domingo, 25 de agosto de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Patético como susto improvisado)

O MÉDICO ESMIUÇOU, com seus óculos de grau fundo de garrafa, todos os exames que tinha diante de si. Em seguida, bombardeou sem dó nem piedade, seu pobre cliente. Ou melhor, soltou a notícia fatal em cima dele, sem prévio aviso. Gustavo Pereira da Costa iria, de fato, morrer. Dentro de dois meses, no máximo três. Não passaria disso. Assim que soube do triste pesadelo, o infeliz tratou de ir para o aconchego familiar e esperar pela hora derradeira. Dois meses –, ou três – quem sabe antes... que diferença faria agora? Ao menos, um consolo. Talvez o melhor deles: morreria em paz, ao lado da esposa carinhosa e prestativa e das filhas, a quem amava muito. Para não ser visto chegando de ônibus, tomou um Uber e ordenou ao motorista que tocasse direto para seu lar doce lar. 

Ao chegar no bairro onde morava, não parou no bar costumeiro do Salaminho, nem na farmácia do seu primo Pedro. Tampouco na barbearia do Bento, como sempre fazia ao retornar do trabalho. Também não falou com ninguém. Não telefonou para os conhecidos. A lista se fazia enorme. Achou melhor não alardear o resto dos parentes, nem incomodar os amigos de todos os dias. Naquele momento queria somente a paz e a tranquilidade. Saborear o aconchego da sua poltrona na sala, onde sentava todas as tardes para ver televisão e assistir aos desenhos do Pica-Pau, do Maguila, da Pantera Cor-de-Rosa, do Tom e Jerry e tantos outros. Por puro azar, Gustavo se esqueceu de um vizinho. Um cara realmente chato e pegajoso, que passava os dias rondando do boteco ao supermercado promovendo um alarido infame com os infortúnios alheios. 

Era o Malaquias, conhecido na rua como o “Fofoqueiro Oficial.” De fato, logo que o táxi entrou na rua principal, a primeira pessoa que o Gustavo avistou na calçada, encostado num poste, o próprio, em carne e osso. Aliás, mais osso que carne. Por sua vez, assim que identificou o carro de aluguel chegando, e, dentro dele, o velho Gustavo, não esperou a criatura, pelo menos pagar a corrida. Disparou até o portão da casa do moribundo e assim que ele entrou, bateu palmas. Precisava colher detalhes. Sabia que naquela manhã o “amigo” havia ido ao médico tomar conhecimento dos resultados da bateria de exames que fizera durante toda a semana. O “Leva e traz” também tinha conhecimento que Gustavo corria sério risco de virar defunto. Esse fato, em especial, o perturbava. 

Não que se interessasse pela doença do vizinho, mas a consequência do seu mal. Melhor dito, que tipo de moléstia ele contraíra que causava o óbito nas vítimas tão rápido? Necessitava, pois, colher informações fresquinhas e detalhadas dos acontecimentos mais recentes para passar adiante. Deu azar. No lugar dele, veio atender, a Sulamita, a filha mais velha, e a mais mal-humorada. Puxara o gênio da mãe, dona Soraya. Não levava desaforos, nem mandava recados. Se fazia curta e grossa a beldade. Quando assomou na varanda e se deparou com o sujeito, fez cara fechada e de poucos amigos. 

— Sulinha, meus pêsames...

— O que foi que disse, desgraçado?

Sulamita se espantou. Não para menos, evidentemente:

— Pêsames?

— É. Fiquei sabendo, agorinha mesmo, no bar do Salaminho, que seu pai está mal e segundo comentam, vai morrer. 
Como o vi descendo de um táxi aqui, sem falar com ninguém e ao menos parar no bar, queria saber detalhes.

— Papai realmente está mal. Mas quanto a morrer, ninguém sabe o dia. Só Deus poderia precisar a hora derradeira. Pelo que aprendi, desde que me entendo por gente, só se dá os pêsames a alguém, principalmente aos conhecidos, depois que o “de cujus” estiver abraçado com um caixão e a fuça virada para o cemitério. 

Sulamita tomou fôlego e observou, a carranca cada vez mais fechada: 

— Meu pai, graças ao Eterno, continua firme e forte. Nesse momento está sentado na mesa da cozinha batendo um prato cheio de comida enquanto conversa com a mamãe e minhas outras irmãs. Por acaso o senhor está agourando o meu velho?  Saiba que o amigo poderá embarcar primeiro. Eu, particularmente, adoraria chorar e jogar terra no seu buraco.

— Só queria ser gentil, minha filha.

— Não foi. E não sou sua filha.

— Perdão.

— Nada a perdoar. 

Sulamita bem que teve vontade mandar o fofoqueiro para os cafundós do Judas, mas se conteve:

— Tudo bem, até logo.

Ia virar as costas, mas o coscuvilheiro a segurou pela manga da blusa:

— Espere, Su. Sulinha, me fala. Qual é o problema?

— Que problema?

— O de meu amigo Gustavo, seu pai. De quem mais estamos falando?

Sulamita voltou à posição de antes, muito à contragosto:

— Papai está com a Doença de Chagas.

— Hein?!

Desta vez, quem se aporrinhou, de fato, foi o Malaquias:

— Raios. Quem é esse Chagas?

— Chagas não é ninguém, sua besta. A doença é que é de Chagas.

— Desculpe a insistência. Não sabia que Chagas tinha algum tipo de alteração biológica.

— Chagas não tem porcaria nenhuma, Malaquias. O incômodo de papai é o tal do “Mal de Chagas.”

O bisbilhoteiro comia as unhas – tamanho o nervosismo em saber mais pormenores para passar adiante. E o fazia aumentando a história: 

— “Mal de Chagas” ou doença de...?!

— “Doença de Chagas.” Agora, por favor, passe bem. Tenho mais o que fazer.

Sulamita pela segunda vez se viu puxada pela manga da blusa:

— Não dá para explicar?

—Querido parasita, doença de Chagas é aquela transmitida pelo barbeiro. Pelo barbeiro...

Malaquias, de repente mudou de cor. Perdeu o jeitão de bilhardeiro (mandrião) e entrou, realmente em estado de choque:

— Meu Deus! Então... então eu também... eu também estou correndo sério risco de... de comer capim pela raiz? Cortei, hoje cedo, o cabelo. Seguirei seu pai, com certeza...

Sulamita perdeu, de vez a compostura:

— Vá para o raio que o parta. Que tal amolar os porcos?

— Um minuto, Sulinha, um minuto, por gentileza. A senhora...

—... Senhorita.

— A senhorita sabe muito bem que conheço seu pai faz anos. Peguei suas irmãs Solange e Serena no colo. Ajudei a dar banho. Você, peladinha, uma gracinha. Trocar fraldas, um Deus-nos-acuda. Uma vez socorri junto com a empregada de vocês, a dona Soraya, sua mãe. Ela havia sido mordida pelo cachorro do seu Gabriel da banca de revistas. Seu pai saíra em viagem e sua mãe, coitada, entrou em desespero. Lembro como se fosse hoje...

Sulamita se voltou. Soltava fel pela boca:

— Tudo bem. Concordo com o senhor plenamente. Só acho uma falta de respeito e de camaradagem muito grande vir até aqui, na hora do almoço, dar as condolências por uma pessoa que sequer pensa em morrer. Isso dá asco. Repugnância, nojo. O senhor não tem um pingo de educação? Ou de humanidade? Brinca com a paciência e os sentimentos das pessoas. Que coisa ridícula!...

O metediço, por um momento se quedou em silêncio constrangedor. Abaixou a cabeça e de olhos fixos no medidor de água, ficou completamente impassível, sem saber, na verdade, o que dizer ou como agir. No final, vencido o embaraço, mas bastante envergonhado e arrependido disse à Sulamita: 

— Não tinha intenção, acredite, de dar os pêsames. Eu queria, mesmo, de coração, desejar um restabelecimento rápido para o meu amigo Gustavo. No entanto, em lugar disso, fiz essa droga. Vomitei o que não devia. Sula, pela nossa amizade e pela consideração que devoto por seu pai, igualmente por sua mãe, esqueça o incidente. Juro, não tornarei a cair em tamanha asneira novamente.

— Ok. Está perdoado. Agora, por favor, caia fora. Vaza!  

Nesse momento, gritos de desespero surgiram de dentro da residência. Em seguida, apareceram, apavoradas, na soleira da porta, Solange e Serena, chorando copiosamente:

— Depressa, Sula, depressa, mamãe teve um piripaque e caiu, ao lado do tanque. O pai...  o nosso pai...

Malaquias, atônito, sem saber do que se tratava, não deixou por menos. Berrou, à voz tonitruante:

— Virou defunto. Não disse? Tiro e queda... eu tinha razão... partiuuuuuu... 

— O que é que esse imbecil está falando, Sula? 

— Esse maldito é um verme. Deveria estar queimando a carcaça no inferno.

O linguarudo, entretanto, não chegou a ouvir essas últimas palavras. 

Apressado, como se fugisse da polícia, o petulante deu meia volta e saiu pelo meio da rua gritando a plenos pulmões, que Gustavo, seu melhor amigo havia batido com as doze. Que em consequência, dona Soraya, a esposa, tivera um piripaque. Enquanto isso, Sulamita, atarantada, indagava da irmã:

— O que houve com papai?

— Nada, que eu saiba. Nosso velho está lá dentro tentando reanimar a mamãe.

— O quê, mana? Como é que é?

— Venha, irmã... corra...  

As consanguíneas meteram sebo nas canelas para acudir. A empregada ligou para o hospital. Uma ambulância imediatamente acionada pintou no pedaço, e, com ela, um socorrista. 

Vizinhos foram chegando, aos borbotões, em solidariedade, enquanto parentes residentes próximos, avisados, deram logo o ar da graça. Mas tudo, tudo muito tarde demais. Dona Soraya Pereira da Costa, esposa de Gustavo, havia carimbado o passaporte com bilhete só de ida. Tomada toda a frente da residência, uma enorme multidão se fazia solidária. Gustavo chorava não a sua morte repentina, tendo em vista as palavras de alcoviteiro. Entretanto, do nada, uma debandada se fez geral. De repente, gente se atropelando e fugindo assustada. A cena tomou proporções gigantescas quando o próprio Gustavo escancarou seus olhos na frente da sala e dali seguiu inteiraço em direção a varanda, agradecendo a simpatia e a piedade dos domiciliados em massa descomedida albergados em seu portão.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 94 =


Trova de São Paulo/SP

ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Se a lua é minha alma gêmea,
longe de ti, eu bendigo
esta saudade boêmia,
que passa as noites comigo!
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Poema de Blumenau/SC

FÁTIMA VENUTTI

Recado

Entre os corpos,
Entre os astros,
Entre as estrelas...
Sob o mar,
Sob o azul,
Sob o luar...
Então, o amor.
Então, o nascer.
Então, o encontrar.
Eu estarei
eternamente
A te embalar
Em meus fictícios
Versos a voar...
Tua
Nua
A te esperar
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Trova de Astolfo Dutra/MG

CÉZAR DEFILIPPO

Na boemia, no abandono...
de tanta dor eu suspeito,
que até saudade sem dono
faz morada no meu peito!
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Soneto de Juiz de Fora/MG

HEGEL PONTES
(1932 – 2012)

A alma da pedra
  
Longa pesquisa. E o mestre hindu descobre
que existe uma fadiga nos metais;
que o descanso renova, do ouro ao cobre,
o reino singular dos minerais.

Eu também sinto que a matéria encobre
estranhas vibrações emocionais.
É que a pedra tem alma, simples, nobre,
sonhando evoluções espirituais.

E a alma da pedra imóvel é a energia
que evolui, na ilusória letargia,
entre seres gigantes e pigmeus.

E sonha, nos milênios que a consomem,
ser um cacto que sonha ser um homem,
ser um homem que sonha ser um Deus.
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Trova Premiada em Blumenau/SC, 2016

NEIVA DE SOUZA FERNANDES
Campos dos Goytacazes/RJ

Sejam sempre abençoados
os que aos velhos e às crianças
transmitem, com seus cuidados,
ternura, amor e esperanças.
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Poema de Balneário Camboriú/SC

PEDRO DU BOIS
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC

Palavras

Ásperas
ditas como ordens
assustadas
macias
ditas como esperas
controladas
raivosas
ditas como verdades
escancaradas
melífluas
ditas como mentiras
dissimuladas
rezadas
ditas como saudades
santificadas
cantadas
ditas como músicas
silenciadas
caladas
ditas como lembranças
extremadas.
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Trova Popular

Carvalho que dá bugalho,
porque não dás coisa boa?        
Cada um dá o que tem,         
conforme a sua pessoa.
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Soneto de Santos/SP

VICENTE DE CARVALHO
(1866 – 1924)

A um poeta moço

Desanimado, entregas-te, sem norte,
Sem relutância, à vida; e aceitas dessa
Torrente que te arrasta — a só promessa
De ir lentamente desaguar na morte.

Que pode haver, em suma, que te impeça
De seguir o teu rumo contra a sorte?
Sonha! e a sonhar, e assim armado e forte,
Vida e mágoas, incólume, atravessa.

Ouve: da minha extinta mocidade
Eu, que já vou fitando céus desertos,
Trouxe a consolação, trouxe a saudade,

Trouxe a certeza, enfim, (se há sonhos certos)
De ter vivido em plena claridade
Dos sonhos que sonhei de olhos abertos.
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

A cada passo imprudente,
mais um desejo se solta.
A estrada diz: “- Segue em frente!”
O coração pede: “- Volta!”
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Poema de Joinvile/SC

FERNANDO JOSÉ KARL

O jardim suspenso

 Atirei pedra no sopro,
que fez da pedra uma ode.

Menos palavras, mais sopros,
porque o invisível é simples amor
coberto de flores na curva do vento.

Palavras são visíveis,
com elas posso ler o que passa
por dentro e por fora do jardim suspenso.

 Prefiro palavras a sopros,
porque de sopros o poço é cheio,
e não haveria sopros e poço sem palavras.
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Trova Humorística de Bandeirantes/PR

VIVIANE ROSSI CHAVES

Minha mãe sempre falava:
"Não existe assombração..."
Mas eu sempre perguntava:
E "cheque-fantasma", então?
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Soneto Mineiro

ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Ouro Preto/MG, 1870 – 1921, Mariana/MG

Momento

Minha amada tão longe! Com franqueza:
eu penso sempre em me mudar daqui.
Pôr na sacola o pão que está na mesa,
sair vagabundando por aí.

A luz do quarto ficará acesa.
(Foi neste quarto que eu me conheci...)
Deixarei um bilhete sobre a mesa,
dizendo a minha mãe por que parti.

Ah! ir cantando pelo mundo afora,
como um boêmio amigo das cantigas,
alma febril que a música alivia!

Se perguntarem, digam: "Ainda agora
saiu buscando terras mais amigas,
mas é possível que ele volte um dia."
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Trova de Santos Dumont/MG

BEATRIZ A. NETTO

Renúncia, palavra dura,
no coração se debruça:
- por ódio, como tortura!
- por amor, como soluça!...
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Poema de Mafra/SC

HUGO MUND JUNIOR

Um único verso

Um único verso sustenta
o equilíbrio do pássaro,
celebra a queda da folha
ao chão, brilha no coração
ilícito. Um único verso
sangra o papel em branco.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

A casa era sem riqueza,
mas tinha tanta harmonia,
que não cabia a tristeza,
nem a tal melancolia!
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Soneto Paranaense

EMILIANO PERNETA 
Pinhais/PR, 1866 — 1921, Curitiba/PR

O brigue

Num porto quase estranho, o mar de um morto aspecto,
Esse brigue veleiro, e de formas bizarras,
Flutua há muito sobre as ondas, inquieto,
À espera, apenas, que lhe afrouxem as amarras...

Na aparência, a apatia amortece-lhe o esforço;
Se uma brisa, porém, ao passar, o embalsama
Ei-lo em sonho, a partir, e, então, empina o dorso,
Bamboleia-se, mais gentil do que uma dama...

Dentro a maruja acorda ao mínimo ruído,
Deita velas ao mar, à gávea sonda, o ouvido
Alerta, o coração batendo, o olhar aceso...

Mas a nau continua oscilando, oscilando...
Ó quando eu poderei, também, partir, ó quando?
Eu que não sou da Terra e que à Terra estou preso?
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Trova Premiada em Blumenau/SC, 2016

SANDRO PEREIRA REBEL
Niterói/ RJ

Escravo do teu amor,
teus cuidados são meu guia,
e os quero com tal fervor
que nem penso em alforria.
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Poema de Florianópólis/SC

JUVÊNCIO MARTINS COSTA 
(1850 — 1882)

Sonho (II)

 Tranquilo o coração adormecera
Na doce languidez de um beijo ardente. . .
Entre sonhos de flor beijara a crença
A perfumar minh' alma incandescente.

 E amei a vida, respirei das auras
O tépido frescor, banhando a fronte
Da formosa mulher, por quem meu peito
Estremece de amor, tão puro, insonte.

 E amei o sonho desfolhando risos,
Almo* prenúncio d' almo encantamento;
E minh' alma jaze o imersa em gozo,
Numa luta febril com o pensamento.

 E a sonhar vi a imagem predileta
Por entre sombras de uma luz fulgente;
Nus os seios tremendo de volúpia,
E no lábio a brincar beijo inocente.

 E a voz tremente balbucia um termo, —
Repassado de aromas e ambrósias,
Termo tão doce como sons de harpa
Desprendendo ignotas harmonias.

 Esse termo exprimira a majestade
De um profundo sentir, d'alma arrancado:
Amor em cujos elos se enlaçara
O coração do vate apaixonado.

 Termo tão doce a revelar carinhos,
Desprendido de lábios sedutores;
Termo a deslumbrar meu lindo sonho,
Ventura a reviver num céu de amores!

 Ouvi a frase rebentar dos lábios:
Eu sou o teu amor, amo-te tanto!
Não sei o que senti: em doce arroubo
Contemplei a mulher, celeste encanto!

 Era um anjo: sobre a nívea espádua
Vi roçar seu cabelo brandamente. . .
Nos seus olhos o brilho que cintila
Fogo de amor que queima e não se sente!

 Ai! Cedo se turvou a crença d'alma,
Breve se transformou o encantamento. . .
Acordei-me do sonho e não vi nada.
E sinto arder em febre o pensamento!
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* almo = santo.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Certeza só têm os rios 
sobre aonde vão chegar... 
Por mais que sofram desvios, 
seu destino é sempre o mar! 
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Escada de Trovas de São Paulo/SP

FILEMON MARTINS

Leito

NO TOPO:
"A lua divina e bela
num capricho assim desfeito,
invade a minha janela
e vem sonhar no meu leito".
Hedda Carvalho
(Nova Friburgo - RJ)

SUBINDO:
"E vem sonhar no meu leito"
nesta noite enluarada,
quero ver-te junto ao peito
esperando a madrugada.

"Invade a minha janela"
fique aqui, feliz e calma,
que o perigo da procela
não resiste a paz da alma.

"Num capricho assim desfeito"
ainda há paz e beleza,
que o clima fica perfeito,
- o amor é luz e certeza.

"A lua divina e bela"
reina perene no céu,
lua que a todos, revela,
quem ama, não vive ao léu. 
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Ouço teus passos serenos
e o meu abraço se expande,
mas sinto os braços pequenos,
para ternura tão grande!
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Hino de Barra do Piraí/RJ

Em dez de março de noventa,
Um sonho fez-se realidade.
Sem a menor visão sangrenta,
Surgiu a tua liberdade.

E tu, outrora tripartida,
Rompeste em marcha triunfante.
E nesta luta pela vida
Foste um exemplo edificante.

Salve! Salve! Boa terra hospitaleira!
Barra! Barra! Progressista e altaneira!
Barra! Barra! Tu serás a vida inteira,
Em terras fluminenses,
Todo o nosso orgulho
De fiéis barrenses!

Entre colinas verdejantes,
Ricas, tão ricas de beleza,
Com teus dois rios coleantes,
És um primor da natureza.

Terra feliz, feliz e calma,
Sob este céu sempre de anil,
Tu és a cidade que tem alma,
Ó meu pedaço do Brasil!

Salve! Salve! Boa terra hospitaleira!
Barra! Barra! Progressista e altaneira!
Barra! Barra! Tu serás a vida inteira,
Em terras fluminenses,
Todo o nosso orgulho
De fiéis barrenses!

Ó terra minha, berço amado!
Ó meu torrão bem brasileiro!
Cheio de glória no passado
E de futuro alvissareiro!

À luz da tua própria história,
O teu caminho percorrido
É rumo certo para a glória
Deste Brasil estremecido!

Salve! Salve! Boa terra hospitaleira!
Barra! Barra! Progressista e altaneira!
Barra! Barra! Tu serás a vida inteira,
Em terras fluminenses,
Todo o nosso orgulho
De fiéis barrenses!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

ALMERINDA LIPORAGE

Em criminosas queimadas
por ambição desmedida,
vê-se, nas vidas ceifadas,
a extinção da própria vida!
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Soneto Potiguar

AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN (1876 – 1901) Natal/RN

Estrada afora

Ela passou por mim toda de preto,
Pela mão conduzindo uma criança...
E eu cuidei ver ali uma Esperança
E uma saudade em pálido dueto.

Pois, quando a perda de um sagrado afeto
De lastimar esta mulher não cansa,
Numa alegria descuidosa e mansa,
Passa a criança, o beija-flor inquieto.

Também na vida o gozo e a desventura
Caminham sempre unidos, de mãos dadas,
E o berço, às vezes, leva à sepultura...

No coração — um horto de martírios!
Brotam sem fim as ilusões douradas,
Como nas campanhas desabrocham lírios.
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Trova Paulista

CAMPOS SALES 
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

Respeito, luz permanente,
que alumia a fronte erguida,
daquele que tem na mente
o respeito pela vida.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O lavrador e seus filhos

Um lavrador sentindo vir chegando
O fim da sua vida, e desejando
Que os filhos trabalhassem na cultura,
Chamou-os, e lhes disse: «A sepultura
Por instantes me espera: os bens, que tinha,
Enterrados estão na nossa vinha.»

Morto o pai, e tendo eles suspeitado
Que algum grande tesouro sepultado
Lhes deixava na vinha, aparelharam
Enxadas, e solícitos cavaram.
Não acharam tesouro, é bem verdade;
Mas a vinha deu tanta novidade,

Que se pode dizer que foi tesouro,
Segundo o que rendeu de prata e ouro

O nosso português de cada dia (Expressões) = 1

CAIÇARA
Habitante típico de região litorânea, pessoa simples, própria do lugar, caipira, usado sempre no sentido pejorativo.

A expressão vem do tupi kaaías, e quer dizer cerca de ramos, vedação para impedir o trânsito. Uma caiçara implicava em cerca muito rudimentar e própria dos índios que habitavam as costas de São Paulo, no período do descobrimento, daí a associação metonímica entre o objeto e as pessoas,

CAIXA DE PANDORA (ABRIR A)
Contar um grande segredo, deixar escapar muitas coisas que não deveriam se espalhar porque causariam medo. Lugar ou situação repleta de segredo.

A origem também é mitológica e está ligada à lenda de Prometeu, depois de sua punição por Zeus. Pandora é considerada a primeira mulher, criada em conjunto pelos deuses, sob o comando de Hefesto e de Atena, Ela simbolizaria a mãe natureza, era linda, graciosa e possuía grande capacidade de persuasão. Foi enviada por Zeus de presente a Epimeteu, irmão de Prometeu. Ele não deveria aceitá-la, mas casou-se com ela. A moça trazia consigo uma caixa (na verdade um vaso) que tinha a tampa sobre a qual ela nunca deveria abrir. Curiosa, ela abriu a caixa e dela saíram todos os vícios humanos (a inveja, o ódio, a ganância, a luxúria, que foram morar nos corações dos homens). Estava feita a vingança dos deuses contra os homens. A simbologia equivale à expulsão do paraíso para os cristãos.

CALCANHAR DE AQUILES
No sentido de ponto fraco, vulnerabilidade de alguém.

Aquiles vem da mitologia grega, era filho de Tétis e de Peleu. Ao nascer, sua mãe, para protegê-lo e torná-lo invulnerável, mergulhou-o no Estige, o rio infernal. No entanto, para o mergulho, segurou-o pelo calcanhar, que não foi banhado e, portanto, tornou-se seu ponto fraco. Aquiles foi morto por uma flechada de Páris, guiada por Apolo, justamente no seu calcanhar, durante a Guerra de Tróia,

CAMELAR
Trabalhar muito pesado.

É óbvio que o termo vem da comparação com o camelo, mas isto ocorre porque o animal em um dia inteiro de caminhada, consegue carregar uma carga de 15O kg por quase 150 quilômetros, atravessando um deserto seco, sem parar um minuto para beber ou comer coisa alguma. Na verdade, ele consegue ficar até oito dias inteiros sem beber água, mas então fica esgotado. Pode perder mais de 100 kg e ficar magérrimo, apenas osso e pele. Ainda assim, ele se aguentará em pé! Normalmente, o sangue do animal contém 94% de água, exatamente como o nosso. No entanto, quando não encontra água para beber, o calor do sol gradualmente o faz perder um pouco da água do sangue.

Os cientistas descobriram que o animal pode perder até 40% da água do sangue, e mesmo assim continuar saudável. Somente para se ter uma ideia, se um ser humano perder 5% da água no sangue, a visão fica comprometida; se a perda for de 10%, a pessoa enlouquece; com 12%, o sangue fica tão espesso que o coração não consegue bombeá-lo mais e para.

Fontes: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.
Imagem = criação por JFeldman com Microsoft Bing

Recordando Velhas Canções (Quem Sabe?)


(modinha, 1859)

Compositor: Antônio Carlos Gomes e Bittencourt Sampaio

Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Quisera saber agora
Quisera saber agora
Se esqueceste
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se ainda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora da saudade
Da saudade agro tormento

Tão longe de mim distante
Onde irá, onde irá o teu pensamento?
Quisera saber agora
Se esqueceste o juramento

Quem sabe se és constante
Se ainda é meu teu pensamento?
Minh'alma toda devota da saudade
Da saudade agro tormento
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A Saudade e o Juramento Perdido
A música "Quem Sabe", interpretada por Francisco Petrônio, é uma expressão lírica da saudade e da incerteza no amor. A letra reflete a dor de um amor que se distancia, tanto fisicamente quanto emocionalmente, e o anseio do eu lírico em saber se ainda ocupa os pensamentos da pessoa amada. A repetição da frase "Tão longe de mim distante" enfatiza a separação e a distância que se interpõe entre os amantes, criando uma atmosfera de melancolia e desejo por um reencontro.

O questionamento "Onde irá, onde irá teu pensamento?" revela a insegurança e a preocupação do eu lírico em ser esquecido ou substituído no coração da pessoa amada. A música explora a angústia de não saber se o outro ainda mantém o juramento de amor que foi feito, sugerindo que houve uma promessa de fidelidade e constância que agora parece ameaçada pela distância. A saudade é descrita como um "agro tormento", uma dor profunda e amarga que consome a alma do eu lírico.

Francisco Petrônio, conhecido por sua voz marcante e interpretações emotivas, dá vida a essa canção com uma entrega que toca o coração dos ouvintes. A música, que pode ser classificada como uma seresta ou valsa, carrega a tradição da música romântica brasileira, onde a expressão dos sentimentos e a contemplação da dor amorosa são elementos centrais. "Quem Sabe" é uma canção que fala diretamente aos corações apaixonados e saudosos, evocando a universalidade da experiência do amor e da perda.

Carlos Gomes ficou reconhecido internacionalmente como compositor de óperas. O que pouca gente sabe é que ele compôs a partir de um universo bastante diversificado, bem próprio de seu estilo, influências e contexto histórico. No seu repertório encontramos música sacra, modinhas, cantatas e operetas. Quando ouvimos suas modinhas nos lembramos de sua origem interiorana, das festas de salões em volta do piano, dos saraus lítero-musicais tão frequentes no Rio e São Paulo do século XIX.

Nas modinhas e canções de Carlos Gomes encontramos um pouco do lirismo francês e muito dos tons humorísticos das canções italianas, sobretudo a forte presença do estilo verdiano, tão em voga no ensino musical da época. Da sua primeira fase, ainda como estudante de música, destacamos os títulos mais famosos: Hino acadêmico e Quem Sabe? ambas de 1859. A grande parte dos textos musicados por Carlos Gomes eram de caráter romântico, realçando o estilo melodramático, típico das árias de salão.