domingo, 20 de outubro de 2024

José Feldman (Pafúncio e a Exposição de Cães)

Era um sábado ensolarado, e a cidade estava animada com a tão esperada Exposição Canina, um evento que reunia cães de todas as raças e tamanhos, além de seus orgulhosos donos. A revista “Fuxico & Fofocas” decidiu que era a oportunidade perfeita para Pafúncio, seu melhor jornalista, fazer uma cobertura da exposição.

Pafúncio chegou ao local da exposição vestindo uma camisa estampada de patinhas de cachorro e um boné, que mais parecia uma toalha de piquenique. Estava tão animado que mal conseguia conter seu entusiasmo. 

“Hoje vai ser um dia cheio de fofocas e sorrisos!” ele exclamou para si mesmo.

Assim que entrou na grande tenda onde a exposição aconteceria, Pafúncio ficou maravilhado com a quantidade de cães. Havia desde os pequenos Chihuahuas até os majestosos São Bernardos, todos exibindo seus trajes e adereços. 

Ele se dirigiu imediatamente à primeira bancada que encontrou, onde um juiz estava avaliando um poodle exuberante.

“Oi, tudo bem? Posso tirar uma foto desse lindo poodle?” Pafúncio perguntou, já preparando sua câmera. 

O juiz, um homem de aparência séria, assentiu, mas Pafúncio, tomado pela empolgação, começou a disparar flashes incessantemente. O poodle, irritado com os flashes, começou a latir e pular, e o juiz, exasperado, teve que segurá-lo.

“Calma, amigo! Não é para você ficar irritado!” Pafúncio gritou, mas ele mesmo estava tão concentrado na foto que não notou que estava criando um caos.

Após algumas tentativas frustradas de entrevistar donos de cães e tirar fotos, Pafúncio decidiu que precisava de uma abordagem mais direta. Ele se aproximou de um dono de um buldogue francês que estava sentado calmamente em uma cadeira. “Oi! Se o seu buldogue pudesse falar, o que ele diria sobre você?” Pafúncio perguntou.

“O que ele diria? Provavelmente que eu sou o melhor dono do mundo!” respondeu o homem, rindo.

“E que você precisa dar mais biscoitos!” Pafúncio completou, anotando tudo em seu bloco. 

Ele estava se divertindo, mas não percebeu que o buldogue francês começou a olhar para ele com um semblante desconfiado.

Depois de algumas entrevistas, Pafúncio se sentiu confiante o suficiente para fazer algo mais ousado. Ele decidiu que tiraria uma foto de todos os cães juntos. Ele subiu em uma pequena plataforma e gritou: “Atenção, cães! Todos para uma foto com o Pafúncio!”

Os donos, começaram a reunir seus cães, mas Pafúncio, na ânsia de capturar o momento perfeito, começou a disparar flashes de sua câmera sem parar. Os cães, confundidos e irritados com os flashes, começaram a latir e a se agitar, criando um verdadeiro alvoroço.

“Calma, pessoal! É só uma foto!” gritou Pafúncio, mas sua tentativa de acalmar a situação só fez piorar. Um Chihuahua nervoso começou a correr em círculos, e logo todos os cães na tenda se juntaram à confusão.

“Socorro, o que está acontecendo?” Pafúncio gritou, enquanto tentava descer da plataforma, mas, em seu desespero, acabou tropeçando e caindo de cara no chão. 

A cena era hilária: ele estava cercado por uma mistura de raças caninas, todas latindo e pulando ao seu redor.

Desesperado, Pafúncio se levantou e começou a correr, mas os cães, ainda irritados pelos flashes, decidiram que ele era o alvo perfeito para sua fúria. Ele fez uma curva, tentando escapar, mas a tenda estava cheia de obstáculos: mesas de petiscos, cadeiras e até uma fonte de água para cães.

Os latidos se tornaram ensurdecedores, e Pafúncio, em sua corrida desgovernada, acabou derrubando uma mesa cheia de biscoitos para cães. Os biscoitos voaram pelo ar e, instantaneamente, todos os cães mudaram de alvo, indo atrás das guloseimas que estavam caindo.

“Ufa, consegui!” Pafúncio pensou, parado em um canto, mas seu alívio durou pouco. Ele não percebeu que, enquanto os cães estavam distraídos com os biscoitos, ele ainda era o foco de atenção. Assim que a mesa foi destruída, os cães voltaram a olhar para ele, e percebendo que ainda estava cercado, começou a correr novamente.

“Não! Por favor, não me mordam!” ele gritou, enquanto todos os cães pareciam decidir que seguir Pafúncio era a coisa mais divertida a fazer. 

Ele saiu da tenda em disparada, cruzando o gramado e fazendo uma curva em direção à saída do evento.

As pessoas olhavam em choque e riam ao mesmo tempo, enquanto Pafúncio corria, com uma matilha de cães atrás dele, todos latindo e pulando. 

Ele se sentiu como um personagem de um filme de comédia, onde a situação se tornou completamente insana.

Finalmente, Pafúncio chegou à saída, onde alguns seguranças estavam de plantão. Eles, percebendo a cena, tentaram conter os cães que estavam se espalhando. 

“O que está acontecendo aqui?” perguntou um dos seguranças, tentando ajudar.

“Cães! Eles estão atrás de mim!” Pafúncio gritou, ofegante.

Os seguranças, em vez de ajudá-lo, começaram a rir. “Acho que você se tornou a nova atração do evento!” disse um deles, enquanto tentava controlar a situação.

Com um último esforço, Pafúncio conseguiu se desvencilhar dos cães, que finalmente se distraíram com uma nova bandeja de biscoitos que alguém havia trazido. Ele se afastou, aliviado da própria desgraça.

Ao chegar em casa, ele decidiu que tinha uma história para contar. Enquanto escrevia sua matéria, ele refletiu sobre como a vida pode ser imprevisível, e que, mesmo em meio ao caos, havia sempre espaço para boas risadas.

“Pafúncio, o jornalista que não só entrevistou cães, mas também se transformou em uma verdadeira atração canina!” ele anotou, rindo ao pensar na cena que vivera. 

E assim, mais uma vez, ele provou que, independentemente de quão desastrosa uma situação possa parecer, sempre há um lado divertido.

Fonte: José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul, 2024.

Vereda da Poesia = 138 =


Poema de
DANIEL MAURÍCIO
Curitiba/PR

Ela 
Dizia que era Maria 
E eu,
De que era José.
Mas o que ela
Mesmo queria,
Tinha um nome
Qualquer.
= = = = = = 

Trova de
IZO GOLDMAN
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

Depois que tu foste embora,
no meu peito, o desencanto
não desabafa nem chora,
não tem voz e não tem pranto...
= = = = = = 

Soneto de
LUIZ POETA
(Luiz Gilberto de Barros)
Rio de Janeiro/RJ

Doce fantasia

Quando toco tuas mãos... que não mais vejo
... e as beijo com meu pranto mais sentido,
Meu olhar... que sempre foi tão colorido,
Redescobre o quanto é vão o meu desejo.

Entretanto, cada lágrima vertida
Dá mais vida ao meu jardim de abstrações
E, assim, cultivo flores e emoções,
Celebrando a minha dor mais... colorida.

Não te foste e nem te vais... eu te eternizo...
Sem aviso tu retornas quando queres
E eu apenas te recebo no impreciso,

Tomo um drinque... um brinde à tua companhia!
... volta sempre, meu amor, quando puderes
Despertar minha mais doce fantasia.
= = = = = = 

Trova Premiada em Irati/PR, 2023
SÉRGIO FONSECA 
Mesquita / RJ

Tolera ofensa, ameaça
e tudo o mais que se vingue
quem, antes de ser vidraça
já foi pedra de estilingue.
= = = = = = 

Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

Gotas de Emoção

Em cada lágrima, retratos de emoção...
Em cada retrato:
um rosto, lembranças e sonhos,
desenhados pela saudade:
nas telas pequenas  e mágicas das lágrimas...
= = = = = = 

Trova Popular

Lá vai uma ave voando
com as penas que Deus lhe deu,
contando pena por pena,
mais penas padeço eu.
= = = = = = 

Soneto de
RAUL DE LEONI
Petrópolis/RJ, 1895-1926

Ingratidão

Nunca mais me esqueci!... Eu era criança
E em meu velho quintal, ao sol-nascente,
Plantei, com a minha mão ingênua e mansa,
Uma linda amendoeira adolescente.

Era a mais rútila e íntima esperança...
Cresceu... cresceu... e, aos poucos, suavemente,
Pendeu os ramos sobre um muro em frente
E foi frutificar na vizinhança...

Daí por diante, pela vida inteira,
Todas as grandes árvores que em minhas
Terras, num sonho esplêndido semeio,

Como aquela magnífica amendoeira,
Eflorescem nas chácaras vizinhas
E vão dar frutos no pomar alheio...
= = = = = = 

Trova de
A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

Brincante como um garoto, 
planas no espaço sem fim... 
– Só o poeta, irmão piloto, 
consegue voar assim! 
= = = = = = 

Sonetilho de
THALMA TAVARES
São Simão/SP

Das certezas

Conhecer-se a si mesmo e ter certeza
de que Deus nos ampara com firmeza
e nos conhece a todos sem enganos;

saber que a morte não põe termo à vida,
que é passagem apenas, concedida
para nova existência noutros planos;

amar a Deus mais que às coisas do mundo
e ao próximo querer como a si mesmo,

são sinais de entender quanto é profundo
viver no mundo sem viver a esmo.
= = = = = = 

Trova Humorística de
CÉSAR TORRACA
Rio de Janeiro/RJ

Ela é nova e ele velhinho...
e veio um par de rebentos...
- curioso é que, ao vizinho,
não faltaram cumprimentos...
= = = = = = 

Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Água

Oh, abençoada água que sacia
a sede natural das criaturas,
não falte nunca em nosso dia a dia,
nas suas fontes mil que jorram puras!

Reconhecendo a sua cortesia,
não iremos manchar o que depuras;
jamais seremos causa de avaria
ao bem que a todos nós só traz venturas!

Aos jovens prometemos ensiná-los
que sejam sempre seus fiéis vassalos
em uso altamente consciencioso.

E assim os homens, plantas e animais,
nosso planeta, enfim, terá jamais
um final triste, por demais sequioso!
= = = = = = 

Trova do
Príncipe dos Trovadores
LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

Busquei definir a vida,
não encontrei solução,
pois cada vida vivida
tem uma definição...
= = = = = = 

Soneto de
FLORBELA ESPANCA 
Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos

Charneca em Flor

Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu ouço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E nesta febre ansiosa que me invade, 
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor, 
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!
= = = = = = 

Trova Funerária Cigana

Não são as galas do mundo,
nem os ricos mausoléus.
São a virtude, a constância,
que levam almas aos céus.
= = = = = = 

Poemeto de 
SOLANGE COLOMBARA
São Paulo / SP

Expresso com poesia
as emoções ilusórias
alvoroçadas no vento,
acolhidas no baú do tempo.
Em meus versos sou rimas,
a brisa girando o catavento.
Demonstro na poesia, a flor
do beija-flor em sutil alento.
= = = = = = 

Trova de 
GLÓRIA TABET MARSON
São José dos Campos/SP

Buscando tecnologia,
o mundo, de hoje, se esquece
que a família em harmonia
tem o amor que nos aquece!
= = = = = = 

Poema de 
ÓGUI LOURENÇO MAURI
Catanduva/SP

Lua Cheia, a do Brasil!
 
Meu Brasil tropical vive esta luta,
"Brilho do sol versus clarão da lua".
Entendo que a noite ganha a disputa,
é o que a massa romântica insinua.
 
Como é lindo o luar de minha terra
nas noites de brisa primaveril!
Lua cheia em seu esplendor encerra
toda a magia dos céus do Brasil!
 
Encanta-me o panorama estelar,
de lua cheia fazendo clarão;
passo muitas horas a contemplar
tal obra divina na imensidão.
 
Chego ao êxtase com tanta beleza
das noites de celestial aquarela.
Sem a luz do sol, vejo a natureza
sob lua cheia, alumbrada por ela.
 
Lua cheia, no Brasil, traz saudade,
emoção que só nosso idioma explica.
Machuca o coração de quem se evade
e estilhaça o coração de quem fica.
= = = = = = 

Trova de
JOANA D’ARC DA VEIGA
Nova Friburgo/RJ

Na gaveta da memória,
guardados que me comovem,
vão guardando a minha história
nas histórias que se movem.
= = = = = = 

Soneto do
Príncipe dos Poetas Piracicabanos
LINO VITTI
Piracicaba/SP, 1920 – 2016

Velho casarão

Casarão - mausoléu glorificado-
a entesourar recordações mediúnicas.
Rotas paredes - testemunhas únicas -
da história milenar do seu passado.

Solitário solar de horror povoado,
de duendes e fantasmas de alvas túnicas.
O chão ressuma ainda ondas budúnicas
e há um cavo estalar de ossos no assoalhado.

No silêncio da noite o casarão
revive pelos velhos aposentos
os dramalhões brutais da escravidão.

E quando entre os desvãos do amplo telhado
ganem soturnamente, os longos ventos
são gemidos de um negro chicoteado.
= = = = = = 

Poetrix de
SILVANA GUIMARÃES 
Belo Horizonte/MG

oh jardineira

eu vou te contar um caso:
o vaso ruim quebrou,
mas sobrou eu, seja como flor.
= = = = = = 

Soneto de
CAMILO PESSANHA
Coimbra, 1867 — 1926, Macau/China

Caminho (I)

Tenho sonhos cruéis: na alma doente
sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
do peito afugentar bem rudemente,
devendo, ao desmaiar sobre o poente,
cobrir-me o coração de um véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d’harmonia,
toda a luz desgrenhada que alumia
as almas doidamente, o céu d’agora,

sem ela o coração é quase nada:
um sol onde expirasse a madrugada,
porque é só madrugada quando chora.
= = = = = = 

Trova Humorística de
THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA
São Paulo/ SP

Querendo ver o acidente,
ele abriu caminho a murro...
Foi dizendo: "Sou parente"...
Mas quem morreu foi um burro!
= = = = = = 

Poema de 
ANTÓNIO FLORÊNCIO FERREIRA
Lisboa/Portugal, 1848 – 1914

VIII

Meu coração foi sangrado;
Já se não usa a sangria…
Por isso, caso hoje raro,
Ele sangra noite e dia.

Foi operante… quem amo;
A lanceta… o seu olhar;
A ligadura… seus beijos,
Que não tardei a furtar.

E assim ele está gemente,
O meu pobre coração,
Á espera de que mais beijos
O estanquem e ponham são!
= = = = = = 

Trova da
Princesa dos Trovadores
CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Eu vejo a terra cansada,
a cada passo mais linda,
sofrendo golpes de enxada,
e dando frutos ainda.
= = = = = = 

Hino de 
Bagé/RS

I
Dos teus campos a linda verdura
Mostra a força, a grandeza, a pujança,
E na guerra, demonstra bravura
O teu filho, empunhando uma lança!
Ribombou no teu seio o canhão
Dos combates gravados na História!...
Revivemos, da glória, a canção.
Sons de sinos dobrando vitória

II
Estribilho
Em teu seio nasceram heróis
Que souberam honrar ao Brasil!
A grandeza da Pátria constróis,
Minha Terra, Bagé Varonil.

III
Junto ao cerro das bandas do Sul,
Tu te estendes alegre, garrida,
Minha terra, de céu tão azul,
Sentinela da Pátria querida!...
És rainha, sustentas a palma
De que tanto me orgulho e me ufano!
Retempero meu corpo e minh'alma
Ante o sopro feroz do minuano! ...

IV
Estribilho
Em teu seio nasceram heróis
Que souberam honrar ao Brasil!
A grandeza da Pátria constróis,
Minha Terra, Bagé Varonil.
= = = = = = 

Trova Premiada no Japão
MERCEDES LISBÔA SUTILO
Santos/SP

Abençoada esta terra
que alvissareira recebe
o migrante, pois, sem guerra,
a paz em todos percebe!
= = = = = = 

Poema de 
ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE
São Francisco de Itabapoana/RJ

Ela

Se ela soubesse
que a minha poesia
é inspirada em sua beleza,
que tenho por ela
uma paixão louca
que me invade o peito
e faz ferver o coração,
que me encanto com seu olhar,
presença e jeitinho de caminhar,
que ela é, aparência única
em meus sonhos
que transcendem
as minhas ilusões,
que só em pensar
nos seus beijos
acentuam os meus desejos
que tomam
completamente meu ser,
certamente perceberia
porque todos os dias
estou no mesmo lugar
e no horário que ela passa!
= = = = = = 

Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Nas serestas da lembrança
onde o orvalho enfeita a tela,
a minha ilusão te alcança,
mas a razão diz:- Cautela!!!
= = = = = = 

Fábula em Versos de
JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry/França, 1621 – 1695, Paris/França

Aviso de Sócrates

Sócrates fez umas casas
De Atenas em certa rua,
Para nelas habitar
Com a pouca família sua.

Que eram baixas uns diziam,
E outros bastante elevadas,
E em suma convinham todos
Em que eram muito apertadas.

«São apertadas, é certo
— Disse o sábio; — mas eu sei
Que de amigos verdadeiros
Cheias jamais as verei.»

É mais raro do que a Fénix
Um amigo verdadeiro:
Não há nome tão sagrado,
Que seja mais corriqueiro.

Olavo Bilac (Sumé: Lenda dos Tamoios)

Foi na imensa e fértil região das águas de montanhas e areias, que vem do Espírito Santo até o Rio de Janeiro, que apareceu Sumé, o venerando velho, pai da agricultura, cuja memória foi tão criminosamente perdida pela ingratidão dos homens.

Nessa larga faixa de terra, cujos cabos e promontórios rochosos invadem o mar, quase tocando ilhas fecundas, que verdejam ao sol, entre bancos de areia, — vivia um povo forte e valente, respeitado na paz e temido na guerra. Eram os Tamoios, cujas canoas guerreiras dominavam a costa, desde o cabo de S. Tomé até Angra dos Reis, guardando as aldeias, formadas de cabanas sólidas, cercadas de altas paliçadas inexpugnáveis. Quando as tribos vizinhas ousavam invadir a seu território, — o canto do pajé concitava (instigava) os filhos da grande nação. E, ao som dos chocalhos de pedras, das buzinas de madeira, dos tambores e das flautas de taquara, — os grandes exércitos tamoios abalavam em hostes cerradas, para repelir o invasor. E a nação não descansava, enquanto os inimigos não fugiam ao valoroso embate das suas armas de gloriosas, — maças pesadas feitas de lenho de palmeira, formidáveis machados chatos de madeira vermelha, flechas agudas, arcos da altura de um homem. 

Mais de uma vez, assim, os Goitacazes e Goianazes tiveram de ver castigada a sua ousadia. Quando a guerra findava, toda a tribo comemorava com grande festa a vitória de seus filhos. E a música e a dança celebravam, em torno dos prisioneiros que tinham de ser comidos vivos, a derrota dos inimigos. Depois vinha de novo a livre e arriscada existência da paz, — a pesca, nas canoas ligeiras que voavam como as aves do mar à flor das águas, e a caça dentro dos matos bravos, povoados de feras.

Ora, um dia, em que uma grande multidão da tribo, à beira-mar, estava reunida, celebrando uma vitória, — viram todos que sobre o largo oceano, vinha, do lado em que o sol aponta, uma grande figura, que mais parecia de deus que de homem.

Era um grande velho, branco como a luz do dia, trazendo, espalhada no peito, como uma toalha de neve, até os pés, uma longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar. E houve um grande espanto entre os Tamoios, vendo assim um homem, como eles, caminhar sem receio sobre as ondas como sobre terra firme.

Era Sumé, enviado de Tupã, senhor do Céu e da Terra. E Sumé operava prodígios nunca vistos. Diante dele, os matos mais cerrados se abriam por si mesmos, para lhe dar passagem: a um aceno seu, acalmavam-se os ventos mais desencadeados: quando o mar furioso rugia, um simples gesto de sua mão lhe impunha obediência. A sua presença fazia abaterem as tempestades, cessarem as chuvas, abrandarem as secas. E até as feras quando o viam, vinham submissamente lamber-lhe os pés, arrastando-se, de rojo, na areia. E os Tamoios, cativos de sua bondade, conquistados pelo assombro dos seus milagres, tomaram Sumé para seu conselheiro. E todas as tardes, os chefes adiantavam-se para ele, — enquanto em roda, mulheres, homens e crianças paravam a escutar, — vinham contar-lhe a história de seu povo, e interrogá-lo sobre as suas crenças, e pedir-lhe conselhos e lições.

E diziam-lhe a sua religião: “Tupã, para fazer o céu e a terra, criou as mães para tudo. O sol é a mãe do dia e da noite. A lua é a mãe das plantas e dos animais. Os homens nasceram, e foram maus. Tupã, para castigar a sua maldade, mandou que as águas crescessem desmedidamente e cobrisse tudo. Então, viram-se os peixes nadando entre as folhagens das árvores, e os tigres afogados boiando sobre a vastidão das ondas crescidas. E os homens fugiam de monte em monte. E o céu se abria em relâmpagos e em quedas assombrosas de água. Mas um varão forte, que Tupã amava, — um varão de alma grande, que tinha o nome de Tamandaré, salvou a raça guardando dentro de uma canoa os seus filhos, e livrando-os do naufrágio espantoso. E de Tamandaré saímos nós, guerreiros que não tememos o trovejar das armas dos inimigos, quando o furor os assanha no campo de guerra, — mas que nos rojamos por terra, lembrando a antiga punição, quando ouvimos trovejar o céu, carregada de ameaças de maldição, a grande voz sagrada de Tupã, senhor e criador de todas as coisas e de todos os seres...”

Sumé amou aquela nação simples e sóbria, sem vícios e sem pecados. Louvou-lhe a bravura na guerra e a modéstia na paz. E quis torná-la feliz, ensinando-lhe o meio de viver na abundância. E ordenou que todos os homens válidos, depois de haverem abundantemente provido de caça e de pesca as cabanas, em que as mulheres e as crianças ficariam, seguissem com ele, para obrigar a terra a dar-lhes o sustento diário.

Disse-lhes Sumé: “A grande mãe é a terra: a grande mãe generosa; basta acariciá-la, basta amá-la e afagá-la, para que ela se abra logo prodigamente em toda a sorte de bens e de venturas.” 

Mas um pajé, velho sábio, conhecedor das coisas que o comum dos mortais ignora, observou: “Como pois, grande Santo, até hoje só tem ela tido para nós espinhos e répteis?” E Sumé respondeu: “Porque até hoje não a amastes com fervor e trabalho. Cavai-a e suai sobre ele: se rasgará agradecida, não para vos engolir, mas para vos dar vidas novas. Vinde comigo e vereis!” 

Seguiram-no eles. E a terra, por toda a parte, era nua e ingrata. Matagais crespos e impenetráveis subiam do seu seio. E, dentro deles, as cobras silvavam, as onças uivavam: e toda aquela natureza primitiva era inimiga do homem, inimiga sem piedade, que afiava contra ele os dentes de suas feras e as pontas agudas dos seus espinheiros. Mandou Sumé que desbastassem a terra, e tivessem, para destruir os matos fechados, a mesma bravura e o mesmo vigor que tinham para destruir as hostes dos inimigos.

Ordenou-lhe depois que amanhassem o solo, e, dando-lhes sementes várias, disse-lhes que as lançassem sem conta sobre o seio da grande mãe assim preparado.

Deste modo correu Sumé todo o litoral. E atrás dele todos os homens válidos da tribo seguiam. Os dias passavam. Passavam os meses. Passavam os anos. E de sol a sol, a febre do mesmo trabalho sacudia aquela multidão, que a virtude e a bondade de um só homem arrastavam seduzida e cativa. 

Quando Sumé chegou à grande Angra, que fechava ao sul o domínio dos Tamoios, parou. E disse, reunindo os trabalhadores:

— É tempo de retroceder... Ides ver como a terra vos paga em abundância e ventura as bagas de suor que gastastes em seu favor!

Retrocederam. E, então, começou o deslumbramento da tribo. À medida que se aproximavam do ponto de partida, viam a terra mudada, de mais em mais, abrindo-se em folhagens que não conheciam, em frutos que nunca tinham visto. E, quando chegaram ao grande acampamento, as mulheres e as crianças dançavam e cantavam. Os celeiros da tribo regurgitavam. O céu parecia mais belo; mais belo parecia o mar; mais bela a natureza toda; porque a tribo toda via agora a natureza através dessa alegria que é a filha da felicidade. Das sementes que o Santo Sumé fornecera, tinham nascido, em touceiras imensas, s bananeiras fartas; tinham nascido os carás e as mandiocas; tinham nascido os milhos de espigas de ouro; tinham nascidos os algodoeiros, os feijões e as favas...

Sumé não achou bastante o que já tinha feito: e ensinou-lhes a arte de fabricar a farinha, moendo a mandioca: e revelou-lhes os segredos da navegação, aperfeiçoando as suas igaras rústicas, dando-lhes velas, que, como asas de pássaros, ajudassem a voar com o vento, e lemos que, como caudas de peixes, as ajudassem a cortar ondas. E toda a tribo abençoou Sumé.

E em honra sua, todas as tardes, quando o pôr-do-sol ensanguentava as águas, a tribo dançava, ao bater compassado dos tambores, em torno do grande velho, — filho querido de Tupã, pai da Agricultura, Gênio protetor dos Tamoios.

Mas os anos passaram. E, com o passar dos anos, passou a gratidão da tribo.

Os pajés, ciumentos do poder do Santo, envenenaram a alma da nação: “Como? Pois ela, tão forte, que, em todo arredor, só seu grito de guerra bastava para amedrontar todas as outras nações, ficaria sempre sob o domínio de um só homem, um estrangeiro, um homem de pele branca?”

E o rumor da maledicência crescia em torno do Santo. E, em torno dele, a rede da intriga se apertava.

E ele ouvia, e sorria. E a sua grande alma, toda sabedoria e bondade, compreendia e perdoava a ingratidão das gentes.

Uma madrugada, quando o Santo saía da sua cabana, viu formados todos os Tamoios, que vociferavam, ameaçando-o. E todos eles estavam armados. E as fisionomias de todos eles transpiravam ódio e rancor.

O Santo Sumé quis falar. Não pôde. Uma flecha certeira, partida das fileiras dos ingratos, veio cravar-se no seu peito. O Santo sorriu. E, arrancando o dardo das carnes, atirou-o ao chão, e foi andando, de costas, para o lado do mar. Então, o ataque recrudesceu. As setas voavam, às centenas, aos milhares, todas atingindo o alvo. Sumé, com o mesmo sorriso nos lábios, ia sempre caminhando de costas para o lado do mar, e, de uma em uma, ia arrancando do corpo as setas que não o magoavam.

Quando chegou à praia, entrou pela água, cresceu sobre ela, sobre ela se equilibrou, e, sempre de costas, foi fugindo, — e sorrindo, sem amaldiçoar os ingratos a quem dera fartura.

E toda a tribo, paralisada de assombro, via, oscilando de leve sobre as ondas que o nascer do sol ensanguentava, ir diminuindo, diminuindo, até sumir-se de todo na extrema do horizonte, aquela doce figura, de pele branca com o a luz do dia, trazendo espalhada sobre o peito, até os pés, como uma toalha de neve, a longa barba venerável, cuja ponta roçava a água do mar…

Fonte: Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios. 1906.

Recordando Velhas Canções (Na casa branca da serra)

(Modinha, 1880)
Compositores: Guimarães Passos e Miguel E. Pestana


Na casa branca da serra
Onde eu ficava horas inteiras
Entre as esbeltas palmeiras
Ficaste calma e feliz
Tudo em meu peito me deste
Quando eu pisei na tua terra
Depois de mim te esqueceste
Quando eu deixei teu país.

Nunca te visse oh! formosa
Nunca contigo falasse
Antes nunca te encontrasse
Na minha vida enganosa
Por que não se abriu a terra
Por que os céus não me puniram
Quando os meus olhos te viram
Na casa branca da serra.

Embora tudo bendigo
Desta ditosa lembrança
Que sem me dar esperança
De unir-me ainda contigo
Bendigo a casa da serra
Bendigo as horas fagueiras
Bendigo as belas palmeiras
Queridas da tua terra.

Saudade e Melancolia na Casa Branca da Serra
A música 'Na casa branca da serra', é uma canção que exala saudade e melancolia. A letra descreve um lugar específico, a casa branca da serra, onde o eu lírico passou momentos felizes e tranquilos. As palmeiras esbeltas e a calma do ambiente são elementos que evocam uma sensação de paz e nostalgia. No entanto, essa tranquilidade é contrastada com a dor da separação e o esquecimento por parte da pessoa amada.

O eu lírico expressa um profundo arrependimento por ter conhecido a pessoa amada, desejando nunca tê-la encontrado para evitar o sofrimento subsequente. A dor é tão intensa que ele questiona por que os céus não o puniram ou por que a terra não se abriu quando seus olhos encontraram os dela. Essa hipérbole enfatiza a profundidade do seu sofrimento e a intensidade de seus sentimentos.

Apesar da dor, o eu lírico ainda bendiz as lembranças da casa na serra, as horas felizes e as palmeiras queridas. Isso mostra uma dualidade de sentimentos: a dor da perda e a gratidão pelos momentos felizes vividos. Cascatinha e Inhana, conhecidos por suas canções que frequentemente abordam temas de amor e saudade, conseguem transmitir essas emoções de maneira tocante e poética, fazendo com que o ouvinte sinta a profundidade do lamento e da nostalgia presentes na música.

Segundo Almirante "se há uma modinha que se possa considerar tradicional no Brasil, esta é chamada “Na Casa Branca da Serra”, da autoria de Miguel Emílio Pestana, com versos de Guimarães Passos. Há dezenas de anos que “Na Casa Branca da Serra” tem sido ao mesmo tempo do repertório dos seresteiros de rua como das mais graciosas senhoritas nos elegantes saraus, já em desuso" (O Pessoal da Velha Guarda, 14-12-1950).

Fontes:
https://cifrantiga3.blogspot.com/2006/04/na-casa-branca-da-serra.html
https://www.letras.mus.br/cascatinha-e-inhana/565140/significado.html