sábado, 20 de abril de 2024

Figueiredo Pimentel (A gatinha branca)

Existiu há séculos passados um rei que tinha três filhos. Tendo medo que eles tivessem desejos de reinar antes de sua morte, porque já corriam boatos que conspiravam contra ele, e não querendo deixar um lugar que tão dignamente ocupava, pensou que o melhor meio de viver em repouso era distraí-los com promessas, cujo resultado seria iludi-los.

Uma vez chamou-os ao quarto e disse-lhes:

— Meus filhos, a minha avançada idade já não permite que me dedique aos negócios do reino com tanto cuidado como antes, e quero que seus vassalos não sofram. Por isso, quero colocar a minha coroa na cabeça de um de vós. Haveis, porém, de concordar comigo que, para isso é preciso que façais uma ação digna de tão grande presente. Quero, pois, que vós três procureis um cão, lindo e fiel, que me faça companhia no resto dos meus dias. Aquele que me trouxer o animal mais bonito será o dono da minha coroa e, portanto, meu herdeiro.

Os moços ficaram admirados com o desejo de seu velho pai, mas resolveram ir procurar o animal que lhes havia de dar a sucessão do reino, prometendo que, ao fim de um ano, àquela mesma hora, estariam de volta dando o resultado da incumbência.

Partiram os moços, cada um para um lado.

O príncipe Nestor, como era chamado o mais jovem, seguiu viagem, e não havia dia em que não comprasse um cachorrinho.

Mas, como não podia nadar acompanhado de tantos animais, à proporção que comprava um mais bonito, abandonava os outros.

Ia seguindo sempre à procura de um animal lindo, quando uma noite foi surpreendido por uma tempestade no meio de uma floresta.

Subiu em uma árvore muito grande, que havia perto do lugar onde estava, para se abrigar da chuva, e poder passar a noite, quando viu de longe uma luzinha.

Desceu imediatamente, e foi caminhando na direção daquele farolzinho.

Chegou à porta de um castelo, o mais soberbo que se pode imaginar, todo de ouro, com muros de porcelana transparente, representando todas as histórias de fadas que há no mundo.

Aproximando-se da porta, tocou a campainha, cujo som, repercutindo lá dentro, parecia ser de ouro ou de prata.

Passados poucos segundos, abriu-se a porta, sem que ele visse outra coisa senão uma dúzia de mãos no ar, segurando archotes para alumiar sua passagem.

Ficou tão admirado, que hesitava em entrar, quando sentiu que o empurravam para a frente.

Começou a andar ao acaso, e sempre maravilhado de ver salas, com mais de mil velas cada uma, cada qual de uma qualidade: de ouro, de prata, de marfim, de pérolas, de tudo quanto é precioso neste mundo.

Depois de ter atravessado as salas, as mãos que o conduziram até ali, fizeram-no parar, e viu um sofá encostado a um fogão.

Sentou-se, e sentiu mãos começarem a despir-lhe a roupa molhada que trazia, substituindo-a por uma bela camisa bordada a ouro com botões de pérolas.

Com este novo vestuário, as mesmas mãos empurraram-no a um quarto contíguo, onde viu um lavatório, espelho, perfumarias as mais esquisitas, enfim tudo quanto é necessário a um moço para se vestir.

Sentou-se em uma cadeira de marfim, e começaram a fazer-lhe a barba, penteá-lo, frisá-lo e mudar-lhe a camisa por uma roupa mais própria e de riqueza nunca vista.

As mesmas mãos, depois do príncipe Nestor estar pronto, conduziram-no a uma sala, admirável pelos seus enfeites.

A mesa estava posta com dois talheres, o que intrigava em excesso o príncipe, a ponto de se julgar no inferno.

A sua admiração chegou ao auge quando, a um sinal dado, viu uma porção de gatos, de diversas raças e cores, entrar cada um com um instrumento e seguidos de um gato de óculos, com um rolo de papel debaixo do braço.

Subiram os bichinhos para um estrado, e começaram a tocar, cada qual de sua maneira, de sorte que formavam a orquestra mais engraçada que jamais se tem imaginado, pelas caretas que os bichinhos faziam, o que provocaram ao príncipe gargalhadas estrepitosas.

Pensava Nestor em todas as coisas que lhe haviam acontecido naquele castelo, quando viu entrar uma figurinha, coberta com um véu de crepe, e com dois gatos fardados segurando na cauda do seu vestido preto, também de luto e de espada à cinta.

Seguia-se um cortejo de gatos, cada um trazendo ratoeiras cheias de ratos, camundongos e morcegos.

O príncipe não sabia como se ter de tanta surpresa, quando a figura se aproximou dele, e viu uma bela gatinha branca.

Tinha um ar triste, e começou a miar tão docemente que quem a ouvisse se sentiria pesaroso.

Chegou-se ao moço, e falou-lhe:

— Filho de rei, sê bem-vindo; a minha real majestade te recebe com gosto.

— Excelentíssima gatinha, disse o príncipe, sois tão generosa em me receber com tanto agrado, que não me pareceis uma gatinha qualquer; o dom da palavra, que possuis, e este castelo tão rico, são provas bastante evidentes do que vos digo.

— Príncipe, respondeu a gatinha, acaba com teus galanteios; sou simples, em meus discursos e em meus modos, porém, tenho bom coração. Ordeno que sirvam ao nosso hóspede, e que os músicos se calem, porque o príncipe não entende o que eles dizem.

— E eles dizem alguma coisa? replicou o príncipe.

— Sem dúvida, continuou ela. Temos aqui poetas de muito espírito; e se demorares aqui algum tempo, ficarás convencido do que te digo.

Serviram o jantar, e o príncipe viu dois pratos, com um ratinho assado, e outro com uma carne que ele não conheceu.

Ficou com repugnância de comer tal comida, porém a gata, adivinhando o que se passava no espírito do moço, asseverou-lhe que o outro prato era feito de propósito para ele, e que por isso não precisava ter escrúpulos.

O príncipe acreditou no que lhe dizia a gatinha, e jantou muito bem, admirando somente um retrato que viu no colar da gatinha, onde reconheceu a fotografia de um homem muito bonito, e que se parecia um pouco com ele.

Perguntou de quem era aquele retrato; a gatinha ficou mais triste e não respondeu.

Com medo de contrariá-la, levantaram-se da mesa, sem mais o jovem moço se ocupar com a fotografia.

Depois do jantar, foi o príncipe Nestor convidado para assistir a um espetáculo no teatro do palácio, e ficou maravilhado de ver doze gatos e doze macacos dançarem como as mais afamadas bailarinas.

Terminado o espetáculo, esteve o príncipe a conversar com a gatinha, admirando cada vez mais como ela era instruída em todas as histórias dos príncipes e reis do mundo.

Já era mais de meia-noite, quando os dois se deram as boas-noites, e foram deitar-se.

No dia seguinte estava o príncipe ainda deitado, quando lhe apareceram duas mãos que traziam numa bandeja de ouro e brilhantes um cartão da gatinha, convidando-o para uma caçada.

O príncipe levantou-se, vestiu-se, e foi ter com a gatinha, que já encontrou montada em um macaco, oferecendo-lhe ela um cavalo-de-pau, que corria mais que o melhor animal deste mundo, e tanto como o vento.

A caçada era feita pelos gatos aos coelhos, e era de se admirar como podiam estes animais caçar aqueles.

***

Levava Nestor essa boa vida, e havia esquecido o fim da sua viagem, entretido como estava pelos divertimentos que a toda hora lhe proporcionava a gatinha, quando um dia esta lhe disse:

— Sabes que só tens três dias para procurar o cãozinho que teu pai deseja, e que teus irmãos já encontraram dois, lindos?

O príncipe, admirado de sua negligência, exclamou:

— Por que encanto secreto esqueci a coisa mais importante deste mundo, para mim? Onde poderei encontrar um cão como desejo, e um cavalo bastante rápido para fazer tantas léguas em tão pouco tempo?

A gatinha, vendo-o tão inquieto, acalmou-o:

— Sossega; sou tua amiga; podes ficar ainda um dia em meu palácio; e, conquanto daqui ao teu reino haja quinhentas léguas, o meu cavalo-de-pau vai lá ter em menos de doze horas.

— Agradeço-vos muito, bela gatinha, mas não é preciso somente chegar à casa de meu pai; é necessário também encontrar um cão, e onde irei agora achá-lo?

— Pois toma esta amêndoa, disse a gatinha; lá dentro está um cãozinho.

— Oh! disse o príncipe, vossa majestade quer caçoar comigo?

— Não; e se não acreditas, encosta-a ao ouvido, que escutarás o latido.

O príncipe obedeceu; e quando ouviu o “au-au” do cachorrinho, ficou maravilhado; e queria por força abrir a amêndoa para ver o animalzinho.

A gatinha proibiu-lhe que assim procedesse, dizendo que só devia abri-la em presença do rei seu pai.

Nestor despediu-se da gatinha, dizendo que se sentia pesaroso de deixar uma gata tão gentil, e suplicou-lhe ardentemente para que fosse a seu palácio, onde seria muito bem tratada.

A gatinha deu um suspiro triste, e não respondeu.

O moço montou no cavalo-de-pau e voou ao palácio do rei, onde encontrou os irmãos, que estavam chegando naquele instante.

Quando os três príncipes chegaram à presença do velho rei, este não sabia qual dos dois cães trazidos era o mais bonito, tão lindos eram. Perguntou a Nestor onde estava o animal que devia trazer.

— Está aqui, meu pai, e mostrou-lhe a amêndoa.

O rei supôs que o filho queria caçoar, e já estava disposto a mandar castigá-lo severamente pela falta de respeito, quando o moço abriu a amêndoa, de onde saiu um cãozinho, do tamanho de um caroço de feijão, a latir, a pular e a saltar que era um gosto.

Todos foram de acordo haver sido Nestor quem trouxera o animal mais lindo. Mas o rei, que não se achava com disposição de lhe ceder a coroa, disse:

— Na verdade, meu filho, foste tu que ganhaste o prêmio. Mas, para não descontentar a teus irmãos, quero uma segunda prova. Tragam-me, daqui a um ano, um pano que seja capaz de atravessar o fundo da agulha mais fina que houver em todo o reino.
***

Partiram os príncipes à procura do que lhes pedia seu pai pensando onde poderiam encontrar pano tão fino que passasse pelo fundo de uma agulha, e desanimados de conseguir o que lhes fora pedido.

Nestor montou no cavalo-de-pau, e partiu para o palácio da gatinha, a quem foi pedir proteção e conselho.

As mãos, que da primeira vez o tinham recebido, assim que ele chegou, levaram-no à presença da gatinha, que lhe falou:

— Príncipe, senti muito a tua partida, e não contava mais te ver, porque te estimo muito, e desejava a tua volta. Infelizmente, do que desejo neste mundo, nada tenho conseguido. Falemos sobre assunto que mais te interessa. Já sei a que vens; o que teu pai pede é muito difícil de se conseguir, senão quase impossível. Como tenho, porém, aqui no meu reino, tecelões admiráveis, vou fazer a tua encomenda e estou certa que eles envidarão todos os esforços para me serem agradáveis.

Nestor começou a viver no palácio da gatinha a mesma vida que dantes. Tendo sempre com que se distrair – festas de todas as espécies – esqueceu-se do fim da sua segunda visita.

Uma tarde em que conversava com a gatinha, cada vez mais admirado de tanto espírito do animalzinho, ela lhe disse:

— Príncipe, é amanhã o dia em que deves apresentar a teu pai o pano que ele te encomendou. Já te esqueceste?

— Palavra que tinha me esquecido, minha formosa gatinha, do fim a que voltara a este palácio. A vossa companhia é tão encantadora, que de bom gosto passaria o resto de minha vida, aqui. O único sentimento que tenho é não serdes mulher, para eu viver de joelhos, vos adorando. Mesmo assim, basta que me dês consentimento, que aqui ficarei, não querendo mais saber do direito que tenho, sobre a coroa de rei meu pai.

— Príncipe, o que me pedes é impossível. Volta ao palácio de teu pai, a quem não deves abandonar por amor a uma triste gata.

— Mas como voltarei eu, se de todo me esqueci de procurar o pano, e de hoje até amanhã não o poderei haver, nem que tenha o auxílio do cavalo-de-pau?

— Sossega, príncipe Nestor, disse ela muito triste, eu me incumbi de arranjar o pano que teu pai deseja. Ei-lo aqui. Vai, e lembra-te sempre da tua amiga, a gatinha.

Entregou-lhe uma caixinha do tamanho de um dado.

O príncipe não poderia supor que dentro de uma caixinha tão pequena houvesse uma peça de pano. Mas, como a gatinha não gostava de caçoar, aceitou o microscópico embrulho, com recomendação de só abri-lo em frente do rei.

Montou no cavalo-de-pau que lhe dera a gatinha, e em dez horas viajou quinhentas léguas.

Assim que chegou ao palácio, viu dois cavaleiros saltando de dois cavalos, e reconheceu os dois irmãos.

Estes indagaram do príncipe Nestor se tinha arranjado a peça de pano, ao que lhes respondeu que não, porque o mais fino pano que encontrara só passava pelo anel de uma criança.

Chegaram os dois príncipes à presença do rei, que os julgou logo sem direito à coroa, por isso que a peça de pano que levavam só passava pelo fundo de uma agulha de coser sacos.

Voltando-se para seu filho mais moço:

— E tu, meu filho, foste tão feliz como da outra vez?

— Suponho que sim, meu pai. Aqui está a peça de pano que o senhor deseja. Tem cem metros de comprimento por trinta de largura.

Apresentou a caixinha que lhe havia dado a gatinha.

O rei não quis acreditar que uma caixa do tamanho de um dado pudesse conter tanto pano, mas para se certificar abriu-a.

Encontrou dentro uma caixa de vidro.

Todos começaram a duvidar do jovem príncipe, quando este pediu a seu pai que abrisse a segunda caixinha.

Este abriu-a, e encontrou um grão de milho.

Aumentaram as zombarias ao príncipe Nestor, dizendo que tinha sido enganado, e ele mesmo, um tanto envergonhado, disse consigo mesmo:

— Será possível que a gatinha branca me tenha ludibriado?

Nestor sentiu uma arranhadela na mão. Compreendeu que era a gatinha, que não queria que ele duvidasse de sua palavra; e, virando-se para todas as pessoas presentes, disse:

— Garanto a todos que encontrarão cem metros de pano de comprimento por trinta de largura.

O rei já se via satisfeito, por ver que a coroa não passaria a nenhum dos seus filhos, e, para contentar o príncipe Nestor, mandou que ele quebrasse o grão de milho.

Este imediatamente partiu-o, e encontrou um grão de ervilha, que também quebrou, tirando de dentro um pano tendo em todo o comprimento e largura pintadas todas as qualidades de pássaros, peixes e animais.

Todos se admiraram de ver um pano assim, e foram de acordo que a coroa pertencia a Nestor.

Todavia, o rei desta vez ainda não quis ceder, dizendo:

— Meus filhos, é a última experiência que faço. De bom grado daria o meu reino a meu filho mais moço, que é o que se tem saído melhor em suas aventuras, porém acho que um homem solteiro não governa bem um reino tão importante como é o meu. Por isso dou-vos um ano de prazo para trazer a mulher mais bonita que encontrardes. Aquele que trouxer a que mais me agradar, será o rei meu substituto, e casar-se-á com a moça. Quero gozar a minha velhice cercado de netinhos.

Os três príncipes saíram do castelo, indo Nestor, no seu cavalo-de-pau, em direção ao palácio da gatinha.

Chegando ali contou-lhe qual a incumbência que o pai lhe fazia, dizendo achar ser impossível consegui-lo.

— Não, príncipe, eu te ajudarei no que puder. Talvez saiba de alguma moça formosa, que queira ir em tua companhia.

— Não, minha gatinha, estou disposto a não voltar mais ao palácio; e peço-te o que já pedi uma vez: amo-te muito, e o meu maior desespero é ficar sem tua companhia.

— Não penses nisso, príncipe. Cuidemos do meio de fazer a vontade a teu pai, e, enquanto não o encontramos, divirtamo-nos.

Passou o príncipe mais de um ano no palácio da gatinha, e já estava esquecido do que viera ali fazer, quando um dia lhe disse a sua amiga:

— Meu caro príncipe, é depois de amanhã que deves ir ao palácio do rei, com a moça que levarás, e previno-te que arranjei uma, linda como os amores.

— Pois eu, minha gatinha, desisto de tudo, porque uma das condições que meu pai apresentou foi aquele que levar a moça mais bonita casar-se com ela, e eu não quero deixar de gozar a tua preciosa companhia.

— Não, príncipe Nestor, deves fazer o que te digo, que é para teu bem, e talvez para o meu. Arranjei a moça que procuras, mas é preciso um sacrifício de tua parte, para levá-la.

— Dize-me qual é, que o farei, uma vez que é para meu benefício, e talvez para o teu, como dizes.

— Só terás a moça, que é de uma beleza nunca vista, se me cortares a cabeça e a cauda, e as jogares no fogo.

— Isso não, gatinha: prefiro morrer, abandonar todos os reinos da terra, a ter que fazer tal barbaridade.

— Mas olha que é preciso; e se me tens a amizade que dizes, faze o que te peço de joelhos, que é para meu benefício.

— Pois bem, fá-lo-ei, se jurares que nada te acontecerá.

— Garanto-te que até serei mais feliz.

Nestor fez o que lhe disse a gatinha.

Com a mão trêmula pegou num facão, que ali aparecera por encanto, e de olhos fechados cortou-lhe a cabeça e o rabo.

Quando abriu os olhos, ficou deslumbrado.

Em sua frente estava uma moça de uma beleza extraordinária, que lhe disse:

— Obrigada, príncipe, pelo serviço que acabas de me prestar. Estou às tuas ordens, para irmos ao palácio do rei, teu pai. Sou uma princesa, transformada na gatinha que conheceste, por uma fada má, inimiga da minha madrinha, a fada Beleza. Só me desencantaria quando um príncipe me amasse no meu invólucro de gata, e me matasse. Salvaste-me, e hoje sou a rainha Maroca, senhora de seis reinos. Vamos ter com teu pai que, estou certa, não me recusará como nora.

O príncipe estava estupefato ante um fato tão estranho, e em frente de um formosa mulher, tão linda como nunca vira nem em sonhos.

Maroca mandou que seus vassalos, que eram os antigos gatos, também desencantados, preparassem a carruagem que os devia levar ao reino do pai do príncipe Nestor.

Era um lindo carrinho puxado por dez mil casais de pombos brancos, atrelados por cordões de ouro, onde, de espaço a espaço, havia um brilhante do tamanho de um grão de milho.

Quando os dois jovens chegaram ao palácio do rei, foi uma surpresa geral.

Os dois irmãos de Nestor não quiseram mostrar as suas noivas, envergonhados, embora fossem formosíssimas.

O rei, vendo aquela mulher com seu filho, lhe disse:

— Agora, meu querido filho, tens o direito à minha coroa, e estimo-o bem, vendo que vou ter uma nora como não há igual. Só ela vale todos os reinos que existem.

— Real Majestade, disse a rainha Maroca, desculpai se não aceitamos a vossa coroa. Pretendemos somente o vosso consentimento para nos casarmos. Podeis ficar com o vosso reino, e com mais um, que vos ofereço. Os meus cunhados serão reis de dois reinos, também meus, independentes da minha coroa, porque nos bastam, a mim e ao príncipe Nestor, três reinos que governaremos em boa harmonia.

O rei ficou contentíssimo com o que acabava de ouvir.

Efetuaram-se os casamentos dos três príncipes irmãos, no mesmo dia, com as maiores pompas que têm havido em casamentos de príncipes.

Cada um dos três príncipes foi tomar conta dos seus reinos, ficando satisfeitos e vivendo felizes por muito tempo.

Fonte> Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896. Disponível em Domínio Público. 

Recordando Velhas Canções (Velha Infância)


Composição: Marisa Monte / Davi Moraes / Carlinhos Brown / Arnaldo Antunes / Pedro Baby

Você é assim
Um sonho pra mim
E quando eu não te vejo
Eu penso em você
Desde o amanhecer
Até quando eu me deito

Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor

E a gente canta
E a gente dança
E a gente não se cansa
De ser criança
A gente brinca
Na nossa velha infância

Seus olhos, meu clarão
Me guiam dentro da escuridão
Seus pés me abrem o caminho
Eu sigo e nunca me sinto só

Você é assim
Um sonho pra mim
Quero te encher de beijos
Eu penso em você
Desde o amanhecer
Até quando eu me deito

Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor

E a gente canta
A gente dança
A gente não se cansa
De ser criança
A gente brinca
Na nossa velha infância

Seus olhos, meu clarão
Me guiam dentro da escuridão
Seus pés me abrem o caminho
Eu sigo e nunca me sinto só

Você é assim
Um sonho pra mim
Você é assim

Você é assim
Um sonho pra mim
Você é assim

Você é assim
Um sonho pra mim
Você é assim

Você é assim
Um sonho pra mim
E quando eu não te vejo
Eu penso em você
Desde o amanhecer
Até quando eu me deito

Eu gosto de você
E gosto de ficar com você
Meu riso é tão feliz contigo
O meu melhor amigo é o meu amor
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Velha Infância: Uma Ode à Pureza do Amor e à Alegria Compartilhada
A música 'Velha Infância', interpretada pelo grupo Tribalistas, é uma celebração do amor puro e da alegria que ele traz para a vida das pessoas. A letra da canção, repleta de ternura e simplicidade, evoca a sensação de conforto e felicidade que o amor verdadeiro proporciona. A referência à 'velha infância' não é apenas uma nostalgia pelos tempos de criança, mas também uma metáfora para a inocência e a espontaneidade que muitas vezes se perdem na vida adulta, mas que são redescobertas e vivenciadas novamente no contexto de um relacionamento amoroso saudável e alegre.

Os Tribalistas, um trio composto por Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown, são conhecidos por suas harmonias vocais e por misturar elementos da música popular brasileira com influências contemporâneas. Em 'Velha Infância', eles utilizam uma linguagem poética para descrever a conexão profunda entre duas pessoas que se veem como melhores amigos e amantes. A repetição de frases como 'Você é assim, um sonho pra mim' e 'Eu gosto de ficar com você' reforça a ideia de um amor que é ao mesmo tempo confortável e excitante, um refúgio seguro onde um pode ser verdadeiramente ele mesmo na presença do outro.

A canção também destaca a importância de manter viva a criança interior, sugerindo que a capacidade de brincar e se divertir juntos é um componente essencial de um relacionamento amoroso duradouro. A música convida os ouvintes a se entregarem à dança e ao canto, atividades que simbolizam a liberdade e a alegria. 'Velha Infância' é, portanto, um hino ao amor que resiste ao tempo e às adversidades, mantendo a chama da juventude acesa no coração dos apaixonados.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 29: “Mãe Menininha do Gantois"

O passeio atípico da prenda ao lado de seu novo amigo pelas ruas de Salvador prossegue. João a leva para conhecer o elevador Lacerda, e a praia do farol da Barra. Dois pontos turísticos famosos. E Isadora tem seu primeiro contato com o mar. Ela sente o coração pulsar forte e se deixa levar pela energia do mar que estava calmo. E pensa em sua mãe que morreu sem conhecer aquela maravilha.  Ao entardecer, eles retornam à casa de dona Branca.

Isadora sentia-se feliz, acolhida e agradecida por estar junto daquelas mulheres batalhadoras, sobreviventes de uma sociedade de política desigual. E se impressionou ao notar o quanto aquelas mulheres sorriam, apesar das tristezas que tinham guardadas no peito.

Sentiu-se privilegiada perante as injustiças do mundo, praticadas por pessoas insensíveis, ambiciosas e egocêntricas.

- Obrigada pelo acolhimento, dona Branca.

- Não tem do que agradecer, Isadora. É como dizia minha finada mãezinha: quem não vive para servir, não serve para viver – disse a dona da casa. Mas tá toda molhada, menina. Vá trocar essa roupa. Deixei um vestido lá no armário de seu quarto.

Enquanto Isadora se preparava para ir ao terreiro, João proseava com as meninas ou “quengas” como eram chamadas pelas madames da alta sociedade.  

“Na vida, a coisa mais verdadeira é que nem tudo o que parece ser, realmente é...

Existe gente boa, mas também há muita gente ruim. E que nunca deixará de ser, porque considera a bondade um sinal de fraqueza. Na verdade, gente má é má porque não sente atração pelas virtudes das coisas que são de Deus, as quais é preciso merecimento para possuir. Amor, compaixão, alegria, não fazem morada em casa sombria. Até podem se aproximar, mas logo partem, porque coração de gente ruim não cultiva flores, e sim erva daninha, espinhos. Gente ruim gosta é das coisas do Capeta. E tem como diversão fazer o seu semelhante sofrer.

Quem vai dizer que Isadora, fugida do marido carrasco, seria acolhida pelas chamadas “mulheres da vida"? Se alguém perguntasse por seu paradeiro não poderia imaginar...

Por certo diria a maioria:  – Numa casa de família. Rica, bem distinta e caridosa. Mas não. Ela foi parar onde ninguém ousaria prever. E isso poderia servir de lição para alguns hipócritas. E serve. Porém, quem escolhe trilhar o caminho das sombras, fecha os olhos perante a luz.

Mas a prenda dos Pampas estava gostando de absorver a luz e as lições que a vida estava lhe proporcionando naquela fuga maluca.  

E por falar em luz, uma das lâmpadas mais acesas a iluminar a aura da cidade estava dentro de um terreiro de cultos afros. E era chamada pelo codinome: “Menininha do Gantois".

João e Isadora tomaram um táxi. E ao se aproximarem do terreiro, no bairro Gantois, e ao ouvirem o ressoar dos atabaques, Isadora, feito criança curiosa, põe a cabeça pro lado de fora da janela do carro para ouvir melhor aquele som do qual Vó Gorda já havia comentado ser comum também nas regiões do Rio Grande do Sul, mas que ela, pessoalmente, não conhecia. Era um ressoar forte que fazia sua alma tremer.

Na entrada do portão havia a imagem de um homem negro, vestido de vermelho, capa preta e um tridente na mão. Era Exu, o guardião de todas as porteiras e caminhos.

Foram bem recebidos pelos cambonos* da casa, que com alegria disseram se tratar de um ritual muito especial, pois uma filha de Iansã havia sido salva de uma doença de pele muito rara. E que os amigos e familiares que estavam fazendo novena a seu favor, estavam presenteando o terreiro com uma imagem de Iansã que tinha a mesma altura de sua protegida. Mas que a festa também era para Omolu, senhor das pestes, porque sem a intervenção dele não há cura.

O cenário era mágico. Havia cânticos na língua de Queto e Iorubá, médiuns recebendo a iluminação de seus Orixás, cada um com suas respectivas vestes.  

Explicaram que o homem com o rosto coberto por palhas, era de Omolu, que a moça vestida de azul e espelho na mão, era filha de Iemanjá, que a outra moça vestida de vermelho e branco, segurando uma espada, era a filha de Iansã, que havia sido curada; que o homem com uma machadinha na mão está com Xangô. E num cantinho do salão do Templo, estava ela, Mãe Menininha, uma mulher de aura doce, vestida de amarelo, com sua Oxum. Orixá do amor, da riqueza e da família.

A energia intensa do lugar fez com que Isadora sentisse vontade de sorrir e de chorar.   

Mãe Menininha acena. E ela vai na sua direção. João ficou do lado de fora, junto de Exu. Tinha respeito, mas também muito medo dos Orixás. 

A Yalorixá, sem dizer nada, olhou nos olhos de Isadora. E jogou os búzios numa peneira de palhas.   

- Você é filha de Iansã – disse ela.

Fico feliz em ver a filha aqui, mas aqui não é seu lugar. Só você pode se roubar de sua missão. Ninguém mais tem esse poder. E não precisa temer nada e a ninguém. Volte para os braços do seu amor. E ajude as mulheres e as crianças de sua terra. Pois essas são suas tarefas neste mundo.  A moça é filha de uma santa guerreira. E nasceu para vencer as batalhas impostas no seu caminho. Vai ser feliz, mulher!

Isadora agradece. E impressionada, vai ao encontro de João. E os dois resolvem passar a noite caminhando pelas ruas de Salvador, bebendo cerveja e conversando.

- Sei que a moça não tá acostumada. Não exagera na bebida.

- Preciso comemorar. Estou me sentindo tão feliz.

- É... Tua conversa com Mãe Menininha te fez bem.

- Por que não quisestes entrar? 

- Eu não. Vai que tenha alguma desgraça inevitável no meu caminho. Prefiro não saber de nada.

- É bom saber das coisas futuras para que possamos estar preparados para quando chegarem.

- Ôxe, prefiro não saber de nada. Mas gosto de Mãe Menininha. Ela tem uma vida dedicada à fé e à caridade ao próximo.  Ela tem uma grande alma. 

Conversa vai, conversa vem, ao raiar do sol, os dois sentados na ladeira do pelourinho, Isadora toma uma decisão.

- João.

- Fale.

- Vou para o Rio Grande do Sul. 
= = = = = = = = = 
continua…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Cambono = na umbanda e em outros cultos de influência banta, ajudante do pai ou mãe de santo, ou assistente dos médiuns incorporados ou, ainda, auxiliar para várias finalidades rituais no terreiro ou centro.

Fonte: Texto enviado pela autora 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 33

 

Humberto de Campos (A Surpresa)

Educada no tumulto das rodas elegantes. cujas festas mundanas frequentava desde criança, Mademoiselle. Altair havia se tornado, aos dezessete anos, uma das moças mais em evidência na sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais devotado à família da ciência do que, talvez, à ciência da família, descurava, em absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de tal forma, nesse ponto, a sua despreocupação, o seu descaso ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que Mlle. Altair se tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos seus vestidos.

As suas "toilettes" eram, realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com a inocência da sua idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua preocupação, sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao resto do corpo, não havia quem não o adivinhasse na transparência indiscreta do crepe da China ou da seda lavável, que lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando, como num desafio à bestialidade humana, o conjunto harmonioso das formas.

Um dia, foram os círculos elegantes surpreendidos com uma notícia sensacional: o Dr. Edmundo Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos da nova geração de juristas brasileiros, havia pedido em casamento Mlle. Altair Sobreira, formosíssima e conhecidíssima filha do Dr. Peixoto Sobreira!

Realizado o casamento, em que a noiva se apresentou mais nua do que nunca, e despedidos os convidados, penetraram os noivos, felizes, na alcova nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima, ou, antes, na névoa imperceptível do vestido, a recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com os pés mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do Arquipélago, não seria, talvez, mais nua, e mais bela!

Entreolhavam-se, os dois, na alcova silenciosa, ninho de ouro e seda armado para um casal de pombos amorosos, quando o noivo se adiantou, e, sorrindo, anunciou a moça, tomando-lhe, carinhoso as mãos geladas e brancas:

- Sabes, meu amor, que eu te preparei uma novidade?

- Tu? Que é? - indagou a noiva, casando, de repente, a curiosidade à aflição.

O noivo suspendeu os travesseiros da cama, e, tirando dali uma camisa de noite, trabalhada em seda branca, e opaca, afogada até o pescoço e descendo até o tornozelo. pediu:

- É para que me faças uma surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta noite de casamento.

E entregando-lhe a camisa:

- Eu nunca te vi... vestida!...

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. 
Disponível em Domínio Público.

Emílio de Meneses (Poemas Escolhidos) = 2 =

 A CHEGADA

Noite de chuva tétrica e pressaga.
Da natureza ao íntimo recesso
Gritos de augúrio vão, praga por praga,
Cortando a treva e o matagal espesso.

Montes e vales, que a torrente alaga,
Venço e à alimáría* o incerto passo apresso.
Da última estrela à réstia ínfima e vaga
Ínvios caminhos, trêmulo, atravesso.

Tudo me envolve em tenebroso cerco
D'alma a vida me foge, sonho a sonho,
E a esperança de vê-la quase perco.

Mas uma volta, súbito, da estrada
Surge, em auréola. o seu perfil risonho,
Ao clarão da varanda iluminada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Alimária = animal de carga
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

DA MINHA JANELA

Desta janela aberta aos eflúvios de Abril,
Vendo os que vão e vêm, a alma sonha e medita:
- "Pela vida- a lutar nesta faina febril,
Este e aquele, onde vão? de onde vêm nesta grita?”

O que se ama ou se odeia ou se busca ou se evita,
Tudo se cruza aqui numa trama sutil.
- Quantos a morte leva ou seja nobre ou vil,
Enquanto em pleno sol o vivente se agita? -

E penso então que desde o tempo mais distante
A rua vê correr a humana vaga, e nela,
Nada mudar da vida o drama palpitante.

E que outras ondas sempre aqui virão rolar...
Sempre as mesmas! porém, desta minha janela,
Outros - não eu! - virão vê-las ir e voltar…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

GOTA D’ÁGUA

Olha a paisagem que enlevado estudo!...
Olha este céu no centro! olha esta mata
E este horizonte ao lado! olha este rudo
Aspecto da montanha e da cascata!...

E o teu perfil aqui sereno e mudo!
Todo este quadro que a alma me arrebata,
Todo o infinito que nos cerca, tudo!
D'água esta gota ao mínimo retrata!...

Chega-te mais! Deixa lá fora o mundo!
Vê o firmamento sobre nós baixando;
Vê de que luz suavíssima me inundo!...

Vai teus braços, aos meus, entrelaçando,
Beija-me assim! vê deste azul no fundo,
Os nossos olhos mudos nos olhando!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

O RIO GUERREIRO

Rota a vertente, a rocha rebentando,
Impetuoso em esguicho o campo irrora;
Regato agora, agora largo e brando,
De branca espuma a superfície enflora.

Logo torrente o crespo dorso impando,
- Quer seja noite, quer o veja a aurora –
Légua a légua o terreno conquistando,
Vai caudaloso pelo vale em fora.

Ei-lo afinal - o forte curso findo,
Num esforço estupendo, soberano.
Fero, revolto, arroja-se rugindo

Aos loucos roncos vagalhões do Oceano.
A Pororoca o estrondo repetindo
Eternamente do combate insano!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SALTO DO GUAÍRA

Largo oceano azul, ora margeando
Campina extensa, ora frondosa mata,
Léguas e léguas marulhoso e brando,
O rio enorme todo o céu retrata.

Súbito, as águas, brusco, represando,
Em torvelins de espuma se desata:
Vertiginoso, indômito, raivando,
Ruge, fracassa e tomba em catarata.

Tomba, e de novo em arco se levanta:
Nada a brancura esplêndida lhe turva
E na apoteose em que a caudal se expande,

Do sol aos raios, multicor se encurva
Em tanto resplendor e glória tanta,
Rútilo arco-íris, luminoso e grande. 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

VIDA NOVA

De uma vida sem fé de nebuloso inverno,
Furtei-me sacudindo o gelo da descrença.
Aquece-me outra vez este calor interno,
Esta imensa alegria, esta ventura imensa.

Sinto voltar de novo a minha antiga crença,
Creio outra vez no céu, creio outra vez no inferno,
Na vida que triunfe ou na morte que a vença
Creio no eterno bem, creio no mal eterno!

E quando enfim do corpo a alma for desgarrada
E procure entrever a região constelada
Que aos bons é concedida, esplêndida a irradiar,

Ao coro festival de um hino triunfante
Abra-se a recebê-la, olímpico e radiante
Todo o infinito céu do teu sereno olhar!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Fonte: Menezes, Emílio de. “Versos Antigos (1885-1889)”. In Obra reunida. RJ: José Olympio, 1980.

Contos Tradicionais Portugueses (A lenda da Pedra Cavalar)

Onde se conta como Deus “abrigou” um cavaleiro atrapalhado pelo tempo que de repente se fez, lá para os lados de Ribeira de Pena.

Em tempos que já lá vão, seguia um cavaleiro por montes e vales da zona de Viela, no Concelho de Ribeira de Pena.

Cavalgava sereno e tranquilo por caminhos mal marcados, sem destino aparente. Solitário na paisagem, apreciava o panorama agreste e rústico que caracteriza as cercanias do Rio Tâmega. Mesmo na noite escura, era-lhe impossível ignorar os cheiros das plantas, o movimento que a brisa causava nas copas das árvores e as sonoridades cantantes das aves noturnas e dos cursos de água circundantes.

De súbito, o tempo mudou. Num instante, o que era paz transformou-se numa violenta tormenta, obrigando o cavaleiro a encostar a sua montaria a uma grande rocha que se erguia junto ao trilho estreito que seguia. Do outro lado, o precipício descia abrupto, fazendo ouvir o rugido das correntes, engrossadas pela chuva fortíssima.

A lama aumentava, o caminho escorregava cada vez mais. A queda de cavalo e cavaleiro parecia eminente.

O homem, aterrorizado, tentou esporear o cavalo para sair daquele inferno, mas o animal aterrado nem se mexia, patas profundamente enterradas na lama do caminho.

Então, o desgraçado começou a rezar fervorosamente, mal se ouvindo as suas preces na violenta intempérie.

Mas Deus ouvia-o e, apiedado, transformou a pedra rija num refúgio para o infeliz e sua montaria.

Agradecendo a ajuda, logo ali se abrigaram, deixando de ouvir a barulhenta borrasca.

O povo diz que esta misteriosa personagem não mais foi vista, mas que a sua história ficou marcada na pedra, sob a forma de uma estátua equestre, a que se começou a chamar a Pedra Cavalar.

Recordando Velhas Canções (Imagine)


Composição: John Lennon 

Imagine que não exista paraíso
Imagine there's no heaven
É fácil se você tentar
It's easy if you try
Nenhum inferno sob nós
No hell below us
Acima de nós apenas o céu
Above us only sky
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Vivendo o presente
Living for today

Imagine que não há países
Imagine there's no countries
Não é difícil
It isn't hard to do
Nenhum motivo para matar ou morrer
Nothing to kill or die for
E nenhuma religião também
And no religion too
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Vivendo a vida em paz
Living life in peace

Você pode dizer que sou um sonhador
You may say I'm a dreamer
Mas eu não sou o único
But I'm not the only one
Eu espero que algum dia você se junte a nós
I hope someday you'll join us
E o mundo será um só
And the world will be as one

Imagine que não existam posses
Imagine no possessions
Eu me pergunto se você consegue
I wonder if you can
Sem necessidade de ganância ou fome
No need for greed or hunger
Uma irmandade de homens
A brotherhood of man
Imagine todas as pessoas
Imagine all the people
Compartilhando o mundo inteiro
Sharing all the world

Você pode dizer que sou um sonhador
You may say I'm a dreamer
Mas eu não sou o único
But I'm not the only one
Eu espero que algum dia você se junte a nós
I hope someday you'll join us
E o mundo viverá como um só
And the world will live as one 
= = = = = = = = = 

Imagine: Um Hino de Esperança e União de John Lennon
A canção 'Imagine', composta e interpretada por John Lennon, é um dos hinos mais emblemáticos da música contemporânea, transcendendo gerações com sua mensagem de paz e união. Lançada em 1971, a música propõe uma reflexão profunda sobre um mundo sem divisões e conflitos, onde a humanidade poderia viver em harmonia. A letra convida o ouvinte a imaginar um lugar sem as barreiras que frequentemente nos separam, como fronteiras nacionais, religiões e posses materiais.

Através de uma linguagem poética e de fácil compreensão, Lennon descreve um cenário utópico onde 'não há céu' e 'nenhum inferno abaixo de nós', sugerindo a eliminação da ideia de recompensa ou punição após a morte, o que poderia levar as pessoas a viverem mais pelo presente ('Living for today'). Ao imaginar 'nenhum país' e 'nenhuma religião também', a música aborda a possibilidade de um mundo sem guerras ou conflitos ideológicos, onde 'todas as pessoas' poderiam 'viver a vida em paz'.

A repetição do verso 'You may say I'm a dreamer' (Você pode dizer que sou um sonhador) é um reconhecimento de que essas ideias podem parecer idealistas ou inatingíveis, mas Lennon reforça que ele 'não é o único' a ter tais sonhos. Ele expressa esperança de que um dia mais pessoas se unirão a essa visão, resultando em um mundo unificado. 'Imagine' não é apenas uma canção, mas um chamado à ação para a humanidade repensar seus valores e aspirar a um futuro onde prevaleça a 'fraternidade do homem' e o compartilhamento coletivo dos recursos do mundo ('Sharing all the world').

Teófilo Braga (O sonho de Esmeralda)

Oh, meu amigo, oh! Meu poeta, tu não sabes o que é um rapaz que sai aos vinte anos da sua água furtada, sem conhecer o mundo, ignorando a vida, tendo vivido alimentado por sonhos impossíveis, rico de todas as leituras, levado por ambições altivas, que o fazem grande, sentindo muito, amando tudo, e que o acaso atira ao meio de uma cidade opulenta, onde ninguém se conhece, onde todos se igualam e atropelam! Foi quando compreendi aquele terceto de Dante, de uma profundeza noturna, que me abismava, cada vez que o repetia na mente:

No meio do caminho desta vida
dei por mim na amplidão de selva escura,
pois que a vereda certa era perdida.

Não sabes como o ruído de uma cidade imensa, o labirinto das ruas, a estranheza e indiferença dos que passavam, me tornava solitário no meio das multidões. Tantas vozes perdidas no ar, e nenhuma para mim! Tantos braços caídos com desdém, e sem nenhum a me estreitar. Parecia-me o tumulto como um naufrágio em que a anciã do salvamento nos torna egoístas, insensíveis para as agonias dos outros.

Todas as aspirações que me fizeram deixar o retiro benigno, onde me voaram os primeiros anos, mostrando-me o mundo como uma grande festa, que me despertaram o desejo de ser também um dia conviva, iam-se apagando, abandonavam-me como no encontro fortuito de um desconhecido. Sentia-me pequeno, incapaz de lutar, de me impor a admiração dos outros.

O que teria sido de mim nas horas monótonas do desalento, nos longos dias do desamparo, se não fora a poesia! Até então ela tinha sido um folguedo, um brinquedo infantil, inocente, um vagido tímido e suave da alma, que ansiava a luz, como uma borboleta prateada antes de romper a crisálida noturna. Sem ter quem me falasse, pedi à poesia os seus antigos carinhos, um alento de esperanças, um orvalho para refrescar a aridez do deserto em que me via. Ela, a irmã dos tristes, a alma dos que sofrem, como veio terna, espontânea, compassiva para consolar-me! Cantava, como uma criança, quando tem medo e procura esvaecer os vultos caprichosos que lhe voejam na fantasia. Foi a poesia também que salvou o desgraçado Jacopone, quando, abalado pelos desastres da vida, errando pelas ruas desvairado e doido, apupado da plebe, perseguido, veio bater às portas de um mosteiro, donde igualmente o repeliam. Foi ela que lhe deu a paz da cela e a serenidade da contemplação.

Oh, santa e divina poesia! Bem hajam os que choraram porque te descobriram e trouxeram à vida, como uma pérola nunca vista trazida do fundo do oceano. Bem hajam os que ainda choram, porque te guardam em si, como uma vestal solícita ateando continuamente a labareda do altar. Bem hajam os que hão de vir para sofrerem, porque nos compreenderão sentindo-se aliviados.

Andava pela cidade sem destino, vagabundo; eu mesmo ia comprar o alimento para o dia, e enojava-me esta guerra mesquinha e vil do pequeno comércio para os que chegam incautos, inexperientes. Os fundos, e bem poucos que eram, iam-se reduzindo de dia para dia; estava quase sem dinheiro, e com um orgulho e altivez incrível para afrontar o futuro.

Enrolado, dentro de uma gaveta, tinha um manuscrito, que escrevera para distrair-me na solidão das minhas horas. Quando me lembrei dele comecei então a dar-lhe o valor que até ali não conhecia. A necessidade, que se aproximava, a cada instante, fazia-me procurar nele todas as esperanças. Pobre manuscrito! Quem o poderá entender, quem dará dinheiro por essas páginas sem sentido, que a ninguém tocam e que nem ao menos fazem rir? Ademais, estava escrito com uma letra ininteligível, entrelinhado e sublinhado, num papel repassado de tinta amarela, que mal se percebia. Quando me vi quase sem dinheiro, à porta, inferi, voltei a enrolar o manuscrito, meti-o debaixo do braço, e saí. Passava pela porta dos editores e não me atrevia a entrar. Tinha medo que me insultassem com um riso de escárnio, por me verem tão criança e já com pretensões a autor. Guardava sempre para amanhã a extrema resolução, e tornava a trazer o livro para casa e a fechá-lo na gaveta. Não imaginas que horas de tormentos! Eu temia que me apagassem com um riso todas estas esperanças, e me convencessem com argumentos assim da minha nulidade; bem conhecia o que tinham a me dizer, previa-o, cheguei a escrever a resposta que os editores me dariam: “O seu manuscrito não tem leitores; não à um romance, nem um conto; tem algumas páginas excelentes, mas não pode dar lucro de maneira alguma.”

Era esta a resposta que eu antecipava, para não me doer tanto depois quando a recebesse. Um dia, o último, sai a tremer com o manuscrito. Oh, meu amigo, para que te hei de falar nestas coisas? Nem eu queria chegar a este ponto, quando te prometi contar a história dessa mulher, que tu conhecias melhor do que eu. Nesse dia, comecei a sentir povoar-se-me a soledade da vida, mas com outras dores, desesperanças novas.

Nos primeiros meses que passei naquela cidade, tinha lido e estudado desesperadamente; a meditação fora o refúgio do tédio, mas era como um abutre que me lacerava as entranhas.

Vi-a! Leve, delgada, divertida, olhando para todos, com uma graça encantadora de infância, com uma gentileza de senhora, confundida pelo meio da plebe, sorrindo para os que a fitavam. Foi um desses sorrisos que me levou a alma presa. Que luta obstinada e escura dentro desta pobre alma! O estudo e a paixão debatiam-se, arcavam, procuravam mutuamente suplantar-se. 

Eu tinha acabado de ler a Notre Dame de Paris, e achava em mim não sei que analogias sinistras com Cláudio Frollo. A Notre Dame de Victor Hugo é a rosa emurchecida, que rejuvenesce ao sol do misticismo, é a Turris ebúrnea por quem o poeta se apaixona no sublime delírio da arte. Cláudio Frollo! O desgraçado eclesiástico deixou também correr tranquila a mocidade no retiro do estudo; depois, Esmeralda enfeitiça-o, dançando, no volteio vertiginoso das praças. São duas paixões que se combatem. Qual delas triunfará? A fatalidade do impossível? Eu não conhecia o labirinto de ruas da cidade populosa e imensa, ia em busca dela sem saber para onde. Encontrava-a quase sempre, por uma coincidência fatal. 

De uma vez, lembra-me ainda, foi quando a vi mais bela do que nunca, mesmo do que todas as mulheres. Estava confundida entre a multidão, que a abafava na sua onda; mas para mim realçava tanto como um carbúnculo que reflete em si a luz de todos os círios. Via-lhe na expressão lânguida e curiosa a alma de todas as almas dos que a cercavam. 

O povo amontoara-se para ver subir aos ares um balão. Era um dia de alegria e de festa; quando a descobri estava com os olhos erguidos para o céu. Oh! Se ela sofresse, se implorasse a Deus uma consolação, não estaria mais sublime e radiante. O que a fazia confundir o azul dos seus olhos com a limpidez do firmamento era a curiosidade de criança. E contemplava o balão que subia, alheia ao vozerio da gentalha. Desejaria elevar-se também às alturas, e então estava pensando no devaneio desse desejo? Quem sabe os caprichos que passam pela alma de uma mulher? Quem pode contar todas as ondas que faz uma brisa perpassando levemente à flor das águas? Quando baixou os olhos à terra deu com os meus, que a contemplavam, sorriu. Oh! Como aquele sorriso me faria esquecer todos os pesares, me daria coragem para todas as lutas, me insuflaria alento para os mais inauditos esforços, se ela não sorrisse assim para todos.

Para todos! É este egoísmo do sentimento que gera os nossos males, exacerba a mais terrível das paixões, a mais selvagem e vil, que é só grande pela loucura. Eu tinha ciúmes de todos, porque ela sorria pródiga de encantos, tanto para os que passavam indiferentes, como para o que a contemplava com o desinteresse com que se olha para um mármore antigo ou adorando a sua morbidez de Madona, como para aqueles espíritos baixos e abjetos que a fitavam desassombrados, preocupados de um desejo faminto e estúpido de sensualidade.

Criança e indiscreta, seria a inocência que a fazia sorrir para todos, como uma borboleta que voa de flor em flor, ou como uma rosa que embalsama de perfumes todas as virações que passam? Eu não sabia, e tinha medo da verdade. O amor triunfava completamente do estudo. A verdade, que procurava incansável no ardor das vigílias, agora já não me mostrava os mesmos encantos. Queria que se escondesse, que se não deixasse tocar por mim, como um arcano divino. Quem pudesse viver sempre iludido! Oh! Verdade! Verdade! Para que vens agora, que te não busco, acordar-me tão cedo do sonho dourado?

A multidão dispersou-se ao vir da noite; eu fui seguindo para onde ela habitava. Ia perdido, a distância, sem conhecer as ruas; a pequena, distraída, como por descuido olhava para trás. Depois que soube onde morava, procurava a cada instante vê-la. Havia uma fatalidade que me atirava para essa mulher. 

Só, no meio de uma cidade grande, desconhecido, amava a perdição, e sentia-me arrastado, sem ter ao menos um Tiberge que me salvasse, como o amigo do infeliz Des Grieux, amante da Manon Lescaut. O futuro! Nem já podia vê-lo, com a vertigem que um olhar fascinador me causava; apagava-se esse ideal que me dera tantas vezes coragem nos transes e provações da vida. Ria-me do futuro. E que é o futuro? De que me vale prepará-lo, consumindo a vida, se me foge antes de o gozar? Viver obscuro! Embora numa trapeira, mas ter um dia, ao menos, a mais pequena realidade de tantos sonhos! Ter que apalpar entre as visões brilhantes, sem corpo, e que nos mentem sempre. Viver obscuro! Que haverá melhor, quando se tem ao lado aquela que se ama e resume todos os encantos e riquezas do mundo na mais pequenina das suas falas?

Sentia-me escorregar lentamente para o precipício; a paixão dava-me uma lucidez com que explicava a loucura e a justificava diante da consciência que me acusava de instintos baixos, sem dignidade. Aparecia-me à janela todas as tardes; sentava-se ali e costurava. Tinha um orgulho indizível ao lembrar-me que, de entre todo aquele bulício de gente desconhecida, havia uma mulher que pensava em mim e me estava esperando. O amor tornava-me tímido; queria falar-lhe e não sabia. Pedi então à poesia que falasse por mim.

Para um amor puro, etéreo, que se esconde e não se atreve a declarar-se, nada o exprime melhor no seu vago ideal do que um soneto. Estudei esta forma, a mais completa das formas líricas. Elevado como a ode, melífluo e simples como o madrigal, sentencioso como o epigrama, é a síntese de todas as formas do lirismo. Como o não desenvolveu o gênio da Itália, nas suas elevações erótico-místicas! Nas duas primeiras estrofes do soneto, o sentimento revela-se pela imagem, oculta-se sob ela como indefinido, intangível; o predomínio da imagem tem a quadra, forma livre para as representações do mundo exterior. Depois é que o sentimento se mostra no seu esplendor absorvendo em si todas as potências da alma; é o terceto que o traduz, a tríade fatídica, que se imprime misteriosamente em todos os fatos do espírito. Do acordo entre a imagem e o sentimento, provém a diversidade das formas poéticas. Se a imagem se mostra na sua complexidade finita, a poesia tem um caráter didático e descritivo; se o sentimento se sobreleva à imagem e se manifesta na sua subjetividade, eis o lirismo puro. É por isso que o soneto é a forma suprema do lirismo. Santificaram-no Dante, no retrato do amor ideal, na Vita Nuova; Petrarca, exaltando o amor religioso de Laura na solidão de Vauclusa; Miguel Ângelo, esse Proteu que encarna todas as formas do belo, e Vitoria Colona, confidenciando ambos com os sonhos da arte, de um modo que ninguém macularia o seu platonismo radiante. É também nos sonetos religiosos de Lope de Vega, que se conhece a profundidade da sua alma sensível, e nos de Camões, que se aspira o perfume da saudade dos seus malogrados amores. Esquecia-me a dissertar sobre o soneto para evitar o ridículo de ter assim cantado esse desvario. Eu a via todas as tardes à janela; tinha ao seu lado um passarinho, que saltitava, chilreando contente, para quem falava, dizendo o que queria que eu ouvisse. Como não perceberia ele estes segredos de amor, quando o estava embalando com o seu cantar sôfrego, tremente. De uma vez atirei para dentro da janela este soneto traduzido do espanhol de Lope de Vega. Não há expressões humanas que possam dizer mais:

Dava alimento a um passarinho um dia
Lucinda, e pela estreita portinhola
Foi-se-lhe a ave das grades da gaiola
Ao vento livre, onde a cantar vivia.

Entre rindo, a mãozinha ela estendia
Para o suster; na dor que a desconsola,
Diz (pois como a vergôntea se estiola
Sem luz, sua face a palidez tingia):

“Para onde vás? e deixas este ninho
Que de frouxel (penugem) teceu a doce amiga,
Que a brincar com o teu bico se enamora?”

Ouviu-a enternecido o passarinho,
Bate as asas para a prisão antiga,
Que tanto pode uma mulher que chora.

O que haverá na poesia antiga que exceda este primor? Quem soube idealizar assim uma lágrima? Compreenderia ela a profundidade deste sentimento? E sorria de cada vez que lhe enviava novas confidências, mas do mesmo modo que sorria para todos. Para todos! Sempre esta ideia infernal a envenenar-me todas as horas da vida. O poder das lágrimas que lhe descobri, a fraqueza que vence todas as forças, não tinha esse mistério, quando as derramei ao ver-me nu, abandonado pela esperança fagueira, que fugira como o passarinho de Lucinda. Disseram-me... nem eu sei o que me disseram. Fora a mãe, a mesma que a susteve nos joelhos quando a atirou à vida e a amamentou com o seu leite, quem a arrojou à perdição. Quem havia de adivinhar que sob um ar de candura, que a cercava de uma auréola divina, vergava uma alma opressa pelos insultos dos que lhe pagavam! O que é uma cidade grande! Não se devoram com os horrores da antropofagia, mas a vida vai continuamente alimentando-se da vida. Não sei, não posso contar-te tudo.
***

Um ano depois encontramo-nos; o pobre rapaz estava possuído novamente da paixão dos livros. Era uma ansiedade de saber, não menos funesta, que o amputava para todos os gozos da vida. Não me atrevia a falar no antigo amor; tinha medo de acordar-lhe as agonias que estariam talvez já adormecidas. De uma vez, estávamos juntos, vi passar à distância uma rapariga, um tipo rafaélico de candura; ia seguida por uma mulher velha e trôpega. Era uma antítese que fazia pensar muito. Ele olhou-a e foi acompanhando-a com a vista, com certa ansiedade; depois, como refreado pela reflexão, olhou para mim envergonhado, corou e disse, procurando esconder esta impressão repentina:

— É ela.

Não compreendi imediatamente; fui bárbaro, pedindo que me explicasse o mistério dessas palavras entrecortadas. Ele apenas pôde proferir uma, mas que era o resumo de todas as dores e decepções, da compaixão que ainda sentia, do ideal a que tinha aspirado, da fatalidade a que tinha sucumbido. Olhou-a, ela já ia longe; depois que a viu desaparecer, disse, contemplando ainda e com a voz a apagar-se:

— Uma ruína!

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 26

 

Leon [Liev] Tolstói (O incêndio)

(História real)

Na época de ceifar, os mujiques e as mulheres foram embora trabalhar. Na aldeia, só ficaram os velhos e as crianças. Numa isbá*, ficaram a avó e três netos. A avó acendeu a estufa e deitou-se para descansar. As moscas pousavam em cima da avó e picavam. Ela cobriu a cabeça com uma toalha e pegou no sono. 

Uma das netas, Macha (tinha três anos), jogou brasas num pedaço de louça e foi para a varandinha na entrada da isbá. Ali havia uns feixes de palha no chão. As mulheres amarravam os feixes com atilhos (cavalos pequenos). Macha trouxe as brasas, colocou embaixo dos feixes e começou a soprar.

Quando a palha começou a arder, ela ficou alegre, voltou para dentro da isbá, trouxe pelo braço o irmão, Kiriúchka (tinha um ano e meio e havia acabado de aprender a andar), e disse:

− Olhe, Kiliúska, o que eu tirei da estufa.

Os feixes de palha já estavam ardendo e crepitando. Quando a varanda ficou escura de fumaça, Macha se assustou e correu para trás, para dentro da isbá. 

Kiriúchka caiu na soleira da porta, quebrou o nariz e desatou a chorar; Macha arrastou o irmão para dentro da isbá e os dois se esconderam embaixo de um banco. A vovó não percebeu nada e dormia. 

O menino mais velho, Vánia (tinha oito anos), estava na rua. Quando viu que saía fumaça da varanda, passou correndo pela porta, atravessou a fumaça, entrou na isbá e começou a sacudir a avó; mas a avó, tonta de sono, confusa, esqueceu as crianças, levantou-se com um pulo e saiu correndo para fora, chamando as pessoas. 

Macha, nessa altura, estava sentada embaixo do banco e continuava calada; só o menino pequeno gritava, porque o nariz quebrado estava doendo. Vánia ouviu os gritos dele, olhou embaixo do banco e começou a gritar para Macha:

− Corre para fora, vai se queimar!

Macha correu para a varanda, mas não podia passar, por causa da fumaça e do fogo. Ela voltou para dentro. Então Vánia abriu uma janela e mandou a irmã pular. Quando ela pulou, Vánia agarrou o irmão e o puxou. Mas o menino era pesado e além disso resistia, não deixava o irmão puxar. Empurrava Vánia e chorava. Vánia caiu duas vezes, enquanto puxava o menino para a janela, e a porta da isbá já estava em chamas. Vánia empurrou a cabeça do irmãozinho pela janela e quis jogá-lo para fora; mas o menino (estava muito assustado) se agarrava com as mãozinhas e não soltava. Então Vánia gritou para Macha:

− Puxe a cabeça dele!

E Vánia também empurrava por trás. E assim conseguiram puxar o menino para a rua, através da janela, e eles escaparam também.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* Isbá = é uma habitação típica camponesa russa. Construída com troncos, era a residência comum de uma tradicional família camponesa russa. Geralmente construídas perto de uma estrada, eram muitas vezes edificadas dentro de um celeiro, jardim ou de um curral, num campo ou perto de uma floresta. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Isb%C3%A1)

Fonte: Liev Tolstói. Livros de leitura para crianças. Publicado originalmente em 1864.
 Disponível em Domínio Público

Silmar Bohrer (Croniquinha) 110

Os sons. Ouvir os sons. Vento assobiando, “assobiolando”, pingos batendo nas vidraças, chuva “chuvalhando”. Vozerio na noite. Pernoite. Algum açoite? 

Vozes vívidas, vibrantes, buscando algum intento? Ou só lamento? 

O pio da coruja, quero-queros agitados e vozes esquecem que as formigas trabalham à noite varando madrugadas por carreirinhos longos, mas estreitos sem se importar com as dificuldades. 

Silenciosa, cada criaturinha cumpre seu papel de preparar o ninho e o alimento com a faina, à espera do inverno. E na esteira desta elucubrações a gente vê seres humanos com ares de "vida ganha", sem se importar com o futuro e dificuldades que possam surgir lá adiante. 

A natureza, sem os reflexos racionais, tem os seus lampejos de sapiência. Seria até prazeroso imitá-la. E previdente. E útil. E salutar. 

Fonte> Texto enviado pelo autor