também chegaram aqui, não encontraram nada e vão passar o resto da eternidade sem uma corrente pra arrastar, uma cartinha para ditar, uma gira para animar, uma casa mal assombrada pra assombrar. Pensando bem, inexistir tem suas vantagens. A gente descansa. Fui!

– Já vai tarde. (Suspira fundo) Desculpem, irmãos. Tivemos uma interferência aqui na conexão com o Além, que já foi restabelecida. Tem alguém aqui cujo nome começa com a letra M? O espírito de um ente querido tem uma mensagem de paz para você…

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/07/30/nada-alem/

Baú de Trovas XX


Se me quiseres assim
como te quero, querida,
verás que daremos fim
às amarguras da vida!
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Eis que a tarde era cinzenta
no dia em que ela morreu:
veio a noite sonolenta,
nunca mais amanheceu...
CID CARVALHO
- - - - - -
Meu canto é de desespero,
ante o silêncio da amada.
E sem nenhum exagero:
vida assim não vale nada!
JORGE BELTRÃO

- - - - - -
Se amor se paga com amor,
como diz ditado antigo,
meu benzinho, por favor,
acerte as contas comigo!...
JORGE MURAD
- - - - - -
Duas mulheres conheço
que merecem meus carinhos:
a que me embalou no berço
e a que embala os meus filhinhos!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
- - - - - -
Quando o amor chega, depressa
o coração alucina.
— Dói no dia em que começa,
e dói mais quando termina!...
JOSÉ RODRIGUES FERNANDES
- - - - - -
Ontem, quando a lua veio
tão cheia, por trás do monte,
parecia um lindo seio,
no decote do horizonte.
JOSUÉ SILVA
- - - - - -
A vida... que importa a vida?!
Cante a vida quem quiser...
— Que eu tenho a vida envolvida
na vida de uma mulher!
JUNQUILHO LOURÍVAL
- - - - - -
Vejo-te. Anseio. Depois...
repara bem que maldade:
de permeio, entre nós dois,
a distância e uma saudade!
JUVENAL MARQUES
- - - - - -
Teus olhos, quando tu fitas
meus olhos cheios de mágoa,
são como estrelas bonitas
mirando-se em poças d'água.
LAGO BURNETT
- - - - - -
Quisera ser passarinho,
muito leve e sonhador,
para fazer nosso ninho
do regaço de uma flor!
LAIS COSTA DUARTE
- - - - - -
Toda a beleza da vida,
todo o encanto dela, vem
de a gente saber, querida,
que é toda a vida de alguém!
LEILA RIBEIRO FERREIRA
- - - - - -
Meu coração, quando o ninas
com tuas juras da amor,
parece um templo em ruínas,
todo coberto de flor!
LILINHA FERNANDES
- - - - - -
Desde que te vi, formosa,
de olhares tão sedutores,
nunca mais achei que a rosa
fosse a rainha das flores!
LINDOURO GOMES
- - - - - -
Toda lágrima de amor
rola de leve, mansinha,
com medo da própria dor
que em nosso peito se aninha.
LÍVIA MARIA
- - - - - -
Nunca meus lábios sentiram
teu doce beijo de amor,
mas nossos beijos se uniram
num beijo aos pés do Senhor.
LOLA DE OLIVEIRA
- - - - - -
Liberdade, com franqueza,
é só força de expressão.
— A gente já nasce presa
nos laços do coração!
LOURDES PÓVOA BLEY
- - - - - -
Só quem amou é que sabe
como é certa esta verdade:
é muito o amor que ainda cabe
no amor que se fez saudade!
LOURIVAL PASSOS
- - - - - -
Perdi meus sonhos tão belos
por desencontros fatais.
— Ah, caminhos paralelos,
por que não sois transversais?
LÚCIA LÔBO FADIGAS
- - - - - –
Era tanto o nosso amor,
tanta paz... tanta afeição...
— Por que transformar em dor
aquela dedicação?
LUIS BANKS DOS SANTOS
- - - - - -
Lembra a saudade uma estrela
nas águas de um ribeirão
que fica sempre a retê-la,
enquanto as águas se vão...
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL
- - - - - -
Amor perfeito é mentira,
é a mais perfeita ilusão.
Nas coisas mais imperfeitas
se encontra mais perfeição...
PONCIANO BARBOSA
- - - - - -
Se alguém a mim se queixar
do seu amor.., que eu me cale.
— Quem ama, pode falar!
Mas não quer que ninguém fale...
SEBASTIÃO BEMFICA MILAGRE
- - - - - -
Cai a noite. E a luz da tarde,
das trevas temendo escolhos,
contraiu-se, sem alarde,
e foi dormir nos teus olhos.
VICENTE MAYA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Estante de Livros (As Vinhas da Ira, de John Steinbeck)


Publicado em 1939, recebeu o National Book Award e o Pulitzer de ficção, e foi citado com destaque quando Steinbeck recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1962.

Passado durante a grande depressão, o romance centra-se nos Joads, uma família pobre de rendeiros expulsos da sua quinta no Oklahoma pela seca, por dificuldades econômicas, por mudanças na atividade agrícola e pela execução de dívidas pelos bancos forçando o abandono pelos rendeiros do seu modo de vida. Devido à sua situação desesperada e em parte porque estavam no meio do Dust Bowl, os Joads foram embora para a Califórnia. Junto com milhares de outros "Okies", procuraram emprego, terra, dignidade e um futuro.

As Vinhas da Ira é com frequência lido nas aulas de literatura dos ensinos secundário e universitário norte-americanos devido ao seu contexto histórico e ao legado perdurável. Um célebre filme com o mesmo nome do livro, As Vinhas Ira, com Henry Fonda no principal papel e dirigido por John Ford, foi lançado em 1940.

Sinopse

Relata a história de uma família pobre do estado de Oklahoma, que durante a Grande Depressão de 1929 se vê obrigada a abandonar as terras que ocupava havia décadas, em regime de meeiros, devido à chegada do progresso, traduzido pela compra de tratores e máquinas pelos donos dessas, e de um novo regime de propriedade. Este fator tornou obsoleto o trabalho manual de aragem e plantio da terra, e forçou-os a rumar em direção à Califórnia.

Este clássico americano, trata dos efeitos da grande depressão de pequenas famílias de fazendeiros do Oeste americano.

A personagem principal, Tom Joad, regressa a casa saído da prisão e reencontra a sua família, já preparada para abandonar a sua terra, Oklahoma, no seguimento de um ano de colheitas ruins e também da premente ocupação da terra pelos donos originais e seu maquinário. Concluindo a impossibilidade de manter de pé a propriedade, não tiveram outra opção que não fosse abandoná-la e partir em busca de uma nova vida.

Com o pouco dinheiro que lhes resta, adquirem um velho caminhão e encetam uma viagem para oeste, até à Califórnia. Durante o percurso, a família cruza com outras que caminham na mesma direção e com a mesma intenção, seduzidos por promessas de trabalho e de bons salários.

No entanto, tais expectativas saem frustradas, pois à chegada percebem que o trabalho que há é pouco e mal remunerado, o que obriga a maioria dos emigrantes a viver em acampamentos temporários ao longo da estrada, sempre sujeita à exploração da mão de obra barata.

Desenvolvimento

"Este é o começo da passagem do "eu" para o "nós". Se tu que possuis as coisas que as pessoas deviam ter pudesses entender isso, tu poderias preservar-te. Se tu pudesses separar as causas dos resultados, se pudesses saber que Paine, Marx, Jefferson, Lenin foram resultados, não causas, tu poderias sobreviver. Mas isso tu não podes saber. Pois a qualidade de possuir congela-te para sempre no "eu" e separa-te para sempre do "nós". (Capítulo 14)

O romance desenvolveu-se a partir de 'Os Apanhadores Nômades', uma série de sete artigos publicados no San Francisco News, de 5 a 12 de outubro de 1936. O jornal encomendou esse trabalho sobre trabalhadores migrantes do Centro Oeste na agricultura da Califórnia. (Foram mais tarde compilados e publicados isoladamente.

Título

Quando escrevia o romance em sua casa, na Califórnia, Steinbeck teve dificuldade, pouco habitual nele, em conceber um título. O nome de As vinhas da Ira sugerido pela sua esposa Carol Steinbeck, foi considerado mais adequado do que qualquer outro pelo autor. O título é uma referência à letra do "The Battle Hymn of the Republic", de Julia Ward Howe:

  “Os meus olhos viram a glória da vinda do Senhor:
    Ele está pisando fora da safra, onde as vinhas da ira são armazenadas;
    Ele Deus desferiu o relâmpago fatídico da Sua terrível espada rápida:
    A Sua verdade está em marcha.”


Esta lírica refere-se, por sua vez, à passagem bíblica do Apocalipse 14: 19-20, um apelo apocalíptico à justiça e libertação divina da opressão no juízo final.

“E o anjo meteu a sua foice na terra, e colheu as uvas da terra, e lançou-as no grande lagar da ira de Deus. E as uvas foram pisadas fora da cidade, e saiu sangue do lagar que chegou aos freios dos cavalos, pelo espaço de mil e seiscentos estádios.”

A frase também aparece no final do capítulo 25 de As Vinhas da Ira, que descreve a destruição propositada de alimentos para manter o preço elevado:

“e nos olhos dos famintos há uma ira crescente. Nas almas das pessoas, as vinhas da ira estão engrossando e ficando mais pesadas, ficando mais pesadas para a vindima.”

A imagem invocada pelo título serve como símbolo crucial no desenvolvimento tanto do enredo como das principais preocupações temáticas do romance: a partir da terrível opressão da prensa do Dust Bowl virá a ira terrível, mas também a libertação dos trabalhadores através da sua cooperação. Isto é sugerido, mas não concretizado na trama do romance.

Nota do Autor

Ao preparar-se para escrever o romance, Steinbeck escreveu:

“Eu quero pôr um letreiro de vergonha nos bastardos gananciosos que são responsáveis por esta [Grande Depressão] e pelos seus efeitos. É famosa a sua afirmação de que “fiz o mais que pude para esfarrapar os nervos do leitor.”

Esta obra ganhou muitos seguidores no seio da classe trabalhadora devido à simpatia de Steinbeck para com os emigrantes e o movimento dos trabalhadores, e ao estilo acessível da sua prosa

Recepção da Crítica

John Timmerman, estudioso de Steinbeck, resume assim a influência do livro: " As Vinhas da Ira pode muito bem ser o romance mais amplamente discutido - na crítica, nas análises, e nas salas de aula das universidades - da literatura americana do século XX.”

Na altura da publicação, o romance de Steinbeck “foi um fenômeno à escala de acontecimento nacional. Era publicamente proibido e queimado por cidadãos, foi debatido na rádio em programas de audiência nacional; mas acima de tudo foi lido". De acordo com o New York Times foi o livro que melhor se vendeu em 1939 e em fevereiro de 1940 já tinham sido impressas 430.000 cópias. Neste mês venceu o National Book Award de ficção de 1939, votado pelos membros da American Booksellers Association. Venceria depois o Pulitzer Prize de ficção.

O livro foi notado pela representação apaixonada de Steinbeck da situação dos pobres, e muitos de seus contemporâneos atacaram a sua visão social e política. Bryan Cordyack escreve que, “Steinbeck foi atacado como propagandista e socialista tanto da esquerdo como da direita do leque político. O mais veemente dos ataques veio da Associação de Fazendeiros da Califórnia; ficaram desagradados com a apresentação no livro das atitudes e conduta dos fazendeiros de Califórnia para com os imigrantes. Denunciaram o livro como um “bloco das mentiras” e etiquetaram-no como “propaganda comunista”. Alguns acusaram Steinbeck de exagerar as condições do campo para reforçar um argumento político. Steinbeck tinha visitado os acampamentos muito tempo antes da publicação do romance e argumentam que a sua natureza inumana destruiu o espírito dos colonizadores.

Em 1962, o Comitê do Prêmio Nobel citou As Vinhas da Ira como “uma grande obra” e como uma das razões principais do Comitê para conceder a Steinbeck o Prêmio Nobel de Literatura.

Em 2005, a revista Time incluiu o romance na sua lista “Os 100 melhores romances em língua inglesa de 1923 a 2005”. Em 2009, The Daily Telegraph do Reino Unido incluiu o romance nos “100 romances que todos deveriam ler”.

Em 1998, a Modern Library ordenou As Vinhas da Ira como o décimo na sua lista dos "Cem melhores romances em língua inglesa do século XX". Em 1999, o francês Le Monde de Paris ordenou As Vinhas da Ira como sétimo na sua lista dos "100 melhores livros do século XX". No Reino Unido, foi listado em 29 dos “romances mais queridos do país” no inquérito de 2003 da BBC.

Adaptações

Filme


O livro foi rapidamente adaptado ao cinema num filme de Hollywood de 1940 do mesmo nome dirigido por John Ford e Henry Fonda no principal papel como Tom Joad. A primeira parte desta película segue o livro muito de perto. Contudo, a segunda metade e especialmente a parte final são significativamente diferentes do livro. John Springer, autor de Os Fondas (Citadel, 1973), disse sobre Henry Fonda e o seu papel na versão fílmica de As Vinhas da Ira: “Um Grande Romance Americano fez um dos Grandes Filmes Americanos de sempre.”

Em julho de 2013 Steven Spielberg anunciou os seus planos para dirigir uma nova versão de As Vinhas da Ira para a DreamWorks.

Música

A canção de Woody Guthrie, "The Ballad of Tom Joad" do álbum Dust Bowl Ballads (1940), explora a vida do protagonista do livro após a libertação condicional da prisão.

O músico e autor de rock americano Bruce Springsteen deu o título “The Ghost of Tom Joad” (1995) ao seu décimo primeiro álbum de estúdio, com base no personagem. A primeira trilha do álbum é também intitulada “The Ghost of Tom Joad”. A canção - e em menor medida, as outras canções do álbum - traça comparações entre Dust Bowl e os tempos modernos. Posteriormente, a mesma canção foi regravada pela banda de rock americana ativista Rage Against The Machine, e lançada em seu álbum Renegades, no ano de 2000.

A canção "Dust Bowl Dance" dos Mumford & Sons é baseada no romance.

Os Bad Religion têm uma canção intitulada "Grains of Wraith" no seu álbum de 2007, New Maps of Hell.

A banda de rock progressivo Camel lançou em 1991 um álbum intitulado Dust and Dreams inspirado no romance.

A ópera As Vinhas da Ira baseada no romance foi co-produzida pela Ópera de Minnesota e pelo Utah Symphony and Opera, com música de Ricky Ian Gordon e libretto de Michael Korie. A estreia mundial da ópera ocorreu em fevereiro de 2007, recebendo críticas locais favoráveis.

Em 1990 a banda de rock progressivo The Mission lança o album "Carved in Sand" com a música "The Grapes of Wrath".

Teatro

A Steppenwolf Theatre Company produziu a peça As Vinhas da Ira, uma adaptação ao teatro do livro, adaptada por Galati Frank. Gary Sinise desempenhou o papel de Tom Joad em todas as 188 sessões da temporada na Broadway em 1990. Uma das representações foi filmada e apresentada na PBS no ano seguinte.

Em 1990, a companhia de teatro Illegitimate Players em Chicago produziu Das Vinhas e das Nozes, uma mistura original satírica de As Vinhas da Ira e do aclamado romance de Steinbeck Of Mice and Men.[

Fonte:
Wikipedia